Capítulo 12
Celaena correu até Ilias, que gemeu quando ela o virou. O ferimento na barriga ainda sangrava. A assassina arrancou tiras do próprio manto, já encharcado de sangue, e gritou por ajuda ao atar com força o rapaz.
Um farfalhar de roupas sobre pedra soou, e Celaena olhou por cima do ombro para ver o mestre tentando se arrastar até o filho. O efeito da droga paralisante devia estar passando. Cinco assassinos ensanguentados vieram correndo pelas escadas, os olhos arregalados e os rostos lívidos quando viram Mikhail e Ilias. Celaena deixou Ilias aos cuidados deles ao correr até o mestre.
— Não se mova — disse ela, encolhendo o corpo quando sangue de seu rosto pingou nas vestes brancas do homem. — Pode se machucar.
Celaena verificou a plataforma em busca de qualquer sinal do veneno e correu até a taça de bronze caída. Cheirando algumas vezes, percebeu que o vinho fora contaminado com uma pequena porção de gloriella, apenas o bastante para paralisá-lo, e não para matar. Ansel devia querer o mestre totalmente imobilizado para o assassinar — devia querer que ele soubesse que fora ela quem o traíra. Queria que o mestre estivesse consciente quando decepasse sua cabeça. Como ele não havia notado antes de beber? Talvez não fosse tão humilde quanto parecia; talvez fosse arrogante o suficiente para acreditar que estava a salvo ali.
— Vai passar logo — assegurou Celaena, mas mesmo assim pediu um antídoto para acelerar o processo. Um dos assassinos saiu correndo.
Ela permaneceu sentada ao lado do mestre, uma das mãos segurando o próprio pescoço ensanguentado. Os assassinos do outro lado da sala levaram Ilias para fora, parando para tranquilizar o mestre de que o filho ficaria bem.
Celaena quase gemeu de alívio ao ouvir isso, mas enrijeceu o corpo quando a mão seca e calejada segurou a dela, apertando levemente. Abaixou o rosto e olhou para o homem, cujos olhos se voltaram para a porta aberta. Ele a estava lembrando da promessa que fizera. Ansel recebera vinte minutos para fugir do alcance da flecha.
Estava na hora.
***
Ansel já tinha virado um borrão escuro a distância, Hisli galopava como se demônios estivessem mordendo seus cascos. Seguia para noroeste sobre as dunas, na direção das Areias Cantantes, para a ponte estreita de selva feroz que separava a Terra Desértica do resto do continente, e então para a extensão aberta dos desertos do Oeste além delas. Na direção de penhasco dos Arbustos.
Do alto da muralha, Celaena sacou uma flecha da aljava e alojou no arco.
A corda do arco grunhiu quando a assassina a puxou, mais e mais, enrijecendo o braço. Concentrando-se na minúscula figura no alto do cavalo negro, ela mirou.
No silêncio da fortaleza, o arco rangeu como uma harpa lamuriante.
A flecha deslizou, girando implacavelmente. As dunas vermelhas passaram sob a arma como um borrão, encurtando a distância. Um fiapo de escuridão alada com ponta de aço. Uma morte rápida e sangrenta.
A cauda de Hisli se moveu para o lado quando a flecha se enterrou na areia, apenas centímetros atrás dos cascos traseiros.
Mas Ansel não ousou olhar por cima do ombro. Continuou cavalgando, e não parou. Celaena abaixou o arco e observou até que a menina desaparecesse além do horizonte. Uma flecha, essa fora sua promessa.
Contudo, também havia prometido a Ansel que ela teria vinte minutos para sair do alcance.
Celaena atirara depois de 21 minutos.
***
O mestre chamou Celaena para sua câmara na manhã seguinte. Fora uma longa noite, mas Ilias estava se curando, o ferimento por pouco não perfurara os órgãos. Todos os soldados estavam mortos e eram levados de volta a Xandria em uma carroça, como lembrete para que Lorde Berick procurasse a aprovação do rei de Adarlan em outro lugar. Vinte assassinos haviam morrido, e um silêncio pesado, de luto, preenchia a fortaleza.
Celaena se sentou em uma cadeira de madeira entalhada, observando o mestre enquanto ele olhava pela janela para o céu. A assassina quase caiu do assento quando o homem começou a falar.
— Fico feliz por não ter matado Ansel. — A voz era áspera, e o sotaque era pesado com os sons estalados porém fluidos de alguma língua que a jovem nunca tinha ouvido antes. — Estava imaginando quando ela decidiria o que fazer com o próprio destino.
— Então você sabia...
O mestre se voltou da janela.
