Capítulo 3
Celaena vestiu a túnica mais bonita que levou — que não era nada admirável, na verdade, mas o azul-escuro com dourado destacava os tons de turquesa de seus olhos. Chegou até a maquiar os olhos, mas decidiu não colocar nada no restante do rosto. Embora o sol tivesse se posto, o calor permanecia. Qualquer coisa que pusesse na pele provavelmente escorreria.
Ansel cumpriu a promessa de buscá-la antes do jantar e a encheu de perguntas sobre a viagem na caminhada até o salão de jantar. Conforme andavam, havia algumas áreas nas quais a menina falava normalmente, outras nas quais abaixava a voz até um sussurro e outras ainda nas quais sinalizava para que sequer falassem. Celaena não sabia por que algumas salas exigiam silêncio absoluto e outras não — todas pareciam iguais. Ainda exausta, apesar da soneca, e sem saber se podia falar, a assassina manteve as respostas breves. Não teria se importado em pular o jantar e dormir a noite inteira.
Permanecer alerta quando as duas entraram no salão exigiu força de vontade. No entanto, mesmo com a exaustão, Celaena instintivamente avaliou o local. Havia três saídas: as portas gigantes pelas quais haviam entrado e duas portas para os criados em cada ponta. Longas mesas e bancos de madeira, cheios de pessoas, lotavam o salão de uma parede a outra. Pelo menos setenta, no total. Nenhuma das pessoas olhou para Celaena quando Ansel se dirigiu a uma mesa perto da frente da sala de jantar. Se sabiam quem era, certamente não se importavam. Ela tentou não fazer cara feia.
Ansel se sentou à mesa e deu tapinhas no lugar vazio a seu lado. Os assassinos mais próximos ergueram os olhos da refeição — alguns conversavam baixo, e outros estavam em silêncio — quando Celaena se colocou diante deles.
Ansel gesticulou com a mão na direção dela.
— Celaena, todo mundo. Todo mundo, esta é Celaena. Mas tenho certeza de que vocês fofoqueiros já sabem tudo a respeito dela. — A garota falou baixo, e, embora alguns dos assassinos no salão estivessem conversando, pareceram ouvi-la muito bem. Até mesmo o tilintar dos talheres parecia sussurrado.
Celaena avaliou os rostos daqueles ao redor; todos pareciam observá-la com curiosidade benigna, até entretida. Cuidadosamente, ciente demais de cada movimento, sentou-se no banco e verificou a mesa. Bandejas de cheirosas carnes grelhadas; tigelas cheias de grãos esféricos e temperados; frutas e tâmaras; jarra após jarra de água.
Ansel se serviu, a armadura brilhava à luz das lanternas de vidro ornamentadas que pendiam do teto, então empilhou a mesma comida no prato de Celaena.
— Apenas comece a comer — sussurrou ela. — Tudo tem gosto bom, e nada está envenenado. — Para enfatizar o comentário, Ansel colocou um cubo de cordeiro grelhado na boca e mastigou. — Está vendo? — disse ela, entre mordidas. — Lorde Berick pode querer nos matar, mas sabe bem que não deve tentar se livrar de nós com venenos. Somos habilidosos demais para esse tipo de coisa. Não somos? — Os assassinos ao redor sorriram.
— Lorde Berick? — perguntou Celaena, agora encarando o prato e toda a comida nele.
A menina fez uma careta, engolindo alguns grãos da cor de açafrão.
— Nosso vilão local. Ou, imagino, nós somos os vilões locais dele, dependendo de quem estiver contando a história.
— Ele é o vilão — falou um homem de cabelos enrolados e olhos castanhos diante de Ansel.
Era bonito de certa forma, mas tinha um sorriso parecido demais com o do capitão Rolfe para o gosto de Celaena. Não devia ter mais que 25 anos. — Não importa quem esteja contando a história.
