Capítulo 1

A estranha jovem estava hospedada na estalagem Porco Branco havia dois dias, e mal falara com qualquer um, exceto por Nolan, que olhara uma vez para suas roupas escuras e refinadas e se desdobrara para acomodá-la.
Ele deu à mulher o melhor quarto na Porco — aquele que oferecia somente para os clientes que pretendia extorquir — e não pareceu nem um pouco incomodado com o capuz pesado que a ela vestia ou com a variedade de armas que reluziam ao longo do corpo longilíneo e esguio. Não quando a jovem jogou para Nolan uma moeda de ouro com um estalar casual dos dedos enluvados. Não quando usava um broche de ouro ornamentado com um rubi do tamanho do ovo de um tordo.
Por outro lado, Nolan nunca realmente temia ninguém, a não ser que parecesse improvável que a pessoa fosse pagar — e mesmo então, eram o ódio e a ganância, e não o medo, que venciam. Yrene Towers observava a mulher da segurança do balcão do bar. Observava apenas porque a estranha era jovem e estava desacompanhada e sentada tão imóvel na mesa dos fundos que era impossível não olhar. Não questionar.
Yrene ainda não vira seu rosto, embora tivesse um lampejo de vez em quando de uma trança dourada reluzindo das profundezas do capuz preto. Em qualquer outra cidade, a estalagem Porco Branco provavelmente seria considerada a mais desprezível das desprezíveis no que diz respeito a luxo e limpeza. Mas ali em Innish, uma cidade portuária tão pequena que não estava na maioria dos mapas, era a mais refinada.
A atendente olhou para a caneca que lavava no momento e tentou não encolher o corpo. Fazia o melhor para manter o bar e o balcão limpos, para servir os clientes da Porco — a maioria dos quais era composta por marinheiros ou comerciantes ou mercenários que costumavam pensar que ela também estava à venda — com um sorriso. Contudo, Nolan ainda aguava o vinho, ainda lavava os lençóis apenas quando não havia como negar a presença de piolhos e pulgas e, às vezes, usava qualquer tipo de carne que encontrasse no beco dos fundos para o ensopado de todos os dias.
Yrene trabalhava ali fazia um ano — 11 meses mais do que pretendera —, e a Porco Branco ainda a enojava. Considerando que conseguia suportar quase tudo (um fato que permitia que tanto Nolan quanto Jessa exigissem que ela limpasse as sujeiras mais nojentas dos clientes), isso significava muito.
A estranha na mesa dos fundos ergueu a cabeça, sinalizando com o dedo enluvado para que a moça levasse mais uma cerveja. Para alguém que não parecia ter mais que 20 anos, a jovem bebia uma quantidade incrível — vinho, cerveja, o que quer que Nolan ordenasse que Yrene servisse —, mas jamais parecia se embebedar. Era impossível dizer com aquele capuz pesado. Nas últimas duas noites, simplesmente voltou para o quarto com uma graça felina, sem tropeçar sobre si mesma, como a maioria dos clientes a caminho da saída depois da última rodada.
Yrene rapidamente encheu a caneca que acabara de secar com cerveja e a colocou sobre uma bandeja. Acrescentou um copo d’água e mais pão, pois a jovem não havia tocado no ensopado que lhe fora servido no jantar. Sequer uma mordida. Mulher inteligente.
A atendente ziguezagueou pelo bar lotado, desviando das mãos que tentaram agarrá-la. A meio caminho, viu o olhar de Nolan do lugar no qual estava sentado perto da entrada. Um aceno encorajador com a cabeça, a careca do homem brilhando à luz fraca. Faça com que continue bebendo. Faça com que continue comprando.
Yrene evitou revirar os olhos apenas porque Nolan era o único motivo pelo qual ela não estava perambulando pelas ruas de paralelepípedos com as outras jovens de Innish. Um ano antes, o homem troncudo se deixou convencer de que precisava de mais ajuda com a estalagem. É claro que Nolan somente aceitou quando percebeu que o acordo seria mais vantajoso para ele.
Mas Yrene tinha 18 anos e estava desesperada, aceitando alegremente um emprego que oferecia apenas algumas moedas e uma caminha miserável em um armário de vassouras sob as escadas. A maior parte do dinheiro vinha das gorjetas, mas Nolan reivindicava metade disso. E então Jessa, a outra atendente do bar, reivindicava dois terços do que restava porque, como costumava dizer, na verdade, ela era o rosto bonito que fazia com que os homens se desfizessem do dinheiro.
Um olhar para o canto revelou aquele rosto bonito e o corpo de sua dona aconchegados no colo de um marinheiro barbudo, rindo e atirando os espessos cachos castanhos para trás. A moça suspirou pelo nariz, mas não reclamou, pois Jessa era a preferida de Nolan, e Yrene não tinha lugar algum — nenhum mesmo — para onde ir. Innish era seu lar agora, e a Porco Branco, seu santuário. Do lado de fora, o mundo era grande demais, cheio demais de sonhos partidos e exércitos que haviam esmagado e queimado tudo aquilo que lhe era caro.
