Capítulo 2 - Segredos e Mentiras
O príncipe montou em seu corcel negro, sua capa de zibelina fluindo por trás dele. Uma coroa dourada em seus cachos loiros, sua linda face era fria com o furor da batalha, e...
— E seu braço parece com uma berinjela — Clary murmurou para si mesma com exasperação.
A figura simplesmente não estava funcionando. Com um suspiro, ela rasgou outra folha do seu bloco de papel, amassando e jogando contra a parede laranja de seu quarto. O chão já estava coberto com bolas descartadas de papel. Um claro sinal de que sua criatividade não estava fluindo do jeito como ela esperava. Ela desejou pela centésima vez que pudesse ser um pouco mais como sua mãe. Tudo o que Jocelyn Fray desenhava, pintava ou rabiscava era bonito, e aparentemente sem esforço.
Clary empurrou seus fones de ouvido – cortando Stepping Razor no meio da música – e esfregou suas dolorosas têmporas. Foi só depois que ela ficou consciente de que o alto e agudo som de um telefone tocando estava ecoando através do apartamento.
Jogando seu bloco de notas em cima da cama, ela pulou em seus pés e correu para a sala de estar, onde o antigo telefone vermelho estava assentado sobre a mesa próxima da porta da frente.
— É Clarissa Fray? — A voz do outro lado do telefone soava familiar, apesar de não imediatamente identificável.
Clary apertou o fio do telefone nervosamente ao redor de seu dedo.
— Siiim?
— Oi, eu sou um dos desordeiros que estava carregando a faca quando você nos encontrou na noite passada, no Pandemônio? Eu temo que dei uma má impressão e esperava que você me desse a chance para fazer isso...
— Simon! — Clary segurou o telefone afastado de sua orelha enquanto ele rachava de rir. — Isso não é engraçado!
— É claro que é. Você apenas não vê a graça.
— Idiota — Clary suspirou, se encostando contra a parede — você não estaria rindo se estivesse aqui quando eu cheguei em casa ontem à noite.
— Por que não?
— Minha mãe. Ela não estava feliz porque nós chegamos tão tarde. Ela ficou fora de si. Foi uma bagunça.
— O quê? Não foi nossa culpa haver congestionamento! — Simon protestou.
Ele era o mais jovem de três crianças e tinha um senso de injustiça familiar finamente afiado.
— Certo, bem, ela não viu por esse lado. Eu a desapontei. A deixei mal, a fiz ficar preocupada, blá-blá-blá. Eu estou banida da existência dela — Clary disse, imitando precisamente a expressão de sua mãe com apenas uma ligeira pontada de culpa.
— Então, você está de castigo? — Simon perguntou, um pouquinho mais alto.
Clary podia ouvir o barulho de vozes atrás dele, pessoas falando uma com a outra.
— Eu não sei ainda. Minha mãe saiu esta manhã com Luke, e eles não voltaram ainda. A propósito, onde você está? No Eric?
— Yeah. Nós só acabamos o ensaio.
Um címbalo bateu atrás de Simon. Clary piscou.
— Eric estará fazendo uma leitura de poesia no Java Jones hoje à noite —Simon nomeou uma cafeteria na esquina da casa de Clary, que às vezes tinha música ao vivo à noite. — Toda a banda estará indo mostrar seu apoio. Quer vir?
— Yeah, é claro — Clary pausou, enrolando o fio do telefone ansiosamente. — Espere, não.
— Calem a boca caras, estão ouvindo? — Simon gritou, a diminuição de sua voz fazendo Clary suspeitar que ele estava segurando o telefone longe da sua boca. Ele estava de volta no segundo depois, soando aborrecido. — Isso vai ser um sim ou um não?
— Eu não sei — Clary mordeu seu lábio — minha mãe ainda está com raiva pela noite passada. Eu não tenho certeza se posso encher mais ela pedindo por algum favor. Se eu estou indo entrar em apuros, não quero que seja por conta da péssima poesia de Eric.
