Capítulo 4
Yrene levou a jovem para seu quarto sob as escadas, porque estava com medo de que o mercenário que havia escapado estivesse esperando por elas no andar de cima. E a atendente não queria ver mais brigas ou mortes ou sangue, com ou sem o estômago forte. Sem falar que também temia ficar trancada na suíte com a estranha.
Deixou a menina sentada na cama surrada e foi buscar duas tigelas de água e ataduras limpas — suprimentos que seriam tirados do salário dela quando Nolan percebesse que haviam sumido. Não importava. A estranha salvara sua vida. Aquilo era o mínimo que podia fazer. Quando Yrene voltou, quase deixou cair as tigelas fumegantes. A garota havia retirado o capuz, o manto e a túnica.
A atendente não sabia em que reparar primeiro: No fato de que ela era jovem — talvez dois ou três anos mais jovem que Yrene —, mas passava a sensação de ser mais velha.
Ou que a garota era linda, com cabelos dourados e olhos azuis que brilhavam à luz da vela. Ou deveria reparar no rosto da garota, que teria sido ainda mais lindo se não estivesse coberto por um retalho de hematomas. Eram tão horríveis, inclusive um olho roxo que, sem dúvida, tinha inchado até se fechar em algum momento.
A garota a encarava, silenciosa e imóvel como um gato.
Não cabia a Yrene fazer perguntas. Principalmente não quando aquela garota despachara três mercenários em questão de minutos. Mesmo que os deuses a tivessem abandonado, a atendente ainda acreditava neles; ainda estavam em algum lugar, ainda observavam. Acreditava, porque de que outro modo poderia explicar ser salva naquele momento? E a ideia de estar sozinha — sozinha de verdade — era quase demais para suportar, mesmo quando a maior parte de sua vida havia desaparecido.
A água subiu nas tigelas quando Yrene as apoiou na minúscula mesa ao lado da cama, tentando evitar que as mãos tremessem demais. A garota não disse nada enquanto Yrene inspecionava o corte no bíceps. O braço era esguio, mas duro devido aos músculos. Ela possuía cicatrizes em toda parte — pequenas, grandes. Não deu explicação para as marcas e pareceu, para Yrene, que a jovem exibia as cicatrizes do mesmo modo que algumas mulheres exibem as melhores joias.
A estranha não devia ter mais de 17 anos, mas... Mas Adarlan fazia todos crescerem rápido. Rápido demais.
Yrene começou a lavar o ferimento, e a garota chiou baixinho.
— Desculpe — falou a moça, rapidamente. — Coloquei algumas ervas ali dentro como antisséptico. Deveria ter avisado.
Guardava um punhado delas consigo o tempo todo, junto a outras ervas cujo uso sua mãe havia ensinado. Apenas para o caso de precisar. Mesmo agora, não conseguia dar as costas a um pedinte doente na rua e costumava caminhar na direção do barulho de tosse.
— Acredite, já passei por coisas piores.
— Sim — respondeu Yrene. — Acredito em você, quero dizer. — Aquelas cicatrizes e o rosto marcado diziam muito. E explicavam o capuz. Mas seria vaidade ou autopreservação que a faziam usá-lo? — Qual é seu nome?
— Não é de sua conta e não importa.
Yrene mordeu a língua. É claro que não era da conta dela. A garota não dera um nome a Nolan também. Então estava viajando por algum negócio secreto.
— Meu nome é Yrene — disse ela. — Yrene Towers.
Um aceno de cabeça distante. É claro que a jovem também não se importava. Então a estranha falou:
— O que a filha de uma curandeira está fazendo nesta cidade de merda?
Nenhuma gentileza, nenhuma pena. Simplesmente uma curiosidade direta ou quase entediada.
— Estava a caminho de Antica para ingressar na academia de curandeiros e fiquei sem dinheiro. — Yrene mergulhou o retalho na água, espremeu e voltou a limpar o ferimento superficial. — Consegui trabalho aqui para pagar a passagem pelo oceano e... bem, jamais saí. Acho que ficar aqui se tornou... mais fácil. Mais simples.
Um riso de escárnio.
— Neste lugar? É certamente simples, mas fácil? Acho que preferiria passar fome nas ruas de Antica a viver aqui.
O rosto da atendente ficou vermelho.
— É... eu... — Não tinha desculpa.
Os olhos da garota se voltaram para os dela. Tinham um aro dourado — deslumbrantes. Mesmo com os hematomas, a garota era encantadora. Como um incêndio descontrolado ou uma tempestade de verão que varre o golfo de Oro.