— Bem, você está destruindo minha história, Mikhail — falou Ansel, mas sorriu para o homem. Ele jogou uma uva, e a jovem a pegou facilmente com a boca. Celaena ainda não havia tocado na comida. — De toda forma — prosseguiu Ansel, colocando mais comida no prato da assassina —, Lorde Berick comanda a cidade de Xandria e alega que comanda também esta parte do deserto. É claro que não concordamos muito com isso, mas... Para encurtar uma história longa e assustadoramente chata, ele nos quer todos mortos há anos e anos. O rei de Adarlan impôs um embargo sobre o deserto Vermelho depois que Lorde Berick deixou de enviar tropas a Eyllwe para acabar com alguma rebelião, e Berick está doido para voltar às graças do rei desde então. De alguma forma, colocou na cabeça dura que nos matar, assim como enviar a cabeça do Mestre Mudo para Adarlan em uma bandeja de prata, resolveria a questão.
Ansel pegou mais uma garfada de carne e continuou.
— Então, de vez em quando, tenta uma ou outra tática: envia víboras em cestas, recruta soldados para fingir serem nossos adorados dignitários estrangeiros — a menina apontou para uma mesa no fim do salão, na qual as pessoas vestiam roupas exóticas —, despacha tropas no meio da noite para atirar flechas em chamas contra nós... Ora, dois dias atrás, flagramos alguns dos soldados dele tentando cavar um túnel sob nossas muralhas. Plano falho desde o início.
Do outro lado da mesa, Mikhail deu um risinho.
— Nada funcionou ainda — disse ele. Ao ouvir o barulho da conversa, uma assassina em uma mesa próxima se virou para levar um dedo aos lábios, calando-os. Mikhail fez um gesto de ombros como se pedisse desculpas. O salão de jantar, ponderou Celaena, devia ser um tipo de lugar em que o silêncio é requerido, mas não obrigatório.
Ansel serviu um copo d’água para Celaena, então um para si e falou mais baixo.
— Imagino que esse seja o problema em atacar uma fortaleza impenetrável cheia de guerreiros habilidosos: é preciso ser mais inteligente que nós. No entanto... Berick é quase brutal o suficiente para compensar essa falha. Os assassinos que caíram nas mãos dele voltaram em pedaços. — A garota sacudiu a cabeça. — Ele gosta de ser cruel.
— E Ansel sabe disso em primeira mão — interrompeu Mikhail, embora sua voz fosse um pouco mais que um murmúrio. — Teve o prazer de conhecê-lo.
Celaena ergueu uma sobrancelha, e Ansel fez uma careta.
— Só porque sou a mais encantadora de vocês. O mestre às vezes me envia para Xandria para encontrar Berick, para tentar negociar algum tipo de acordo entre nós. Ainda bem que ele ainda não ousou violar os termos da trégua, mas... um dia desses, vou pagar pelos serviços de mensageira com a própria pele.
Mikhail revirou os olhos para Celaena.
— Ela gosta de ser dramática.
— Disso eu gosto.
A assassina deu aos dois um sorriso fraco. Alguns minutos se passaram, e Ansel certamente não estava morta, então Celaena mordeu um pedaço de carne, quase gemendo ao sentir a variedade de temperos pungentes e perfumados, e começou a comer. Ansel e Mikhail começaram a tagarelar um com o outro, e a assassina aproveitou a oportunidade para olhar pela mesa.
Além dos mercados de Forte da Fenda e dos navios de escravos de baía da Caveira, jamais vira tal mistura de reinos e continentes diferentes. E, embora a maioria das pessoas ali fosse assassinos treinados, havia um ar de paz e contentamento — de alegria, até. Voltou os olhos para a mesa dos dignitários estrangeiros que Ansel indicara. Homens e mulheres, encurvados sobre a comida, sussurravam uns com os outros e, de vez em quando, observavam os assassinos no salão.
— Ah — falou Ansel, baixinho. — Só estão discutindo para qual de nós querem fazer uma oferta.— Oferta?
Mikhail se inclinou para a frente a fim de ver os embaixadores entre a multidão.
