Capítulo 1

O cavernoso corredor de entrada da Guilda dos Assassinos estava silencioso, e Celaena Sardothien caminhava pelo piso de mármore com uma carta entre os dedos. Ninguém a havia cumprimentado às enormes portas de carvalho, exceto pela governanta, que pegara seu manto encharcado de chuva — e que depois de uma boa olhada para o sorriso malicioso no rosto da assassina, optou por não dizer nada.
As portas do escritório de Arobynn Hamel ficavam na outra ponta do corredor e estavam fechadas no momento. Mas Celaena sabia que ele estava lá. Wesley, o guarda-costas de Arobynn, montava guarda do lado de fora, os olhos sombrios e indecifráveis ao vê-la caminhar até lá. Embora não fosse oficialmente um assassino, ela não tinha dúvidas de que o homem podia manejar as lâminas e adagas presas ao corpo imenso com habilidade mortal.
Também não duvidava de que o mestre tinha olhos em todos os portões daquela cidade. Assim que Celaena pisara em Forte da Fenda, o assassino fora alertado de seu retorno. Ela deixou um rastro de lama das botas molhadas e imundas ao seguir na direção das portas do escritório — e de Wesley.
Fazia três meses desde a noite em que Arobynn a surrara até que ficasse inconsciente; punição por arruinar o acordo de comércio de escravos com o lorde pirata, capitão Rolfe. Fazia três meses desde que Arobynn a mandara ao deserto Vermelho para aprender obediência e disciplina, assim como para conquistar a aprovação do Mestre Mudo dos Assassinos Silenciosos.
A carta presa à mão da assassina era prova de que havia conseguido. Prova de que Arobynn não a havia destruído naquela noite.
E Celaena mal podia esperar para ver o olhar no rosto do mentor quando lhe entregasse a carta. Sem falar de quando contasse sobre os três baús de ouro que havia levado consigo e que estavam a caminho do quarto naquele momento. Com poucas palavras, explicaria que a dívida com ele estava agora paga, que sairia da Fortaleza e se mudaria para o novo apartamento que comprara. Que estava livre de Arobynn.
Celaena chegou à outra ponta do corredor, e Wesley se colocou diante das portas do escritório. Parecia cinco anos mais jovem que Arobynn, e as cicatrizes finas no rosto e nas mãos sugeriam que a vida como guarda-costas servindo ao rei dos Assassinos não fora fácil. Celaena suspeitava que havia mais cicatrizes sob as roupas escuras — talvez algumas violentas.
— Ele está ocupado — avisou Wesley, com as mãos pendendo casualmente na lateral do corpo, prontas para pegar as armas. Celaena podia ser a protegida de Arobynn, mas o guardacostas sempre deixara claro que, caso ela se tornasse uma ameaça para o mestre, não hesitaria em acabar com sua vida. Ela não precisava vê-lo em ação para saber que seria um oponente interessante. Imaginava que fosse por isso que Wesley treinava escondido, além de o homem manter a própria vida em segredo também. Quanto menos soubesse a respeito dele, mais vantagem o guarda-costas teria se essa briga acontecesse. Inteligente e lisonjeiro, pensava Celaena.
— Também é bom ver você, Wesley — disse ela, lançando um sorriso. Ele ficou tenso, mas não a impediu de o ultrapassar e escancarar as portas do escritório de Arobynn.
O rei dos Assassinos estava sentado na cadeira ornamentada, debruçado sobre uma pilha de papéis. Sem sequer um oi, Celaena foi direto até a mesa e atirou a carta na superfície de madeira polida.
Ela abriu a boca, as palavras quase explodindo de dentro de si. Contudo, Arobynn simplesmente ergueu um dedo, com um sorriso fraco, e voltou para os papéis. Wesley fechou as portas atrás de Celaena.
A assassina congelou. Arobynn virou a página, avaliando rapidamente o documento que estava diante dele, e fez um gesto vago com a mão. Sente-se.
