Capítulo 21 - O Conto do Lobisomem
— A verdade é que eu conhecia a sua mãe desde que éramos crianças. Nós crescemos em Idris. É um lugar bonito, e eu sempre lamentei que você nunca tivesse visto: você adoraria os brilhantes pinheiros no inverno, a terra escura e os frios rios de cristal. Há uma pequena rede de cidades e uma única cidade, Alicante, onde a Clave se reúne. Eles a chamam de Cidade de Vidro porque suas torres são modeladas a partir de uma substância que repele os demônios, assim como nossas estelas, e na luz do sol elas cintilam como vidro.
”Quando Jocelyn e eu éramos velhos o suficiente, fomos enviados a Alicante, para a escola. Foi lá que conheci Valentim. Ele era um ano mais velho que eu. De longe o garoto mais popular na escola. Era bonito, inteligente, rico, dedicado, um incrível guerreiro. Eu não era nada, nem rico nem brilhante, vindo de um país pouco notável. E me esforçava nos estudos. Jocelyn era uma natural Caçadora de Sombras; eu não. Eu não podia suportar a mais leve das Marcas ou aprender as técnicas mais simples. Pensei algumas vezes em fugir, retornar para casa em desonra. Mesmo me tornar um mundano. Eu estava infeliz.
“E foi Valentim que me salvou. Ele veio até o meu quarto – eu nunca imaginei que ele soubesse o meu nome – e se ofereceu para me treinar. Disse que sabia que eu estava me esforçando, mas viu em mim as sementes de um grande Caçador de Sombras. E sob a sua tutela, eu me aperfeiçoei. Passei nos exames, recebi a minha primeira marca, matei o meu primeiro demônio.
“Eu o adorava. Imaginei que o sol nasceu e lançou sua luz sobre Valentim Morgenstern. Não fui o único desajustado que ele tinha resgatado, é claro. Houve outros. Hodge Starkweather, que se dava melhor com os livros do que com as pessoas; Maryse Trueblood, cujo irmão tinha casado com uma mundana; Robert Lightwood, que estava aterrorizado pelas marcas – Valentim trouxe todos sob as suas asas. Pensei que fosse bondade na época; agora não estou tão certo. Agora acho que ele estava construindo para si mesmo um culto.
“Valentim estava obcecado com a ideia de que em cada geração, havia cada vez menos Caçadores de Sombras – que nós éramos uma raça em extinção. Ele tinha certeza de que, se a Clave apenas utilizasse mais livremente o Cálice de Raziel, mais Caçadores de Sombras poderiam ser feitos. Para os professores, esta ideia era um sacrilégio, aquilo não era apenas para alguém selecionar quem poderia ou não se tornar um Caçador de Sombras. Irreverentemente, Valentim perguntou: ‘Por que não fazer todos os homens Caçadores de Sombras, então? Por que não dar a todos eles a capacidade de ver o Mundo das Sombras? Por que manter esse poder egoistamente para nós mesmos?’
“Quando os professores responderam que a maioria dos seres humanos não podia sobreviver à transição, Valentim alegou que eles estavam mentindo, tentando manter o poder do Nephilim limitado a uma elite de poucos. Essa era a sua alegação na época. Hoje, acho que ele provavelmente percebeu que os danos colaterais valiam o resultado final. Em todo caso, ele convenceu nosso pequeno grupo de sua justiça. Formamos o Círculo, com a nossa expressa intenção de salvar a raça dos Caçadores de Sombras da extinção. Claro que, tendo dezessete anos, nós não tínhamos a certeza de como é que iriamos fazer isso, mas tínhamos a certeza de que, eventualmente, iríamos realizar algo significativo.
“Então veio a noite em que o pai de Valentim foi assassinado em um ataque de rotina no acampamento dos lobisomens. Quando Valentim retornou para a escola, após o enterro, ele usava as marcas vermelhas de luto. Estava diferente de outras formas. Sua bondade era agora intercalada com flashes de raiva que chegavam à crueldade. Eu coloquei este novo comportamento para longe, para sofrer e me esforçar mais duramente do que nunca para agradá-lo. Eu nunca respondia a sua raiva com a minha própria raiva. Sentia apenas a doentia sensação que eu o tinha decepcionado.