— Vamos lá, não é tão ruim — Simon disse.
Eric era seu vizinho da porta ao lado, e os dois conheciam um ao outro a maior parte de suas vidas. Eles não eram próximos do jeito que Simon e Clary eram, mas tinham formado uma banda de rock juntos no início do segundo ano, com os amigos de Eric, Matt e Kirk. Eles praticavam juntos fielmente na garagem dos pais de Eric toda semana.
— Por outro lado, isso não é um favor — Simon adicionou — é uma crítica à poesia na mesma quadra da sua casa. Não é como eu estar convidando você para uma orgia na Hoboken. Sua mãe pode vir se ela quiser.
— ORGIA EM HOBOKEN!
Clary ouviu alguém gritar, provavelmente Eric. Outro címbalo bateu. Ela imaginou sua mãe escutando Eric ler sua poesia e estremeceu por dentro.
— Eu não sei. Se todos vocês aparecerem aqui, eu acho que ela vai surtar.
— Então eu vou sozinho. Te pego e nós podemos ir andando até lá juntos, encontrar com o resto deles. Sua mãe não vai se importar. Ela me ama.
Clary teve que rir.
— Sinal do questionável gosto dela, se você me perguntar.
— Ninguém perguntou.
Simon desligou, no meio dos gritos de sua banda.
Clary desligou o telefone e olhou ao redor da sala de estar. Evidências das tendências artísticas de sua mãe estavam em todo lugar, das almofadas de veludo feitas à mão empilhadas no sofá vermelho escuro para as paredes que seguravam as pinturas de Jocelyn, paisagens cuidadosamente emolduradas, representando as ruas sinuosas da cidade de Manhattan iluminadas com uma luz dourada; cenas do Prospect Park no inverno, o cinza das pontas da lagoa como renda, como os filmes branco gelo.
Na manta sobre a lareira estava uma foto emoldurada do pai de Clary. Um bonito homem parecendo pensativo – vestido de militar, seus olhos seguravam o indício de um sorriso. Ele tinha sido um soldado condecorado por ter servido no exterior. Jocelyn tinha algumas de suas medalhas em uma pequena caixa em sua cama. Não que as medalhas tivessem feito qualquer coisa boa quando Jonathan Clark bateu seu carro em uma árvore fora de Albany e morreu antes de sua filha sequer ter nascido.
Jocelyn tinha voltado a usar seu nome de solteira depois que ele morreu. Ela nunca falava sobre o pai de Clary, mas mantinha a caixa gravada com suas iniciais, J.C., ao lado de sua cama. Juntamente com as medalhas havia uma ou duas fotos, uma aliança e um único cacho de cabelo loiro. Algumas vezes, Jocelyn pegava a caixa e a abria, segurava o cacho de cabelo muito gentilmente em suas mãos antes de colocá-lo de volta, fechando a caixa novamente.
O som de uma chave girando na porta da frente despertou Clary do seu devaneio. Rapidamente ela se jogou no sofá e tentou olhar como se estivesse imersa em um dos livros que sua mãe tinha deixado empilhados no final da mesa. Jocelyn reconhecia a leitura como um sagrado passatempo e normalmente não interrompia Clary no meio de um livro, mesmo para gritar com ela. A porta abriu com um soco.
Era Luke, os braços cheios do que pareciam ser grandes pedaços de papelão quadrado. Quando ele colocou-os para baixo, Clary viu que eram caixas de papelão, dobradas na horizontal. Ele endireitou-se e se virou para ela com um sorriso.
— Ei, ei-hum, Luke — ela disse.
Ele lhe pediu para parar de lhe chamar de tio Luke cerca de um ano atrás, alegando que o fazia se sentir velho, e mesmo assim ele lembrava seu tio Tom Cabin. Além disso, ele lembrou-a suavemente, ele não era realmente seu tio, apenas um grande amigo da mãe dela, a quem tinha conhecido por toda a sua vida.