— Sei há anos. Muitos meses depois da chegada de Ansel, mandei inquisidores para as Terras Planas. Como a família dela não escreveu carta alguma, eu estava preocupado que algo tivesse acontecido. — O mestre se sentou em uma cadeira diante de Celaena. — Meu mensageiro voltou meses depois, dizendo que não havia penhasco dos Arbustos. O lorde e a filha mais velha foram assassinados pelo alto rei, e a mais nova, Ansel, estava desaparecida.
— Por que não... a confrontou? — A assassina tocou a ferida estreita na bochecha esquerda.
Não deixaria cicatriz se ela cuidasse bem. E se deixasse uma cicatriz... então talvez caçasse Ansel para devolver o favor.
— Porque eu esperava que ela, por fim, confiasse em mim o suficiente para contar. Precisava dar essa chance a Ansel, embora fosse um risco. Esperava que aprendesse a lidar com a dor, que aprendesse a suportá-la. — O mestre sorriu com tristeza. — Se você aprende a suportar sua dor, pode sobreviver a qualquer coisa. Algumas pessoas aprendem a acolhê-la, a amá-la. Algumas suportam a dor ao afogá-la em mágoa, ou ao se fazerem esquecer. Outras a transformam em raiva.
Mas Ansel deixou sua dor se tornar ódio, e deixou que a consumisse até que se tornasse outra coisa, uma pessoa que jamais achei que ela gostaria de ser.
Celaena absorveu as palavras, mas guardou-as para considerar mais tarde.
— Vai contar a todos o que ela fez?
— Não. Vou poupá-los da raiva. Muitos acreditavam que Ansel era sua amiga, e parte de mim também acredita que, às vezes, ela o era.
A jovem olhou para o chão, pensando no que fazer com a dor no peito. Será que transformá-la em fúria, como dissera o mestre, ajudaria a suportar?
— Se faz alguma diferença, Celaena — disse o mestre, com a voz grossa —, acredito que você tenha sido o mais próximo de uma amiga que ela jamais se permitiu ter. E acho que Ansel mandou você embora porque se importava de verdade.
Ela odiou a própria boca por estremecer.
— Isso não torna a mágoa menor.
— Não achei que tornaria. Mas acho que você vai deixar uma impressão eterna no coração de Ansel, pois poupou a vida dela e devolveu a espada de seu pai. Ela não vai se esquecer disso tão cedo. E quando fizer a próxima manobra para reconquistar seu título, talvez se lembre da assassina do Norte, assim como do carinho que mostrou a ela, e tente deixar menos corpos ao encalço.
O mestre caminhou até uma caixa de treliça, como se desse a Celaena tempo para se recompor, e tirou de dentro uma carta. Quando voltou, os olhos dela estavam secos.
— Ao dar isto a seu mestre, mantenha a cabeça erguida.
Ela pegou a carta. A recomendação. Parecia insignificante diante de tudo que acabara de acontecer.
— Por que está falando comigo agora? Achei que o voto de silêncio fosse eterno.
O mestre deu de ombros.
— O mundo parece achar que sim, mas, até onde a memória me serve, jamais jurei oficialmente ficar em silêncio. Escolho fazê-lo na maior parte do tempo, e me acostumei tanto com isso que às vezes esqueço que tenho capacidade de falar, mas em certas ocasiões as palavras são necessárias, quando é preciso uma explicação que os gestos não conseguem comunicar.
Celaena assentiu, tentando ao máximo esconder a surpresa. Depois de uma pausa, o mestre falou:
— Se algum dia quiser deixar o Norte, sempre terá um lar aqui. Prometo que os meses de inverno são muito melhores que o verão. E acho que meu filho ficaria muito feliz se você decidisse retornar também. — O mestre deu uma risadinha, e a jovem corou. Ele pegou a mão dela. — Quando partir amanhã, estará acompanhada de alguns dos meus.
— Por quê?
— Porque serão necessários para levar a carroça para Xandria. Sei que está presa a seu mestre, que ainda deve muito dinheiro antes de estar livre para viver a própria vida. Ele a está fazendo pagar de volta pela fortuna que a obrigou a pegar emprestada. — O Mestre Mudo apertou a mão de Celaena antes de se aproximar de um dos três baús encostados à parede. — Por salvar minha vida, e por poupar a dela. — Abriu a tampa de um baú, então de outro e mais outro.
A luz do sol refletiu o ouro do interior, iluminando o salão como luz sobre água. Todo aquele ouro... e mais o pedaço de Seda de Aranha que o mercador lhe dera... não conseguia pensar nas possibilidades que a riqueza abriria para ela, não naquele momento.
— Quando der esta carta a seu mestre, dê também isto a ele. E diga que no deserto Vermelho, não agredimos nossos discípulos.
Celaena sorriu devagar.
— Acho que consigo fazer isso.
Ela olhou pela janela aberta para o mundo lá fora. Pela primeira vez em muito tempo, ouviu o canto de um vento norte, chamando-a para casa. E Celaena não teve medo.
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