“A única que podia acalmar a raiva de Valentim era a sua mãe. Ela sempre tinha estado um pouco à parte do nosso grupo, às vezes zombando, nos chamando de fã-clube de Valentim. Isso mudou quando o pai dele morreu. Sua dor despertou a simpatia dela. Eles se apaixonaram. Eu também a amava muito: ele era meu melhor amigo, e eu estava feliz em ver Jocelyn com ele. Quando nós deixamos a escola, eles se casaram e foram viver na propriedade da família dela. Eu também voltei para casa, mas o Círculo continuou. Tinha começado como uma espécie de aventura na escola, mas cresceu em importância e poder, e Valentim cresceu com ele.
“Seus ideais mudaram também. O Círculo ainda clamava pelo Cálice Mortal, mas desde a morte de seu pai, Valentim tinha se tornado um sincero defensor da guerra contra todas as criaturas do Submundo, e não apenas aqueles que quebravam o Pacto. ‘Este mundo é para os humanos’, ele alegou, ‘não meio-demônios. Demônios nunca poderiam ser inteiramente confiáveis.’
“Eu estava desconfortável com a nova direção do Círculo, mas estava preso a ele, em parte porque eu ainda não podia suportar deixar Valentim sozinho, e em parte porque Jocelyn tinha me pedido para continuar. Ela tinha alguma esperança de que eu seria capaz de trazer moderação para o Círculo, mas isso era impossível. Não havia moderação em Valentim, e Robert e Maryse Lightwood – agora casados – eram quase tão ruins. Apenas Michael Wayland estava incerto, como eu, mas apesar da nossa relutância, ainda seguíamos como um grupo, caçávamos Seres do Submundo incansavelmente, buscando aqueles que tinham cometido mesmo a menor infração. Valentim nunca matou uma criatura que não tivesse quebrado o Pacto, mas fez outras coisas. Eu o vi apertar rapidamente moedas de prata nos olhos de uma criança lobisomem, cegando-a, em uma tentativa de pegar uma garota para dizer onde o seu irmão estava...
— Eu o vi, mas você não precisa ouvir isso. Não. Me desculpe. O que aconteceu em seguida era que JoceIyn tinha engravidado. No dia em que ela me disse isso, também confessou que tinha aumentado o medo por seu marido. Seu comportamento tinha se tornado estranho, errático. Ele desaparecia dentro de seus porões por noites em alguns momentos. Às vezes ela podia ouvir gritos através das paredes... Eu fui até ele. Ele riu, atribuindo os medos dela com o nervosismo de uma mulher carregando seu primeiro filho. E me convidou para caçar naquela noite.
“Nós ainda estávamos tentando limpar o ninho de lobisomens que tinham matado seu pai anos antes. Éramos parabatai, uma perfeita equipe de Caçadores, guerreiros que iriam morrer um pelo outro. Então, Valentim me disse que ia guardar minhas costas aquela noite, e eu acreditei nele. Não vi o lobo até que ele estava sobre mim. Me lembro de seus dentes apertados no meu ombro, e nada mais naquela noite. Quando acordei, estava deitado na casa de Valentim, meu ombro enfaixado, e Jocelyn estava lá.
“Nem todas as mordidas de lobisomem podem resultar em licantropia. Eu me curei dos ferimentos e passei as próximas semanas em um tormento de espera. Esperando a lua cheia. A Clave teria me trancado em uma cela de observação se soubessem. Mas Valentim e Jocelyn se mantiveram em silêncio. Três semanas mais tarde, a lua apareceu, cheia e brilhante, e eu comecei a mudar. A primeira mudança é sempre a mais difícil. Me lembro do espanto da agonia, uma escuridão, e despertar horas mais tarde em uma campina a quilômetros da cidade. Eu estava coberto de sangue, os corpos dilacerados de alguns pequenos animais do bosque aos meus pés. Fiz meu caminho de volta para a casa de campo, e eles se encontraram comigo na porta. Jocelyn caiu sobre mim chorando, mas Valentim puxou-a para longe. Eu estava coberto de sangue e tremendo sob meus pés. Eu mal podia pensar, e o sabor da carne crua ainda estava na minha boca. Não sei o que eu esperava, mas suponho que eu deveria ter sabido.
“Valentim me arrastou degraus abaixo e para dentro da floresta com ele. Me disse que ele mesmo deveria me matar, mas ao me ver, não pôde fazer aquilo. Ele me deu um punhal que tinha pertencido ao seu pai. Disse que eu deveria fazer a coisa mais digna e terminar com a minha própria vida. Ele beijou a adaga quando a entregou para mim, voltou para dentro da casa, e trancou as portas.