— Onde está mamãe?
— Estacionando o caminhão — ele respondeu, endireitando seu corpo frouxo com um gemido.
Ele estava vestido com seu habitual uniforme: jeans velhos, uma camisa de flanela e um par de óculos com aros dourados que estava torto sobre a parte superior do seu nariz.
— Lembre-me de novo, por que este prédio não tem elevador de serviço?
— Porque ele é velho, e tem caráter — Clary disse imediatamente.
Luke sorriu.
— Para que são essas caixas? — ela perguntou.
Seu sorriso foi embora.
— Sua mãe precisa empacotar algumas coisas — ele respondeu, evitando o seu olhar.
— Que coisas? — Clary perguntou.
Ele lhe deu um aceno no ar.
— Coisas extras que estão sobrando na casa. Que estão no caminho. Você sabe que ela nunca joga nada fora. Então, o que está fazendo? Estudando?
Ele arrancou o livro de sua mão e leu em voz alta:
— O mundo ainda está cheio com aqueles heterogêneos seres que a mais sóbria filosofia tem descartado. Reino das fadas e Goblins, fantasmas e demônios, ainda pairam sobre... — ele baixou o livro e olhou para ela por cima de seus óculos. — Isto é para a escola?
— O galho dourado? Não. Sem escola por algumas semanas — Clary pegou o livro de volta — é da minha mãe.
— Eu tive um pressentimento.
Ela caiu de volta na mesa.
— Luke?
— Uh-huh?
O livro já esquecido, ele foi rumando para o conjunto de ferramentas ao lado da lareira.
— Ah, aqui está.
Ele puxou uma arma laranja de fita plástica e olhou para ela com profunda satisfação.
— O que você faria se você visse uma coisa que ninguém mais poderia ver? — ela perguntou
A arma de fita caiu da mão de Luke, e bateu no ladrilhado da lareira. Ele se abaixou para pegá-la, sem olhar para ela.
— Você quer dizer se eu fosse a única testemunha de um crime, esse tipo de coisa?
— Não, eu quero dizer, se houvesse outras pessoas ao redor, mas você fosse o único que pudesse ver alguma coisa. Como se aquilo fosse invisível para todo mundo, menos para você.
Ele hesitou, ainda ajoelhado, a arma de fita dentada agarrada em sua mão.
— Eu sei que parece loucura — Clary arriscou nervosamente — mas...
Ele se virou. Os olhos dele, muito azuis por detrás dos óculos, repousavam sobre ela com um olhar de firme afeição.
— Clary, você é uma artista, como sua mãe. Isso significa que você vê o mundo de uma maneira que outras pessoas não. É o seu dom, ver a beleza e o horror em simples coisas. Isso não te faz uma maluca, só diferente. Não há nada de errado em ser diferente.
Clary empurrou suas pernas para cima e descansou o queixo sobre seu joelho. Em suas lembranças, ela viu o depósito, Isabelle com o chicote de ouro, o garoto de cabelo azul convulsionando em seus espasmos de morte e os olhos dourados de Jace.
Beleza e horror.
— Se meu pai estivesse vivo, você acha que ele teria sido um artista também?
Luke olhou-a, tomado de surpresa. Antes que ele pudesse lhe responder, a porta moveu-se e a mãe de Clary caminhou dentro da sala, os saltos de sua bota estalando sobre o piso de madeira polida. Ela entregou a Luke um conjunto barulhento de chaves do carro e virou o olhar para sua filha.
Jocelyn Fray era uma mulher magra e compacta, o cabelo era alguns tons mais escuros do que o de Clary e duas vezes mais longo. Naquela hora ele estava trançado em um laço vermelho escuro, preso por uma caneta para segurá-lo no lugar. Ela usava um jaleco salpicado de tinta por cima de uma camiseta cor de lavanda, botas de caminhada marrons, cuja sola estavam endurecidas com tinta a óleo.