— Eles vêm de países distantes para nos oferecer cargos. Fazem ofertas aos assassinos que mais os impressionam, às vezes para uma missão, outras para um contrato vitalício. Qualquer um de nós tem liberdade para ir se quisermos. Mas nem todos querem partir.
— E vocês dois...?
— Ah, não — disse Ansel. — Meu pai me surraria daqui até o fim do mundo se eu me ligasse a uma corte estrangeira. Diria que é uma forma de prostituição.
Mikhail gargalhou baixo.
— Pessoalmente, gosto daqui. Quando quiser partir, avisarei ao mestre que estou disponível. Mas até então... — Ele olhou para Ansel, e Celaena podia ter jurado que o rosto da garota corou um pouco. — Até então, tenho meus motivos para ficar.
A assassina perguntou:
— De que cortes são os dignitários?
— Nenhuma ao alcance de Adarlan, se é o que está perguntando. — Mikhail coçou a barba por fazer. — Nosso mestre sabe muito bem que tudo desde Eyllwe até Terrasen é território de seu mestre.
— Certamente é. — Celaena não sabia por que tinha dito isso. Considerando o que Arobynn fizera, quase não se sentia defensiva em relação aos assassinos do império de Adarlan. Mas... mas ao ver todos aqueles assassinos reunidos ali, tanto poder e conhecimento coletivo, e ao saber que não ousariam se intrometer no território de Arobynn, no território dela...
Celaena continuou comendo em silêncio conforme Ansel e Mikhail e alguns dos outros ao redor conversavam em voz baixa. Votos de silêncio, explicara Ansel mais cedo, eram feitos durante quanto tempo a pessoa considerasse adequado. Alguns passavam semanas em silêncio; outros, anos. A jovem alegava um dia ter jurado ficar em silêncio por um mês e durara apenas dois dias antes que desistisse. Ela gostava muito de falar. Celaena não tinha dificuldade em acreditar nisso.
Algumas pessoas ao redor faziam mímica. Embora precisassem de algumas tentativas para discernir os gestos vagos, parecia que Ansel e Mikhail podiam interpretar os sinais.
Celaena sentiu a atenção de alguém sobre si e tentou não piscar quando percebeu um bonito jovem de cabelos escuros observando-a alguns assentos adiante. Na verdade, estava mais para roubando olhadelas na direção da assassina, pois os olhos verde-mar do rapaz desviavam para o rosto de Celaena, então de volta aos colegas. Não abriu a boca nenhuma vez, mas fez mímica para os amigos. Outro silencioso.
Os olhos deles se encontraram, e o rosto bronzeado do jovem se abriu em um sorriso, revelando dentes brancos estonteantes. Bem, era certamente desejável — tão desejável quanto Sam, talvez.
Sam... quando passou a pensar nele como desejável? O assassino riria até morrer se algum dia soubesse que Celaena achava isso.
O jovem inclinou levemente a cabeça como um cumprimento, então se voltou para os amigos.
— Aquele é Ilias — sussurrou Ansel, aproximando-se mais do que Celaena gostaria. Não tinha qualquer noção de espaço pessoal? — O filho do mestre.
Aquilo explicava os olhos verde-mar. Embora o mestre tivesse um ar de santidade, não devia ser celibatário.
— Fico surpresa por você ter chamado a atenção de Ilias — provocou a menina, mantendo a voz baixa o suficiente para que apenas Celaena e Mikhail ouvissem. — Ele costuma se concentrar demais no treinamento e em meditação para reparar em alguém, até mesmo garotas bonitas.
A assassina ergueu as sobrancelhas, suprimindo a resposta de que não queria saber de nada disso.
— Eu o conheço há anos e nunca foi outra coisa senão indiferente em relação a mim — continuou Ansel.
— Mas talvez tenha uma queda por loiras. — Mikhail riu com deboche.
— Não estou aqui para nada do tipo — falou Celaena.
— E aposto que tem um rebanho de pretendentes em casa, de qualquer forma.
— Certamente que não.
