Capítulo 14 - Hotel Dumort

A igreja parecia espectral à noite na Rua Diamond, suas janelas em arcos góticos refletindo o luar prateado como espelhos. Uma cerca de ferro forjado rodeava o prédio que era pintado em um preto fosco. Clary agitou o portão da frente, mas um robusto cadeado o mantinha fechado.
— Está trancado — ela comunicou, olhando para Jace por sobre o ombro.
Ele brandiu sua estela.
— Deixa comigo.
Clary o olhava enquanto ele trabalhava na fechadura, olhando as magras curvas de suas costas, os músculos sob as mangas curtas de sua camiseta. O luar limpava a cor do seu cabelo, tornando-o mais prateado do que dourado.
O cadeado bateu no chão com um som estridente, um pedaço de metal retorcido. Jace parecia contente com si mesmo.
— Como sempre, eu sou incrivelmente bom nisso.
Clary de repente se sentiu incomodada.
— Quando a parte do seu parabéns-para-mim da noite tiver acabado, talvez pudéssemos voltar a salvar o meu melhor amigo de ele ser dessangrado até a morte?
— Dessangrado — Jace repetiu, impressionado — essa é uma palavra grande.
— E você é um grande...
— Tsc, tsc — ele interrompeu — não xingue na igreja.
— Não estamos na igreja ainda — Clary murmurou, seguindo-o acima no caminho de pedra para as portas duplas frontais.
O arco de pedra acima das portas era lindamente esculpido, um anjo olhando para baixo a partir do seu ponto mais alto. Acentuadamente, os pináculos apontavam suas silhuetas escuras contra o céu noturno, e Clary notou que esta era a igreja que tinha vislumbrado anteriormente à noite no Parque McCarren. Ela mordeu seu lábio.
— Parece errado de alguma forma quebrar a fechadura da porta de uma igreja.
O perfil de Jace sob o luar estava sereno.
— Não estamos fazendo isso — ele disse, deslizando sua estela em seu bolso.
Ele colocou uma fina mão bronzeada, marcada acima com delicadas cicatrizes brancas, como um disfarce de renda, contra a madeira da porta, um pouco acima do trinco.
— Em nome do Clave — ele disse — eu peço entrada para este lugar sagrado. Em nome da batalha que nunca acaba, peço o uso de suas armas. E em nome do Anjo Raziel, peço suas bênçãos sobre a minha missão contra a escuridão.
Clary olhou para ele. Jace não se moveu, embora o vento da noite soprasse os cabelos dele nos olhos. Ele piscou, e quando ela estava prestes a falar, a porta se abriu com um clique e um ranger de dobradiças. E se colocou para dentro suavemente ante ela, abrindo para um frio espaço vazio, iluminado por pontos de fogo. Jace deu um passo para trás.
— Depois de você.
Quando Clary entrou no interior, uma onda de ar frio envolveu-a, juntamente com o cheiro de pedra e velas de cera. Tênues fileiras de bancos de igreja se esticavam em direção ao altar, e um banco de velas brilhava como uma cama de faíscas contra a parede distante. Ela notou que, além do Instituto, o que realmente não contava, na verdade ela nunca esteve dentro de uma igreja antes. Ela tinha visto fotos, visto o interior das igrejas em filmes e shows de anime, onde elas apareciam regularmente.
Uma cena em um de seus animes favoritos tinha como lugar uma igreja, e com um monstruoso vampiro como sacerdote. Era suposto que se devia se sentir segura dentro de uma igreja, mas ela não se sentia. Estranhas formas pareciam se elevar sobre ela para fora das sombras. Ela estremeceu.
— As paredes de pedra mantém o calor — Jace percebeu.
— Não é isso. Você sabe, eu nunca estive em uma igreja antes.
— Você esteve no Instituto.
— Quero dizer, em uma verdadeira igreja. Com serviços. Esse tipo de coisa.
— É verdade. Bem, esta é a nave, onde os bancos estão. É onde as pessoas se sentam durante a missa — eles se moveram a frente, sua voz ecoando nas paredes de pedra — aqui em cima está a cúpula. É onde nós estamos de pé. E este é o altar, onde o padre realiza a Eucaristia. É sempre no lado leste da igreja.
Ele se ajoelhou na frente do altar, e ela pensou por um momento que Jace estava rezando. O altar em si era alto, feito de granito negro, e coberto com um pano vermelho. Atrás aparecia uma tela ornada em ouro, pintada com figuras de santos e mártires, cada uma com um disco plano de ouro atrás de sua cabeça representando uma auréola.
— Jace — ela sussurrou — o que você está fazendo?
Ele colocou suas mãos sobre o chão de pedra e estava movimentando-as para frente e para trás rapidamente, como se estivesse procurando algo, os seus dedos mexendo na poeira.
— Procurando por armas.
— Aqui?
— Elas ficam escondidas, normalmente em torno do altar. Mantidas para nosso uso em caso de emergência.
— E isto é o quê, algum tipo de trato que vocês tem com a Igreja Católica?
— Não especificamente. Demônios tem estado na Terra há tanto tempo quanto nós. Estão em todo o mundo, nas suas diferentes formas – demônios gregos, daevas persa, asuras hindus, oni japonês. A maioria dos sistemas de crença têm algum método de incorporar tanto a sua existência quanto a luta contra eles. Caçadores de Sombras não estão ligados a nenhuma religião, e, por sua vez, todas as religiões nos ajudam em nossa batalha. Eu poderia facilmente ter ido procurar ajuda em uma sinagoga judaica ou um templo Shinto, ou... Ah. Aqui está.
Ele limpou a poeira de lado enquanto Clary se ajoelhava ao lado dele. Esculpida em uma das pedras octogonais antes do altar estava uma Runa. Clary a reconheceu, quase tão facilmente quanto se ela fosse ler uma palavra em seu língua. Era a Runa que significava “Nephilim.”
Jace tirou sua estela e a tocou na pedra. Com um alto estalo, a pedra se deslocou para trás, revelando um compartimento escuro embaixo. Dentro do compartimento havia uma caixa de madeira longa; Jace levantou a tampa, e olhou com satisfação os objetos dispostos no interior.
— O que é tudo isso? — Clary perguntou.
— Frascos de água benta, facas abençoadas, lâminas de aço e prata — Jace disse, empilhando as armas no chão ao lado dele — fio de electrum não é muito útil no momento, mas é sempre bom ter balas de prata sobressalentes, encantos de proteção, crucifixos, estrelas de David...
— Jesus — disse Clary.
— Duvido que ele usaria.
— Jace.
Clary ficou horrorizada.