As pessoas sempre diziam a Clary que ela parecia com sua mãe, mas ela não conseguia ver isso. A única coisa que era similar entre as duas eram suas formas: ambas eram esbeltas, com seios pequenos e quadris estreitos.
Ela sabia que não era bonita como sua mãe. Para ser bonita você tem que ser alta e graciosa.
Quando você é baixa como Clary, com 1,50 metros, você é bonitinha.
Não linda ou bonita, mas bonitinha. Com um cabelo cor de laranja e um rosto cheio de sardas, ela era a boneca de pano em comparação com a Barbie de sua mãe.
Jocelyn tinha um gracioso jeito de andar que faziam as pessoas virarem a cabeça para vê-la passar. Clary, pelo contrário, estava sempre tropeçando sobre os pés. A única vez que as pessoas se viraram para vê-la foi quando ela se chocou passando por eles e caiu escadas abaixo.
— Obrigada por trazer as caixas aqui em cima — a mãe de Clary disse para Luke e sorriu para ele.
Ele não retornou o sorriso. O estômago de Clary se embrulhou desconfortável. Era evidente que tinha alguma coisa acontecendo.
— Desculpa, eu demorei tanto tempo para encontrar uma vaga. Deve haver um milhão de pessoas no parque hoje...
— Mãe? — Clary interrompeu. — Para que são essas caixas?
Jocelyn mordeu seu lábio. Luke piscou seus olhos em direção a Clary, silenciosamente induzindo em direção a Jocelyn. Com um nervoso puxão do seu punho, Jocelyn empurrou uma mecha do cabelo atrás de sua orelha e foi se encontrar com sua filha no sofá.
Mais de perto, Clary pôde ver quão cansada sua mãe parecia. Havia escuras meia-luas embaixo de seus olhos, e suas pálpebras estavam peroladas com a insônia.
— Isso é sobre a última noite? — Clary perguntou.
— Não — sua mãe disse rapidamente, e então hesitando — talvez um pouquinho. Você não deveria ter feito o que fez na noite passada. Você sabe disso.
— E eu já me desculpei. O que é isso? Se você está me castigando, só supere isso.
— Eu não estou castigando você — sua voz estava tão tensa quanto um fio.
Ela olhou para Luke, que balançou sua cabeça.
— Apenas diga a ela, Jocelyn.
— Você poderia não falar sobre mim como se eu não estivesse aqui? — Clary disse raivosamente. — E o que você quer dizer? Me dizer o quê?
Jocelyn soltou um suspiro.
— Estamos saindo em férias.
A expressão de Luke ficou branca, como uma tela limpa de pintura.
Clary balançou a cabeça dela.
— Isso é o que estamos falando? Você está saindo de férias? — Ela afundou de volta contra as almofadas. — Eu não entendi. Por que a grande produção?
— Eu não acho que você entendeu. Eu queria dizer que todos nós estamos saindo de férias. Os três, você, eu e Luke. Estamos indo para a fazenda.
— Oh.
Clary olhou para Luke, mas ele tinha seus braços cruzados sobre o peito e estava olhando pela janela, o queixo apertado. Ela imaginou o que estava chateando ele. Ele amava a velha fazenda no norte do estado de Nova York – ele tinha comprado e restaurado-a há dez anos e ia lá sempre que podia.
— Por quanto tempo?
— Pelo resto do verão — Jocelyn respondeu — eu comprei as caixas para o caso de você precisar empacotar alguns livros, material de pintura...
— Pelo resto do verão? — Clary sentou ereta com indignação. — Eu não posso fazer isso, mãe. Eu tenho planos – Simon e eu iremos para uma festa de volta à escola, e eu tenho um monte de reuniões com meu grupo de arte, dez ou mais aulas de Tisch...
— Eu sinto muito sobre o Tisch. Mas as outras coisas podem ser canceladas. Simon irá entender, e também seu grupo de arte.
Clary ouviu a implacabilidade no tom de sua mãe e percebeu que ela estava séria.