Por fim, chegou à mesa da estranha e viu que a jovem a olhava.
— Trouxe um pouco de água e pão também — gaguejou a atendente, como um cumprimento.
Ela apoiou a cerveja, mas hesitou sobre os dois outros itens na bandeja. A mulher apenas disse:
— Obrigada. — A voz era baixa e tranquila, culta. Educada. E completamente desinteressada em Yrene.
Não que houvesse alguma coisa a respeito dela que fosse remotamente interessante, pois usava um vestido de lã feito em casa que pouco enfeitava a silhueta magra demais. Como a maioria daqueles que haviam migrado de Charco Lavrado, Yrene tinha pele bronzeada, cabelos castanhos comuns e altura mediana. Somente os olhos, de um castanho-dourado forte, lhe davam alguma fonte de orgulho. Não que muitas pessoas os vissem. A moça tentava manter os olhos para baixo na maior parte do tempo, evitando qualquer convite à comunicação ou o tipo errado de atenção.
Então, Yrene apoiou o pão com água e pegou a caneca vazia do centro da mesa, para onde a garota a empurrara. No entanto, a curiosidade venceu, fazendo-a olhar para as profundezas escuras embaixo do capuz. Nada além de sombras, um brilho de cabelo dourado e um indício de pele pálida. Yrene tinha tantas perguntas — tantas, tantas perguntas. Quem é você? De onde vem?
Aonde vai? Consegue usar todas essas armas que carrega?
Nolan observava o encontro, então a atendente fez uma cortesia e caminhou de volta para o bar pelo campo de mãos que a apalpavam, os olhos para baixo conforme estampava um sorriso distante no rosto.

***

Celaena Sardothien estava sentada à mesa na estalagem completamente desprezível, refletindo sobre como a vida fora para o inferno tão rapidamente.
Ela odiava Innish. Odiava o fedor de lixo e a imundície, odiava o cobertor pesado de névoa que dia e noite cobria a cidade, odiava os mercadores e os mercenários de quinta e as pessoas, em geral miseráveis, que ocupavam o lugar.
Ninguém ali sabia quem ela era ou por que tinha ido até lá; ninguém sabia que a garota sob o capuz era Celaena Sardothien, a assassina mais famosa do império de Adarlan. Mas, por outro lado, não queria que soubessem. Não podia deixar que soubessem, na verdade. E também não queria que descobrissem que estava a apenas uma semana de fazer 17 anos.
Celaena já estava lá havia dois dias — dois dias passados aninhada no quarto desprezível (uma “suíte”, como o estalajadeiro ensebado tivera a ousadia de chamar) ou no bar que fedia a suor, cerveja velha e corpos sujos.
Teria partido se tivesse alguma escolha. Mas fora forçada a estar ali, graças a seu mestre, Arobynn Hamel, rei dos Assassinos. Ela sempre tivera orgulho do status de herdeira escolhida do homem — sempre o ostentara. Mas agora... Aquela jornada era sua punição por ter destruído o cruel acordo de comércio de escravos com o lorde pirata de baía da Caveira. Então, a não ser que quisesse arriscar a caminhada pela selva Bogdano — o pedaço de terra selvagem que ligava o continente à Terra Desértica —, velejar pelo golfo de Oro era o único caminho. O que significava esperar ali, naquele lixo de taverna, até que um navio a levasse até Yurpa.
Celaena suspirou e tomou um longo gole da cerveja, que quase cuspiu. Nojenta. Tão barata quanto era possível, tal qual o resto daquele lugar. Como o ensopado no qual não tocara. Qualquer que fosse a carne, não era de uma criatura que valesse a pena comer. Pão e queijo suave bastariam.
A assassina se recostou no assento, reparando na atendente do bar com os cabelos castanho-dourados deslizar pelo labirinto de mesas e cadeiras. A garota desviou habilidosamente dos homens que a apalpavam, tudo sem agitar a bandeja que carregava sobre o ombro. Que desperdício de pés ágeis, bom equilíbrio e olhos inteligentes e impressionantes. A atendente não era burra. Celaena percebera o modo como ela observava o salão e os clientes; o modo como observava a própria Celaena. Que inferno pessoal a levara a trabalhar ali?
A assassina não se importava de fato. As perguntas eram mais para afastar o tédio. Já havia devorado os três livros que trouxera consigo de Forte da Fenda, e nenhuma das lojas em Innish tinha sequer um exemplar à venda — apenas temperos, peixe, roupas fora de moda e equipamento náutico. Para uma cidade portuária, era patético. Mas o reino de Melisande caíra em tempos difíceis nos últimos oito anos e meio; desde que o rei de Adarlan conquistara o continente e redirecionara o comércio por Eyllwe em vez dos poucos portos no leste de Melisande.