A boca de Ansel se escancarou.
— Mentira.
Celaena tomou um gole muito, muito longo de água. Era aromatizada com fatias de limão — e inacreditavelmente deliciosa.
— Não, não é.
A jovem lançou um olhar inquisidor para Celaena, então voltou a conversar com Mikhail. A assassina empurrou a comida no prato. Não que não fosse romântica. Tivera quedinhas por alguns homens antes — desde Archer, o jovem cortesão que treinara com eles durante alguns meses quando Celaena tinha 13 anos, a Ben, o agora falecido segundo assassino de Arobynn, quando era jovem demais para realmente entender a impossibilidade de tal coisa.
Celaena ousou olhar mais uma vez para Ilias, que ria silenciosamente de algo que um dos companheiros tinha dito. Era lisonjeiro que o jovem sequer a considerasse digna de pensamento; ela evitara se olhar no espelho no mês seguinte à noite com Arobynn, apenas verificava para confirmar que nada estava quebrado ou fora do lugar.
— Então — falou Mikhail, dissipando o pensamento de Celaena ao apontar para ela com o garfo —, quando seu mestre a surrou até cair, mereceu de verdade?
Ansel lançou um olhar sombrio para o rapaz, e Celaena ficou tensa. Até mesmo Ilias estava ouvindo agora, os lindos olhos fixos no rosto dela. Mas ela encarou Mikhail.
— Imagino que dependa de quem conta a história.
Ansel deu uma risadinha.
— Se Arobynn Hamel a contar, então, sim, imagino que eu tenha merecido. Custei muito dinheiro a ele, o valor de um reino em riquezas, provavelmente. Fui desobediente e desrespeitosa, e não senti qualquer remorso pelo que fiz.
A assassina não deixou de encarar Mikhail, e o sorriso dele hesitou.
— Mas se os duzentos escravos que libertei contassem a história, então, não, imagino que não tenha merecido.
Nenhum dos jovens sorria agora.
— Pelos deuses — sussurrou Ansel. Silêncio verdadeiro recaiu sobre a mesa durante alguns segundos.
Celaena voltou a comer. Não sentia vontade de conversar com eles depois disso.
***
Sob a sombra das tamareiras que separavam o oásis da areia, Celaena encarava a amplidão do deserto que se estendia diante deles.
— Repita isso — disse ela a Ansel. Depois do jantar sussurrado na noite anterior e das passagens da fortaleza absolutamente silenciosas que as levaram até ali, falar normalmente fazia doerem os ouvidos.
Mas a companheira, que vestia calça e túnica branca e calçava botas revestidas com pele de camelo, apenas sorriu e apertou o lenço branco ao redor dos cabelos vermelhos.
— É uma corrida de quase 5 quilômetros até o próximo oásis. — Ansel entregou a Celaena os dois baldes de madeira que levara consigo. — São para você.
A assassina ergueu as sobrancelhas.
— Achei que iria treinar com o mestre.
— Ah, não. Não hoje — falou Ansel, pegando dois baldes para si. — Quando ele disse “treinar”, quis dizer isto. Pode ser capaz de derrubar quatro de nossos homens, mas ainda tem o cheiro do vento do norte. Depois que começar a feder ao deserto Vermelho, então ele se dará o trabalho de treinar você.
— Isso é ridículo. Onde ele está? — Celaena olhou na direção da fortaleza que se erguia atrás das duas.
— Ah, não o encontrará. Não até que se prove digna. Mostre que está disposta a deixar para trás tudo o que sabe e tudo o que foi. Faça com que ele pense que vale o tempo dele. Então o mestre a treinará. Pelo menos foi o que me disseram. — Os olhos cor de mogno reluziam entretidos. — Sabe quantos de nós imploraram e rastejaram para ter apenas uma lição com ele? O mestre escolhe como acha adequado. Certa manhã, pode se aproximar de um acólito. Na seguinte, pode ser alguém como Mikhail. Ainda estou esperando minha vez. Acho que nem mesmo Ilias conhece o método por trás das decisões do pai.