Com a atenção ainda no documento que lia, ele pegou a carta de aprovação do Mestre Mudo e a colocou sobre uma pilha de papéis próxima. Celaena piscou. Uma vez. Duas. O assassino não ergueu os olhos para ela. Apenas continuou lendo. A mensagem era bem clara: a jovem deveria esperar até que ele estivesse pronto. Até então, mesmo que gritasse até que os pulmões estourassem, Arobynn não reconheceria sua existência.
Assim, Celaena sentou-se. Chuva gotejava nas janelas do escritório. Segundos se passaram, depois minutos. Seus planos de um discurso grandioso com gestos dramáticos se dissiparam no silêncio. Arobynn leu mais três documentos antes de sequer pegar a carta do Mestre Mudo. E conforme ele lia a carta, Celaena somente pensava na última vez em que estivera naquela cadeira.
Ela olhou para o tapete vermelho requintado sob os pés. Alguém fizera um excelente trabalho ao limpar todo o sangue. Quanto do sangue no carpete tinha sido dela — e quanto havia pertencido a Sam Cortland, seu rival e comparsa na destruição do acordo de comércio escravo de Arobynn? Celaena ainda não sabia o que o mestre fizera com o rapaz naquela noite. Momentos antes, quando chegara, não tinha visto Sam no corredor de entrada. Mas, por outro lado, não vira nenhum dos outros assassinos que moravam ali. Então talvez estivesse ocupado. Esperava que ele estivesse ocupado, porque isso significaria que Sam estava vivo.
Arobynn finalmente olhou para Celaena, deixando de lado a carta do Mestre Mudo como se não passasse de um rascunho. A jovem manteve as costas esticadas e o queixo erguido, mesmo quando os olhos prateados avaliaram cada centímetro dela. Eles se detiveram mais tempo na pequena cicatriz rosada na lateral do pescoço, a centímetros do maxilar e da orelha.
— Bem — falou o mentor, por fim —, achei que estaria mais bronzeada.
Ela quase riu, mas conteve a expressão do rosto.
— Roupas da cabeça aos pés para evitar o sol — explicou Celaena. As palavras saíram mais baixas, mais fracas, do que ela queria. Eram as primeiras palavras que falava a Arobynn desde que ele a havia espancado até que desmaiasse. Não eram exatamente satisfatórias.
— Ah — exclamou o mestre, com os dedos longos e elegantes girando um anel dourado no indicador.
Celaena inspirou pelo nariz, lembrando-se de tudo que ansiava dizer ao homem nos últimos meses e durante a viagem de volta a Forte da Fenda. Algumas frases e tudo estaria terminado. Mais de oito anos com ele, encerrados com uma sequência de palavras e uma montanha de ouro.
Preparou-se para começar, mas Arobynn falou primeiro.
— Desculpe — disse ele.
Mais uma vez, as palavras sumiram dos lábios de Celaena. Os olhos de Arobynn estavam fixos nos dela, e ele parou de brincar com o anel.
— Se eu pudesse apagar aquela noite, Celaena, apagaria.
O homem se inclinou sobre a borda da mesa, as mãos agora formando punhos. Na última vez que Celaena vira aquelas mãos, estavam sujas com o sangue dela.
— Desculpe — repetiu Arobynn. Ele tinha quase vinte anos a mais que ela, e embora os cabelos ruivos tivessem algumas mechas prateadas, o rosto permanecia jovem. Feições elegantes e finas, olhos cinza, ofuscantemente claros... Talvez não fosse o homem mais lindo que Celaena já vira, mas era um dos mais atraentes.
— Todo dia — continuou ele. — Todo dia desde que partiu, fui ao templo de Kiva para rezar por perdão. — A jovem quase debochou da ideia de o rei dos Assassinos se ajoelhar diante da estátua da deusa da Penitência, mas as palavras pareceram tão naturais. Seria possível que de fato se arrependesse do que havia feito? — Eu não deveria ter deixado meu temperamento vencer. Não deveria ter mandado você embora.
— Então por que não me resgatou? — As palavras saíram antes que ela tivesse a chance de controlar o tom afiado na voz.
