Capítulo 1
Não restava nada no mundo, exceto areia e vento.
Pelo menos, era isso que parecia a Celaena Sardothien quando olhou o deserto do topo da duna carmesim. Mesmo com o vento, o calor era sufocante, e o suor fazia com que as muitascamadas de roupa grudassem no corpo. Mas suar, lhe dissera o guia nômade, era bom — quando não se suava, o deserto Vermelho se tornava mortal. Suor lembrava a pessoa de beber. Quando o calor evaporava a perspiração antes que se notasse o suor, era possível passar sem saber para a desidratação.
Ah, o calor miserável. Invadia cada poro do corpo, fazia com que a cabeça latejasse e os ossos doessem. O calor úmido de baía da Caveira não era nada comparado àquilo. O que Celaena não por uma brisa fresca passageira!
Ao lado dela, o guia nômade apontou um dedo enluvado na direção sudoeste.
— Os sessiz suikast estão lá. — Sessiz suikast. Os Assassinos Silenciosos, a ordem lendária à qual Celaena fora enviada para treinar.
— Para aprender obediência e disciplina — dissera Arobynn Hamel.
Durante o alto verão no deserto Vermelho foi o que se esqueceu de acrescentar. Era uma punição. Dois meses antes, quando Arobynn mandara Celaena com Sam Cortland à baía da Caveira para uma tarefa desconhecida, os dois haviam descoberto que, na verdade, tinham sido enviados para negociar escravos. Não é preciso dizer que isso não foi bem aceito por Celaena ou Sam, apesar da ocupação de ambos. Então libertaram os escravos, decidindo mandar as consequências para o inferno. Mas agora... No que se tratava de punições, aquela devia ser a pior. Considerando os hematomas e os cortes que ainda cicatrizam no rosto dela um mês depois de Arobynn tê-los infligido, essa afirmativa dizia muito.
Celaena fez uma careta. Ela puxou o lenço um pouco mais sobre a boca e o nariz ao dar um passo em direção à duna. As pernas enrijeciam contra a areia deslizante, mas era uma liberdade bem-vinda depois da caminhada irritante pelas Areias Cantantes, nas quais cada grão havia murmurado e choramingado e gemido. Eles haviam passado um dia inteiro monitorando cada passo, com o cuidado de manter a areia sob os pés sibilando harmoniosamente. Caso contrário, dissera o nômade, poderia se tornar areia movediça.
Celaena desceu a duna, mas parou quando não ouviu os passos do guia.
— Você não vem?
O homem permaneceu no alto da duna e apontou de novo para o horizonte.
— São 3 quilômetros naquela direção. — O uso dele da língua comum era um pouco travado, mas Celaena entendia bem o bastante.
Ela tirou o lenço da boca, encolhendo o corpo quando uma lufada de areia acertou seu rosto suado.
— Paguei para você me levar até lá.
— Três quilômetros — disse o homem, ajustando a enorme bolsa nas costas. O lenço ao redor da cabeça ocultava as feições bronzeadas, mas Celaena conseguia ver o medo em seus olhos.
Sim, sim, os sessiz suikast eram temidos e respeitados no deserto. Tinha sido um milagre conseguir alguém disposto a levá-la tão perto da fortaleza. É claro que oferecer ouro havia ajudado. Mas os nômades viam os sessiz suikast como pouco menos que sombras da morte; e aparentemente o guia não iria mais longe.
Ela avaliou o horizonte a oeste. Não conseguia ver nada além de dunas e areia, que serpenteava como a superfície de um mar ao vento.
— Três quilômetros — falou o nômade, atrás de Celaena. — Eles a encontrarão.
A assassina se virou para fazer mais uma pergunta, mas o homem já havia desaparecido do outro lado da duna. Depois de xingá-lo, tentou engolir, mas não conseguiu. Estava com a boca muito seca. Precisava seguir agora, ou teria de montar acampamento para dormir sob o calor imperdoável do meio-dia e da tarde.
Três quilômetros. Quanto tempo isso poderia levar?