“Corri através da noite, às vezes como um homem, às vezes como um lobo, até que cruzei a fronteira. Invadi no meio do acampamento lobisomem, brandindo minha adaga, e exigindo me encontrar em combate com o licantropo que tinha me mordido e me transformado em um deles. Rindo, eles apontaram em direção ao líder do clã. Mãos e dentes ainda com sangue desde a caçada, ele se levantou para me olhar.
“Eu nunca tinha sido muito bom em combates simples. A besta era a minha arma, eu tinha excelente visão e alvo. Mas nunca fui bom em lutar à queima roupa; Valentim que era qualificado no combate de corpo a corpo. Mas eu queria apenas morrer, e era para ser feito pela criatura que havia me arruinado. Eu pensava que se pudesse vingar a mim mesmo, e matar os lobos que tinham assassinado o pai dele, Valentim iria ficar de luto por mim. À medida que lutávamos, às vezes como homens, às vezes como lobos, vi que ele estava surpreendido com a minha fúria. Enquanto a noite se tornava dia, ele começou a cansar, mas a minha raiva nunca diminuiu. E quando o sol começou a surgir novamente, eu afundei a minha adaga em seu pescoço e ele morreu, encharcando-me com o seu sangue.
“Eu esperava que o bando me pegasse e me rasgasse em pedaços. Mas eles se ajoelharam aos meus pés e desnudaram suas gargantas em submissão. Os lobos têm uma lei: quem mata o líder do clã toma o seu lugar. Eu tinha chegado ao local dos lobos e, em vez de encontrar a morte e vingança lá, descobri uma nova vida. Deixei o meu velho eu para trás e quase esqueci como era ser um Caçador de Sombras. Mas não esqueci Jocelyn. O pensamento nela era um companheiro constante. Eu temia por ela na companhia de Valentim, mas sabia que se eu me aproximasse da mansão, o Círculo iria me caçar e matar.
“No final, ela veio a mim. Eu estava dormindo no acampamento quando o meu segundo no comando veio me dizer que havia uma jovem mulher Caçadora de Sombras esperando para me ver. Eu soube imediatamente quem deveria ser. Podia ver a reprovação nos olhos dele quando corri para encontrá-la. Eles todos sabiam que eu tinha sido um Caçador de Sombras, é claro, mas era considerado um vergonhoso segredo, que nunca era falado. Valentim teria rido.
“Jocelyn estava esperando por mim do lado de fora do acampamento. Ela já não estava grávida, e parecia tensa e pálida. Havia tido seu filho, disse, um menino, e o chamou de Jonathan Christopher. Ela chorou quando me viu. Estava zangada por não tê-la deixado saber que eu ainda estava vivo. Valentim tinha dito ao Círculo que eu tinha tirado a minha própria vida, mas ela não tinha acreditado. Ela sabia que eu nunca faria uma coisa dessas. Senti que a fé dela em mim era injustificada, mas estava tão aliviado em vê-la novamente que não a contradisse.
“Perguntei a ela como tinha me encontrado. Ela disse que havia rumores em Alicante de um lobisomem que tinha sido um Caçador de Sombras. Valentim tinha ouvido os rumores também, e ela tinha vindo me procurar para me alertar. Ele veio logo depois, mas me escondi dele, como os lobisomens podem fazer, e ele saiu sem derramamento de sangue. Depois daquilo, comecei a me encontrar com Jocelyn em segredo. Era o ano do Pacto, e todos do Submundo estavam murmurando sobre os acordos e os prováveis planos de Valentim para atrapalhá-los. Ouvi dizer que ele tinha argumentado entusiasmadamente na Clave contra o Pacto, mas sem sucesso. Assim, o Círculo tinha feito um novo plano, mergulhados em segredo. Eles próprios se aliariam com os demônios, os maiores inimigos dos Caçadores de Sombras, a fim de adquirir armas contrabandeadas que não poderiam ser detectadas no Grande Salão do Anjo, onde o Pacto seria assinado. E com a ajuda de um demônio, Valentim roubou o Cálice Mortal. Ele deixou em seu lugar uma parecida. Passaram-se meses antes de a Clave notar que o Cálice estava faltando, e até então, era tarde demais.
“Jocelyn tentou descobrir o que Valentim pretendia fazer com o Cálice, mas não pôde. Mas ela sabia que o Círculo tinha planejado atacar as criaturas do Submundo desarmados e assassiná-las no Salão. Após tal abate indiscriminado, o Pacto iria falhar.