— O quê?
— Eu não sei, parece errado fazer piadas como essa em uma igreja.
Ele deu de ombros.
— Eu não sou realmente um cristão.
Clary olhou para ele surpreendida.
— Você não é?
Ele agitou sua cabeça. Seu cabelo caiu sobre o seu rosto, mas ele estava examinando um frasco de líquido claro e não chegou a levantá-lo de volta. Os dedos de Clary coçaram com a vontade de fazer isso para ele.
— Você pensou que eu fosse religioso?
— Bem... — ela hesitou. — Se há demônios, então deve haver...
— Deve haver o quê? — Jace deslizou o frasco em seu bolso. — Ah. Você quer dizer, se houver isso — ele apontou para baixo, em direção ao chão — então deve haver aquilo — ele apontou para cima, em direção ao teto.
— Isso faz sentido. Não faz?
Jace baixou sua mão e pegou uma espada, examinando a lâmina.
— Eu vou te dizer, venho matando demônios há um terço da minha vida. Devo ter enviado quinhentos deles de volta a qualquer que seja a dimensão infernal em que eles se dissolvem. E em todo esse tempo, nunca vi um anjo. Nunca sequer ouvi falar de alguém que tenha visto.
— Mas foi um anjo que criou os Caçadores de Sombras em primeiro lugar — Clary lembrou — foi o que Hodge disse.
— Isso faz uma boa história. — Jace olhou para ela através das fendas de seus olhos como um felino. — Meu pai acreditava em Deus. Eu não.
— De jeito nenhum?
Não tinha certeza do porquê estava alfinetando-o, ela nunca recebeu qualquer orientação para saber se acreditava ou não em Deus e em anjos, e se perguntada, teria dito que não. Havia alguma coisa sobre Jace, porém, que a fazia querer pressioná-lo, quebrar aquela casca de cinismo e admitir que ele acreditava em algo, sentia alguma coisa, preocupava-se com alguma coisa.
— Me deixe colocar dessa maneira — ele disse, deslizando um par de facas em seu cinto. A luz tênue era filtrada através das janelas de vidro colorido e jogava quadrados de cor em todo o seu rosto — meu pai acreditava em um Deus justo. Volts Deus, este era seu lema, “porque é a vontade de Deus”. Era o lema dos Cruzados, e eles saíram para batalha e foram abatidos, tal como o meu pai. E quando o vi deitado morto em uma piscina de seu próprio sangue, então soube que eu não tinha parado de acreditar em Deus. Só parei de acreditar que Deus se importasse. Pode haver um Deus, Clary, e pode ser que não, mas acho que não interessa. De qualquer forma, nós estamos por nossa própria conta.

***

Eles eram os únicos passageiros no vagão do metrô voltando para a zona residencial.
Clary sentou-se sem falar, pensando em Simon. De vez em quando, Jace olhava para ela como se estivesse prestes a dizer algo, antes de voltar a se perder em um silêncio não característico.
Quando saíram da estação de metrô, as ruas estavam desertas, o ar pesado e com gosto de metal, as lojinhas, lavanderias e os centros de troca estavam em silêncio atrás de suas portas de aço ondulado na hora noturna. Eles finalmente encontraram o hotel, depois de uma hora de procura, em uma rua lateral ao longo da 116. Passaram ele por duas vezes, pensando que fosse apenas mais um edifício abandonado, antes de Clary ver a placa. Era imprecisa como se feito à mão e pendurada escondida atrás de uma árvore atrofiada. Antes deveria estar escrito HOTEL DUMONT, mas alguém tinha pintado o N e substituído com um R.
— Hotel Dumort — Jace leu quando ela apontou a placa — lindo.
Clary tinha só tinha dois anos de francês, mas foi o suficiente para entender a piada.
— Du mort — ela entendeu — é a morte.
Jace acenou. Ele tinha ficado todo alerta, como um gato que vê um rato se movendo atrás de um sofá.
— Mas não pode ser o hotel — disse Clary — as janelas estão todas tampadas, e a porta foi murada... Ah — ela terminou, sacando o olhar dele. — Certo. Vampiros. Mas como eles entram?
— Eles voam — Jace respondeu, e indicou os andares superiores do edifício.
Uma vez, claramente, deveria ter sido um elegante e luxuoso hotel. A fachada de pedra era elegantemente decorada com cacheados esculpidos e flores-de-lis, escuras e corroídas pelos anos de exposição ao ar poluído e a chuva ácida.
— Nós não voamos — Clary se sentiu impelida a chamar atenção pra isso.
— Não — Jace concordou. — Nós não voamos. Nós quebramos e entramos.
Ele começou a atravessar a rua em direção ao hotel.
— Voar parece mais divertido — Clary replicou, correndo para alcançá-lo.
— Agora tudo parece mais divertido.
Ela se perguntou o que o Caçador de Sombras quis dizer com isso.
Havia um entusiasmo, uma antecipação da caçada que não o tornava tão infeliz quando ele alegava. Ele matou mais demônios do que qualquer um de sua idade. Você não mataria aquela quantidade de demônios e depois voltaria atrás relutante de uma luta.
Um vento quente passou no alto, agitando as folhas das árvores raquíticas de fora do hotel, levando o lixo das sarjetas e da calçada, balançando o pavimento quebrado. A área estava estranhamente deserta, Clary pensou. Geralmente, em Manhattan, havia sempre alguém na rua, mesmo às quatro da manhã. Várias das luzes da cidade alinhadas na calçada estavam desligadas, embora a de um hotel mais próximo soltasse um turvo brilho amarelo em todo o percurso rachado que levava ao que tinha sido a porta da frente.
— Fique fora da luz — Jace recomendou, puxando-a em direção a ele — podem estar vendo das janelas. E não olhe para cima — ele acrescentou, mas era tarde demais.
Clary já tinha olhado para as janelas quebradas dos pisos superiores. Por um momento, meio que pensou ter vislumbrado uma cintilar de movimento em uma das janelas, um flash branco que poderia ter sido um rosto ou uma mão puxando de volta a pesada cortina...
— Vamos lá.
Jace a puxou para evaporarem-se nas sombras mais próximas do hotel.
Ela sentiu seu crescente nervosismo na espinha, na batida de seu pulso, no forte batimento do sangue em suas orelhas. O zumbido de carros parecia muito mais distante, o único som era o de seus sapatos sobre o lixo da calçada. Clary desejou poder andar silenciosamente, como um Caçador de Sombras. Talvez algum dia pedisse para Jace ensinar.