Depois de tomar um gole do cantil preocupantemente leve, Celaena puxou o lenço sobre a boca e o nariz de novo e começou a andar.
O único ruído era o vento ciciando pela areia.
***
Horas depois, a jovem se viu usando todo o autocontrole para evitar saltar para dentro das piscinas do pátio ou ajoelhar-se para beber de um dos rios que corria pelo chão. Ninguém oferecera água quando chegou, e Celaena também não achava que o atual acompanhante estava inclinado a fazêlo enquanto a levava pelos corredores sinuosos da fortaleza de arenito vermelho.
Os 3 quilômetros tinham parecido mais vinte. Estava prestes a parar e montar acampamento quando chegou ao alto de uma duna e as árvores verdes exuberantes, assim como a fortaleza de adobe, se estenderam diante da assassina, escondidas em um oásis aninhado entre duas monstruosas dunas de areia.
Depois de tudo isso, estava seca. Mas era Celaena Sardothien. Tinha uma reputação a manter. Ela manteve os sentidos alerta conforme adentravam a fortaleza — observando saídas e janelas, reparando onde as sentinelas estavam posicionadas. Passaram por uma fileira de salas de treinamento abertas nas quais Celaena viu pessoas de todos os reinos e de todas as idades lutando ou se exercitando, ou apenas sentadas em silêncio, meditando. Os dois subiram um lance de escadas estreitas que se elevava mais e mais até uma grande construção. A sombra da escada estava maravilhosamente fresca. Mas então entraram em um corredor longo e fechado, e o calor a envolveu como um cobertor.
Para uma fortaleza de assassinos supostamente silenciosos, o lugar era relativamente barulhento, com o clangor de armas das salas de treinamento, o murmúrio de insetos nas muitas árvores e nos arbustos, o chilreio de pássaros, o gorgolejo de toda aquela água cristalina escorrendo pelas salas e corredores.
Aproximaram-se de um conjunto de portas abertas no fim do corredor. O acompanhante de Celaena — um homem de meia-idade salpicado de cicatrizes que se destacavam como giz contra a pele bronzeada — não disse nada. Além das portas, o interior era uma mistura de sombra e luz.
Eles entraram em uma câmara gigante, ladeada por pilares de madeira pintada de azul que suportavam um mezanino de cada lado. Um olhar para a escuridão do balcão informou a Celaena que havia figuras à espreita ali... observando, esperando. Havia mais às sombras das colunas. Quem quer que achassem que ela era, certamente não a estavam subestimando. Que bom.
Um mosaico estreito de azulejos de vidro azul e verde serpenteava pelo chão até a plataforma, imitando os pequenos rios nos níveis mais baixos. Acima da plataforma, sentado entre almofadas e palmeiras em vasos, jazia um homem com um manto branco.
O Mestre Mudo. Celaena esperava que fosse velho, mas o homem parecia ter por volta de 50 anos. Ela manteve o queixo erguido conforme se aproximaram do mestre, seguindo o pequeno caminho de azulejos no chão. Não sabia dizer se a pele dele sempre fora tão bronzeada ou se era o sol. Ele deu um leve sorriso; provavelmente tinha sido bonito na juventude. Suor escorreu pela coluna de Celaena. Embora o Mestre Mudo não portasse armas visíveis, os dois criados que o abanavam com folhas de palmeira estavam armados até os dentes. O acompanhante da assassina parou a uma distância segura do mestre e fez uma reverência.
Celaena o imitou e, quando se levantou, removeu o capuz dos cabelos. Tinha certeza de que estavam uma bagunça e insuportavelmente ensebados depois de duas semanas no deserto sem água ou banho, mas não estava ali para impressionar o homem com sua beleza.
O Mestre Mudo a olhou de cima a baixo, então assentiu. O acompanhante a cutucou com o cotovelo, e ela pigarreou com a garganta seca ao dar um passo à frente.
