Capítulo 10 - Cidade dos Ossos

Houve um momento de atônito silêncio antes de ambos, Clary e Jace, começarem a falar de uma só vez.
— Valentim tinha uma esposa? Ele era casado? Eu pensei...
— Isso é impossível! Minha mãe nunca... ela sempre foi casada somente com o meu pai! Ela não tinha um ex-marido!
Hodge levantou as mãos exaustivamente.
— Crianças...
— Eu não sou uma criança — Clary girou para longe da mesa — e eu não quero ouvir mais nada.
— Clary — Hodge disse.
A bondade em sua voz machucava; ela se virou lentamente e olhou. Ela pensou em como era estranho que, com seu cabelo cinza e o rosto amargurado, ele parecesse muito mais velho que a mãe dela. E ainda que tivessem sido “jovens” juntos, tivessem aderido ao Círculo juntos, tinham conhecido Valentim juntos.
— Minha mãe não faria... — ela começou, e diminuiu sua voz.
Ela já não estava certa do quão bem conhecia Jocelyn. Sua mãe tinha se tornado uma estranha para ela, uma mentirosa, uma guardadora de segredos. O que ela não teria feito?
— Sua mãe deixou o Círculo — Hodge disse. Ele não se moveu na direção dela, mas a observava com o olhar brilhante de um pássaro calmo — depois que percebeu o que as visões extremas de Valentim tinham se tornado – uma vez que nós sabíamos o que ele estava preparado para fazer – muitos de nós saíram. Lucian foi o primeiro a sair. Esse foi um duro golpe para Valentim. Eles tinham sido muito próximos — Hodge balançou a cabeça. — Então, Michael Wayland. Seu pai, Jace.
Jace levantou suas sobrancelhas, mas não disse nada.
— Houve aqueles que permaneceram fiéis. Pangborn. Blackwell. Os Lightwood...
— Os Lightwood? Você quer dizer, Robert e Maryse? — Jace pareceu fulminado. — O que me diz de você? Quando você saiu?
— Eu não saí — Hodge respondeu suavemente — nem eles... Nós estávamos com medo, muito medo do que Valentim poderia fazer. Após a Revolta, os leais como Blackwell e Pangborn fugiram. Nós ficamos e cooperamos com a Clave. Demos a eles nomes. Ajudamos a perseguir os que tinham fugido. Por isso, nós recebemos clemência.
— Clemência?
O olhar de Jace foi rápido, mas Hodge percebeu.
— Você está pensando na maldição que me segura aqui, não é mesmo? Você sempre supôs que fosse uma vingança mágica feita por um demônio furioso ou bruxo. Eu deixei você achar isso. Mas não é verdade. A maldição que me obriga foi lançada pela Clave.
— Por ter sido do Círculo? — Jace perguntou, seu rosto uma máscara de espanto.
— Por não ter saído antes da Revolta.
— Mas o Lightwood não foram punidos — Clary disse. — Por que não? Eles haviam feito a mesma coisa que você.
— Houve circunstâncias atenuantes em seu caso. Eles eram casados, tinham um filho. Embora não seja como se eles residissem neste posto, longe de casa, pela sua própria escolha. Fomos banidos para cá, nós três, os quatro, devo dizer, mas Alec era um bebê chorão quando saímos da Cidade de Vidro. Eles podem regressar à Idris apenas em caráter oficial, e apenas por curto período. Eu nunca poderei voltar. Nunca vou ver a Cidade de Vidro novamente.
Jace o estudou. Era como se estivesse olhando para o seu tutor com novos olhos, Clary pensou, porém, que não era Jace que tinha mudado. Ele falou:
— A lei é dura, mas é a lei.
— Eu lhe ensinei isso — Hodge disse, secura na diversão em sua voz. — E agora você torna minhas lições de volta para mim. Corretamente também.
Ele pareceu como se quisesse se afundar na cadeira mais próxima, no entanto, continuou de pé. Na sua postura rígida, havia alguma coisa do soldado que ele tinha sido, Clary pensou.
— Por que você não me disse antes? Que minha mãe era casada com Valentim. Você sabia o nome dela...
— Eu a conheci como Jocelyn Fairchild, não Jocelyn Fray — Hodge respondeu — e você era tão insistente em sua ignorância sobre o Mundo das Sombras que me convenceu que ela não poderia ser a Jocelyn que eu conhecia – e talvez eu não quisesse acreditar nisso. Ninguém deseja o retorno de Valentim — ele balançou sua cabeça de novo — quando enviei a carta para os Irmãos da Cidade dos Ossos esta manhã, eu não tinha ideia que teríamos notícia deles. Quando a Clave souber que Valentim pode ter retornado, que ele está procurando pelo Cálice, haverá um alvoroço. Só espero que não perturbe o Pacto.
— Eu aposto que Valentim gostaria disso — Jace comentou — mas por que ele querer o Cálice é tão ruim?
O rosto de Hodge ficou pálido.
— Não é óbvio? Assim ele pode construir um exército para si.
Jace pareceu assustado.
— Mas isso nunca...
— Hora do jantar!
Era Isabelle, parada na moldura da porta da biblioteca. Ela ainda estava com a colher em sua mão, embora o cabelo tenha escapado do coque e estivesse espalhado em seu pescoço.
— Desculpe se estou interrompendo — ela adicionou, enquanto refletia.
— Querido Deus — Jace disse — a hora tenebrosa está perto.
Hodge pareceu alarmado.
— Eu... eu... eu tive um café da manhã muito reforçado — ele gaguejou — quero dizer, almoço. Um almoço reforçado. Eu possivelmente não poderia comer...
— Eu joguei fora a sopa — Isabelle disse — e pedi no restaurante chinês no centro da cidade.
Jace soltou-se da mesa e se esticou.
— Ótimo. Estou faminto.
— Eu poderia ser capaz de comer um pouco — Hodge admitiu brandamente.
— Vocês dois são terríveis mentirosos — disse Isabelle sombriamente. — Olha, eu sei que vocês não gostam de mim cozinhando...
— Então, pare de fazer isso — Jace a aconselhou razoavelmente. — Você pediu porco mu shu? Você sabe que eu amo porco mu shu.
Isabelle lançou os olhos em direção ao céu.
— Sim. Está na cozinha.
— Fantástico.
Jace deslizou até ela com uma afetuosa agitação no seu cabelo. Hodge foi atrás dele, parando perto de Isabelle e dando-lhe um tapinha no ombro e então foi embora, com um engraçado inclinar de desculpas em sua cabeça. Clary tinha realmente, apenas alguns minutos atrás, ter sido capaz de ver nele o fantasma do seu antigo eu guerreiro?
Isabelle estava olhando para as costas de Jace e Hodge, rodando a colher em seus dedos pálidos com cicatrizes.
— Ele é realmente? — Clary perguntou.
Isabelle, não olhou para ela.
— Quem é realmente o quê?
— Jace. Ele é realmente um péssimo mentiroso?
Agora Isabelle se virou para olhar nos olhos de Clary. Eles eram grandes e escuros, inesperadamente pensativos.
— Ele não é um mentiroso em tudo. Não sobre coisas importantes. Ele vai lhe dizer verdades horríveis, mas não vai mentir — ela pausou, antes de acrescentar calmamente: — É por isso que geralmente é melhor não lhe perguntar nada, a menos que você saiba que não pode ficar sem a resposta.

***

A cozinha estava quente, cheia de luz e do agridoce cheiro de comida chinesa comprada. O cheiro recordou Clary de casa; sentada e olhando para o seu brilhante prato de macarrão, brincando com seu garfo, e tentando não olhar para Simon, que estava olhando para Isabelle com uma expressão mais vidrada do que o público de um show.
— Bem, eu acho que isso é tipo romântico — Isabelle comentou.
— O quê? — Simon perguntou, instantaneamente alerta.
— Todo esse negócio sobre a mãe de Clary sendo casada com Valentim — Isabelle respondeu.
Jace e Hodge a tinham informado, embora Clary notou que ambos tinham deixado de fora a parte sobre os Lightwood terem sido do Círculo, e as maldições que a Clave tinha pronunciado.
— Portanto, agora ele está de volta dos mortos e veio procurando por ela. Talvez ele queira voltar a ficar juntos.
— Eu duvido que ele tenha enviado um demônio Ravener para a casa dela porque quer “voltar a ficar juntos” — Alec respondeu.
Ele tinha aparecido quando a comida era servida. Ninguém perguntou onde tinha estado, e ele não ofereceu a informação. Ele estava sentado ao lado de Jace, em frente a Clary, e estava evitando olhar para ela.
— Esta não seria a minha opinião — Jace concordou. — Primeiro doces e flores, depois uma carta com desculpas, então um demônio devorador de hordas. Nesta ordem.
— Ele poderia ter enviado a ela doces e flores — Isabelle opinou. — Nós não sabemos.
— Isabelle — disse Hodge pacientemente — este é o homem que espalhou destruição em Idris como eu nunca tinha visto, que colocou Caçadores de Sombras contra o Submundo e fez as ruas da Cidade de Vidro escoarem com sangue.
— Isso é tipo sexy — Isabelle argumentou — de um jeito ruim.