Os olhos de Arobynn se semicerraram levemente, o mais próximo de uma retração que se permitiria, imaginou Celaena.
— Com o tempo que levaria para que os mensageiros a encontrassem, você provavelmente já estaria no caminho de volta.
Ela trincou o maxilar. Uma desculpa fácil.
Arobynn viu a ira nos olhos dela — e a incredulidade.
— Permita que eu me redima. — O homem se levantou da cadeira de couro e deu a volta na mesa. As longas pernas e anos de treinamento tornavam seus movimentos tranquilamente graciosos, até mesmo ao pegar uma caixa na borda da mesa. Ele se apoiou sobre um joelho diante de Celaena, o rosto quase nivelado com o dela. A jovem havia se esquecido de como Arobynn era alto.
O assassino estendeu o presente a ela. A própria caixa era uma obra de arte, revestida com madrepérola, mas Celaena manteve o rosto inexpressivo ao abrir a tampa.
Um broche de esmeralda e ouro reluzia à iluminação da tarde cinzenta. Era deslumbrante, o trabalho de um mestre artesão; e Celaena instantaneamente soube quais vestidos e mantos o broche melhor complementaria. Arobynn o havia comprado porque também conhecia o guarda-roupa dela, assim como os gostos e tudo a seu respeito. De todas as pessoas no mundo, apenas o mentor conhecia a verdade absoluta.
— Para você — disse ele. — O primeiro de muitos. — Celaena estava completamente ciente dos movimentos de Arobynn e se preparou quando ele ergueu uma das mãos, cuidadosamente a levando à face da assassina. O homem deslizou o dedo da têmpora até a curva das maçãs do rosto da jovem. — Desculpe — sussurrou ele de novo, e Celaena ergueu os olhos para encará-lo.
Pai, irmão, amante — Arobynn jamais se declarara nenhum desses. Certamente não havia a relação de amantes, embora talvez tivesse chegado a isso se Celaena fosse outro tipo de garota e Arobynn a tivesse criado de outra forma. Ele a amava como família, mas a colocava nas situações mais perigosas. O mentor cuidara dela e a educara, mas acabou com a inocência de Celaena na primeira vez que a obrigou a tirar uma vida. Dera tudo à jovem, mas também lhe tirara tudo. Ela não conseguia decifrar os sentimentos em relação ao rei dos Assassinos mais do que conseguia contar as estrelas do céu.
Celaena virou o rosto, e Arobynn se levantou. Ele se recostou na borda da mesa, sorrindo levemente.
— Tenho outro presente para você se quiser.
Todos aqueles meses em que sonhou em ir embora, em pagar as dívidas... Por que não conseguia abrir a boca e simplesmente dizer a ele?
— Benzo Doneval vem a Forte da Fenda — falou Arobynn.
Celaena inclinou a cabeça. Tinha ouvido falar de Doneval; era um comerciante muito poderoso de Melisande, uma terra distante ao sudoeste e uma das mais recentes conquistas de Adarlan.
— Por quê? — perguntou ela, baixinho, com cuidado.
Os olhos de Arobynn reluziram.
— Faz parte de um grande comboio que Leighfer Bardingale está levando até a capital. Leighfer é muito amiga da antiga rainha de Melisande, que a pediu para vir aqui expor seu caso diante do rei de Adarlan.
Melisande, lembrou-se Celaena, foi um dos poucos reinos cuja família real não fora executada. Em vez disso, entregaram as coroas e juraram lealdade ao rei e às legiões de conquistadores. A jovem não sabia dizer o que era pior: uma decapitação rápida ou curvar-se ao rei de Adarlan.
— Aparentemente — continuou o homem — o comboio vai tentar demonstrar tudo que
Melisande tem a oferecer: cultura; mercadorias; riqueza para convencer o rei a conceder a eles a permissão e os recursos necessários para construir uma estrada. Considerando que a jovem rainha de Melisande é agora mera representante simbólica, admito que estou impressionado com a ambição, assim como com a ousadia de perguntar ao rei.
Celaena mordeu o lábio, visualizando o mapa do continente.