— Mas eu paguei por aquelas aulas de arte! Eu economizei o ano todo! Você prometeu — ela girou, tornando para Luke — fala pra ela! Fala pra ela que não é justo!
Luke não olhou para longe da janela, entretanto um músculo pulou em sua bochecha.
— Ela é sua mãe. É a decisão dela.
— Eu não saquei — Clary virou de volta para sua mãe — por quê?
— Eu tenho que partir, Clary — Jocelyn disse, os cantos de sua boca tremendo — eu preciso de paz, de quietude para pintura. E o dinheiro está apertado agora...
— Então venda alguma coleção do papai — Clary disse com raiva — isso é o que você sempre faz não é?
JoceIyn se encolheu.
— Isso dificilmente é justo.
— Olha, vá se você quiser. Eu não me importo. Vou ficar aqui sem você. Posso trabalhar, posso conseguir um emprego na Starbucks ou coisa assim. Simon disse que eles estão sempre contratando. Sou velha o suficiente para cuidar de mim mesma...
— Não! — A violência na voz de Jocelyn fez Clary pular. — Eu vou pagar você por suas aulas de arte, Clary. Mas você vai conosco. E isso não é opcional. Você é muito jovem para ficar aqui por conta própria. Algo pode acontecer.
— Como o quê? O que poderia acontecer? — Clary demandou.
Houve um acidente. Ela virou com surpresa ao ver que Luke tinha derrubado uma das fotos emolduradas inclinadas contra a parede. Parecendo nitidamente chateado, ele a colocou de volta. Quando se endireitou, sua boca estava em uma linha sinistra.
— Estou indo embora.
Jocelyn mordeu seu lábio.
— Espere.
Ela se apressou atrás dele para a entrada, o alcançando justo quando ele pegava a maçaneta. Girando em torno do sofá, Clary só pôde ouvir sua mãe sussurrar urgente.
— ...Bane — Jocelyn estava dizendo — eu tenho ligado para ele, e chamado-o pelas últimas três semanas. Seu correio de voz dizia que ele está na Tanzânia. O que eu deveria fazer?
— Jocelyn — Luke balançou a cabeça — você não pode continuar com ele para sempre.
— Mas Clary...
— Não é Jonathan — Luke assobiou — você nunca mais foi a mesma desde o que aconteceu, mas Clary não é Jonathan.
O que meu pai tem haver com isso?, Clary pensou, perplexa.
— Não posso simplesmente deixá-la em casa, não deixá-la sair. Ela não vai pôr-se com ele.
— Claro que ela não vai! — Luke pareceu realmente irritado. — Ela não é um animal de estimação, ela é uma adolescente. Quase uma adulta.
— Se nós formos para fora da cidade...
— Fale com ela, Jocelyn — a voz de Luke estava firme — eu quero dizer isso.
Ele chegou à maçaneta. A porta abriu-se. Jocelyn deu um pequeno grito.
— Jesus! — Luke exclamou.
— Realmente, sou só eu — Simon disse — embora eu tenha sido informado que a semelhança é surpreendente — ele acenou para Clary da porta — está pronta?
Jocelyn puxou a mão, afastando-a de sua boca.
— Simon, você estava escutando?
Simon piscou.
— Não, eu apenas cheguei aqui — ele olhou para o rosto pálido de Jocelyn, para a careta de Luke — tem alguma coisa errada? Eu devo ir?
— Não se incomode — Luke respondeu — eu acho que nós terminamos aqui.
Ele empurrou a porta, passando por Simon, descendo com barulho pelas escadas em um passo rápido. Lá embaixo, a porta da frente bateu com força.
Simon ficou indeciso na porta, parecendo incerto.
— Eu posso voltar mais tarde. Sério. Não seria um problema.
— Isso pode... — Jocelyn começou, mas Clary já estava em pé.
— Esquece isso, Simon. Nós estamos saindo — ela disse, agarrando sua bolsa de um gancho junto à porta. Ela lançou um olhar sobre o seu ombro para sua mãe — te vejo mais tarde, mãe.