Simon tentou olhar ameaçador, mas desistiu quando viu Clary olhando para ele.
— Então, por que Valentim querer este Cálice é tão ruim, e por que ele acha que a mãe Clary a tem? — ele perguntou.
— Você disse que assim ele poderia fazer um exército — Clary lembrou, se virando para Hodge. — Você quis dizer porque vocês podem usar o Cálice para fazer Caçadores de Sombras?
— Sim.
— Então Valentim apenas caminha até qualquer cara na rua e faz dele um Caçador de Sombras? Só com o Cálice? — Simon inclinou para a frente. — Será que isso funcionaria em mim?
Hodge deu a ele um longo e mensurado olhar.
— Possivelmente. Mas o mais provável é que, você esteja muito velho. O Cálice funciona em crianças. Um adulto talvez fosse afetado totalmente pelo processo ou talvez o matasse em definitivo.
— Um exército de crianças — Isabelle disse suavemente.
— Apenas por alguns anos — Jace lembrou — crianças crescem rápido. Não seria muito tempo antes que elas fossem uma força para se combater.
— Não sei — Simon falou. — Transformar um bando de meninos em guerreiros... tenho ouvido falar de coisas piores acontecendo. Eu não vejo grande coisa em manter ao Cálice longe dele.
— E deixar que ele inevitavelmente utilize este exército para lançar um ataque à Clave — Hodge disse secamente. — A razão por que só alguns seres humanos são selecionados para serem convertidos em Nephilim é que a maioria não sobrevive à transição. Isso necessita de uma força especial e resistência. Antes de eles poderem ser convertidos, devem ser testados exaustivamente – mas Valentim nunca se incomodaria com isso. Ele iria usar o Cálice em qualquer criança que capturasse, utilizando os vinte por cento dos sobreviventes para o seu exército.
Alec estava olhando Hodge com o mesmo horror que Clary sentia.
— Como você sabe que ele iria fazer isso?
— Porque quando ele estava no Círculo, esse era o seu plano. Ele disse que era a única forma de construir o tipo de força que era necessária para defender o nosso mundo.
— Mas isso é assassinato — Isabelle parecia um pouco verde. — Ele estava falando de matar crianças.
— Ele disse que tinha feito o mundo seguro para os seres humanos por mil anos — Hodge respondeu — e agora era a vez de nos reembolsar com o seu próprio sacrifício.
— Seus filhos? — Jace protestou, suas bochechas coradas. — Isso vai contra tudo o que nós supomos ser. Proteger os indefesos, salvar, guardar a humanidade.
Hodge empurrou seu prato para longe.
— Valentim era louco. Brilhante, mas louco. Ele não se preocupava com nada além de matar demônios e seres do Submundo. Nada além de tornar o mundo puro. Ele teria sacrificado seu próprio filho para a causa e não podia entender como alguém não o faria.
— Ele tinha um filho? — Alec perguntou.
— Eu estava falando figurativamente — Hodge respondeu, alcançando o seu lenço.
Ele o usou para esfregar na sua testa antes de retorná-lo para o seu bolso. Sua mão, Clary viu, estava tremendo ligeiramente.
— Quando sua terra foi queimada e sua casa destruída, presumiu-se que ele tinha se incendiado e o Cálice fora feito em cinzas. Era melhor do que renunciar a Clave a outro. Seus ossos foram encontrados nas cinzas, juntamente com os ossos de sua esposa.
— Mas a minha mãe sobreviveu — Clary falou — ela não morreu naquele incêndio.
— E nem, ao que parece agora, Valentim — Hodge disse. — A Clave não ficará satisfeita de ter sido enganada. Eles vão querer possuir o Cálice. E mais importante do que isso, eles vão querer ter de certeza que Valentim não o tem.
— Me parece que a primeira coisa que nós devemos fazer é achar a mãe de Clary — disse Jace — encontrando ela, encontra-se o Cálice. Temos que conseguir isso antes de Valentim.
Isto soou ótimo para Clary, mas Hodge olhou para Jace como se ele tivesse proposto fazer malabarismos com nitroglicerina.
— Absolutamente, não.
— Então o que vamos fazer?
— Nada. É melhor deixar tudo isso para os Caçadores de Sombras qualificados e experientes.
— Eu sou qualificado — Jace protestou — e experiente.
O tom de Hodge era firme, quase paternal.
— Eu sei que você é, mas ainda é criança, ou quase uma.
Jace olhou para Hodge através dos olhos semicerrados. Seus cílios eram longos, lançando sombras sobre os seus angulares ossos do rosto. Em outra pessoa teria sido um olhar tímido, até mesmo de pesar, mas em Jace parecia restrito e ameaçador.
— Eu não sou criança.
— Hodge está certo — Alec se pronunciou.
Ele estava olhando para Jace, e Clary pensou que ele deveria ser uma das poucas pessoas no mundo que não olhava para Jace como se estivesse com medo dele, mas como se estivesse com medo por ele.
— Valentim é perigoso. Sei que você é um bom Caçador de Sombras. Você é provavelmente o melhor da nossa idade. Mas Valentim é o melhor que alguma vez já existiu. Precisou de uma enorme batalha para abatê-lo.
— E ele não ficou exatamente derrotado — Isabelle lembrou, examinando os dentes de seu garfo — aparentemente.
— Mas nós estamos aqui — disse Jace. — Nós estamos aqui, e em virtude do Pacto, ninguém mais está. Se não fizermos algo...
— Nós vamos fazer alguma coisa — disse Hodge — eu vou enviar uma mensagem a Clave esta noite. Eles podem ter uma força de Nephilim por aqui amanhã, se precisarem. Vão cuidar disso. Você já fez mais do que o suficiente.
Jace acalmou-se, mas seus olhos ainda estavam brilhantes.
— Eu não gosto disso.
— Você não tem que gostar disso — Alec respondeu — você só tem que calar a boca e não fazer nada estúpido.
— Mas e sobre a minha mãe? — Clary exigiu. — Ela não pode esperar por algum representante da Clave aparecer. Valentim a tem agora mesmo, e Pangborn e Blackwell disseram que... ele poderia...
Clary não conseguia dizer a palavra “tortura”, mas sabia que ela não era a única a pensar aquilo. De repente, ninguém na mesa conseguia encontrar os olhos dela.
Exceto Simon.
— Machucá-la — ele terminou sua frase — eles também disseram que ela estava inconsciente e que Valentim não estava feliz com isso. Parece estar esperando que ela acorde.
— Eu ficaria inconsciente se fosse ela — Isabelle murmurou.
— Mas isso pode ser a qualquer momento — Clary disse, ignorando Isabelle — pensei que a Clave tivesse prometido proteger as pessoas. Eles não poderiam já ter mandado Caçadores de Sombras para cá agora? Não poderiam já estar procurando por ela?
— Isso seria mais fácil — Alec respondeu — se tivéssemos alguma ideia onde procurar.
— Mas nós temos — Jace respondeu.
— Nós temos? — Clary olhou para ele, assustada e ansiosa. — Onde?
— Aqui — Jace se inclinou para frente e tocou os dedos em sua têmpora, tão suavemente que um rubor penetrou até o rosto dela — tudo o que precisamos saber está trancado na sua cabeça, debaixo desses lindos cachos vermelhos.
Clary chegou até a tocar o cabelo protetoramente.
— Eu não acho que...
— Então o que você vai fazer? — Simon perguntou rispidamente. — Cortar a cabeça dela, abrir para chegar à informação?
Os olhos de Jace faiscaram, mas respondeu calmamente:
— De modo algum. Os Irmãos do Silêncio podem ajudá-la a recuperar a sua memória.
— Você odeia os Irmãos do Silêncio — Isabelle protestou.
— Eu não os odeio. Eu tenho medo deles. Não é a mesma coisa.
— Eu pensei que você tinha dito que eles eram bibliotecários — Clary observou.
— Eles são bibliotecários.
— O Irmãos do Silêncio são arquivistas, mas isso não é tudo o que eles são — interrompeu Hodge, soando como se estivesse esgotando a paciência — a fim de reforçar as suas mentes, eles optaram por tomar sobre si algumas das Runas mais poderosas já criadas. O poder dessas Runas é tão grande que a utilização delas por eles...
Ele se interrompeu e Clary ouviu a voz de Alec em sua cabeça, dizendo: “Ninguém que mutila a si mesmo...”
— Bem, eles deformam e alteram suas formas físicas. Não são guerreiros no sentido que outros Caçadores de Sombras são. Seus poderes são da mente, e não do corpo.
— Eles podem ler mentes? — Clary perguntou em voz baixa.
— Entre outras coisas. Eles estão entre os mais temidos de todos os caçadores de demônios.
— Não sei — Simon disse — isso não parece tão ruim para mim. Eu prefiro ter alguém bagunçando dentro da minha cabeça do que a cortando em pedaços.
— Então você é um idiota maior do que parece — Jace respondeu, falando com desprezo.
— Jace está certo — Isabelle concordou, ignorando Simon — os Irmãos do Silêncio são realmente assustadores.
As mãos de Hodge apertaram-se em cima da mesa.