Escorregaram na esquina do hotel para um beco que tinha provavelmente sido uma área de serviço para as entregas. Era estreito, bloqueado com o lixo: bolorentas caixas de papelão, garrafas de vidro vazias, plástico rasgado, espalhando coisas que à primeira vista Clary pensou que fossem palitos, mas de perto pareciam como...
— Ossos — Jace disse sem rodeios — ossos de cachorro, de gato. Não olhe muito de perto, passar pelo lixo dos vampiros raramente é uma experiência bonita.
Ela engoliu suas náuseas.
— Bem— Clary respondeu — pelo menos sabemos que estamos no lugar certo — e foi recompensada pelo brilho de respeito que foi mostrado, brevemente, nos olhos de Jace.
— Oh, nós estamos no lugar certo. Agora só temos que descobrir como chegar lá dentro.
Claramente, haviam existido janelas ali uma vez, agora emparedadas. Não havia nenhum sinal de portas ou escada de incêndio.
— Quando isso era um hotel — Jace disse devagar — eles devem ter recebido suas entregas aqui. Quero dizer, eles não teriam trazido suas coisas pela porta da frente, e não há nenhum lugar para caminhões desembarcar. Então, deve haver uma maneira de entrar.
Clary pensou nas pequenas lojas e armazéns perto de sua casa no Brooklyn. Ela tinha visto receberem suas entregas, de manhã cedo, enquanto estava caminhando para a escola, visto os proprietários coreanos de comida abrir suas portas de metal fixadas na calçada do lado de fora, em frente a sua porta, então podiam carregar as caixas e pacotes em seu porão.
— Aposto que as portas estão no chão. Provavelmente enterradas embaixo de todo esse lixo.
Jace, um passo atrás dela, concordou.
— Era isso o que eu estava pensando — ele suspirou — acho que seria melhor mover o lixo. Podemos começar com a lixeira — ele apontou para ela, parecendo distintamente não entusiasmado.
— Você preferia enfrentar uma horda de demônios vorazes, não é?
— Pelo menos eles não estariam rastejando com os vermes. Bem — ele acrescentou pensativamente — não a maioria deles, de qualquer maneira. Havia este demônio, uma vez, que eu segui debaixo dos esgotos da Grande Estação Central...
— Não — Clary levantou uma mão em alerta — eu realmente não estou de bom humor no momento.
— Essa deve ser a primeira vez que uma garota diz não para mim — Jace meditou.
— Meta-se comigo e não será a última.
O canto da boca de Jace se contorceu.
— Essa dificilmente é hora para brincadeiras. Nós temos lixo para fuçar.
Ele foi nas ponta dos pés até a lixeira e pegou um lado dela.
— Você pega o outro. Nós vamos incliná-la.
— Virá-la vai fazer muito barulho — Clary argumentou, segurando sua ponta do outro lado do enorme container.
Era uma caçamba de lixo padrão da cidade, pintada em verde escuro, marcada com estranhas manchas. Fedia ainda mais que a maioria das lixeiras, cheiro de lixo e outra coisa, algo espesso e doce que enchia sua garganta e a fez querer vomitar.
— Devemos empurrá-la.
— Agora, olha... — Jace começou, quando de repente uma voz falou, saindo das sombras atrás deles.
— Vocês realmente pensam que deveriam estar fazendo isso?
Clary congelou, olhando para as sombras na boca do beco. Em um momento de pânico, ela perguntou se tinha imaginado a voz, mas Jace também estava congelado, o espanto em seu rosto. Era raro alguém surpreendê-lo, raro que alguém escapasse dele. Ele se afastou da lixeira, deslizando a mão em direção à cintura, sua voz calma.
— Tem alguém aí?
— Dios mío — a voz era masculina, divertida, falando um notável espanhol. — Você não é desta vizinhança, é?
O dono da voz deu um passo à frente, fora das pesadas sombras. A forma dele desenvolvendo-se lentamente: um rapaz, pouco mais velho do que Jace e provavelmente 15 centímetros mais baixo. Ele era magro sem parecer só ossos, com os grandes olhos escuros e pele cor de mel de uma pintura de Diego Rivera. Vestia calças pretas e uma camisa branca aberta no pescoço, uma corrente de ouro em volta da garganta que brilhava ligeiramente quando ele se moveu para mais perto da luz.
— Você poderia dizer isso — Jace respondeu cuidadosamente, não deslocando sua mão para longe do cinto.
— Você não deveria estar aqui — o rapaz limpou para um lado os espessos cachos negros que se derramavam sobre sua testa — este lugar é perigoso.
Ele quer dizer que essa é uma má vizinhança. Clary quase quis rir, mesmo que tudo aquilo não fosse nada engraçado.
— Nós sabemos — ela disse — só estamos um pouco perdidos, isso é tudo.
O rapaz fez um gesto para a lixeira.
— O que vocês estavam fazendo com isso?
Não sou boa em mentiras rápidas, Clary pensou, e olhou para Jace, que ela esperava, seria excelente nisso.
Ele decepcionou-a imediatamente.
— Nós estávamos tentando entrar no hotel. Pensávamos que poderia haver uma porta de porão por baixo da caçamba de lixo.
Os olhos do menino cresceram em descrença.
— Madre! Por que você iria querer fazer algo parecido com isso?
Jace deu de ombros.
— Para uma brincadeira, você sabe. Apenas por um pouco de diversão.
— Vocês não entendem. Este lugar é mal assombrado, amaldiçoado. Má sorte — ele balançou a cabeça energicamente e disse várias coisas em espanhol que Clary suspeitou que tinha a ver com a estupidez mostrada pelas crianças brancas em geral, e a estupidez dos dois, em particular — vamos, eu vou levá-los até o metrô.
— Sabemos onde é o metrô — Jace respondeu.
O garoto deu um suave e vibrante sorriso.
— Claro. Claro que sim, mas se vocês vierem comigo, ninguém vai incomodá-los. Vocês não querem problemas, querem?
— Isso depende — Jace respondeu, e se moveu para que o seu casaco ficasse ligeiramente aberto, mostrando o brilho das armas atravessadas em seu cinto — quanto é que eles estão te pagando para manter as pessoas longe do hotel?
O rapaz olhou para trás de Jace, e os nervos de Clary vibraram enquanto ela imaginava a entrada do beco estreito se enchendo de outras figuras sombrias, faces brancas, bocas vermelhas, o brilho das presas tão repentino quanto metal soltando faíscas no pavimento. Quando ele olhou de volta para Jace, sua boca era uma linha fina.
— Quanto é que você me paga, chico?