— Uma estrada para ligar Melisande a Charco Lavrado e Adarlan?
Durante anos, o comércio com Melisande fora complicado devido à localização do reino. Ladeado por montanhas quase intransponíveis e pela floresta Carvalhal, a maioria do comércio local fora reduzida ao que quer que se conseguisse mandar pelos portos. Uma estrada poderia mudar tudo isso. Poderia tornar Melisande rica, além de influente.
Arobynn assentiu.
— O comboio ficará aqui por uma semana, com festas e feiras planejadas, inclusive um baile de gala em três dias para celebrar a Lua da Colheita. Talvez se os cidadãos de Forte da Fenda se apaixonarem pelas mercadorias, o rei leve o caso a sério.
— Então o que Doneval tem a ver com a estrada?
Arobynn deu de ombros.
— Ele veio discutir acordos de negócios em Forte da Fenda. E provavelmente também veio sabotar a ex-mulher, Leighfer. E completar um negócio muito específico que a fez querer mandar matá-lo.
As sobrancelhas de Celaena se ergueram. Um presente, dissera o mestre.
— Doneval está viajando com documentos muito importantes — falou Arobynn, tão baixo que chuva açoitando a janela quase abafou as palavras. — Não apenas seria preciso matá-lo, mas também recuperar os papéis.
— Que tipo de documentos?
Os olhos prateados se iluminaram.
— Doneval quer montar um negócio de tráfico de escravos com alguém em Forte da Fenda. Se a estrada for aprovada e construída, ele quer ser o primeiro em Melisande a lucrar com a importação e exportação de escravos. Os documentos, aparentemente, contêm provas de que certos cidadãos de Melisande em Adarlan se opõem ao comércio. Considerando o quanto o rei de Adarlan já fez para punir aqueles que são contra as políticas dele... Bem, saber quem o contraria no que diz respeito ao tráfico, principalmente quando parece que estão se mobilizando para ajudar a libertar os escravos do domínio real, é uma informação na qual o rei estaria extremamente interessado. Doneval e seu novo parceiro em Forte da Fenda planejam usar a lista para chantagear essas pessoas a mudar de ideia, impedindo sua resistência e as convencendo a investir com ele na construção do comércio de escravos em Melisande. Ou, caso se recusem, Leighfer acredita que o ex-marido se certificará de que o rei receba esse documento com nomes.
Celaena engoliu em seco. Aquilo era uma oferta de paz, então? Alguma indicação de que Arobynn, na verdade, tinha mudado de ideia a respeito do tráfico de escravos e a perdoara por baía da Caveira?
Mas se envolver nesse tipo de coisa de novo...
— O que Bardingale ganha com isso? — perguntou ela, com cuidado. — Por que nos contratar para matar Doneval?
— Porque Leighfer não acredita em escravidão e quer proteger as pessoas naquela lista, pessoas que estão se preparando para tomar as medidas necessárias para suavizar o impacto da escravidão sobre Melisande. E possivelmente até contrabandear escravos cativos até a segurança. — Arobynn falou como se conhecesse Bardingale pessoalmente, como se fossem mais que parceiros de negócios.
— E o parceiro de Doneval em Forte da Fenda? Quem é? — Celaena precisava considerar todos os ângulos antes de aceitar, precisava pensar direito.
— Leighfer não sabe; as fontes dela não conseguiram encontrar um nome nas correspondências codificadas de Doneval com o parceiro. Só conseguiu descobrir que, daqui a seis dias, ele vai trocar os documentos com alguém em algum horário na casa alugada. Ela não tem certeza de quais documentos o parceiro de negócios vai levar à mesa, mas aposta que inclui uma lista de pessoas importantes que se opõem à escravidão em Adarlan. Leighfer diz que Doneval provavelmente terá um quarto particular na casa para fazer a troca, talvez um escritório no andar de cima ou algo assim. Ela o conhece bem o suficiente para garantir isso.
Celaena estava começando a entender o que ele queria. Doneval estava praticamente embrulhado com fita para ela. Só precisava descobrir a que horas a reunião ocorreria, descobrir as defesas dele e pensar em uma forma de contorná-las.