— Eles são muito poderosos. Andam na escuridão e não falam, mas podem abrir uma fenda na mente de um homem, da mesma forma que você pode abrir uma fenda em uma noz, e deixá-lo gritando sozinho no escuro, se for isso que eles desejam.
Clary olhou para Jace, horrorizada.
— Você quer me dar a eles?
— E quero que eles ajudem você — Jace se inclinou na mesa, tão perto que ela podia ver o âmbar escuro salpicando luz nos seus olhos — talvez nós não precisemos procurar pelo Cálice — ele disse suavemente — talvez a Clave faça isso. Mas o que está em sua mente pertence a você. Alguém escondeu segredos aí, segredos que você não pode ver. Você não quer saber a verdade sobre sua própria vida?
— Eu não quero alguém dentro da minha cabeça — ela replicou fracamente.
Ela sabia que Jace estava certo, mas a ideia de ir a seres que até os Caçadores de Sombras achavam assustadores enviava um frio através de seu sangue.
— Eu vou com você — Jace disse. — Eu vou ficar com você enquanto eles fazem isso.
— Já chega — Simon tinha se levantado da mesa, vermelho de raiva — deixe-a em paz.
Alec olhou acima para Simon, como se só agora tivesse reparado nele, limpando o cabelo preto bagunçado para fora de seus olhos e piscando.
— O que você ainda está fazendo aqui, mundano?
Simon o ignorou.
— Eu disse, deixe-a em paz.
Jace olhou para cima, um lento olhar docemente venenoso.
— Alec está certo. O Instituto está ligado por juramento a abrigar Caçadores de Sombras, não seus amigos mundanos. Especialmente quando eles exaurem sua recepção.
Isabelle se levantou e tomou o braço de Simon.
— Eu vou mostrar a ele a saída.
Por um momento, parecia que Simon ia resistir, mas então ele apanhou o olhar de Clary por cima da mesa enquanto ela balançava a cabeça ligeiramente. Ele se acalmou.
Cabeça levantada, ele deixou Isabelle levá-lo do salão.
Clary se levantou.
— Estou cansada. Eu quero ir dormir.
— Você não comeu quase nada... — Jace protestou.
Ela colocou para o lado a mão dele que a alcançava.
— Não estou com fome.
Estava mais frio no corredor do que na cozinha. Clary se inclinou contra a parede, puxando a sua camisa, que foi aderindo ao suor frio em seu peito. Longe do salão, ela podia ver as figuras de Isabelle e Simon se afastando, tragados pelas sombras. Ela viu eles irem silenciosamente, um estranho tiritante sentimento crescendo no fundo do seu estômago. Quando Simon se tornou responsabilidade de Isabelle, em vez dela? Se havia uma coisa que ela estava aprendendo com tudo isso, era como era fácil perder tudo o que sempre tinha pensado que teria para sempre.
A sala era toda dourada e branco, com paredes altas que cintilavam como esmalte e um telhado acima claro e brilhante como diamantes. Clary usava um vestido verde de veludo e carregava um leque dourado na mão. Seus cabelos, torcidos em um laço que derramavam em cachos, faziam sua cabeça sentir estranhamente pesada a cada vez que ela se virava para olhar para trás.
— Você vê alguém mais interessante do que eu? — Simon perguntou.
No sonho, ele era misteriosamente um expert dançarino. Ele a dirigia, através da multidão, como se ela fosse uma folha capturada em uma correnteza do rio. Estava vestido todo de preto, como um Caçador de Sombras, e aquilo demonstrava sua cor com uma boa vantagem: cabelo escuro, pele ligeiramente dourada, dentes brancos.
Ele é lindo, Clary pensou, com um choque de surpresa.
— Não há ninguém mais interessante do que você  Clary respondeu. — É só esse lugar. Eu nunca tinha visto nada assim.
Ela se virou novamente enquanto eles passavam por uma fonte de taças de champanhe: uma enorme recipiente de prata, o centro da peça era uma sereia com um jarro de vinho espumante derramando abaixo das costas nuas dela. As pessoas estavam enchendo seus copos na fonte, rindo e conversando.
A sereia virou a cabeça enquanto Clary passava, e sorriu. Os dentes brancos eram tão afiados quanto os de um vampiro.
— Bem-vinda à Cidade de Vidro — disse uma voz que não era a de Simon.
Clary descobriu que Simon tinha desaparecido, e ela já estava dançando com Jace, que estava vestido de branco. O material de sua camisa era um fino algodão; ela podia ver as marcas pretas através dela. Havia uma corrente de bronze em torno de sua garganta, e os seus cabelos e olhos pareciam mais dourados do que nunca. Ela pensou em como gostaria de pintar o seu retrato com o embotado ouro das pinturas que às vezes via nos ícones russos.
— Onde está o Simon? — perguntou enquanto giravam novamente em torno da fonte de champanhe.
Clary viu Isabelle ali, com Alec, ambos em azul real. Eles estavam segurando as mãos como João e Maria na floresta escura.
— Este lugar é para a vida — Jace disse.
Suas mãos estavam frias sobre as delas, e ela estava consciente delas de uma maneira que não tinha estado com as de Simon.
Ela estreitou seus olhos para ele.
— O que você quer dizer?
Ele se inclinou para perto. Ela podia sentir seus lábios contra a sua orelha. Eles não estavam frios.
— Acorde, Clary — ele sussurrou. — Acorde. Acorde.
Ela ficou ereta na cama, ofegando, o cabelo pregado no pescoço com o suor frio. Seus punhos estavam seguros em um forte aperto; ela tentava se distanciar, então percebeu quem estava segurando-a.
— Jace?
— Sim?
Ele estava sentado à beira da cama. Como ela tinha chegado a uma cama? Parecendo desgrenhada e meio acordada, de manhã cedo com cabelos e olhos sonolentos.
— Me larga.
— Desculpe — seus dedos escorregaram dos pulsos dela — você tentou me bater no segundo em que eu disse o seu nome.
— Estou um pouco nervosa, eu acho.
Ela olhou ao redor. Estava em um quarto pequeno decorado em madeira escura. Pela quantidade de luz proveniente da janela semiaberta, ela adivinhou que era madrugada, ou logo depois. Sua mochila estava encostada contra uma parede.
— Como eu vim parar aqui? Não me lembro...
— Eu achei você dormindo no chão do corredor — Jace soou divertido — Hodge me ajudou a colocar você na cama. Pensei que seria mais confortável em um quarto do que na enfermaria.
— Uau. Não me lembro de nada — ela correu as mãos através de seus cabelos, empurrando os bagunçados cachos fora de seus olhos — que horas são, afinal?
— Cerca de cinco.
— Da manhã? — ela olhou para ele. — É melhor você ter um bom motivo para me acordar.
— Porque, você estava tendo um sonho bom?
Ela podia ainda ouvir música em suas orelhas, sentir as pesadas joias tocando suas bochechas.
— Não me lembro.
Ele se levantou.
— Um dos Irmãos do Silêncio está aqui para ver você. Hodge me enviou para te acordar. Na verdade, ele se ofereceu para te acordar sozinho, mas, uma vez que é cinco horas, pensei que você ia querer alguém menos esquisito se quisesse algo bonito para olhar.
— Quer dizer você?
— Quem mais?
— Eu não concordo com isso, você sabe — ela rebateu — essa coisa de Irmão do Silêncio.
— Você quer encontrar a sua mãe ou não?
Ela o encarou.
— Você apenas tem que encontrar com o Irmão Jeremiah. Só isso. Você pode até gostar dele. Ele tem um grande senso de humor para um cara que nunca diz nada.
Ela colocou sua cabeça em suas mãos.
— Sai daqui. Saia para que eu possa me trocar.
Ela colocou suas pernas para fora da cama no momento em que a porta se fechou atrás dele. Apesar de ser apenas madrugada, o calor úmido já estava começando a se reunir no quarto. Ela fechou a janela e foi para o banheiro lavar o rosto e sua boca, que estava com gosto de papel velho.
Cinco minutos mais tarde, ela estava deslizando os pés em seu tênis verde. Se trocou, pondo shorts e uma camiseta preta. Se apenas suas magras e sardentas pernas parecessem mais como as pernas esguias e muscolosas de Isabelle... Mas isso não poderia ajudar. Ela puxou o cabelo para trás em um rabo de cavalo e foi se encontrar com Jace no corredor.
Church estava lá com ele, resmungando e circulando inquietamente.
— O que é que há com o gato? — Clary perguntou.
— Os Irmãos do Silêncio o deixam nervoso.
— Parece que eles deixam todos nervosos.
Jace sorriu fracamente. Church miou enquanto Jace ia para o fundo do corredor, mas não os seguiu.
Pelo menos as pedras grossas das paredes da catedral ainda detinham algumas horas do frio da noite: os corredores eram escuros e frios.
Quando eles chegaram à biblioteca, Clary ficou surpresa ao ver que as lâmpadas estavam apagadas. A biblioteca era iluminada apenas pelo brilho leitoso que era filtrado através das janelas elevadas que ficavam no telhado abobado.
Hodge estava sentado atrás da enorme mesa em um terno, seu cabelo listrado de cinza parecendo prateado à luz da madrugada. Por um momento, ela pensou que ele estava sozinho no salão: que Jace tinha ido fazer uma brincadeira em cima dela. Depois, ela viu uma figura sair da obscuridade e percebeu que o que tinha pensado ser uma mancha escura de sombra, era um homem.