— Vou lhe dar um conselho — falou a jovem, com amargura —, de uma trabalhadora para outra: a vida não é fácil, não importa onde esteja. Fará escolhas que achará serem certas, depois sofrerá por causa delas. — Aqueles olhos incríveis brilharam. — Então, se é para ser infeliz, pode muito bem fazer isso em Antica e ser infeliz à sombra de Torre Cesme.
Educada e possivelmente muito viajada, a garota conhecia a academia de curandeiros pelo nome — e o pronunciou perfeitamente.
Yrene deu de ombros, sem ousar proferir as dezenas de perguntas. Em vez disso, disse:
— Não tenho dinheiro para ir agora, de qualquer modo.
Aquilo saiu em tom mais afiado que pretendia. Mais afiado que seria inteligente, considerando o quanto aquela jovem era letal. Yrene não tentou adivinhar que tipo de trabalhadora seria; mercenária era o mais obscuro que se permitia imaginar.
— Então roube o dinheiro e vá. Seu chefe merece ter a bolsa esvaziada.
Yrene recuou.
— Não sou ladra.
Um sorriso malicioso.
— Se quer algo, tome.
A garota não era como um incêndio descontrolado — ela era um incêndio descontrolado. Mortal e irrefreável. E levemente insana.
— Pessoas suficientes acreditam nisso hoje — arriscou-se Yrene a dizer. Como Adarlan. Como aqueles mercenários. — Não preciso ser uma delas.
O sorriso da garota sumiu.
— Então prefere apodrecer aqui com a consciência limpa?
A moça não tinha uma resposta, então não disse nada ao apoiar o retalho e a tigela para pegar uma pequena lata de sálvia. Yrene a guardava para si, para os cortes e arranhões que obtinha trabalhando, mas aquela ferida era pequena o suficiente para que emprestasse um pouco. O mais cuidadosamente possível, ela o esfregou no ferimento. A garota não se encolheu daquela vez.
Depois de um momento, a menina perguntou:
— Quando perdeu sua mãe?
— Faz mais de oito anos. — Yrene manteve a concentração no ferimento. — Era uma época difícil para ser uma curandeira talentosa neste continente, principalmente em Charco Lavrado. O rei de Adarlan não deixou muito do povo de lá, nem da família real, vivos.
Yrene ergueu o rosto. O incêndio descontrolado nos olhos tornara-se uma chama azul incandescente. Tanto ódio, pensou ela, estremecendo. Tanto ódio fervilhante. O que teria vivido para dar-lhe aquela aparência?
A criada não perguntou, é lógico. E não perguntou como a jovem sabia de onde era. Yrene entendia que a pele dourada e os cabelos castanhos deviam ser suficientes para identificá-la como de Charco Lavrado, caso o leve sotaque não a denunciasse.
— Se conseguisse estudar em Torre Cesme — falou a menina, o ódio mudando, como se o tivesse enfiado bem para dentro de si —, o que faria depois?
Yrene pegou uma das ataduras limpas e começou a enrolá-la no braço da garota. Tinha sonhado com aquilo durante anos, contemplado mil futuros diferentes enquanto lavava canecas sujas e varria o chão.
— Eu voltaria. Não para cá, quero dizer, mas para o continente. Voltaria para Charco Lavrado. Há... muita gente que precisa de bons curandeiros hoje em dia.
Disse essa última parte baixinho. Até onde sabia, a garota poderia ser a favor do rei de Adarlan — poderia denunciá-la para a guarda da cidadela por simplesmente falar mal do rei. Yrene tinha visto isso acontecer antes, muitas vezes.
Mas a menina olhou na direção da porta com a tranca improvisada que Yrene montara, para o armário que a criada chamava de quarto, para o manto em frangalhos pendurado sobre a cadeira quase podre na parede oposta, então, por fim, olhou de volta para Yrene. Aquilo deu à atendente a chance de observar o rosto da jovem. Depois de ter visto a facilidade com a qual derrotara aqueles mercenários, quem quer que a tivesse ferido devia ser muito assustador mesmo.
— Realmente voltaria para este continente... para o império?
Havia uma surpresa tão silenciosa naquela voz que Yrene a encarou.
— É a coisa certa a fazer. — Foi tudo em que a moça conseguiu pensar como resposta.
A garota não replicou, e Yrene continuou enfaixando o braço. Quando terminou, a jovem vestiu a camisa e a túnica, testou o braço, então ficou de pé. No quarto entulhado, Yrene se sentia tão menor que a estranha, embora houvesse apenas alguns centímetros de diferença entre as duas.