— Então não devo apenas matar Doneval, mas também esperar até a conclusão da troca para pegar os documentos dele e quaisquer documentos que o parceiro leve? — Arobynn deu um pequeno sorriso. — E quanto ao parceiro? Devo matar essa pessoa também?
O sorriso do homem se tornou uma linha fina.
— Como não sabemos com quem ele lidará, você não foi contratada para eliminar a pessoa. Mas foi fortemente insinuado que Leighfer e seus aliados querem o contato morto também. Talvez lhe deem um bônus por isso.
Celaena avaliou o broche esmeralda no colo.
— E quanto isso vai pagar?
— Extraordinariamente bem. — A assassina ouviu o sorriso na voz de Arobynn, mas manteve a atenção na linda joia verde. — E não vou tirar uma parte. Será tudo seu.
Celaena ergueu a cabeça diante disso. Havia um brilho de súplica nos olhos dele. Talvez realmente se ressentisse pelo que havia feito. E talvez tivesse escolhido aquela missão especialmente para ela; para provar, do próprio jeito, que entendia por que a jovem havia libertado aqueles escravos em baía da Caveira.
— Posso presumir que Doneval é bem protegido?
— Muito — respondeu Arobynn ao pegar uma carta da mesa atrás de si. — Ele está esperando para fazer o negócio depois das comemorações pela cidade, para que possa correr para casa no dia seguinte.
Celaena olhou para o teto, como se pudesse ver através das vigas de madeira o próprio quarto no andar de cima, no qual os baús de ouro agora estavam. Não precisava do dinheiro, mas se pagaria a dívida com Arobynn, seu orçamento ficaria gravemente comprometido. E aceitar a missão não se trataria apenas do assassinato, seria para ajudar os outros também. Quantas vidas seriam destruídas se não acabasse com Doneval e o parceiro e recuperasse aqueles documentos importantes?
Arobynn se aproximou novamente, e Celaena se levantou da cadeira. Ele afastou os cabelos da jovem do rosto.
— Senti sua falta — disse o mestre.
O homem abriu os braços para a assassina, mas não fez outro movimento para abraçá-la. Celaena avaliou o rosto dele. O Mestre Mudo dissera a ela que as pessoas lidavam com a dor de modos diferentes — que algumas escolhiam afogá-la, algumas escolhiam amá-la, e algumas escolhiam permitir que se tornasse raiva. Embora não se arrependesse de ter libertado aqueles duzentos escravos de baía da Caveira, havia traído Arobynn ao fazê-lo. Talvez feri-la tivesse sido o  jeito dele de lidar com essa dor.
E embora não houvesse desculpa no mundo pelo que o mentor fizera, ele era tudo que Celaena tinha. A história entre os dois, obscura e deturpada e cheia de segredos, era forjada por mais que apenas ouro. E se a assassina o deixasse, se pagasse as dívidas naquele momento e jamais o visse de novo...
Celaena deu um passo atrás, e Arobynn casualmente abaixou os braços, nem um pouco afetado pela rejeição da jovem.
— Vou pensar em aceitar Doneval. — Não era mentira. Sempre tomava tempo para considerar as missões, o mentor encorajara isso desde o início.
— Desculpe — disse ele de novo.
A assassina lançou mais um longo olhar na direção de Arobynn antes de partir.

***

A exaustão atingiu Celaena no momento em que começou a subir os degraus de mármore polido da grandiosa escadaria. Um mês de viagens difíceis — depois de um mês de treinamento incansável e sentimentos feridos. Sempre que via a cicatriz no pescoço, ou a tocava, ou sentia as roupas roçarem a marca, um tremor de dor percorria seu corpo ao lembrar da traição que a causara.
Acreditava que Ansel era sua amiga; uma amiga para a vida, uma amiga do coração. Mas a necessidade da menina por vingança fora maior que qualquer outra coisa. Mesmo assim, onde quer que Ansel estivesse agora, Celaena esperava que a garota finalmente enfrentasse aquilo que a havia assombrado por tanto tempo.