“Apesar do caos, de uma forma estranha, aqueles foram dias felizes. Jocelyn e eu enviávamos mensagens secretamente para as fadas, bruxos e mesmo para os antigos inimigos da espécie dos lobisomens – os vampiros, advertindo-os dos planos de Valentim e convidando-os para se prepararem para a batalha. Nós trabalhamos juntos, lobisomem e Nephilim. No dia do Pacto, assisti de um local escondido enquanto Jocelyn e Valentim deixavam a mansão. Lembro-me de como ela se curvou para beijar a cabeça loira clara de seu filho. Lembro da forma como o sol brilhou sobre o cabelo dela, lembro do sorriso dela.
“Eles foram a Alicante de carruagem; eu os segui correndo sobre quatro patas, e meu bando corria comigo. O Grande Salão do Anjo estava lotado com a reunião da Clave e um ponto após ponto de Seres do Submundo. Quando os Acordos foram apresentados para a assinatura, Valentim ficou de pé, e o Círculo se ergueu com ele, tirando suas capas para levantar as armas. Enquanto o Salão explodia no caos, JoceIyn correu para as grandes portas duplas a fim de abri-las.
“Meu bando foi os primeiros à porta. Nós nos arremessamos no Salão, rasgando a noite com os nossos uivos, e fomos seguidos por cavaleiros das fadas com armas de vidro e espinhos retorcidos. Depois deles vieram as Crianças da Noite com suas presas à mostra, e os bruxos utilizando com destreza as chamas e o ferro. À medida que a massa entrava em pânico e fugiam do Salão, nós caímos sobre os membros do Círculo.
“Nunca o Salão do Anjo tinha visto tal derramamento de sangue. Nós tentamos não ferir aqueles Caçadores de Sombras que não eram do Círculo; Jocelyn tinha marcado-os, um por um, com um feitiço de um bruxo. Muitos morreram, porém, e temo que fomos responsáveis por alguns. Certamente, depois, fomos acusados por muitos. Ao que diz respeito ao Círculo, havia muito mais do que tínhamos imaginado, e eles confrontaram violentamente com o Seres do Submundo. Eu lutei através da multidão para encontrar Valentim. Meu único pensamento era dele, eu queria ser quem o mataria, que eu pudesse ter essa honra. O achei finalmente na grande estátua do Anjo, matando um cavaleiro das fadas com um longo ataque em sua adaga ensanguentada. Quando ele me viu, sorriu, feroz e selvagem. ‘Um lobisomem que luta com espada e punhal’, ele disse, ‘é tão pouco natural quanto um cachorro que come com um garfo e faca.’ ‘Você conhece a espada, conhece o punhal’, respondi. ‘E sabe quem sou. Se quer se dirigir a mim, use o meu nome.’ ‘Eu não conheço o nome de um meio-humano. Uma vez tive um amigo, um homem de honra que teria morrido antes de deixar o seu sangue ser poluído. Agora, um monstro sem nome com o rosto dele está diante de mim.’ Ele levantou a sua lâmina. ‘Eu devia ter te matado quando tive oportunidade,’ ele gritou, e se arremessou em mim.
“Eu desviei o golpe, e nós lutamos acima e abaixo do balcão, ao passo que a batalha se intensificava em torno de nós, e um a um dos membros do Círculo morriam. Eu vi os Lightwood largarem as armas e fugir; Hodge já havia ido, tendo fugido no início. E então vi Jocelyn subir as escadas correndo na minha direção, seu rosto uma máscara de medo. ‘Valentim, pare!’ ela gritou. ‘Este é o Luke, seu amigo, quase seu irmão.’
“Com um rosnar, Valentim agarrou-a e a arrastou a frente dele, a adaga na garganta dela. Eu não queria arriscar que ele a machucasse. Ele viu o que estava nos meus olhos. ‘Você sempre a quis,’ ele sibilou. ‘E agora os dois conspiraram minha traição juntos. Vocês vão se arrepender do que fizeram, pelo resto de suas vidas.’