Um homem alto vestindo um manto pesado que caía do pescoço aos pés, cobrindo-o completamente. A capa do manto estava levantada, escondendo seu rosto. A roupa em si era da cor de pergaminho, e os intricados desenhos rúnicos ao longo das bordas e das mangas pareciam como se tivessem sido tingidas em sangue seco.
Os pelos ao longo dos braços de Clary e de sua nuca se arrepiaram, formigando quase dolorosamente.
— Este — Hodge apresentou — é Irmão Jeremiah da Cidade do Silêncio.
O homem veio em direção a eles, o pesado manto agitando atrás dele enquanto se movia, e Clary notou algo estranho sobre ele: ele não fez qualquer som quando andou, nem a mais leve passada. Mesmo o seu manto, que deveria ter ruído, era silencioso. Ela quase se perguntou se ele era um fantasma, mas não, ela pensou enquanto ele parou em frente a eles, havia um cheiro estranho, doce sobre ele, como incenso e sangue, o cheiro de algo vivo.
— E esta, Jeremiah — Hodge continuou, levantando-se de sua mesa — é a garota sobre a qual escrevi para você. Clarissa Fray.
O rosto encapuzado virou lentamente na direção dela. Clary sentiu frio na ponta de seus dedos.
— Oi — ela cumprimentou.
Não houve resposta.
— Eu decidi que você estava certo, Jace — Hodge falou.
— Eu estava certo — Jace disse — eu normalmente estou.
Hodge ignorou isso.
— Enviei uma carta a Clave sobre tudo na noite passada, mas as memórias de Clary são dela mesma. Só ela pode decidir como pretende lidar com o conteúdo de sua própria cabeça. Se quer a ajuda dos Irmãos do Silêncio, é ela que deve ter essa escolha.
Clary não disse nada. Dorothea havia dito que havia um bloqueio em sua mente, escondendo alguma coisa. É claro que ela precisava saber o que era. Mas a figura sombria do Irmão do Silêncio era tão... bem, silenciosa. O silêncio por si só parecia flutuar, vindo dele como uma maré escura e grossa como tinta. Aquilo gelava seus ossos.
O rosto do irmão Jeremiah ainda estavam voltados para ela, nada mais que a escuridão visível debaixo de seu capuz.
Esta é a filha de Jocelyn?
Clary deu um pequeno suspiro, dando um passo para trás. As palavras
ecoaram dentro de sua cabeça, como se ela própria tivesse pensado nelas, mas ela não tinha.
— Sim — Hodge disse, e acrescentou rapidamente — mas o pai dela era um mundano.
Isso não importa, Jeremiah disse. O sangue da Clave é dominante.
— Porque você chama a minha mãe de Jocelyn? — Clary perguntou, procurando em vão por algum sinal de um rosto debaixo do capuz. — Você a conhece?
— Os Irmãos mantêm registros sobre todos os membros da Clave — Hodge explicou — registros completos.
— Não tão completos — Jace interferiu — se eles nem sequer sabiam que ela ainda estava viva.
Provavelmente porque ela tinha o apoio de um bruxo em seu desaparecimento. A maioria dos Caçadores de Sombras não pode escapar tão facilmente da Clave.
Não havia nenhuma emoção na voz de Jeremiah, não pareceu que aprovava, nem desaprovava as ações de Jocelyn.
— Há algo que eu não entendo — disse Clary — por que Valentim acha que minha mãe tem o Cálice Mortal? Se ela passou por tantos problemas para desaparecer, como você disse, então porque é que ela iria levá-lo?
— Para mantê-lo longe — Hodge respondeu — ela acima de todas as pessoas teria sabido o que aconteceria se Valentim tivesse o Cálice. E eu imagino que ela não confiava na Clave para guardá-lo. Não depois de Valentim tê-los afastado em primeiro lugar.
— Acho que sim.
Clary não podia manter a dúvida longe de sua voz. A coisa toda parecia tão improvável. Ela tentou imaginar sua mãe fugindo coberta pela escuridão, com uma grande taça de ouro escondida no bolso de seu macacão, e falhou.
— Jocelyn se voltou contra o seu marido quando descobriu o que ele pretendia fazer com o Cálice — Hodge contou — não é razoável assumir que ela iria fazer tudo o que estivesse em seu poder para manter o Cálice em suas mãos. A Clave por si mesma teria procurado primeiro por ela se pensassem que ela ainda estivesse viva.
— O que me parece — Clary murmurou — que ninguém que a Clave pensa que está morto está realmente morto. Talvez eles devessem investir em registros odontológicos.
— Meu pai morreu — disse Jace, o mesmo tom em sua voz — eu não preciso de registros odontológicos para me dizer isso.
Clary virou para ele com alguma exasperação.
— Olha, eu não quis dizer...
Isso é o suficiente, interrompeu Irmão Jeremiah. Há verdade suficiente para ser aprendida aqui, se você tiver paciência suficiente para escutá-la.
Com um gesto rápido, ele levantou as mãos e retirou o capuz para trás do seu rosto.
Esquecendo Jace, Clary lutou com o desejo de gritar. A cabeça do arquivista era careca, lisa e branca como um ovo, sombriamente denteada onde os seus olhos haviam estado. Eles já tinham desaparecido. Seus lábios foram costurados cruzados com um padrão de linhas escuras semelhante a suturas cirúrgicas. Ela então compreendeu o que Isabelle quis dizer com mutilação.
Os Irmãos da Cidade do Silêncio não mentem, Jeremiah disse. Se você quiser a verdade de mim, você a terá, mas vou lhe pedir o mesmo em troca.
Clary levantou seu queixo.
— Eu também não sou uma mentirosa.
A mente não pode mentir.
Jeremiah moveu-se em direção a ela.
É as suas memórias que eu quero.
O cheiro de sangue e tinta era sufocante. Clary sentiu uma onda de pânico.
— Espera...
— Clary — era Hodge, o seu tom suave — é inteiramente possível que haja memórias enterradas ou reprimidas, memórias formadas quando você era jovem demais para ter uma recordação consciente delas. Irmão Jeremiah pode alcançá-las. Isso pode nos ajudar em um grande plano.
Ela não disse nada, mordendo o interior de seu lábio. Ela odiava a ideia de alguém vasculhando dentro da cabeça, tocando memórias tão privadas e escondidas que mesmo ela não poderia alcançá-las.
— Ela não tem que fazer nada que não queira fazer — Jace disse repentinamente — não é?
Clary interrompeu Hodge antes que ele pudesse responder.
— Está tudo bem. Vou fazer isso.
Irmão Jeremiah concordou brevemente e se moveu em direção a ela com a falta de som que enviou arrepios até a sua coluna vertebral.
— Vai doer? — ela sussurrou.
Ele não respondeu, mas suas estreitas mãos brancas vieram para tocar seu rosto. A pele dos dedos era fina quanto papel de pergaminho, toda ela pintada com Runas. Clary podia sentir o poder nelas, saltando como eletricidade estática para picar sua pele.
Ela fechou os olhos, mas não antes de ver a ansiosa expressão que atravessou o rosto de Hodge.
Cores giravam contra a escuridão atrás das pálpebras. Ela sentiu uma pressão, uma tração puxar em sua cabeça, mãos e pés. Clary prendeu suas mãos contra o esforço excessivo do peso, da escuridão. Ela sentia como se fosse pressionada contra algo duro e inflexível, sendo lentamente esmagada. Ouviu a si mesma suspirar e tudo estava de repente frio, frio como no inverno. Em um flash ela viu ruas geladas, edifícios cinzentos assomando sobre a cabeça, uma explosão de brancura acertando seu rosto em partículas congelando...
— Já chega.
A voz de Jace cortou o inverno frio, e a neve caindo desapareceu, uma ducha de branco.
Os olhos de Clary saltaram abertos.
Lentamente, a biblioteca voltou ao foco, os livros alinhados nas paredes, os rostos ansiosos de Hodge e Jace. Irmão Jeremiah ficou imóvel, um ídolo de marfim esculpido em tinta vermelha. Clary tomou conhecimento da acentuada dor nas mãos, e olhou para baixo para ver as linhas vermelhas pontuadas em toda a sua pele onde suas unhas tinham se cravado.
— Jace — Hodge disse em reprovação.
— Olhe para as mãos dela.
Jace gesticulou sinais em direção a Clary, que curvou seus dedos para cobrir as feridas em suas palmas.
Hodge pôs uma mão larga sobre seu ombro.
— Você está bem?
Lentamente, ela moveu a cabeça em um aceno. O peso esmagador tinha ido, mas ela podia sentir o suor que encharcou seu cabelo, colando sua camisa nas suas costas como fita adesiva.
Há um bloqueio em sua mente, Irmão Jeremiah disse. Sua memória não pôde ser alcançada.
— Um bloqueio? — Jace perguntou. — Você quer dizer, ela reprimiu as suas memórias?
Não. Eu quero dizer que foram bloqueadas de sua mente consciente por um feitiço. Eu não posso quebrá-lo aqui. Ela terá de vir para a Cidade dos Ossos e ficar diante da Irmandade.