Um criado que passava fez uma reverência com a cabeça, desviando o olhar. Todos que trabalhavam ali sabiam mais ou menos quem ela era, e manteriam a identidade de Celaena oculta sob pena de morte. Não que houvesse muito sentido nisso agora, considerando que cada um dos Assassinos Silenciosos poderia identificá-la.
Celaena tomou um fôlego entrecortado e passou a mão pelos cabelos. Antes de entrar na cidade naquela manhã, tinha parado em uma taverna fora de Forte da Fenda para tomar banho,lavar as roupas imundas, além de usar alguns cosméticos. Não queria entrar na Fortaleza parecendo um rato de esgoto, mas ainda se sentia suja.
Ela passou pela sala de estar do andar de cima, erguendo as sobrancelhas ao ouvir o som de um piano e de pessoas gargalhando no interior. Se Arobynn tinha companhia, então por que estava no escritório, tão ocupado, quando ela chegou?
Celaena trincou os dentes. Então aquela besteira de tê-la feito esperar enquanto terminava de trabalhar...
Fechou as mãos em punhos; estava prestes a dar meia-volta e descer as escadas batendo os pés para dizer a Arobynn que estava partindo e que ele não era mais seu dono quando alguém entrou no corredor elegantemente mobiliado.
Sam Cortland.
Os olhos castanhos de Sam estavam arregalados; o corpo, rígido. Como se fosse preciso algum esforço de sua parte, ele fechou a porta do toalete do corredor e caminhou na direção de Celaena, passando pelas cortinas de veludo verde azuladas que pendiam sobre as janelas do chão ao teto, pelas pinturas emolduradas, aproximando-se mais e mais. A jovem permaneceu imóvel, absorvendo cada centímetro de Sam antes de ele parar a alguns metros de distância.
Nenhum membro decepado, sem mancar, sem qualquer indicação de qualquer coisa que o assombrasse. Os cabelos avelã estavam um pouco mais longos, mas se adequavam a ele. E Sam estava bronzeado — um lindo bronzeado, como se tivesse passado o verão inteiro tomando banho de sol. Será que Arobynn não o havia punido?
— Você voltou — disse Sam, como se não conseguisse acreditar.
Celaena ergueu o queixo, colocando as mãos nos bolsos.
— Obviamente.
Ele inclinou a cabeça levemente para o lado.
— Como foi o deserto?
Não havia um arranhão em Sam. É claro que o rosto de Celaena também havia cicatrizado,
mas...
— Quente — respondeu ela, e Sam soltou uma risadinha sussurrada.
Não que a assassina estivesse com raiva dele por não estar ferido. Estava tão aliviada que poderia ter vomitado, na verdade. Mas jamais imaginou que vê-lo naquele dia fosse parecer tão... estranho. E depois do que havia acontecido com Ansel, poderia mesmo dizer que confiava em Sam? No quarto algumas portas adiante, uma mulher soltou uma risadinha esganiçada. Como era possível que Celaena tivesse tantas perguntas e tão pouco a dizer?
Os olhos do rapaz passaram do rosto para o pescoço de Celaena, ele franziu as sobrancelhas por um segundo ao ver a nova e fina cicatriz.
— O que aconteceu?
— Alguém segurou uma espada contra meu pescoço.
O olhar de Sam ficou sombrio, mas ela não queria explicar a longa e infeliz história. Não queria falar sobre Ansel e, certamente, não queria falar sobre o que acontecera com Arobynn na noite em que voltaram de baía da Caveira.
— Está ferida? — perguntou Sam, baixinho, dando mais um passo adiante.
Celaena precisou de um momento para perceber que a imaginação dele provavelmente o havia levado a um lugar muito, muito pior quando ela contou que alguém segurara uma lâmina contra seu pescoço.
— Não — respondeu ela. — Não dessa forma.
— De que forma, então? — O jovem agora olhava com mais atenção para ela, para a linha quase invisível ao longo da bochecha, mais um presente de Ansel, para as mãos dela, para tudo. O corpo esguio e musculoso ficou tenso. O peito do rapaz também tinha ficado mais largo.