“Com isso, ele arrebatou o medalhão da garganta de Jocelyn e o lançou em mim. O cordão de prata me queimou como um chicote. Eu gritei e caí para trás, e naquele momento ele desapareceu dentro da luta, arrastando-a com ele. Eu o segui, queimado e sangrando, mas ele era rápido demais, cortando um caminho através da espessa multidão e sobre os mortos. Cambaleei fora para o luar. O Salão estava se incendiando e o céu era iluminado com o fogo. Eu podia ver lá embaixo todos os gramados verdes da capital e o rio escuro, a estrada ao longo da margem, onde as pessoas estavam fugindo para dentro da noite. Achei Jocelyn nas margens do rio, finalmente. Valentim tinha ido embora e ela estava aterrorizada por Jonathan, desesperada para chegar em casa.
“Encontramos um cavalo e ela precipitou-se a caminho. Mudei para a forma de lobo, seguindo-a em seus calcanhares. Os lobos são rápidos, mas um cavalo descansado é mais. Fiquei muito para trás, e Jocelyn chegou à mansão antes de mim. Eu sabia mesmo enquanto me aproximava da casa que algo estava terrivelmente errado. Havia também o cheiro do fogo pesado perdurando no ar, e havia algo sobrepujando-o, algo espesso e doce, o fedor da feitiçaria demoníaca. Me tornei um homem de novo enquanto avançava com dificuldade pela longa viagem, branca no luar, como um rio de prata levando... as ruínas. A mansão tinha sido reduzida a cinzas, camada após camada de cinzas embranquecidas, espalhando-se em todo o gramado pelo vento da noite. Apenas as fundações, como ossos queimados, ainda eram visíveis: uma janela aqui, uma chaminé inclinada, mas a substância da casa, os tijolos e cimento, os inestimáveis livros e antigas tapeçarias transmitidas através das gerações de Caçadores de Sombras, eram poeira soprando em toda a face da lua.
“Valentim tinha destruído a casa com um demônio do fogo. Ele deve ter feito aquilo. Nenhum fogo deste mundo queimaria tão quente, nem deixaria tão pouco para trás. Fiz o meu caminho adentro das ruínas ainda ardentes. Encontrei Jocelyn ajoelhada sobre o que talvez tivesse sido os degraus da porta da frente. Elas estavam escurecidas pelo fogo. E havia ossos. Carbonizados na escuridão, mas reconhecidamente humanos, com pedaços de pano aqui e ali, e partes de joias que o incêndio não havia tomado. Correntes vermelhas e de ouro uniam-se aos ossos da mãe de Jocelyn, e o calor tinha derretido a adaga de seu pai em sua mão esquelética. Em outra pilha de ossos cintilava o amuleto de prata de Valentim, com a insígnia do Círculo ainda queimando branco e quente em sua face... e entre as ruínas, espalhados como se fossem muito frágeis para estarem juntos, estavam os ossos de uma criança.
“Vocês vão se arrepender do que fizeram, Valentim tinha dito. E quando me ajoelhei com Jocelyn sobre as pedras queimadas do pavimento, sabia que ele estava certo.
— Eu me lamentei e lamento todos os dias desde então.
“Nós nos dirigimos de volta a cidade naquela noite, entre os incêndios ainda queimando – pessoas gritando e, em seguida, dentro da escuridão para fora do país. Foi uma semana depois que Jocelyn falou novamente. Eu a levei de Idris. Nós fugimos para Paris. Não tínhamos dinheiro, mas ela se recusou a ir para o Instituto pedir ajuda. Tinha terminado com os Caçadores de Sombras, me disse que tinha acabado com o Mundo das Sombras.
“Eu sentei no hotel pequeno e barato que tínhamos alugado e tentei argumentar com ela, mas não adiantou. Ela estava obstinada. Finalmente me disse o porquê: ela estava carregando outra criança, e sabia disso durante semanas. Faria uma nova vida para si e seu bebê, e não queria sussurros da Clave ou do Pacto para manchar o seu futuro. Ela me mostrou o amuleto que tinha retirado da pilha de ossos; o vendeu no mercado de pulgas em Clignancourt, e com esse dinheiro comprou um bilhete de avião. Ela não iria me dizer onde estava indo. ‘O mais distante que puder ir de Idris,’ ela falou. Eu sabia que deixar sua velha vida para trás significava me deixar também, e argumentei com ela, mas em vão. Eu sabia que, se não fosse pela criança que carregava, ela poderia ter seguido o rumo de sua própria vida. E desde que perdê-la para o mundo mundano era melhor do que perdê-la para a morte, finalmente concordei relutantemente com seu plano. E foi então que ofereceu seu adeus no aeroporto. As últimas palavras que Jocelyn me falou naquela triste sala de despedida me congelaram os ossos: ‘Valentim não está morto.’