Jocelyn mordeu seu lábio.
— Clary, você não acha que devemos falar sobre isso?
— Nós vamos ter todo o tempo para falar enquanto estivermos de “férias” — Clary disse venenosamente, e teve a satisfação de ver sua mãe recuar — não espere — ela adicionou.
Segurando o braço de Simon, ela meio que o carregou para a porta da frente.
Ele girou seus calcanhares, olhou se desculpando sobre seus ombros para a mãe de Clary, que ficou pequena e abandonada na entrada, as mãos entrelaçadas bem juntas.
— Tchau, Sra. Fray! — ele falou. — Tenha uma boa noite!
— Ah, cala boca, Simon — Clary rebateu, e batendo a porta atrás deles, cortando a resposta da sua mãe.
— Jesus, mulher, não arranque meu braço — Simon protestou enquanto Clary rebocava ele descendo depois dela, suas sapatilhas verdes batendo contra a escada de madeira a cada passo zangado.
Ela olhou para cima, meio que esperando ver sua mãe olhando para baixo, mas a porta do apartamento permaneceu fechada.
— Me desculpe — Clary murmurou, largando o pulso dele.
Ela pausou os pés nas escadas, sua bolsa batendo contra seu quadril.
O triplex de Clary, como a maioria em Park Slope, tinha sido a residência de uma única família rica. Máscaras de sua antiga grandeza ainda eram evidentes nas curvas da escada, o estragado piso em mármore da entrada, bem como a única e larga faceta da claraboia acima. Agora, a casa era dividida em apartamentos separados, e Clary e sua mãe dividiam o terceiro andar do edifício com um inquilino e uma mulher idosa que dirigia uma loja psíquica em seu apartamento. Ela quase nunca saia mesmo, embora as visitas dos clientes fossem frequentes. Uma placa dourada fixada na porta a proclamava como MADAME DOROTHEA, VIDENTE E PROFETISA.
O espesso aroma doce de incenso derramava-se da porta meio aberta para o saguão. Clary podia ouvir um baixo murmúrio de vozes.
— É bom ver que ela está expandindo o negócio — Simon comentou — é difícil se estabelecer com o trabalho de profeta hoje em dia.
— Você tem que ser sarcástico com tudo? — Clary replicou.
Simon piscou, claramente tomado de surpresa.
— Eu pensei que você gostava quando eu era espirituoso e irônico.
Clary estava para responder quando a porta da Madame Dorothea impulsionou totalmente aberta e um homem saiu. Ele era alto com uma pele cor de caramelo, olhos dourados como de um gato e um bagunçado cabelo preto. Ele sorriu ofuscante para ela, mostrando nítidos dentes brancos.
Uma onda de tontura veio sobre ela, a forte sensação de que ela iria desmaiar. Simon olhou para ela preocupado.
— Tá tudo bem com você? Você parece que vai desmaiar.
Ela piscou para ele.
— O quê? Não, eu estou bem.
Ele pareceu não querer cair nessa.
— Parece que você acabou de ver um fantasma.
Ela balançou sua cabeça. A memória de ter visto alguma coisa a importunou, mas quando ela tentou se concentrar, aquilo deslizou pra longe como água.
— Nada, eu pensei ter visto o gato de Dorothea, mas acho que foi só um truque de luz.
Simon olhou para ela.
— Eu não comi nada desde ontem — ela adicionou defensivamente — acho que estou um pouquinho fora.
Ele deslizou um confortante braço ao redor de seus ombros.
— Vamos lá, vou te comprar alguma comida.
***
— Eu simplesmente não posso acreditar que ela está sendo assim — Clary disse pela quarta vez, perseguindo um pouco o pedaço de guacamole ao redor do seu prato com a ponta de um nacho.
Eles estavam em um bairro mexicano, um buraco na parede chamado Nacho Mama.