O mundo inteiro havia caído em tempos ruins, ao que parecia. Celaena inclusive. Ela lutou contra a vontade de tocar o próprio rosto. O inchaço da surra que Arobynn lhe dera tinha sumido, mas os hematomas permaneciam. Evitara olhar na lasca de espelho acima da penteadeira, sabendo o que veria: uma mescla de roxo e azul e amarelo ao longo das maçãs do rosto, um olho roxo horroroso e um lábio cortado ainda em cicatrização.
Tudo isso era um lembrete do que Arobynn tinha feito no dia em que Celaena retornou de baía da Caveira — prova de como o havia traído ao salvar duzentos escravos de um destino terrível. Ela fizera do lorde pirata um inimigo poderoso e tinha quase certeza de que estragara o relacionamento com Arobynn, mas era o correto. Valeu a pena; sempre valeria a pena, disse a si mesma.
Mesmo que às vezes estivesse com tanta raiva que não conseguisse pensar direito. Mesmo que tivesse se metido não em uma nem em duas, mas em três brigas de bar nas duas semanas em que vinha viajando de Forte da Fenda até o deserto Vermelho. Uma das brigas, pelo menos, fora provocada com razão: um homem havia roubado em um jogo de cartas. Mas as outras duas...
Não havia como negar: Celaena estava doida por uma briga. Nada de lâminas, nada de armas. Apenas punhos e pés. Ela imaginou que deveria se sentir mal por isso — pelos narizes e os maxilares quebrados, pelas pilhas de corpos inconscientes em seu rastro. Mas não se sentia. Não conseguia se importar, porque aqueles momentos que passara brigando tinham sido ospoucos momentos no qual se sentiu como si mesma de novo. Quando se sentiu como a maior assassina de Adarlan, a herdeira escolhida de Arobynn Hamel.
Mesmo que seus oponentes fossem lutadores bêbados e despreparados, mesmo sabendo que deveria ser mais sensata que aquilo.
A atendente do bar chegou à segurança do balcão, e Celaena olhou pelo salão. O estalajadeiro ainda a observava, como tinha feito durante os últimos dois dias, pensando em como conseguiria arrancar ainda mais dinheiro da bolsa da assassina. Havia diversos outros homens observando-a também. Ela reconhecia alguns das noites anteriores, enquanto outros eram rostos novos que Celaena rapidamente avaliou. Teria sido medo ou sorte que os mantivera longe dela durante tanto tempo?
A jovem não escondeu o fato de que carregava dinheiro consigo. E as roupas e as armas diziam muito a respeito de sua situação financeira também. O broche de rubi que usava praticamente implorava por confusão — Celaena usava a joia para criar confusão, na verdade. Fora um presente de Arobynn no seu aniversário de 16 anos; ela esperava que alguém tentasse roubá-lo. Se a pessoa fosse boa o suficiente, talvez permitisse. Então, era apenas uma questão de tempo, na verdade, antes que um deles tentasse roubá-la.
E antes de decidir que estava cansada de lutar apenas com punhos e pés. Celaena olhou para a espada a seu lado; a arma reluzia à luz escura da taverna.
Mas a assassina partiria ao amanhecer. Velejaria para a Terra Desértica, rumo ao deserto Vermelho, a fim de conhecer o Mestre Mudo e os Assassinos Silenciosos, com quem Celaena deveria treinar durante um mês como mais uma punição pela traição a Arobynn. No entanto, se estivesse sendo sincera consigo mesma, Celaena começara a contemplar a ideia de não ir ao deserto Vermelho.
Era tentador. Poderia pegar um navio para outro lugar — para o continente ao sul, talvez — e começar uma nova vida. Poderia deixar para trás Arobynn, a Guilda dos Assassinos, a cidade de Forte da Fenda e todo o maldito império de Adarlan. Havia pouco que a impedia, exceto pela sensação de que Arobynn a caçaria não importava o quanto fugisse. E o fato de que Sam... Bem, Celaena não sabia o que havia acontecido com seu colega assassino naquela noite em que o mundo desabou. Contudo, a atração do desconhecido permanecia, o ódio selvagem que implorava para que Celaena arrancasse os últimos grilhões de Arobynn e velejasse para um lugar no qual pudesse estabelecer a própria Guilda dos Assassinos. Seria tão, tão fácil.
Mas, mesmo que decidisse não pegar o navio para Yurpa no dia seguinte e, em vez disso, tomasse um com destino ao continente ao sul, Celaena ainda teria mais uma noite naquela estalagem horrível. Outra noite em claro, na qual só conseguiria ouvir o rugido do ódio no próprio sangue se debatendo dentro de si.
Se fosse inteligente, se fosse racional, evitaria qualquer confronto naquela noite e deixaria Innish em paz, não importando para onde iria.
Mas Celaena não estava se sentindo particularmente inteligente ou racional — certamente não depois das horas passarem e o ar na estalagem se tornar algo faminto e selvagem que urrava por sangue.

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