— Os vampiros. Quanto é que eles te pagam? Ou é outra coisa – eles te disseram que vão tornar você um deles, te ofereceram a vida eterna, sem dor, sem doença, viver para sempre? Porque não vale a pena. A vida se estica por muito tempo quando você nunca vê a luz do sol, Chico — Jace respondeu.
O rapaz estava inexpressivo.
— Meu nome é Raphael. Não, Chico.
— Mas você sabe do que estamos falando. Você sabe sobre os vampiros? — Clary interrompeu.
Raphael virou o rosto para o lado e cuspiu. Quando olhou para trás deles, seus olhos estavam cheios de um reluzente ódio.
— Los vampiros, sí, os bebedores de sangue animal. Mesmo antes do hotel ser bloqueado, haviam histórias, o riso tarde da noite, os pequenos animais desaparecendo, os sons... — ele parou, balançando sua cabeça. — Todo mundo no bairro sabe que tem que ficar longe, mas o que se pode fazer? Você não pode ligar para polícia e dizer a eles que o seu problema são os vampiros.
— Você já viu eles? — Jace perguntou. — Ou conhece alguém que viu?
Raphael falou lentamente.
— Havia alguns garotos, uma vez, um grupo de amigos. Eles pensaram que era uma boa ideia ir para dentro do hotel e matar os monstros no interior. Levaram armas com eles, facas também, todas abençoadas por um sacerdote. Eles nunca saíram. Minha tia encontrou suas roupas mais tarde, no quintal.
— Na casa de sua tia? — Jace perguntou.
— . Um dos garotos era meu irmão — Raphael disse sem rodeios — então, agora você sabe por que eu ando por aqui no meio da noite, às vezes, no caminho da minha casa para a casa da minha tia, e por isso eu alerto vocês. Se entrarem lá dentro, não vão sair.
— Meu amigo está lá dentro — Clary respondeu — nós viemos buscá-lo.
— Ah. Então talvez eu não possa te prevenir para irem embora.
— Não — Jace concordou — mas não se preocupe. O que aconteceu com seus amigos não vai acontecer com a gente — ele tirou uma das lâminas de anjo de sua cintura e a segurou, a fraca luz vinda dela iluminou as cavidades dos ossos de sua face, sombreando os olhos — eu matei muitos vampiros antes. Seus corações não batem, mas eles ainda podem morrer.
Raphael inalou bruscamente e disse algo em espanhol muito baixo e rápido para Clary compreender. Andou em direção a eles, quase tropeçando sobre uma pilha de plásticos amarrotados em sua pressa.
— Eu sei o que você é – eu já tinha ouvido falar sobre sua espécie, de um antigo padre em Santa Cecilia. Pensei que fosse apenas uma história.
— Todas as histórias são verdadeiras — Clary murmurou, mas ele não pareceu ouvi-la. Estava olhando Jace, seus punhos trincados.
— Eu quero ir com você.
Jace balançou a cabeça.
— Não. Absolutamente não.
— Eu posso te mostrar como chegar lá dentro.
Jace oscilou, a tentação clara em seu rosto.
— Nós não podemos levar você.
— Ótimo — Raphael andou até ele e chutou para o lado um amontoado de lixo empilhado contra um muro. Havia uma grade de metal lá, barras finas cobertas com um revestimento vermelho acastanhado de ferrugem. Ele se ajoelhou, segurou as barras, e levantou a grade do caminho — assim é como meu irmão e seus amigos entraram. Ela desce até o porão, eu acho.
Ele olhou para Jace e Clary se juntou a ele. Clary mal podia segurar sua respiração, o cheiro do lixo era esmagador e, mesmo na escuridão, ela podia ver as formas em movimento das baratas rastejando acima das pilhas.
Um fino sorriso tinha se formado nos cantos da boca de Jace. Ele ainda estava segurando a lâmina serafim em sua mão. A luz que vinha dela emprestou a seu rosto um molde espectral, lembrando-a do modo como Simon segurava a lanterna em seu queixo enquanto contava histórias de terror quando ambos tinham onze anos.
— Obrigado — disse a Raphael — isso vai servir muito bem.
O rosto do outro garoto estava pálido.
— Vá lá dentro e faça pelo seu amigo o que eu não pude fazer pelo meu irmão.
Jace escorregou a lâmina serafim para seu cinto e olhou para Clary.
— Siga-me.
 E Jace deslizou através da grade em um único movimento suave, os pés primeiro. Ela segurou sua respiração, esperando por um grito de agonia ou espanto, mas houve apenas um baque de aterrissagem suave dos pés em terra firme.
— Está tudo bem — ele chamou, sua voz abafada — pule e eu pego você.
Ela olhou para Raphael.
— Obrigada por sua ajuda.
Raphael não respondeu, apenas segurou suas mãos. Ela as usou para se firmar enquanto se colocava em posição. Os dedos dele estavam frios. Ele a deixou ir enquanto se desprendia e descia através da grade. Foi apenas um segundo de queda e Jace logo e segurou. O vestido encolheu ao redor de suas coxas e as mãos dele roçaram suas pernas enquanto ela mergulhava em seus braços. Ele soltou-a quase que imediatamente.
— Você está bem?
Ela puxou seu vestido para baixo, satisfeita por ele não poder vê-la no escuro.
— Estou bem.
Jace puxou a lâmina serafim brilhando turvamente de sua cintura e a levantou, deixando a sua crescente luz banhar os arredores. Eles estavam de pé em um espaço de teto baixo e piso de concreto rachado. Espaços de sujeira mostravam onde o piso estava quebrado, e Clary pôde ver as estrias pretas que tinham começado a se contorcer nas paredes. Uma passagem faltando a porta abria-se para outro quarto.
Um baque forte a fez se sobressaltar, e ao virar viu Raphael aterrissando, joelhos dobrados, a poucos metros dela. Ele os seguiu através da grade. Se endireitou e sorriu maniacamente.
Jace parecia furioso.
— Eu disse para você...
— E eu te ouvi — Raphael acenou a mão em desprezo — o que você vai fazer sobre isso? Eu não posso voltar da forma como entrei, e você não pode simplesmente me deixar aqui para a morte me encontrar... ou pode?
— Estou pensando nisso — Jace respondeu.
Ele parecia cansado. Clary viu, com alguma surpresa, as sombras sob os olhos mais pronunciadas.
Raphael apontou.
— Temos de ir por aquele caminho, em direção à escada. Eles estão lá em cima. Você vai ver.
Ele abriu caminho, passando por Jace e indo através da passagem estreita. Jace olhou para ele, balançando sua cabeça.
— Estou realmente começando a odiar os mundanos.