— Da forma que não é de sua conta — replicou Celaena.
— Conte o que aconteceu — disse Sam, entre dentes.
A assassina deu um daqueles sorrisinhos afetados, os quais sabia que Sam odiava. As coisas não estavam ruins entre os dois desde baía da Caveira, mas depois de tantos anos o tratando mal, ela não sabia como voltar àquele respeito e à camaradagem recém-encontrados que haviamdescoberto um pelo outro.
— Por que eu deveria contar qualquer coisa a você?
— Porque — ciciou Sam, dando mais um passo adiante — da última vez que a vi, Celaena, você estava inconsciente no tapete de Arobynn e tão ensanguentada que eu não conseguia ver a porcaria de seu rosto.
O rapaz estava tão perto que Celaena poderia tocá-lo agora. A chuva continuava açoitando as janelas do corredor, um lembrete distante de que ainda havia um mundo lá fora.
— Conte — disse ele.
Vou matar você!, gritara Sam para Arobynn enquanto o rei dos Assassinos a espancava. Ele urrara. Naqueles minutos terríveis, qualquer que fosse o laço que surgira entre Sam e Celaena não havia se partido. Ele havia mudado sua lealdade — escolhera ficar ao lado dela, lutar por ela. Se significava alguma coisa, era que isso o tornava diferente de Ansel. Sam poderia ter ferido ou traído Celaena dezenas de vezes, mas jamais aproveitara a oportunidade.
Um meio-sorriso surgiu nos cantos dos lábios da assassina. Celaena sentira saudade dele. Ao ver a expressão em seu rosto, Sam deu a Celaena um sorriso perplexo. Ela engoliu em seco, sentindo as palavras subindo — senti sua falta —, mas a porta da sala de estar se abriu.
— Sam! — cantarolou uma jovem de cabelos pretos e olhos verdes, com um sorriso nos lábios. — Aí está... — Os olhos da garota encontraram os de Celaena, que parou de sorrir ao reconhecê-la.
Um tipo de risinho felino se abriu nas lindas feições da menina, e ela saiu pela porta, deslizando até os dois. Celaena avaliou cada ondulação do quadril da jovem, o ângulo elegante da mão, o vestido delicado, um decote baixo revelando o busto generoso.
— Celaena — arrulhou a garota, e Sam olhou para as duas com cautela quando a jovem parou ao lado dele. Perto demais para uma simples conhecida.
— Lysandra — imitou Celaena. Conhecera Lysandra quando tinham 10 anos, e nos sete anos em que conviveram, a assassina não se lembrava de uma vez na qual não quisesse acertar a cara da garota com um tijolo. Ou atirá-la por uma janela. Ou fazer qualquer das muitas coisas que aprendera com Arobynn.
Não ajudava que o mentor tivesse gastado muito dinheiro ajudando Lysandra a se erguer de uma órfã de rua até uma das cortesãs mais esperadas da história de Forte da Fenda. Ele era muito amigo da madame da menina — e tinha sido o benfeitor de seu dote durante anos. Ainda por cima, Lysandra e a madame eram as únicas cortesãs cientes de que a garota que Arobynn chamava de “sobrinha” era na verdade sua protegida. Celaena jamais soubera por que o mestre contara a elas, mas sempre que reclamava do risco de Lysandra revelar sua identidade, Arobynn parecia certo de que a cortesã não o faria. Não era surpreendente que a assassina tivesse problemas para acreditar nisso; mas talvez ameaças do rei dos Assassinos bastassem para manter até mesmo a tagarela Lysandra calada.
— Achei que tivesse sido despachada para o deserto — falou Lysandra, passando os olhos espertos pelas roupas de Celaena. Graças a Wyrd que decidira trocar de roupa naquela taverna. — É possível que o verão tenha passado tão rápido? Acho que quando a gente se diverte tanto...