— Um feitiço? — Clary repetiu incredulamente. — Quem teria posto um feitiço em mim?
Ninguém respondeu. Jace olhava para seu tutor. Ele estava surpreendentemente pálido, Clary pensou, considerando que esta tinha sido a ideia dele.
— Hodge, ela não deveria ter de ir se não quiser...
— Está tudo bem.
Clary deu um profundo suspiro. Suas palmas doíam onde as unhas tinham cortado, e ela precisava terrivelmente deitar em algum lugar escuro e tranquilo.
— Eu vou. Quero saber a verdade. Quero saber o que está na minha cabeça.
Jace acenou uma vez.
— Muito bem. Então eu vou com você.
Deixar o Instituto era como entrar em um saco de lona quente e molhado, o ar úmido estacionado sobre a cidade.
— Não vejo por que razão temos de ir separadamente do Irmão Jeremiah — Clary falou.
Eles estavam de pé na esquina fora do Instituto. As ruas estavam desertas, à exceção de um caminhão de lixo movendo-se lentamente para baixo da quadra.
— O quê, ele tem vergonha de ser visto com Caçadores de Sombras ou algo assim?
— A Irmandade é composta por Caçadores de Sombras — Jace salientou.
De alguma maneira, ele conseguia aparentar estar fresco apesar do calor. Isso fez Clary querer acertá-lo.
— Eu suponho que ele foi em seu carro? — ela perguntou sarcasticamente.
Jace sorriu.
— Algo como isso.
Ela balançou a cabeça dela.
— Você sabe, eu me sentiria muito melhor se Hodge tivesse vindo com a gente.
— O quê, eu não sou proteção suficiente para você?
— Não se trata de proteção, o que eu preciso agora é de alguém que pode me ajudar a pensar — de repente, lembrou, ela bateu com uma mão sobre a sua boca. — Oh, Simon!
— Não, eu sou Jace — Jace disse pacientemente — Simon é pequeno como uma doninha de corte de cabelo ruim e um horrendo senso de moda.
— Ah, cala a boca — ela respondeu, mas foi mais automático do que sincero. — Eu queria ligar antes de dormir. Ver se ele chegou em casa bem.
Balançando sua cabeça, Jace contemplava os céus como se eles estivessem prestes a abrir-se e revelar os segredos do universo.
— Com tudo o que está acontecendo, você está preocupado com o cara de doninha?
— Não chame-o disso. Ele não se parece com uma doninha.
— Você pode estar certa. Eu conheci uma doninha atraente ou duas, quando era novo. Ele se parece mais com um rato.
— Ele não é...
— Ele está provavelmente em casa descansando em uma poça de sua própria saliva. Apenas espere até que Isabelle fique entediada com ele e você tenha que juntar as peças.
— É provável que Isabelle fique entediada com ele? — Clary perguntou.
Jace pensou nisso.
— Sim.
Clary se perguntou se talvez Isabelle fosse mais esperta do que Jace lhe dava crédito. Talvez ela percebesse quão maravilhoso era Simon: engraçado, inteligente, legal. Talvez eles tenham iniciado o namoro. A ideia a encheu com um horror inominável.
Perdida em pensamentos, levou alguns instantes para perceber que Jace estava dizendo alguma coisa para ela. Quando ela piscou para ele, viu um sorriso torcido espalhado no seu rosto.
— O quê? — ela perguntou, brutalmente.
— Eu gostaria que você parasse desesperadamente de tentar conseguir a minha atenção com isso. Está ficando embaraçoso.
— Sarcasmo é o último refúgio da falência imaginativa — ela respondeu.
— Não posso ajudar nisso. Eu uso minha aguçada capacidade mental para esconder a minha dor interior.
— Sua dor será exterior em breve, se você não sair da rua. Está tentando ser atropelado por um táxi?
— Não seja ridícula. Nós nunca poderíamos conseguir um táxi facilmente neste bairro.
Como se por sugestão, um estreito carro preto com vidros coloridos veio roncando até frear e parar na frente de Jace, o motor rosnando. Era longo, lustroso e baixo como uma limusine, os vidros curvados para fora.
Jace olhou para ela de soslaio; havia diversão no seu olhar, mas também uma certa urgência. Ela olhou para o carro novamente, deixando o seu olhar relaxar, deixando a força do que era real furar o véu do encantamento.
Agora, o carro parecia com a carruagem da Cinderela, exceto que em vez de ser rosa, azul e dourado como um ovo da páscoa, ele era negro como veludo, suas janelas sombriamente pintadas. As rodas eram negras, o couro adornando tudo de preto. Sobre o banco preto metalizado do motorista sentava-se o Irmão Jeremiah, que segurava um conjunto de rédeas em suas mãos enluvadas. Seu rosto estava escondido sob o capuz de seu manto cor de pergaminho. Na outra extremidade das rédeas haviam dois cavalos, negros como fumaça, rosnando e batendo as patas para o céu.
— Entre — Jace convidou.
Quando ela continuou lá em pé boquiaberta, Jace pegou o seu braço e a empurrou através da porta semiaberta do carro, impulsionando-se a si mesmo depois dela.
A carruagem começou a se mover antes que tivesse fechado a porta atrás deles. Ele caiu de volta no seu assento estofado lustroso e olhou para ela.
— A escolta pessoal para a Cidade dos Ossos não é nada para se torcer o nariz.
— Eu não estou torcendo o nariz. Eu só estava surpresa. Eu não esperava... Quer dizer, eu pensei que fosse um carro.
— Relaxa. Aproveite esse cheiro de carruagem nova.
Clary rolou seus olhos e virou para olhar para fora das janelas. Ela teria pensado que aqueles cavalos e a carruagem não teriam chance no tráfego de Manhattan, mas eles estavam se movendo facilmente, a sua silenciosa progressão despercebida pelo barulho de táxis, ônibus e SUVs que sufocavam na avenida. Na frente deles, um táxi amarelo com faixas cortava a direção do seu progresso. Clary ficou tensa, preocupada com os cavalos, então a carruagem se levantou como se os cavalos tivessem subido ligeiramente. Ela segurou um suspiro. A carruagem, em vez de se arrastar ao longo do chão puxada pelos cavalos, rolou suavemente e sem som sobre os tetos dos táxis até o outro lado. Clary olhou para trás enquanto a carruagem batia no chão novamente com um movimento brusco, e o taxista estava fumando e olhando em frente, absolutamente absorto.
— Eu sempre achei que os motoristas de taxi não prestavam atenção ao tráfego, mas isso é ridículo — ela disse fracamente.
— Só porque você pode ver através do encantamento agora... — Jace deixou o final da frase pendurar delicadamente no ar entre eles.
— Só posso ver através dele quando me concentro — ela respondeu — e a minha cabeça dói um pouco.
— Aposto que é por causa do bloqueio em sua mente. Os Irmãos vão cuidar disso.
— E então o quê?
— Então, você verá o mundo como ele é, infinito — Jace disse com um sorriso seco.
— Não cite Blake para mim.
O sorriso ficou menos seco.
— Eu não achei que você poderia reconhecê-lo. Você não me parece como alguém que lê poesia.
— Todo mundo sabe da citação por causa do The Doors.
Jace olhou para ela inexpressivamente.
— The Doors. Era uma banda.
— Se você está dizendo — ele respondeu.
— Eu suponho que você não tem muito tempo para desfrutar de música — Clary comentou, pensando em Simon, para quem a música era toda a sua vida — em sua linha de trabalho.
Ele deu de ombros.
— Talvez o ocasional lamento do coro dos malditos.
Clary olhou para ele rapidamente, ver se estava brincando, mas ele estava inexpressivo.
— Mas você estava tocando piano, ontem no Instituto. Então você deve...
A carruagem balançou bruscamente para cima de novo. Clary se agarrou na borda do seu banco e eles rolaram para cima de um ônibus circular do centro da cidade. Desse ponto ela podia ver os andares superiores dos prédios antigos alinhados na avenida, esculpidos com elaboradas gárgulas e cornijas ornamentais.
— Eu estava só brincando — Jace disse, sem olhar para ela. — Meu pai insistiu que eu aprendesse a tocar um instrumento.
— Ele parecia rigoroso, o seu pai.
O tom de Jace era cortante.
— De forma alguma. Ele era indulgente comigo. Me ensinou tudo sobre armas de treinamento, demonologia, erudição arcanas, línguas antigas. Ele me deu tudo o que eu queria. Cavalos, armas, livros, inclusive um falcão de caça.
Mas armas e livros não são exatamente o que a maioria dos meninos querem no Natal, Clary pensou, enquanto a carruagem se alinhava na calçada.
— Por que você não mencionou a Hodge que sabia quem eram os homens com quem Luke estava falando? Que foram eles os que mataram o seu pai?
Jace olhou para suas mãos. Elas eram finas e bem cuidadas, as mãos de um artista, não de um guerreiro. O anel que ela havia notado anteriormente brilhou em seu dedo. Ela teria pensado que poderia haver alguma coisa feminina sobre um rapaz usando um anel, mas não havia. O anel em si era sólido e parecia pesado, de prata com um padrão de estrelas em torno do anel. A letra W estava esculpida.