O piso inferior do hotel era um amontoado de corredores, como labirintos que iam para salas de armazenamento, uma lavandaria deserta – onde bolorentas pilhas de toalhas de linho se acumulavam em cima de cestas de vime, uma fantasmagórica cozinha com bancos de aço inoxidável e uma bancada se alongando para dentro das sombras.
A maioria dos degraus para subir tinha desaparecido; não apodrecidos mas deliberadamente cortados em pedaços, reduzidos a pilhas de gravetos empurrados contra a parede, pedaços do que uma vez foi um luxuoso tapete persa agarravam-se a eles como flores cobertas pelo molde.
A falta de escadas confundiu Clary. O que os vampiros tinham contra as escadas? Eles finalmente encontraram uma não danificada, enfiada atrás da lavanderia. Os empregados devem tê-la usado para transportar as roupas de cama para cima e para baixo no tempo anterior aos elevadores. Uma poeira espessa descansava sobre os degraus agora, como uma camada de neve empoeirada cinza que fez Clary tossir.
— Shh — assobiou Raphael. — Eles vão ouvi-la. Estamos perto de onde eles dormem.
— Como você sabe? — ela sussurrou de volta.
Nem sequer era para estar lá. O que lhe dava o direito à sua palestra sobre o ruído?
— Eu posso sentir — o canto do seu olho estremeceu, e ela viu que ele estava tão assustado quanto ela — você não?
Ela balançou a cabeça. Não sentia nada, exceto o estranho frio. Após o calor sufocante da noite lá fora, o frio no interior do hotel era intenso.
No topo das escadas havia uma porta sobre a qual estava pintada a palavra “Saguão” que era pouco legível abaixo dos anos de sujeira acumulada. A porta gotejou ferrugem quando Jace empurrou-a. Clary abraçou a si mesma... mas a sala além estava vazia. Eles estavam em um grande saguão, o carpete apodrecido e rasgado mostrava as placas de piso despedaçadas abaixo. Um dia, a peça central desta sala havia sido uma grande escadaria, graciosamente curvando-se, alinhando um corrimão dourado e ricamente acarpetado em ouro e escarlate. Agora tudo o que restava eram os degraus mais elevados, entrando para a escuridão. O restante da escada terminava logo acima de suas cabeças, suspensa no ar. A visão era tão surreal quanto uma das pinturas abstratas Magritte que JoceIyn tinha amado. Esta, Clary pensou, poderia ser chamada de “Escada para lugar nenhum.”
A voz dela soou tão seca quanto a poeira que revestia tudo.
— O que os vampiros têm contra as escadas?
— Nada. Eles simplesmente não precisam usá-las.
— É uma maneira de mostrar que este lugar é deles — os olhos de Raphael estavam brilhantes.
Ele parecia quase animado. Jace olhou-o de lado.
— Você alguma vez viu um vampiro, Raphael? — ele perguntou.
Raphael olhou para ele quase distraído.
— Eu sei como eles se parecem. São pálidos, mais magros do que os seres humanos, mas muito fortes. Andam como gatos e movem-se com a rapidez das serpentes. Eles são bonitos e terríveis. Como este hotel.
— Você acha que isso é bonito? — Clary perguntou, surpresa.
— Você poderia ver como ele era, anos atrás. Como uma anciã, que foi uma vez linda, mas o tempo tirou sua beleza. Você precisa imaginar esta escadaria da forma como ela foi uma vez, com as lâmpadas a gás iluminando tudo acima e abaixo dos degraus, como vagalumes no escuro, e os balcões cheios de pessoas. Não do jeito que é agora, tão...
Ele se interrompeu, em busca de uma palavra.
— Quebrado? — Jace sugeriu secamente.
Raphael olhou quase assustado, como se Jace tivesse interrompido seu devaneio. Ele riu tremulamente e se afastou.
Clary se virou para Jace.
— Onde eles estão afinal? Os vampiros, eu quero dizer.
— Lá em cima, provavelmente. Eles gostam de estar no alto quando dormem, como os morcegos. E está quase amanhecendo.
Como se combinados, Clary e Raphael olharam para cima ao mesmo tempo. Não havia nada acima deles, mas o teto de afrescos, rachado e negro em alguns lugares, parecia ter sido queimado em um incêndio.
Uma passagem arqueada a sua esquerda levava mais adentro da escuridão; os pilares de cada lado gravados com imagens de folhas e flores. Quando Raphael olhou de volta para baixo, uma cicatriz na base de sua garganta, muito branca contra a sua pele marrom, cintilou como o piscar de um olho. Ela se perguntou como foi que ele a conseguiu.
— Eu acho que devemos voltar para a escada dos empregados — ela sussurrou — eu me sinto muito exposta aqui.
Jace concordou.
— Você percebe que quando chegarmos lá, vai ter que gritar por Simon e esperar que ele possa ouvi-la?
Ela se perguntou se o medo que sentia aparecia em seu rosto.
— Eu...
Suas palavras foram cortadas por um curto grito descomunal. Clary girou.
Raphael.
Ele se foi, sem marcas na poeira mostrando para onde ele teria caminhado, ou sido arrastado. Ela se aproximou de Jace, em reflexo, mas ele já estava em movimento, correndo em direção ao arco escancarado na parede e até as sombras mais além. Ela não podia vê-lo, mas seguiu o lampejo da luz de bruxa que ele carregava.
Além do arco, havia o que tinha sido um grande salão de baile. O arruinado chão era de mármore branco, agora tão quebrado que se assemelhava a uma placa de gelo flutuando. Balcões curvados corriam ao longo das paredes, seus parapeitos cobertos por ferrugem. Espelhos emoldurados cor de ouro estavam pendurados em intervalos entre eles, cada um ornamentado com uma cabeça dourada de cupido. Teias de aranha eram balançadas pelas correntes de ar úmido como antigos véus de casamento.
Raphael estava de pé no centro da sala, os braços pendidos ao lado. Clary correu até ele, Jace seguiu mais lentamente atrás dela.
— Você está bem? — ela perguntou sem fôlego.
Ele concordou lentamente.
— Eu pensei ter visto um movimento nas sombras. Não era nada.
— Nós decidimos voltar para a escada de empregados — Jace disse. — Não há nada neste andar.
Raphael acenou a cabeça.
— Boa ideia.
Ele foi à frente para a porta, não olhando para ver se eles o seguiam. Tinha dado apenas alguns passos quando Jace chamou:
— Raphael?
Raphael se virou, ampliando os olhos inquisitivamente, e Jace jogou sua faca.