Isso não era mesmo o que Celaena havia planejado.
— Mas preciso que ele escreva uma carta de aprovação para mim. Preciso que me treine. Estou aqui para que ele possa me treinar...
A menina deu de ombros.
— Assim como todos nós. Se eu fosse você, no entanto, sugeriria treinar comigo até que ele decida que você vale a pena. Pelo menos pode entrar no ritmo das coisas. Fazer parecer que se importa mais conosco, e não que está aqui só por essa carta de aprovação. Não que todos não tenhamos nossos próprios planos secretos.
Ansel piscou um olho, e Celaena franziu as sobrancelhas. Entrar em pânico agora não faria bem algum. Precisava de tempo para pensar em um plano de ação lógico. Tentaria falar com o mestre depois. Talvez ele não tivesse entendido no dia anterior. Mas, por enquanto... andaria com Ansel durante o dia. O mestre estava no jantar na noite anterior; se precisasse, poderia encurralá-lo no salão naquela noite.
Quando Celaena não fez mais objeções, Ansel ergueu um balde.
— Então, este balde é para sua jornada de volta do oásis, vai precisar dele. E este aqui — ergueu o outro — é apenas para tornar a viagem um inferno.
— Por quê?
A menina prendeu os baldes no jugo sobre os ombros.
— Porque se conseguir correr 5 quilômetros sobre as dunas do deserto Vermelho, então 5 quilômetros de volta, pode fazer quase tudo.
— Correr? — A garganta de Celaena secou ao pensar nisso. Ao redor, assassinos, em geral crianças, além de alguns outros pouco mais velhos que ela, começaram a correr para as dunas, os baldes se chocando.
— Não me diga que a famosa Celaena Sardothien não consegue correr 5 quilômetros!
— Se está aqui há tantos anos, os 5 quilômetros não são fáceis agora?
Ansel alongou o pescoço como um gato se espreguiçando ao sol.
— É claro que são. Mas a corrida me mantém em forma. Acha que eu simplesmente nasci com estas pernas? — Celaena trincou os dentes quando a garota deu um sorriso malicioso. Jamais conhecera alguém que sorria e piscava um olho tão frequentemente.
Ansel começou uma corrida leve, deixando a sombra das tamareiras acima, chutando uma onda de areia vermelha atrás de si. Ela olhou por cima do ombro.
— Se caminhar, vai levar o dia todo! E então certamente jamais impressionará ninguém! — Ansel puxou o lenço sobre o nariz e a boca, e disparou.
Respirando fundo, mandando Arobynn para o inferno, Celaena prendeu os baldes ao jugo e correu.
Se fossem 5 quilômetros em plano reto, ou até mesmo acima de uma colina gramada, talvez conseguisse. Mas as dunas eram enormes e intransponíveis; Celaena completou míseros 1,5 quilômetro antes de precisar reduzir até uma caminhada, os pulmões quase em combustão. Era bem fácil encontrar o caminho — as dezenas de pegadas das pessoas que corriam à frente mostravam por onde precisava ir.
Ela corria quando podia e caminhava quando não podia, mas o sol ficava cada vez mais alto, em direção ao perigoso cume do meio-dia. Acima de uma colina, para baixo de outra. Um pé diante do seguinte. Lampejos brilhantes salpicavam a visão, e a cabeça latejava.
A areia vermelha reluzia, e Celaena pendurou os braços sobre o jugo. Os lábios ficaram ressecados, rachando em alguns lugares; a língua parecia pesada na boca. Cada passo fazia com que a cabeça latejasse, e o sol ficava mais e mais alto...
Mais uma duna. Apenas mais uma duna. Mas muitas dunas mais depois, ela ainda se arrastava, ainda seguia as escassas pegadas na areia. Será que de alguma forma seguira o grupo errado?
Enquanto pensava nisso, assassinos surgiram no alto da duna diante de Celaena, já correndo de volta para a fortaleza, os baldes pesados de água.