— Como se me deixar de castigo durante toda a semana não fosse ruim o suficiente. Agora eu estou sendo exilada pelo resto do verão.
— Bom, você sabe, sua mãe é assim às vezes — Simon respondeu — como quando ela inspira e expira.
Ele sorriu para ela envolvido com seu burrito vegetariano.
— Ah, com certeza, haja como se fosse engraçado. Não é você quem vai ser arrastado para o meio do nada, para Deus sabe quão longe...
— Clary — Simon interrompeu sua tirada — eu não sou a pessoa com quem você está brava. Além disso, isso não vai ser permanente.
— Como você sabe?
— Bom, porque eu conheço sua mãe — Simon respondeu, depois de uma pausa — quero dizer, eu e você temos sido amigos pelo o que, 10 anos agora? Eu sei que ela gosta disso às vezes. Ela vai pensar melhor.
Clary pegou uma pimenta do seu prato e mordiscou o canto pensativamente.
— Você acha? Quero dizer, conhece ela? Eu às vezes me pergunto se alguém conhece.
Simon piscou para ela.
— Me perdi.
Clary sugou o ar para esfriar sua boca queimando.
— Quero dizer, ela nunca fala de si mesma. Eu não sei nada sobre sua juventude, ou sua família, ou muito menos sobre como ela conheceu o meu pai. Ela não tem sequer fotos do casamento. É como se a vida dela tivesse começado quando ela me teve. Isso é o que ela sempre diz quando pergunto sobre isso.
— Ah — Simon fez uma cara para ela — isso é doce.
— Não, não é. É estranho. É estranho eu não saber nada sobre meus avós. Quero dizer, eu sei que seus pais não são muito legais com ela, mas eles poderiam ser assim tão maus? Que tipo de pessoa não quer conhecer sua neta?
— Talvez ela os odeie. Talvez eles fossem abusivos ou algo assim — Simon sugeriu — ela tem aquelas cicatrizes.
Clary o encarou.
— Ela tem o quê?
Ele engoliu um bocado de burrito.
— Aquelas cicatrizes fininhas. Sobre suas costas e braços. Eu vi sua mãe de maiô, você sabe.
— Eu nunca notei nenhuma cicatriz — Clary replicou decididamente — acho que você está imaginando coisas.
Ele a encarou, e pareceu que ia dizer alguma coisa quando seu celular vibrou na bolsa, começando um insistente volume alto. Clary o pescou, olhou para os números piscando na tela e fez uma careta.
— É minha mãe.
— Eu podia dizer só de olhar para sua cara. Você vai falar com ela?
— Não agora — Clary respondeu, sentindo uma familiar ponta de culpa em seu estômago quando o telefone parou de tocar e o correio de voz foi ativado — eu não quero brigar com ela.
— Você sempre pode ficar na minha casa — Simon lembrou — o tempo que você precisar.
— Bom, vamos ver se ela se acalma primeiro.
Clary apertou o botão do correio de voz de seu telefone. A voz de sua mãe soava tensa, mas ela claramente estava tentando ser suave:
— Querida, me desculpe se eu empurrei o plano de férias em você. Venha para casa e nós vamos conversar.
Clary desligou seu telefone antes que a mensagem acabasse, sentindo-se culpada e ainda brava ao mesmo tempo.
— Ela quer falar sobre isso.
— Você quer falar com ela?
— Eu não sei — Clary esfregou os olhos com as costas de suas mãos — você ainda vai para a leitura de poesia?
— Eu prometi que iria.
Clary se levantou, empurrando a cadeira para trás.
— Então eu vou com você. Ligo para ela quando tiver terminado.
A alça de sua bolsa deslizou para baixo de seu braço. Simon a empurrou de volta distraidamente, seus dedos se demorando na pele desnuda de seu ombro.
O ar lá fora estava esponjoso com a umidade, a umidade frisando o cabelo de Clary e grudando a camiseta azul de Simon em suas costas.
— Então, o que há com a banda? — ela perguntou. — Algo novo? Houve muita gritaria no fundo quando eu falei com você mais cedo.