Os reflexos de Raphael foram rápidos, mas não o suficiente. A lâmina acertou o alvo, a força do impacto golpeando com força. Seus pés moveram-se para baixo e ele caiu pesadamente no chão de mármore rachado. Na turva luz de bruxa, seu sangue parecia preto.
— Jace! — Clary sibilou em descrença, o choque esmagando através dela.
Ele tinha dito que odiava os mundanos, mas nunca acreditaria que...
Quando ela se virou para ir até Raphael, Jace brutalmente a empurrou de lado. Ele próprio se jogou sobre o outro garoto e agarrou a faca para acertar o peito de Raphael. Mas Raphael foi mais rápido. Ele segurou a faca, e então gritou quando a mão dele entrou em contato com o cabo em forma de cruz, que caiu ruidosamente no piso de mármore, a lâmina manchada de preto.
Jace tinha uma mão cerrada na camisa de Raphael, a Sanvi na outra. Ela estava cintilando com uma tão luz brilhante que Clary podia ver melhor as cores: o azul real do papel de parede descascando, as manchas de ouro no mármore no chão, a mancha vermelha difusa no peito de Raphael.
Mas Raphael estava rindo.
— Você errou — ele disse, e sorrindo pela primeira vez, mostrando afiados incisivos brancos — você errou o meu coração.
Jace reforçou seu aperto.
— Você se moveu no último minuto. Isso foi muito imprudente.
Raphael amarrou a cara cuspiu, vermelho. Clary andou para trás, olhando em crescente horror.
— Quando você descobriu? — ele exigiu.
Seu sotaque tinha sumido, suas palavras mais precisas e juntas agora.
— Eu acho que no beco — Jace respondeu — imaginei que você nos levaria até o interior do hotel, então se viraria contra nós. Uma vez que infringimos o limite, estaríamos fora da proteção do Pacto. Jogo justo. Quando não nos atacou, eu pensei que poderia estar enganado. Então vi a cicatriz na sua garganta — Jace sentou um pouco para trás, ainda mantendo a lâmina na garganta de Raphael — quando a vi pela primeira vez, vi que sua corrente parecia do tipo que carregava uma cruz. E o que você fez quando saiu para ver sua família? O que é a cicatriz de uma pequena queimadura, quando seu tipo cicatriza tão rápido?
Raphael riu.
— Era só isso? Minha cicatriz?
— Quando você deixou o saguão, seus pés não deixaram marcas na poeira. Então eu soube.
— Não foi o seu irmão que passou por aqui à procura de monstros e nunca saiu, não é? — Clary disse, percebendo. — Foi você.
— Vocês são ambos muito inteligentes — disse Raphael — apesar de não o suficiente. Olhem para cima — ele falou, e levantou uma mão para o ponto no teto.
Jace golpeou a mão dele sem mover o seu olhar de Raphael.
— Clary. O que você vê?
Ela levantou a cabeça lentamente, o pavor coalhando no poço de seu estômago.
Você precisa imaginar esta escadaria da forma como ela foi uma vez, com as lâmpadas a gás iluminando tudo acima e abaixo dos degraus, como vagalumes no escuro, e os balcões cheios de pessoas.
Eles estavam cheios de pessoas agora, fileiras e fileiras de vampiros com suas faces brancas de mortos, suas bocas vermelhas esticadas, fitando perplexos para baixo.
Jace ainda estava olhando para Raphael.
— Você os chamou, não foi?
Raphael ainda estava sorrindo. O sangue tinha parado de ser expelido da ferida em seu peito.
— Isso importa? Existem muitos deles, até mesmo para você, Wayland.
Jace não disse nada. Embora ele não tivesse se deslocado, estava respirando curto e rápido, e Clary quase podia sentir a força do seu desejo de matar o garoto vampiro, de enfiar a faca no seu coração, e limpar aquele largo sorriso do seu rosto de sempre.
— Jace — ela advertiu — não o mate.
— Por que não?
— Talvez possamos usá-lo como um refém.
Os olhos de Jace se ampliaram.
— Um refém?
Ela podia vê-los, muito deles preenchendo a passagem arqueada, movimentando-se tão silenciosamente quanto os Irmãos da Cidade dos Ossos. Mas os irmãos não tinham a pele tão branca e incolor, nem as mãos que se curvavam em garras nas pontas...
Clary lambeu seus lábios secos.
— Sei o que estou fazendo. Levante-o, Jace.
Jace olhou para ela, então deu de ombros.
— Tudo bem.
— Isto não é engraçado — Raphael falou.
— É por isso que ninguém está rindo — Jace levantou Raphael, pressionando a ponta de sua faca entre as omoplatas de Raphael — eu posso furar o seu coração tão facilmente através das suas costas. Eu não me moveria se fosse você.
Clary se afastou deles para enfrentar as formas escuras se aproximando. Ela elevou uma mão.
— Parem bem aí. Ou ele vai colocar essa lâmina através do coração de Raphael.
Uma espécie de murmúrio correu através da multidão, poderia ser sussurros ou risadas.
— Parem — Clary ordenou novamente, e desta vez Jace fez algo – que Clary não pôde ver – que fez Raphael chorar surpreendido pela dor.
Um dos vampiros levantou um braço para segurar seus companheiros. Clary reconheceu-o como o rapaz magro e loiro com o brinco que ela tinha visto na festa de Magnus.
— Ela quer dizer que eles são Caçadores de Sombras.
Outro vampiro empurrou seu caminho através da multidão para repousar ao seu lado, uma linda garota asiática com cabelo azul em uma saia de prata drapeada. Clary se perguntou se havia algum vampiro feio, ou talvez algum gordo. Talvez eles não fizessem vampiros de pessoas feias. Ou talvez pessoas feias simplesmente não quisessem viver para sempre.
— Caçadores de Sombras invadindo o nosso território — a asiática disse — estão fora da proteção do Pacto. Eu digo para matá-los – eles tem matado o suficiente da nossa espécie.
— Qual de vocês é o mestre deste lugar? — Jace perguntou, sua voz muito superficial. — Deixe-o dar um passo a frente.
A garota expôs seus dentes afiados.
— Não use a linguagem da Clave em nós, Caçador de Sombras. Você quebrou o seu precioso Pacto vindo até aqui. A lei não irá protegê-lo.
— Isso é o suficiente, Lily — o garoto loiro disse acentuadamente — a nossa mestra não está aqui. Ela está em Idris.
— Alguém deve manter as regras em seu lugar — Jace observou.
Houve um silêncio. Os vampiros nas varandas estavam dependurados ao longo dos parapeitos, inclinados para baixo para ouvir o que era dito.
— Raphael nos lidera — o vampiro loiro contou finalmente.