Uma calma mortal e cruel percorreu as veias da assassina. Perdera a cabeça com Lysandra uma vez — quando tinham 13 anos e a menina arrancou um lindo leque de renda das mãos de Celaena. A briga que se seguiu mandara as duas rolando escada abaixo. Celaena passara a noite na masmorra da Fortaleza devido aos hematomas que deixara no rosto da garota ao golpeá-la com o próprio leque.
Ela tentou ignorar o quanto Lysandra estava próxima de Sam. Ele sempre fora bondoso com as cortesãs, e todas o adoravam. A mãe do rapaz fora uma e pedira a Arobynn — um de seus clientes — que cuidasse do filho, que tinha apenas 6 anos quando a mulher foi morta por um cliente ciumento. Celaena cruzou os braços.
— Eu deveria me incomodar em perguntar o que você está fazendo aqui?
Lysandra deu um sorriso sábio.
— Ah, Arobynn — a jovem ronronou o nome como se fossem os amigos mais íntimos — organizou um almoço para mim em homenagem a meu Leilão que está próximo.
É claro que organizou.
— Ele convidou seus futuros clientes para cá?
— Ah, não. — A cortesã deu risinhos. — É apenas para mim e para as garotas. E Clarisse, é claro. — A jovem também usava o nome da madame como uma arma, uma palavra destinada a esmagar e dominar, uma palavra que sussurrava: sou mais importante que você; tenho mais influência que você; sou tudo, e você não é nada.
— Encantador — respondeu Celaena. Sam ainda não dissera nada.
Lysandra ergueu o queixo, abaixando os olhos sobre o nariz cheio de sardas para Celaena.
— Meu Leilão será em seis dias. Esperam que eu quebre todos os recordes.
A assassina vira algumas jovens cortesãs passarem pelo processo de Leilão — garotas que treinavam até os 17 anos, então sua virgindade era vendida a quem pagasse mais.
— Sam — continuou Lysandra, apoiando a mão esguia no braço dele — tem sido tão prestativo ao se certificar de que todos os preparativos estejam em ordem para a festa de meu Leilão.
Celaena ficou surpresa com o ímpeto do desejo de arrancar aquela mão do pulso da garota. Só porque Sam simpatizava com as cortesãs, não significava que precisava ser tão... amigável.
Ele pigarreou, esticando as costas.
— Não tão prestativo assim. Arobynn queria que eu me certificasse de que os fornecedores e o local fossem seguros.
— Clientela importante deve receber o melhor tratamento — completou Lysandra. — Eu queria poder contar quem vai participar, mas Clarisse me mataria. É absurdamente sigiloso e exclusivo.
Bastava. Mais uma palavra da boca da cortesã e Celaena tinha quase certeza de que socaria os dentes dela garganta abaixo. A assassina inclinou a cabeça, os dedos se fechando em um punho.
Sam viu o gesto familiar e tirou a mão da menina de seu braço.
— Volte para o almoço — disse o rapaz.
Lysandra deu mais um daqueles sorrisos a Celaena, virando-o depois para Sam.
— Quando vai voltar para a sala? — Os lábios carnudos e vermelhos da jovem formaram um biquinho.
Basta, basta, basta.
Celaena deu meia-volta.
— Aproveite a companhia de qualidade — disse ela, por cima do ombro.
— Celaena — falou Sam.
Mas a assassina não ia se virar, nem mesmo ao ouvir a cortesã rir e sussurrar alguma coisa, nem mesmo quando tudo que queria no mundo inteiro era pegar a adaga e atirar com o máximo de força possível, bem na direção do rosto impossivelmente lindo de Lysandra.
Sempre odiou Lysandra, disse Celaena a si mesma. Sempre a odiou. E que a jovem tocasse Sam daquela forma, falasse com Sam daquela forma, não mudava as coisas. Mas...
Embora a virgindade da cortesã fosse inquestionável — precisava ser —, havia muitas outras
coisas que ainda poderia fazer. Coisas que poderia ter feito com Sam...
Sentindo-se enjoada e furiosa e pequena, Celaena chegou ao quarto e bateu a porta com tanta força que chacoalhou as janelas salpicadas de chuva.

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