— Porque se eu dissesse, ele iria saber que eu quero matar Valentim sozinho. E ele nunca me deixaria tentar.
— Quer dizer que você quer matar ele por vingança?
— Por justiça — Jace corrigiu — eu nunca soube quem matou o meu pai. Agora sei. Essa é minha chance de fazer isso certo.
Jace não estava olhando para ela, então Clary deixou quieto. Eles estavam passando através do Astor Place agora, estreitamente evitando um bonde elétrico roxo da Universidade de Nova York, uma vez que atravessavam o tráfego. Pedestres transitando eram esmagados pela atmosfera pesada, como insetos depositados debaixo de um copo. Alguns grupos de crianças desabrigadas estavam reunidas na base de uma grande estátua de metal, caixinhas de papelão dobradas assinalavam o pedido de dinheiro apoiadas em frente delas. Clary viu uma garota com cerca de sua idade com uma cabeça raspada, inclinada contra um rapaz de pele castanha com dreadlocks, seu rosto adornado com uma dúzia de piercings. Ele virou a cabeça enquanto a carruagem passava como se pudesse vê-la, e ela pegou o brilho dos seus olhos. Um deles estava encoberto, como se não tivesse pupila.
— Eu tinha dez — Jace disse.
Ela se virou para olhá-lo. Ele estava sem expressão. E sempre parecia que a cor era drenada dele quando falava sobre seu pai.
— Nós morávamos em um sobrado, fora do país. Meu pai sempre dizia que era mais seguro se manter longe das pessoas. Eu os ouvi chegando pela estrada e irem falar com ele. Me disse para me esconder, então me escondi. Debaixo das escadas. Vi aqueles homens chegarem. Eles tinham outros junto. Não homens. Esquecidos. Eles dominaram meu pai e cortaram sua garganta. O sangue correu através do chão e ensopou meus sapatos. Eu não me movi.
Levou um momento para Clary perceber que ele tinha acabado de falar, e outro para encontrar a sua voz.
— Eu sinto muito, Jace.
Seus olhos cintilaram na escuridão.
— Eu não entendo porque mundanos sempre se desculpam por coisas que não são culpa deles.
— Não estou me desculpando. É uma maneira de enfatizar. De dizer que eu estou pesarosa por você estar infeliz.
— Eu não estou infeliz. Somente as pessoas sem propósito são infelizes. Eu tenho um propósito.
— Você quer dizer matar demônios, ou ter a vingança pela morte do seu pai?
— Ambos.
— Você acha que seu pai realmente iria querer que você matasse aqueles homens? Só por vingança?
— Um Caçador de Sombras que mata outro de seus irmãos é pior do que um demônio e deve ser colocado abaixo como um — Jace respondeu, soando como se estivesse recitando as palavras de um livro.
— Mas todos os demônios são maus? Quero dizer, se todos os vampiros não são maus, e todos os lobisomens não são maus, talvez...
Jace se virou para ela, parecendo exasperado.
— Não é a mesma coisa. Vampiros, lobisomens, mesmo bruxos, eles são parte humanos. Parte deste mundo, nascidos nele. Pertencem a aqui. Mas demônios vêm de outros mundos. Eles são parasitas interdimensionais. Chegam a um mundo e o utilizam. Eles não podem construir, apenas destruir, não podem fazer, apenas usar. Drenam um lugar até as cinzas e quando ele está morto, se deslocam para o próximo. É a vida que eles querem, e não apenas a sua vida ou a minha, mas toda a vida deste mundo, seus rios e cidades, os seus oceanos, o seu tudo. E a única coisa que está entre eles e a destruição de tudo isto... — ele apontou para fora da janela da carruagem, acenando a mão dele como se pretendesse indicar tudo na cidade, dos arranha-céus nas torres ao tráfego obstruído em Houston Street — é o Nephilim.
— Ah — Clary falou.. Não parecia que se havia muito mais a se dizer. — Quantos outros mundos existem?
— Ninguém sabe. Centenas? Milhões, talvez.
— E todos eles matam mundos? Os usando?
Clary sentiu seu estômago revirar, ainda que possa ter sido apenas um tremor, pois a carruagem mudou de lugar.
— Isso parece tão triste.
— Eu não diria isso — a luz alaranjada escura da névoa da cidade se derramava através da janela, delineando o perfil afilado de Jace — há provavelmente vida em outros mundos como o nosso. Mas só demônios podem viajar entre eles. Porque eles são principalmente não-corpóreos, em parte, mas ninguém sabe exatamente porquê. Muitos bruxos tentaram isso, e nunca funcionou. Nada vindo da Terra pode passar através da proteção entre os mundos. Se nós conseguíssemos — ele disse acrescentando — poderíamos ser capazes de bloqueá-los de vir aqui, mas ninguém foi capaz de descobrir como fazer isso. Na verdade, mais e mais deles estão vindo. Costumava ser apenas pequenas invasões de demônio neste mundo, facilmente contidas. Mas, mesmo em minha época, mais e mais deles têm se espalhado através das barreiras. A Clave está sempre tendo que despachar Caçadores de Sombras, e muitas vezes eles não voltam.
— Mas se vocês tivessem o Cálice Mortal, vocês poderiam fazer mais, certo? Mais caçadores de demônios? — Clary perguntou tentadoramente.
— Claro, mas não temos o Cálice há anos, e muitos de nós morrem jovens. Então nossos números lentamente abaixaram.
— Vocês não, uhhh... — Clary procurou pela palavra certa — se reproduzem?
Jace caiu na gargalhada, de tal maneira que a carruagem deu uma repentina tombada acentuada para a direita. Ele se manteve no lugar, mas Clary foi atirada contra ele. Ele a apanhou, suas mãos abraçando-a suavemente, mas firmemente longe dele. Ela sentiu o frio da impressão do anel dele como uma lasca de gelo contra sua pele suada.
— Claro — ele respondeu — nós amamos nos reproduzir. Essa é uma das nossas coisas favoritas.
Clary se empurrou para longe dele, seu rosto queimando na escuridão, e se virou para olhar a janela. Eles estavam indo na direção de um pesado portão de ferro forjado, entrelaçado com trepadeiras escuras.
— Aqui estamos nós — Jace anunciou enquanto as rodas passavam suaves sobre o pavimento.
Clary vislumbrou as palavras no arco enquanto eles passavam por debaixo delas: Cemitério de Mármore de Nova York.
— Mas eles pararam de enterrar as pessoas de Manhattan séculos atrás, porque não cabia mais no espaço, não é? — ela perguntou.
Eles estavam se movendo em um beco estreito com paredes altas de ambos os lados.
— A Cidade dos Ossos tem estado aqui há mais tempo do que isso.
A carruagem chegou em uma parada estremecida. Clary levantou enquanto Jace esticava seu braço para fora, mas ele estava apenas passando para alcançar e abrir a porta do lado dela. O braço dele era ligeiramente musculoso e coberto por finos pelos dourados, como pólen.
— Você não teve escolha, não é? — ela perguntou. — Sobre ser um Caçador de Sombras. Você não podia simplesmente optar por sair.
— Não.
A porta bateu aberta, trazendo um sopro de ar quente e úmido. A carruagem tinha parado em uma vasta praça verde cercada por muros de mármore cobertos por musgo.
— Mas se eu tivesse uma escolha, isso é ainda o que eu iria escolher.
— Por quê?
Ele levantou uma sobrancelha, o que fez Clary instantaneamente ter ciúmes. Ela sempre quis ser capaz de fazer isso.
— Porque é aquilo em que eu sou bom.
Ele saltou para fora da carruagem. Clary deslizou para a borda de seu assento, balançando as pernas. Era uma longa queda até o pavimento. Ela pulou. O impacto fez doer seus pés, mas ela não caiu. Oscilou ao redor em triunfo para encontrar Jace observando-a.
— Eu deveria ter te ajudado a descer.
Ela piscou.
— Tudo bem. Não precisava.
Ele olhou para trás dela. Irmão Jeremiah estava descendo do seu poleiro atrás dos cavalos, em um silencioso cair de manto.
Ele não projetava sua sombra abaixo do sol na grama endurecida.
Venham, ele pediu.
Ele deslizou para longe da carruagem e das confortantes luzes da Segunda Avenida, se movendo em direção ao centro escuro do jardim. Estava claro que ele esperava que eles o seguissem.
A grama estava seca e estalante sob os pés, as paredes de mármore eram, de ambos os lados, lisas e peroladas. Havia nomes esculpidos nas paredes de pedra, nomes e datas. Clary demorou um pouco para perceber que aquelas eram marcas dos sepulcros. Um arrepio percorreu sua coluna vertebral. Onde estavam os corpos? Nas paredes, enterrados na posição vertical, como se tivessem sido emparedados em vida...?
Ela tinha esquecido de olhar para onde estava indo. Quando colidiu com algo inequivocadamente vivo, ela gritou em voz alta.
Era Jace.
— Não grite desse jeito. Você vai acordar os mortos.
Ela fez uma careta para ele.
— Por que estamos parando?