Ela manteve a cabeça erguida conforme passavam, e não os encarou. A maioria não se incomodou em olhar para Celaena, embora alguns tivessem lhe dado um olhar vergonhoso de pena. As roupas das pessoas estavam encharcadas.
A assassina chegou ao topo de uma duna tão íngreme que precisou usar uma das mãos para se impulsionar, e logo quando estava prestes a cair de joelhos no alto da duna, ouviu barulho de água. Um pequeno oásis, basicamente um círculo de árvores e uma piscina gigante alimentada por um córrego reluzente, estava quase 200 metros adiante.
Ela era a Assassina de Adarlan — pelo menos tinha chegado até ali.
Na parte rasa do lago, muitos discípulos jogavam água ou se banhavam ou apenas ficavam sentados, refrescando-se. Ninguém falava... e mal gesticulavam. Outro dos lugares absolutamente silenciosos, então. A jovem viu Ansel com os pés na água, jogando tâmaras na boca. Nenhum dos demais deu qualquer atenção a Celaena. E, pelo menos uma vez, estava feliz por isso. Talvez devesse ter encontrado um modo de desafiar a ordem de Arobynn e ido até lá sob um pseudônimo.
Ansel acenou para que Celaena se aproximasse. Se desse qualquer olhar que indicasse a lentidão da assassina...
Mas a menina apenas estendeu uma tâmara, oferecendo-a.
Celaena, tentando controlar a falta de fôlego, não se incomodou em pegar a tâmara conforme caminhava para dentro da água fresca até estar completamente submersa.
***
Celaena bebeu um balde inteiro antes de sequer estar a meio caminho da fortaleza, e, quando chegou ao complexo de arenito e à gloriosa sombra, havia consumido todo o segundo balde.
No jantar, Ansel não mencionou que a assassina levara muito, muito tempo para voltar. Ela precisou esperar à sombra das palmeiras até o fim daquela tarde para ir embora; e acabou andando o caminho todo de volta. Chegou à fortaleza perto do anoitecer. Um dia todo passado “correndo”.
— Não fique tão triste — sussurrou Ansel, pegando uma garfada daqueles deliciosos grãos temperados. Ela vestia a armadura de novo. — Sabe o que aconteceu em meu primeiro dia aqui?
Alguns dos assassinos sentados à longa mesa deram sorrisos de reconhecimento. A menina engoliu e apoiou os braços à mesa. Até mesmo as manoplas da armadura eram delicadamente entalhadas com o tema de lobo.
— Em minha primeira corrida, desmaiei. No quilômetro três. Completamente inconsciente. Ilias me encontrou no caminho de volta e me carregou até aqui. Nos braços e tudo. — Os olhos de Ilias encontraram os de Celaena, e ele sorriu para ela. — Se não estivesse prestes a morrer, teria suspirado — finalizou Ansel, e os demais sorriram, alguns gargalharam em silêncio.
Celaena corou, subitamente consciente demais da atenção de Ilias, e tomou um gole do copo de água com limão. Conforme a refeição prosseguiu, as bochechas permaneceram vermelhas, pois Ilias continuou voltando o olhar em sua direção.
Ela tentou não ficar muito convencida. Mas então se lembrou de como tinha se saído mal durante o dia — como sequer tivera a chance de treinar — e o orgulho morreu um pouco. Celaena manteve os olhos no mestre, que jantava no centro do salão, oculto, em segurança,entre fileiras de assassinos mortais. Sentava-se em uma mesa de acólitos, cujos olhos estavam tão arregalados que a assassina só podia presumir que a presença do mestre à mesa era uma surpresa inesperada.
Celaena esperou e esperou até que ele se levantasse, e, quando ficou de pé, a jovem tentou ao máximo parecer casual ao se levantar também, dando boa-noite a todos. Quando se virou, reparou que Mikhail pegara a mão de Ansel e a segurava à sombra sob a mesa.