Sabia que o Mestre Mudo não diria uma palavra; o silêncio autoimposto era conhecido. Cabia a ela fazer a apresentação. Arobynn dissera exatamente o que falar. Ordenou, na verdade. Não haveria disfarces, máscaras, nada de nomes falsos. Como havia mostrado tanto desdém pelos interesses de seu mestre, ele não tinha mais qualquer vontade de proteger os de Celaena. Ela pensou durante semanas em como poderia achar um modo de preservar sua identidade — evitar que aqueles estranhos soubessem quem era —, mas as ordens de Arobynn tinham sido simples: tinha um mês para ganhar o respeito do Mestre Mudo. E, se não voltasse para casa com a carta de aprovação dele — uma carta sobre Celaena Sardothien —, era melhor que encontrasse uma nova cidade onde morar. Possivelmente um novo continente.
— Obrigada por me conceder uma audiência, mestre dos Assassinos Silenciosos — falou a jovem, amaldiçoando silenciosamente a aspereza das palavras.
Ela colocou a mão sobre o coração e se ajoelhou.
— Sou Celaena Sardothien, protegida de Arobynn Hamel, rei dos Assassinos do Norte. — Acrescentar o “do Norte” parecia apropriado; não achava que o Mestre Mudo ficaria muito feliz ao saber que Arobynn se intitulava o rei de todos os Assassinos. Mas, se aquilo o surpreendera ou não, o rosto não demonstrou, embora Celaena tivesse a sensação de que algumas pessoas às sombras tinham se movido. — Meu mestre me enviou para pedir que você me treine — falou ela, irritada pelas palavras.
Treine... Ela! Celaena abaixou a cabeça para que o mestre não visse a ira em seu rosto. — Sou sua. — Voltou as palmas das mãos para cima em um gesto de súplica. Nada.
Calor pior que aquele do deserto corou as bochechas da assassina. Ela manteve a cabeça baixa, os braços ainda estendidos. Houve um farfalhar de tecido, então passos quase silenciosos ecoaram pela câmara. Por fim, dois pés descalços e bronzeados pararam diante de Celaena.
Um dedo ressecado ergueu seu queixo, e Celaena se viu encarando os olhos verde-mar do mestre. Não ousou se mover. Com um gesto, ele poderia quebrar o pescoço da jovem. Aquilo era um teste — um teste de confiança, percebeu Celaena.
Ela se obrigou a ficar imóvel, concentrando-se nos detalhes do rosto do mestre para evitar pensar em como estava vulnerável. Suor reluzia ao longo da linha dos cabelos escuros do homem — cabelos curtos, rentes à cabeça. Era impossível dizer de que reino vinha; a pele avelã sugeria Eyllwe. Mas os olhos elegantes, em formato de amêndoas, falavam de um dos países no continente distante ao sul. Independentemente, como o mestre acabara ali?
Celaena se preparou quando dedos longos empurraram para trás mechas soltas do cabelo trançado, revelando os hematomas amarelados que ainda restavam ao redor dos olhos e nas bochechas, assim como o arco estreito da casca de ferida sobre a maçã do rosto. Será que Arobynn havia avisado que ela viria? Será que contara as circunstâncias sob as quais Celaena fora despachada? O mestre não parecia nada surpreso com sua chegada.
Mas os olhos do mestre se semicerraram, os lábios formaram uma linha fina enquanto o homem observava o restante dos hematomas do outro lado do rosto. Tinha sorte por Arobynn ser habilidoso o bastante para evitar que os golpes a marcassem para sempre. Uma pontada de culpa percorreu o corpo de Celaena ao se perguntar se Sam havia se curado tão bem. Durante os três dias que se seguiram à surra, Celaena não o vira no Forte. Apagara antes que Arobynn pudesse lidar com seu companheiro. E, desde aquela noite, mesmo durante a viagem até o deserto, tudo tinha sido uma névoa de ódio e tristeza e cansaço até os ossos, como se Celaena estivesse sonhando acordada.
Ela acalmou o coração acelerado no momento em que o mestre soltou seu rosto e recuou. O homem indicou com a mão que se levantasse, o que ela fez, para alívio dos joelhos doloridos.
O mestre deu um sorriso torto para Celaena, que teria imitado a expressão, mas, um instante depois, ele estalou os dedos, incitando quatro homens a atacarem a assassina.
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