A garota de cabelo azul, Lily, deu um silvo de desaprovação.
— Jacob.
— Eu proponho uma troca — Clary disse rapidamente, cortando o discurso de Lily e a réplica de Jacob — agora vocês devem saber que levaram para casa algumas pessoas da festa esta noite. Uma delas era o meu amigo Simon.
Jacob levantou suas sobrancelhas.
— Você é amiga de um vampiro?
— Ele não é um vampiro. E não é um Caçador de Sombras também — ela acrescentou, vendo os olhos estreitos de Lily — é apenas um simples humano.
— Nós não trouxemos para casa nenhum garoto humano da festa de Magnus. Isso teria sido uma violação do Pacto.
— Ele tinha sido transformado em um rato. Um pequeno rato marrom — Clary disse — alguém pode ter pensado que ele era um animal de estimação, ou...
Sua voz falhando. Eles estavam olhando para ela como se ela estivesse louca. Um frio desespero penetrou em seus ossos.
— Deixa ver se eu entendi — Lily falou — você está oferecendo Raphael em troca de um rato?
Clary se virou para Jace. Ele deu um olhar que dizia, isto foi sua ideia. Você está por sua conta.
— Sim — Clary respondeu, virando-se de volta para os vampiros — essa é a troca que estamos oferecendo.
Eles olharam para ela, suas faces brancas quase inexpressivas. Em outro contexto, Clary teria dito que eles pareciam desconcertados.
Ela podia sentir Jace em pé atrás dela, ouvindo sua respiração irritada. Se perguntou se ele estava vasculhando seu cérebro tentando descobrir porque deixou-se ser arrastado até aqui, em primeiro lugar. Ela se perguntou se ele estava começando a odiá-la.
— Você quer dizer este rato?
Clary piscou. Outro vampiro, um rapaz magro com tranças pretas, tinha aberto caminho para a frente da multidão. Ele estava segurando com delicadeza algo em suas mãos, algo marrom que contorcia-se.
— Simon? — ela sussurrou.
O rato guinchou e começou a se rebater selvagemente no aperto do garoto. Ele olhou para baixo, para o roedor com uma expressão de desagrado.
— Cara, eu pensei que ele fosse Zeke. Estava me perguntando o porquê de ele estar se esquivando com tanta atitude — ele balançou a cabeça, suas tranças balançando — cara, digo que ela levá-lo. Ele já me mordeu umas cinco vezes.
Clary se aproximou de Simon, suas mãos ansiosas para abraçá-lo. Mas Lily deu um passo a frente antes que Clary se aproximar mais.
— Espere — Lily interrompeu — como saberemos que você não vai simplesmente pegar o rato e matar Raphael afinal?
— Nós vamos dar a nossa palavra — Clary disse imediatamente, então ficou tensa, esperando que eles rissem.
Ninguém riu. Raphael xingou suavemente em espanhol. Lily olhou curiosamente para Jace.
— Clary — ele disse. Havia ali corrente desespero exasperado oculto em sua voz — isso é realmente um...
— Sem juramento, sem troca — Lily disse imediatamente, apreensão em seu tom incerto — Elliott, segure o rato.
O garoto com tranças reforçou o seu controle sobre Simon, que afundou os dentes selvagemente na mão de Elliott.
— Cara — ele reclamou com mau-humor — isso dói.
Clary aproveitou a oportunidade para sussurrar para Jace.
— Só jure! Isso não vai machucar.
— Juramento para nós não é como para vocês, mundanos — ele respondeu de volta com raiva — eu sempre vou estar preso a qualquer juramento que eu faça.
— Ah, é? O que aconteceria se você o quebrasse?
— Eu não iria quebrá-lo, esse é o ponto...
— Lily está certa — disse Jacob — um juramento é exigido. Jure que não vai machucar Raphael. Mesmo quando nós dermos o rato de volta.
— Não vou machucar Raphael — Clary disse imediatamente — não importa o quê.
Lily sorriu para ela tolerantemente.
— Não é com você que estamos preocupados.
Ela mudou o olhar para Jace, que estava segurando Raphael tão apertado que os nós de seus dedos estavam brancos. Uma mancha de suor escureceu o pano de sua camisa, entre seus ombros.
— Tudo bem. Eu vou jurar.
— Fale o juramento — Lily disse rapidamente — jure sobre o Anjo. Diga tudo.
Jace balançou a cabeça.
— Você jura primeiro.
Suas palavras caíram em silêncio como pedras, enviando uma onda de murmúrios através da multidão. Jacob pareceu preocupado; Lily furiosa.
— Sem chance, Caçador de Sombras.
— Temos o seu líder — a ponta da faca de Jace escavou mais fundo a garganta de Raphael — e o que você tem aí? Um rato.
Simon, preso nas mãos de Elliott, guinchou furiosamente. Clary desejou poder tentar agarrá-lo, mas se segurou.
— Jace...
Lily olhou para Raphael.
— Mestre?
Raphael tinha sua cabeça inclinada para baixo, seus cachos escuros caídos escondiam seu rosto. Sangue coloria o colarinho de sua camisa, escorrendo por baixo de sua nua pele marrom.
— Um rato muito importante — ele disse — para você vir aqui por todo esse caminho. É você, Caçador de Sombras, penso, que irá jurar primeiro.
Jace apertou mais ainda o vampiro. Clary viu a tensão da musculatura sob a pele, o branqueamento de seus dedos e nas laterais de sua boca enquanto ele lutava com a raiva.
— O rato é um mundano — ele disse abruptamente — se você matá-lo, estará sujeito à Lei...
— Ele está no nosso território. Invasores não são protegidos pelo Pacto, você sabe que...
— Vocês o trouxeram para cá —Clary interrompeu — ele não invadiu.
— Tecnicamente. — Raphael disse, sorrindo para ela, sem ligar para a faca na garganta. — Além disso, você acha que nós não ouvimos os rumores, a notícia que está correndo no Submundo, como sangue através das veias? Valentim está de volta. Não haverá nenhuma Lei e nenhum Pacto em breve.
Jace sacudiu a cabeça.
— Onde você ouviu isso?
Raphael franziu as sobrancelhas com desdém.
— Todo o Submundo sabe. Ele pagou um bruxo para levantar um bando de Raveners apenas uma semana atrás. Ele enviou seus Esquecidos para procurar o Cálice Mortal. Quando encontrá-lo, não haverá mais a falsa paz entre nós, só a guerra. Nenhuma Lei me impedirá de jogar o seu coração lá fora nas rua, Caçador de Sombras...