O mestre saía do salão quando Celaena o alcançou. Com todos ainda comendo, os corredores iluminados por tochas estavam vazios. Ela deu um passo ruidoso, sem saber se o mestre gostaria que tentasse fazer silêncio e como, exatamente, se dirigiria a ele.
O homem parou, as roupas brancas farfalhavam atrás do corpo, e ofereceu um leve sorriso a Celaena. De perto, a assassina conseguia ver a semelhança entre o mestre e o filho. Havia uma linha pálida ao redor de um dos dedos — talvez onde um dia estivera um anel de casamento.
Quem era a mãe de Ilias?
É claro que não era a hora de perguntas como aquela. Ansel dissera a Celaena que tentasse impressionar o Mestre Mudo; fazer com que ele pensasse que ela queria estar ali. Talvez o silêncio funcionasse. Mas como comunicar o que precisava ser dito? A assassina deu a ele seu melhor sorriso, embora estivesse com o coração acelerado, e começou a fazer uma série de gestos, a maioria era apenas sua melhor impressão da corrida com o jugo e muitos eram acenos de cabeça, além da testa franzida, o que ela esperava que fosse entendido como “Vim aqui para treinar com você, não com os outros”.
O mestre assentiu, como se já soubesse. Celaena engoliu em seco, o gosto daqueles temperos que usavam na carne ainda na boca. Ela sinalizou entre os dois diversas vezes, dando um passo adiante para indicar que queria trabalhar apenas com o mestre. Poderia ter sido mais agressiva com os gestos, poderia ter deixado que o temperamento e a exaustão realmente tomassem conta, mas... aquela porcaria de carta!
O mestre fez que não com a cabeça.
Celaena trincou os dentes e tentou gesticular entre os dois de novo. Ele sacudiu a cabeça mais uma vez e abaixou as mãos no ar, como se pedisse para ela ficar mais calma, para esperar. Esperar que ele a treinasse.
A assassina repetiu o gesto, erguendo uma sobrancelha, como se dissesse: “Esperar por você?” O mestre assentiu. Que merda de mímica poderia usar para perguntar “Até quando?” Celaena expôs as palmas das mãos, implorando, fazendo o melhor para parecer confusa. Mesmo assim, não conseguia afastar a irritação do rosto. Estaria ali por apenas um mês. Quanto tempo precisaria esperar?
O mestre entendeu muito bem. Ele deu de ombros, um gesto irritantemente casual, e Celaena trincou o maxilar. Então Ansel estava certa — deveria esperar que o homem a chamasse. Ele deu a Celaena aquele sorriso gentil e se virou, voltando a caminhar. A jovem deu um passo em sua direção, para implorar, para gritar, para fazer o que quer que o corpo conseguisse fazer, mas alguém lhe agarrou o braço.
Celaena deu meia-volta, já levando a mão às adagas, porém viu que estava diante dos olhos verde-mar de Ilias.
Ele sacudiu a cabeça, o olhar movendo-se do mestre para Celaena, em seguida para o mestre de novo. A jovem não deveria segui-lo. Então talvez Ilias não tivesse prestado atenção em Celaena por admiração, mas porque não confiava nela. E por que deveria? A reputação da assassina não inspirava exatamente confiança.
Devia tê-la seguido pelo corredor no momento em que a viu indo atrás de seu pai. Se as posições fossem inversas — se ele estivesse visitando Forte da Fenda —, Celaena não teria ousado deixar Ilias sozinho com Arobynn.
— Não tenho planos de feri-lo — disse ela, baixinho. Contudo, o rapaz deu a Celaena um meio-sorriso, as sobrancelhas levantando como se para perguntar se a assassina podia culpá-lo por proteger o pai.
Ilias soltou seu braço devagar. Ele não levava armas na lateral do corpo, mas a assassina tinha a impressão de que o rapaz não precisaria delas. Era alto — até mais que Sam — e tinha ombros largos. Forte, mas não muito. O sorriso de Ilias se abriu um pouco mais conforme estendeu a mão na direção de Celaena. Uma saudação.