O rosto de Simon se iluminou.
— As coisas estão ótimas. Matt disse que conhece alguém que poderia nos levar para um show no Scrap Bar. Nós estávamos falando sobre nomes de novo também.
— Ah, é? — Clary escondeu um sorriso.
A banda de Simon nunca produziu realmente uma música. Principalmente quanto eles estavam sentados na sala de estar de Simon, lutando pelos nomes em potencial e logotipos de banda. Ela, às vezes, imaginava se algum deles sabia tocar um instrumento.
— O que tem na mesa?
— Nós estávamos escolhendo entre Sea Vegetable Conspiracy e Rock Solid Panda.
Clary balançou sua cabeça.
— Ambos são terríveis.
— Eric sugeriu Lawn Chair Crisis.
— Talvez Eric deva se manter apostando.
— Mas então nós teríamos de encontrar um novo baterista.
— Ah, isso é o que Eric faz? Pensei que ele só pegasse dinheiro de você e saia por aí dizendo às garotas na escola que ele estava em uma banda, a fim de impressioná-las.
— De jeito nenhum — Simon disse rapidamente — Eric ficou novo em folha. Ele tem uma namorada. Eles estão saindo há três meses.
— Praticamente casados — Clary comentou.
Ela contornou um casal carregando uma criança em um carrinho: uma garotinha com presilhas de plástico amarelo em seus cabelos estava apertando uma boneca com asas douradas, riscadas de safira. Pelo canto do olho, Clary pensou ter visto as asas flutuarem. Ela virou a cabeça apressadamente.
— Isso significa — Simon continuou — que eu sou o último membro da banda que não tem uma namorada. Você sabe, é o único motivo de estar em uma banda. Conseguir garotas.
— Eu pensei que tudo fosse sobre música.
Um homem com um pedaço de cana atravessou seu caminho, em direção à Rua Berkeley. Ela olhou para longe, com medo de que, se olhasse para alguém por muito tempo, brotassem asas, braços extras ou longas e bifurcadas línguas neles.
— Quem se importa se você tem uma namorada, afinal?
— Eu me importo — Simon disse acabrunhado. — Muito em breve as únicas pessoas largadas sem uma namorada serão eu e o Wendell, o zelador da escola, e ele cheira a detergente.
— Pelo menos você sabe que ele ainda está disponível.
Simon encarou.
— Não tem graça, Fray.
— Há sempre Sheila “fio-dental” Barbarino — Clary sugeriu.
Clary sentava atrás dela na aula da matemática no nono tempo. Toda vez que Sheila derrubava seu lápis, o que era frequentemente, Clary tinha o convite da visão da calcinha entrando acima do cós do seu acentuado-super-baixo jeans.
— É com ela que Eric tem se encontrado nos últimos três meses — Simon respondeu — seu conselho, entretanto, era que eu devia apenas decidir qual garota na escola tem o corpo mais bonito e chamá-la para sair no primeiro dia de aula.
— Eric é um porco machista — Clary disse, de repente não querendo saber qual garota na escola Simon achava que tinha o corpo mais bonito — talvez você devesse chamar a banda de “Os Porcos Machistas”.
— Isso tem uma ligação — Simon pareceu interessado.
Clary fez uma careta para ele, sua bolsa vibrando com o telefone tocando. Ela o pescou para fora do bolso fechado com zíper.
— É a sua mãe de novo?
Clary acenou com a cabeça. Ela podia ver a mãe em sua imaginação, pequena e sozinha na porta da frente do apartamento. Culpa expandiu em seu peito. Ela olhou para Simon, que a estava olhando, seus olhos escuros com interesse. Seu rosto era tão familiar que ela poderia traçar suas linhas durante seu sono. Clary pensou nas solitárias semanas que se esticavam a sua frente sem ele, e empurrou o telefone de volta na bolsa.
— Vamos — ela disse — senão nos atrasaremos para o show.
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