Ele apontou para Irmão Jeremiah, que tinha chegado a um ponto na frente de uma estátua apenas ligeiramente mais alta do que ele, sua base coberta com musgo.
A estátua era de um anjo. O mármore da estátua era tão bom que era quase translúcido. O rosto do anjo era impetuoso, bonito e triste. Ao longo das mãos brancas, o anjo segurava uma taça, sua borda ornamentada com joias no mármore. Algo sobre a estátua coçou as memórias de Clary com uma familiaridade desconfortável. Havia uma data inscrita na base, 1234, e as palavras inscritas em torno dela: Nephilim: facilis descensus averni.
— Isso significa o Cálice Mortal? — ela perguntou.
Jace concordou.
— E esse é o lema dos Nephilim – dos Caçadores de Sombras – na sua base.
— E o que significa?
O sorriso branco de Jace era um flash na escuridão.
— Significa "Caçadores de sombra: melhores de preto do que a viúva dos nossos inimigos desde 1234."
— Jace...
Significa, disse Jeremiah, A descida ao inferno é fácil.
— Bonito e jovial — Clary comentou, mas um arrepio passou por sua pele, apesar do calor.
— Essa é uma piadinha dos Irmãos que eles tem aqui — Jace disse — você vai ver.
Ela olhou para o Irmão Jeremiah. Ele tinha puxado uma estela ligeiramente brilhante de algum bolso interno do seu manto, e com a ponta traçou o padrão de uma Runa na base da estátua. A boca do anjo da pedra de repente fez uma abertura ampla em um grito silencioso, e abriu um enorme buraco negro no gramado aos pés de Jeremiah. Parecia uma sepultura aberta.
Lentamente, Clary se aproximou da borda daquilo e perscrutou lá dentro. Um conjunto de degraus de granito levavam para dentro do buraco, suas macias bordas desgastadas por anos de uso. Tochas tremeluziam ao longo dos degraus em intervalos, emitindo um verde quente e um azul gelado. A parte inferior da escada estava perdida na escuridão.
Jace entrou nas escadas com a facilidade de alguém que encontra uma situação familiar, se não, exatamente confortável. Na metade da primeira tocha, ele parou e olhou para ela.
— Vamos — disse impacientemente.
Clary tinha apenas colocado o seu pé no primeiro degrau, quando sentiu o braço apanhado num frio aperto. Ela olhou para cima com espanto. Irmão Jeremiah estava segurando seu punho, seus gelados dedos brancos cavando na pele. Ela podia ver o brilho ósseo de seu rosto cicatrizado abaixo da ponta do seu capuz.
Não tema, disse sua voz dentro da cabeça. Levaria mais do que um simples choro humano para despertar esses mortos.
Quando ele soltou seu braço, ela deslizou pelas escadas após Jace, o coração batendo contra suas costelas. Ele estava esperando por ela no sopé dos degraus. Tinha tomado uma das tochas queimando esverdeado fora do seu suporte e a segurou no nível dos olhos. Ela emprestou um verde pálido expresso na sua pele.
— Você está bem?
Ela concordou, não confiando em si para falar. As escadas terminavam em um raso desembarcadouro. À frente deles se esticava um túnel, longo e escuro, sulcado com encurvadas raízes de árvores. Uma tênue luz azulada era visível no final do túnel.
— É tão... escuro — ela balbuciou.
— Você quer que eu segure sua mão?
Clary colocou ambas as mãos atrás das costas como uma criança pequena.
— Não fale com superioridade comigo.
— Bem, eu dificilmente poderia falar acima com você. Você é muito pequena — Jace olhou passando por ela, a tocha chuviscando faíscas enquanto ele se movia. — Não há necessidade de cerimônias, Irmão Jeremiah — Jace arrastou as palavras. — Vá em frente. Nós estaremos bem atrás de você.
Clary pulou. Ela ainda não estava acostumada com o ir e vir silencioso do arquivista. Ele se moveu silenciosamente de onde tinha estado de pé atrás dela e liderou a entrada no túnel. Após um momento, ela seguiu batendo na mão esticada de Jace enquanto ia.
À primeira vista de Clary, a Cidade do Silêncio era linha após a linha de altos arcos em mármore que subiam e subiam, desaparecendo à distância como ordenadas fileiras de árvores em um pomar. O mármore em si era um puro, marfim pálido, duro e parecendo polido, inserido em locais com estreitas faixas de ônix, jaspe, e jade.
Enquanto eles se moviam no túnel em direção à floresta de arcos, Clary viu que o chão estava inscrito com o mesmas Runas que, às vezes, decoravam a pele de Jace com linhas, espirais e padrões trançados.
Quando os três deles atravessaram o primeiro arco, alguma coisa grande e branca assomou acima e no lado esquerdo dela, como um iceberg ao largo da proa do Titanic. Era um bloco de pedra branca, macia e quadrada, com uma espécie de porta inserida na frente. Aquilo lembrava a ela uma casa de brinquedo do tamanho de uma criança, quase, mas não muito grande o suficiente para que ela ficasse de pé lá dentro.
— É um mausoléu — Jace falou, dirigindo um feixe de luz da tocha naquilo.
Clary podia ver uma Runa esculpida na porta, que foi selada com parafusos de ferro.
— Um túmulo. Nós enterramos os nossos mortos aqui.
— Todos seus mortos? — ela disse, meio que esperando perguntar a ele se seu pai estava enterrado lá, mas ele moveu a cabeça, fora do alcance da voz.
Clary se apressou atrás dele, não desejando ficar sozinha com o Irmão Jeremiah em seu lugar assustador.
— Eu pensei que você houvesse dito que isso era uma biblioteca.
Há muitos níveis na Cidade do Silêncio, inseriu Jeremiah. Aqueles que morrem em batalhas são cremados, suas cinzas usadas para fazer esses arcos de mármore que você vê aqui. O sangue e ossos dos caçadores de demônios são por si só uma proteção poderosa contra o mal. Mesmo na morte, a Clave serve a causa.
Que exaustivo, Clary pensou, lutar toda sua vida e então a expectativa de continuar aquela luta quando sua vida tiver acabado. Nos cantos de sua visão, ela podia ver o quadrado branco das catacumbas aumentando em ambos os lados em ordenada filas de túmulos, todas as portas trancadas pelo lado de fora. Ela compreendeu agora por que aquilo era chamado de Cidade do Silêncio: seus únicos habitantes eram os Irmãos mudos e os mortos que eram tão zelosamente guardados.
Eles haviam chegado a outra escada elevando-se em mais uma luz fraca. Jace impulsionou a tocha em frente, manchando as paredes com sombras.
— Estamos indo para o segundo nível, onde os arquivos e a salas do conselho estão — ele disse, como se para tranquilizá-la.
— Onde estão os alojamentos? — Clary perguntou, em parte para ser educada, em parte, por uma verdadeira curiosidade. — Onde é que os Irmãos dormem?
Dormir.
O silêncio da palavra perdurou na escuridão entre eles. Jace riu, e a chama da tocha que segurava se agitou.
— Você tinha de perguntar.
Ao pé da escada havia outro túnel, que ampliava no final em um pavilhão quadrado, cada canto marcado por um pináculo de osso entalhado. Lanternas queimavam em longos suportes de ônix dos lados do quadrado, e o ar cheirava a cinzas e fumaça. No centro do pavilhão havia uma longa mesa de basalto preto com nervuras brancas. Por trás da mesa, contra a parede escura, havia uma enorme espada de prata pendurada, seu cabo esculpido em forma de asas estendidas.
Sentados à mesa havia uma fila de Irmãos do Silêncio, cada um envolvido e encapuzado com as mesmas vestes de pergaminho colorido como Jeremiah.
Jeremiah não perdeu tempo.
Nós chegamos. Clarissa, fique perante o Conselho.
Clary olhou para Jace, mas ele estava piscando, claramente confuso. Irmão Jeremiah deve ter falado apenas na cabeça dela. Ela olhou para cima da mesa, para a longa fila de figuras silenciosas, agasalhados em seus pesados robes.
Quadrados alternados compunham o piso do pavilhão: bronze, dourado e um vermelho mais escuro. Na frente da mesa havia um único quadrado grande, feito de mármore preto e estampado com um desenho de estrelas prateadas.
Clary andou até o centro do quadrado preto, como se estivesse na frente de um esquadrão de fuzilamento. Ela levantou sua cabeça.
— Tudo bem — ela falou — e agora?
Os Irmãos fizeram então um som, um som que eriçou todos os pelos do pescoço, braços e costas de Clary. Era um som como um suspiro ou um gemido. Em uníssono, eles levantaram as mãos e empurraram os capuzes para trás, descobrindo seus rostos com cicatrizes e as alcovas de seus olhos vazios.
Embora ela já tivesse visto o rosto descoberto do Irmão Jeremiah, o estômago de Clary deu um nó. Foi como olhar para uma fila de esqueletos, como uma daquelas xilogravuras medievais onde os mortos caminhavam, dançavam e conversavam sobre uma pilha de corpos dos vivos. Suas bocas costuradas pareciam sorrir para ela.
O Conselho saúda você, Clarissa Fray.