— Sim — disse ela, lutando contra o próprio sorriso. — Imagino que não fomos apresentados adequadamente.
Ilias assentiu e levou a outra mão ao coração. Cicatrizes marcavam a mão; eram pequenas e finas, sugerindo anos de treinamento com lâminas.
— Você é Ilias, e eu sou Celaena. — Ela levou a mão ao próprio peito, então tomou a mão estendida do jovem e a apertou. — É um prazer conhecê-lo.
Os olhos de Ilias eram vívidos à luz da tocha, a mão era firme e quente sobre a de Celaena. Ela soltou os dedos do rapaz. O filho do Mestre Mudo e a protegida do rei dos Assassinos. Se alguém ali era de alguma forma semelhante a Celaena, percebeu ela, era Ilias. Forte da Fenda poderia ser o reino dela, mas aquele era o do rapaz. E pelo modo casual com que caminhava, pela forma com que Celaena vira os colegas olhando para Ilias com admiração e respeito, ela percebia que Ilias se sentia completamente em casa ali — como se aquele lugar tivesse sido feito para ele, e o rapaz jamais precisasse questionar sua posição lá dentro. Um tipo estranho de inveja abriu caminho até o coração de Celaena.
Ilias subitamente começou a fazer uma série de gestos com os dedos longos e bronzeados, mas a assassina riu baixinho.
— Não faço ideia do que está tentando dizer.
Ele olhou para cima e suspirou pelo nariz. Estendendo as mãos para o ar fingindo derrota, apenas deu um tapinha no ombro de Celaena antes de seguir o pai, que havia desaparecido no corredor.
Embora Celaena tivesse ido de volta para o quarto — na outra direção —, não acreditou por um minuto que o filho do Mestre Mudo ainda não a estivesse observando, certificando-se de que a assassina não iria atrás de seu pai.
Não que você tenha qualquer coisa com que se preocupar, era o que queria gritar por cima do ombro. Não podia correr 10 míseros quilômetros no deserto.
Conforme voltava para o quarto, Celaena teve uma sensação horrível de que, ali, ser a Assassina de Adarlan podia não valer muito.
Mais tarde naquela noite, quando já estavam na cama, Ansel sussurrou para a escuridão:
— Amanhã será melhor. Talvez apenas mais 30 centímetros que hoje, mas 30 centímetros mais do que você consegue correr.
Era fácil para Ansel dizer. Ela não tinha uma reputação para manter; uma reputação que poderia estar desabando a sua volta. Celaena encarou o teto, subitamente com saudade de casa, desejando, estranhamente, que Sam estivesse ali. Pelo menos se falhasse, falharia com ele.
— Então — disse Celaena, de repente, precisando afastar tudo da mente, principalmente Sam. — Você e Mikhail...
Ansel resmungou.
— É tão óbvio assim? Embora realmente a gente não faça tanto esforço para esconder. Bem, eu tento, mas ele não. Ficou muito irritado quando descobriu do nada que eu ia ter uma colega de quarto.
— Há quanto tempo estão juntos?
Ansel ficou em silêncio por um bom tempo antes de responder.
— Desde que eu tinha 15 anos.
Quinze! Mikhail tinha uns 20 e poucos anos, então mesmo que aquilo tivesse começado há quase três anos, ele ainda seria muito mais velho que Ansel. Isso deixou Celaena um pouco desconfortável.
— As garotas nas Terras Planas se casam cedo, até com 14 anos — explicou a menina.
A assassina engasgou. A ideia de ser a esposa de alguém aos 14 anos, quem dirá ser mãe logo depois...
— Ah. — Foi tudo que conseguiu dizer.
Quando Celaena ficou calada, Ansel caiu no sono. Sem nada para distraí-la, ela, por fim, voltou a pensar em Sam. Mesmo semanas depois, não sabia como, de alguma forma, se apegara a ele, o que o rapaz gritara quando Arobynn a surrou e por que Arobynn achara que precisava de três assassinos experientes para conter Sam naquele dia.
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