Isso foi o suficiente para Clary. Ela pulou em cima de Simon, jogando Lily de lado, e arrebatou o rato para fora das mãos de Elliott. Simon subiu em seu braço, agarrando-se em sua manga com patas frenéticas.
— Está tudo bem — ela sussurrou — está tudo bem.
Embora ela soubesse que não. Ela se virou para correr, e sentiu mãos segurando sua jaqueta, prendendo-a. Ela lutou, mas seus esforços para se libertar das mãos que a seguravam – Lily, com suas estreitas unhas pretas, estava atrasando-a em seu medo de desalojar Simon, que aderia à sua jaqueta com patas e dentes.
— Me solte! — ela gritou, chutando a garota.
Clary chutou o dedo do pé de Lily tão forte, que a vampira gritou com dor e raiva. Ela moveu sua mão com rapidez a frente, acertando Clary na bochecha com força suficiente para jogar a cabeça dela para trás.
Clary oscilou e quase caiu. Ela ouviu Jace gritar seu nome, e se virou para ver que ele tinha largado Raphael e estava correndo na direção dela. Clary tentou ir para ele, mas seus ombros foram agarrados por Jacob, seus dedos cavando em sua pele.
Clary gritou, o som se perdeu no ruído do grito elevado de Jace, apanhando um dos frascos de vidro de sua jaqueta, e jogando o seu conteúdo na direção dela. Ela sentiu o úmido frio respingar em seu rosto, e ouviu Jacob gritar quando a água tocou sua pele. Fumaça subiu de seus dedos e ele libertou Clary, uivando como um grande animal. Lily se arremessou sobre ele, chamando o seu nome e, no tumulto, Clary sentiu alguém agarrar seu pulso. Ela lutou para manter a distância.
— Pare sua idiota, sou eu — Jace ofegou em sua orelha.
— Oh!
Ela relaxou momentaneamente, em seguida, ficou tensa novamente, vendo uma familiar forma surgir atrás Jace. Ela gritou, Jace mergulhou e se virou apenas quando Raphael saltou em cima dele, dentes à mostra, rápido como um gato. Seus dentes pegaram a camisa de Jace perto do ombro e rasgou o tecido longitudinalmente enquanto Jace ficava chocado. Raphael se agarrou como um aperto de uma aranha, os dentes próximos à garganta de Jace. Clary tateou em sua mochila pela adaga que Jace lhe deu...
Uma pequena forma marrom cruzou o chão, caindo aos pés de Clary e lançando-se sobre Raphael.
Raphael gritou. Simon se pendurou violentamente no seu antebraço, os acentuados dentes de rato afundaram profundamente na carne. Raphael largou Jace, debatendo-se para trás, sangue esguichava enquanto um fluxo de obscenidades em espanhol vertiam de sua boca.
Jace interrompeu, sua boca aberta.
— Filho da...
Recuperando seu equilíbrio, Raphael arrancou o rato de seu braço e o lançou no chão em mármore. Simon guinchou uma vez com dor e, então foi para Clary. Ela se abaixou e o pegou, segurando-o contra o peito tão apertado quanto conseguia sem machucá-lo. Ela podia sentir o ritmo do seu minúsculo batimento cardíaco contra seus dedos.
— Simon — ela sussurrou — Simon...
— Não há tempo para isso. Segure ele.
Jace tinha agarrado seu braço direito, pressionando com uma força dolorosa. Na outra mão ele segurava uma reluzente lâmina serafim.
— Ande.
Ele começou meio que empurrando e puxando-a até o canto da multidão. Os vampiros piscaram se afastando da luz da lâmina serafim que se arremessava sobre eles, todos sibilando como gatos escaldados.
— Chega de ficar ao redor deles!
Era Raphael. O braço dele estava fluindo sangue, os lábios curvados sobre seus incisores afiados. Ele olhou para a apinhada massa de vampiros rondando em confusão.
— Ataquem os invasores — ele gritou — matem eles, o rato também!
Os vampiros começaram a ir em direção de Jace e Clary, alguns deles caminhando, outros deslizando, outros se lançando de cima como oscilantes morcegos pretos. Jace aumentou seu passo enquanto eles se livravam do grupo, indo em direção à parede mais distante. Clary se contorceu, girando em volta para olhar para ele.
— Nós não deveríamos ir mais e mais para trás, ou algo assim?
— O quê? Por quê?
— Eu não sei. No cinema é o que eles fazem neste tipo de situação...
Ela sentiu-o estremecer. Ele estava assustado? Não, ele estava rindo.
— Você — ele respirou — você é a mais...
— A mais o quê? — ela exigiu indignadamente.
Eles ainda estavam se apoiando, andando cuidadosamente para evitar os pedaços de móveis quebrados e os pedaços de mármore que descansavam sobre o piso. Jace levantou a lâmina do anjo acima das suas cabeças. Ela podia ver a forma como os vampiros circulavam ao redor das bordas do brilhante círculo que se lançava. Ela se perguntou por quanto tempo aquilo os manteria fora.
— Nada. Este não é o momento, ok? Guardarei minha resposta para quando as coisas estiverem realmente ruins.
— Realmente ruins? Isto não é realmente ruim? O que você quer, uma bomba nuclear...
Ela rompeu com um grito quando Lily, desafiando a luz, se lançou em Jace, dentes a mostra em um rosnar insensível. Jace puxou a segunda lâmina do seu cinto e a lançou através do ar. Lily gritou alto caiu para trás, um longo corte profundo fritando seu braço. Enquanto ela cambaleava, os outros vampiros adiantaram-se ao seu redor.Havia tantos deles, Clary pensou, tantos...
Ela tateou no seu cinto, fechando os dedos em torno do cabo da adaga. A sentia fria e diferente em sua mão. Ela não sabia como usar uma faca. Nunca bateu em ninguém, muito menos, esfaqueou. Até mesmo escapou da aula de ginástica no dia em que eles ensinaram como repelir ladrões e estupradores com objetos comuns como chaves de carro e lápis. Ela puxou a adaga, libertando-a, levantou-a com uma mão trêmula...
As janelas explodiram para dentro em uma chuva de vidros quebrados. Ela se ouviu gritar, viu os vampiros – a apenas um metro de distância dela e de Jace – girando atônitos, o choque confundindo com o terror em seus rostos. Através das janelas destroçadas vieram dezenas de formas lustrosas, quadrúpedes com suas peles de animal espalhando a luz da lua e pedaços de vidro quebrado. Seus olhos eram fogos azuis, e a partir de suas gargantas veio um rosnar baixo que soou como um agitar da queda de uma cachoeira.
Lobisomens.
— Agora — Jace respondeu — esta é uma situação realmente ruim.

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