Ela escutou, e não foi apenas uma voz silenciosa dentro de sua cabeça, mas uma dúzia, algumas baixas e ásperas, algumas suaves e monótonas, mas todas exigentes, insistentes, empurrando a frágil barreira em torno de sua mente.
— Parem — ela pediu, e para espanto dela a voz dela saiu firme e forte.
O barulho dentro de sua mente cessou subitamente como uma gravação que tinha parado de rodar.
— Vocês podem entrar na minha cabeça, mas só quando eu estiver pronta.
Se você não quiser a nossa ajuda, não há necessidade para isso. Vocês são os que pediram por nossa assistência, depois de tudo.
— Vocês querem saber o que está em minha mente, assim como eu — Clary replicou — isso não significa que vocês não precisam ser cuidadosos.
O Irmão que estava sentado na cadeira central colocou seus finos dedos brancos debaixo de seu queixo. É reconhecidamente um interessante quebra-cabeça, ele disse, e dentro de sua mente a voz era seca e neutra. Mas não há nenhuma necessidade para o uso da força, se você não resistir.
Ela rangeu os dentes. Queria resistir a eles, esperando extrair aquelas vozes intrusas para fora de sua cabeça. Para estarem tão perto e permitir tal violação do seu mais íntimo e pessoal eu... Mas lá estava toda a chance de descobrir o que tinha acontecido, ela se lembrou. Não era nada mais do que a escavação de um crime passado, o roubo de sua memória. Se funcionasse, o que tinha sido retirado dela seria restaurado. Ela fechou seus olhos.
— Vá em frente — ela decidiu.
O primeiro contato veio em um sussurro dentro de sua mente, delicado como um roçar de uma folha caindo.
Declare seu nome para o Conselho.
Clarissa Fray.
A primeira voz se reuniu a outras. Quem é você?
Eu sou Clary. Minha mãe é Jocelyn Fray. Eu moro em Berkeley Place, 807 no Brooklin. Tenho 15 anos. Meu pai se chamava...
Sua mente parecia acertar ela mesma, como um elástico, e ela cambaleou em um silencioso turbilhão de imagens expressas contra o interior de suas pálpebras fechadas. Sua mãe se apressando em uma noite – a rua escura entre pilhas amontoadas de neve suja. Em seguida, uma descida do céu, cinzenta e pesada, fileiras de árvores negras desfolhadas. Um quadrado vazio cortado na terra, um caixão simples baixado nele. Cinzas a cinzas. Jocelyn envolta em sua colcha, lágrimas derramando por suas bochechas, rapidamente fechando uma caixa e colocando-a sob uma almofada enquanto Clary entrava na sala. Ela viu as iniciais na caixa novamente: J.C.
As imagens vinham mais rápidas agora, como um daqueles livros com figuras que parecem se mover quando você passa as páginas rapidamente.
Clary estava no topo de uma escada elevada, olhando para baixo em um corredor estreito, e lá estava novamente Luke, sua mala verde aos seus pés. Jocelyn ficava na frente dele, agitando a cabeça.
— Por que agora, Lucian? Pensei que você estivesse morto...
Clary piscou. Luke parecia diferente, quase um estranho, barbudo, seu cabelo longo e emaranhado – ramificações desciam para bloquear a sua visão, ela estava no parque novamente, e fadas verdes, minúsculas como palitos, zumbiam entre as flores vermelhas. Ela pegou uma delas em deleite, e Jocelyn puxou a filha em seus braços com um grito de terror. Depois era inverno e a rua estava escura novamente, e elas estava correndo, encolhidas sob um guarda-chuva, Jocelyn meio empurrando e meio arrastando Clary entre os eventuais bancos de neve. Um portal de granito surgiu para compensar a queda da brancura; haviam palavras esculpidas acima da porta, era magnífico. Então ela estava de pé em um portal que cheirava a ferro e neve derretida. Seus dedos ficaram dormentes com frio. Uma mão sob seu queixo dirigiu seu olhar para cima, e ela viu uma fileira de palavras rabiscadas ao longo da parede. Duas palavras saltaram para ela, queimando em seus olhos: “MAGNUS BANE”.
Uma súbita dor a acertou através de seu braço direito. Ela gritou enquanto as imagens caiam e ela girava acima, rompendo a superfície da consciência como um mergulhador rompia através de uma onda. Havia algo frio pressionado contra a sua bochecha. Ela abriu seus olhos e viu estrelas prateadas. Piscou duas vezes antes de perceber que estava deitada no chão de mármore, seus joelhos curvados até o peito. Quando se moveu, uma dor quente subiu pelo seu braço.
Ela delicadamente se sentou. A pele ao longo do seu cotovelo esquerdo estava machucada e sangrando. Deve ter batido quando caiu. Havia sangue em sua camisa. Ela olhou ao redor, desorientada, e viu Jace encarando-a, imóvel, sua boca tensa.
Magnus Bane.
A palavra significava alguma coisa, mas o quê? Antes que ela pudesse fazer a pergunta em voz alta, Irmão Jeremiah interrompeu-a.
O bloqueio dentro de sua mente é mais forte do que tínhamos previsto, ele disse. Ele só pode ser seguramente desfeito apenas por quem o colocou lá. Se nós removermos, poderia matar você.
Ela se levantou sob seus pés, embalando seu braço ferido.
— Mas eu não sei quem o colocou lá. Se eu soubesse, eu não teria vindo aqui.
A resposta para isso está tecida no filamento de seus pensamentos, Irmão Jeremiah respondeu. Em seu sonho acordado você viu escrito.
— Magnus Bane? Mas... isso nem sequer é um nome!
Isso é suficiente.
Irmão Jeremiah levantou. Como se fosse um sinal, o resto dos Irmãos se levantaram ao lado dele. Eles inclinaram a cabeça em direção a Jace, um gesto de silencioso reconhecimento, depois se enfileirarem entre os pilares e desapareceram.
Apenas Irmão Jeremiah permaneceu. Ele assistiu impassivamente enquanto Jace se apressou sobre Clary.
— Seu braço está bem? Me deixe ver — ele exigiu, agarrando seu pulso.
— Ai! Tudo bem. Não faça isso, você está deixando pior — Clary falou, tentando puxar de volta.
— Você sangrou sobre as Estrelas Falantes — ele observou.
Clary olhou e viu que ele estava certo: Havia uma mancha do sangue dela sobre o mármore negro.
— Aposto que há uma lei sobre isso em algum lugar.
Ele virou o braço dela para cima, mais gentilmente do que ela teria pensado que fosse capaz. Ele colocou seu lábio inferior entre os dentes e assobiou; ela olhou para baixo e viu que o sangue cobria todo seu braço, do cotovelo até o punho. O braço estava latejando, rígido e doloroso.
— Agora é quando você começa a cortar sua camiseta em tiras para amarrar em meu machucado? — ela brincou.
Ela odiava a visão de sangue, especialmente o seu próprio.
— Se você queria que eu rasgasse minhas roupas, só precisava ter me pedido.
Ele cavou em seu bolso e trouxe a sua estela.
— Teria sido muito menos doloroso.
Lembrando da sensação de ardor quando a estela tinha tocado seu punho, ela se retesou, mas tudo o que sentiu enquanto o brilhante instrumento deslizava levemente sobre seu ferimento era um vago calor.
— Aí está — ele disse, endireitando-se.
Clary flexionou seu braço se admirando – o sangue ainda estava lá, a ferida tinha sumido, porém, assim como a dor e a rigidez.
— E da próxima vez que você estiver planejando se ferir para chamar a minha atenção, basta lembrar que algumas palavras gentis fazem maravilhas.
Clary sentiu sua boca torcer em um sorriso.
— Vou manter isso em mente — ela respondeu, e enquanto ele se afastava, acrescentou: — obrigada.
Ele mergulhou a estela em seu bolso sem se virar, mas ela pensou ter visto uma certa gratificação acertar seus ombros.
— Irmão Jeremiah — Jace comentou, esfregando as mãos juntas — você esteve muito quieto todo este tempo. Certamente tem alguns pensamentos que você gostaria de compartilhar?
Estou encarregado de conduzi-los pela Cidade do Silêncio, e isso é tudo, respondeu o arquivista.
Clary se perguntou se estava imaginando ou se houve realmente um tom ligeiramente insultado em sua “voz”.
— Nós podemos sempre achar a saída por nós mesmos — Jace sugeriu esperançosamente. — Eu tenho certeza de que me lembro do caminho...
As maravilhas da Cidade do Silêncio não são para os olhos dos não experientes, Jeremiah disse, e virou as costas para eles sem um farfalhar de vestes. Por aqui.
Quando eles emergiram na abertura, Clary tomou profundas respirações do ar espesso da manhã. A cidade rescendia ao cheiro de fumaça, sujeira e pessoas.
Jace olhou ao redor cuidadosamente.
— Vai chover.
Ele estava certo, Clary pensou, olhando o céu cinza-ferro.
— Nós vamos tomar a carruagem de volta para o Instituto?
Jace olhou para o Irmão Jeremiah, ainda como uma estátua, para a carruagem, parecendo uma sombra negra na passagem em arco que dava para a rua. Então ele se quebrou em um sorriso.
— De jeito nenhum — Jace respondeu — eu odeio essas coisas. Vamos chamar um táxi.

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