“Depois que ela tinha ido embora, voltei ao meu bando, mas não encontrei a paz lá. Sempre havia um buraco de saudades dentro de mim, e sempre acordava com o seu nome não dito em meus lábios. Eu não era o líder que tinha sido uma vez, eu sabia. Era leal e justo, mas distante, não conseguia encontrar amigos entre os lobisomens, nem mesmo uma companheira. Eu era, no final, demasiado humano, demasiado Caçador de Sombras – para estar em paz entre os licantropos. Eu cacei, mas a caçada não trazia nenhuma satisfação, e quando chegou o tempo de o Pacto ser assinado, fui até a cidade.
“No Salão do Anjo, limpo e livre do sangue, os Caçadores de Sombras e os quatro ramos dos meio-humanos sentaram novamente para assinar os papéis que traria a paz entre nós. Fiquei surpreso ao ver os Lightwood, que pareciam igualmente atônitos que eu não estivesse morto. Eles próprios, disseram, juntamente com Hodge Starkweather e Michael Wayland, eram os únicos membros do antigo Círculo que haviam escapado da morte naquela noite no Salão. Michael, que carregava o pesar da perda de sua esposa, tinha se escondido afastado de sua propriedade com o seu jovem filho. A Clave tinha punido os outros três com exílio: eles estavam indo para Nova Iorque, para administrar o Instituto lá. Os Lightwood, que tinham ligações com as mais altas famílias da Clave, conseguiram sair com sentenças mais leves que Hodge. Uma maldição tinha sido colocada sobre ele: Hodge iria com os Lightwood, mas se alguma vez deixasse o terreno santo do Instituto, seria morto instantaneamente. ‘Ele iria se devotar aos seus estudos,’ disseram, ‘e seria um ótimo tutor para seus filhos.’
“Quando tínhamos assinado o Pacto, saí de minha cadeira e fui para o local abaixo do rio onde eu tinha encontrado Jocelyn na noite da revolta. Observando as águas escuras fluírem, eu sabia que nunca poderia encontrar a paz na minha terra natal: tinha que estar com ela ou em nenhum lugar. Me determinei a procurar por ela. Deixei meu bando, nomeando outro em meu lugar, e acho que eles ficaram aliviados por me ver partir. Viajei como lobo, sem um grupo para viagem: sozinho, à noite, me mantendo em atalhos e estradas de países. Voltei para Paris, mas não encontrei nenhum indício lá. Então fui para Londres. De Londres tomei um barco para Boston. Fiquei um tempo nas cidades e, em seguida, nas Montanhas Brancas do congelado Norte. Viajar foi uma coisa boa, mas mais e mais eu me encontrava pensando em Nova York, e nos Caçadores de Sombras exilados de lá. Jocelyn, de certa forma, estava em um exílio também. Finalmente eu cheguei em Nova Iorque com uma única mala e não fazia ideia de onde procurar por sua mãe. Teria sido fácil para mim encontrar um bando de lobos e me juntar a eles, mas eu resisti. Como já havia feito em outras cidades, enviei mensagens através do Submundo em busca de qualquer sinal de Jocelyn, mas não havia nada, nenhuma palavra, como se ela tivesse simplesmente desaparecido dentro do mundo mundano sem deixar rastros. Comecei a me desesperar.
“No fim a encontrei por acaso. Eu estava vagando pelas ruas do Soho. Enquanto andava sobre o calçamento da Rua Broome, uma pintura pendurada na janela de uma galeria chamou minha atenção. Era o estudo de uma paisagem que reconheci imediatamente: a vista das janelas da mansão de sua família, os verdes relvados varrendo abaixo para a linha de árvores que escondia o caminho além. Eu reconheci o estilo, seu trabalho de pintura, tudo. Bati à porta da galeria, mas estava fechada e trancada. Voltei para a pintura, e desta vez vi a assinatura. Foi a primeira vez que vi o seu novo nome: Jocelyn Fray.
“Naquela noite, eu a encontrei vivendo no quinto andar em um abrigo de artistas, o East Village. Caminhei até as encardidas escadas meio iluminadas com o coração na garganta e bati em sua porta. Ela foi aberta por uma menininha com tranças vermelhas escuras e olhos curiosos. E então, atrás dela, vi Jocelyn andando na minha direção, as mãos manchadas de tinta, o rosto era o mesmo que tinha sido quando éramos crianças...
— E o resto você sabe.
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