A garota pegou o manto, mas não o vestiu ao dar um passo na direção da porta fechada.
— Eu poderia encontrar algo para seu rosto — disparou Yrene.
A garota parou com a mão na maçaneta e olhou por cima do ombro.
— Isso deve servir como um lembrete.
— De quê? Ou... para quem? — Não deveria se intrometer, não deveria sequer ter perguntado.
A estranha deu um sorriso amargo.
— Para mim.
Yrene pensou nas cicatrizes que tinha visto no corpo da assassina e imaginou se aquelas seriam também lembretes.
A jovem se voltou para a porta, mas parou de novo.
— Caso fique ou vá para Antica estudar em Torre Cesme para voltar e salvar o mundo — ponderou a estranha —, deveria aprender uma ou duas coisas sobre autodefesa.
Yrene olhou para as adagas na cintura da garota e para a espada que nem mesmo precisara sacar. Joias cravadas no cabo — joias de verdade — reluziam à luz da vela. A estranha deveria ser incrivelmente rica, mais do que Yrene poderia imaginar ser um dia.
— Não tenho dinheiro para armas.
A menina bufou uma gargalhada.
— Se aprender essas manobras, não precisará de armas.
***
Celaena levou a atendente do bar para o beco, apenas porque não queria arriscar acordar os outros hóspedes da estalagem e se meter em mais uma briga. Não sabia por que havia oferecido ensinar a jovem a se defender. Da última vez que ajudara alguém, a coisa simplesmente se voltara contra ela para lhe dar uma surra. Literalmente.
Mas a atendente do bar — Yrene — parecera tão sincera quando falara de ajudar os outros. De ser uma curandeira.
A Torre Cesme... qualquer curandeiro que se prezasse conhecia a academia em Antica, na qual os melhores e mais inteligentes, independentemente da classe, poderiam estudar. A própria Celaena um dia sonhara em morar nas fabulosas torres cor de creme da academia, em caminhar pelas ruas estreitas e íngremes de Antica e ver maravilhas trazidas de terras das quais nunca ouvira falar. Mas isso fora em outra vida. Em uma pessoa diferente.
Não agora, certamente. E, se Yrene ficasse naquela cidade esquecida, outras pessoas tentariam atacá-la de novo. Então, ali estava Celaena, amaldiçoando a própria consciência tola ao chegar com a atendente ao beco nevoento atrás da estalagem.
Os corpos dos três mercenários ainda estavam lá fora, e a assassina viu Yrene se encolher ao ouvir os pés ágeis e os guinchos baixinhos. Os ratos não haviam desperdiçado tempo.
Celaena pegou o punho da jovem e ergueu a mão.
— As pessoas, em geral os homens, não vão atrás das mulheres que parecem que vão revidar. Escolherão você porque parece distraída ou vulnerável ou compassiva. Normalmente, tentarão levá-la para outro lugar, algum local no qual não precisem se preocupar com interrupções.
Os olhos de Yrene estavam arregalados; o rosto, pálido à luz da tocha que Celaena colocara no chão do lado de fora da porta dos fundos. Indefesa. Como seria estar completamente indefesa? Um estremecimento que não tinha nada a ver com ratos mordiscando os mercenários mortos lhe percorreu o corpo.
— Não deixe que a levem para outro lugar — continuou Celaena, recitando as lições que Ben, o segundo assassino de Arobynn, um dia ensinara a ela. Aprendera autodefesa antes de sequer aprender a atacar alguém e a lutar sem armas também. — Revide o suficiente para convencê-los de que não vale a pena. E faça o máximo de barulho possível. Contudo, em uma pocilga como esta, aposto que ninguém vai se incomodar em vir ajudar. Mas você deveria, definitivamente, começar a gritar incêndio até estourar os pulmões; nada de estupro, roubo, nada do que os covardes prefeririam se esconder. E caso gritar não os desencoraje, então há alguns truques para derrotá-los.
“Alguns podem fazer com que eles caiam como uma pedra, outros podem derrubá-los temporariamente, mas assim que a soltarem, sua maior prioridade é dar o fora. Entendeu? Quando a soltarem, você corre.”
Yrene assentiu, ainda de olhos arregalados. Permaneceu assim quando Celaena pegou a mão que havia erguido e demonstrou o arranca-olho, ensinando como enfiar os polegares pelos cantos dos olhos de alguém, passar os dedos por trás da órbita ocular e... bem, não podia terminar a demonstração de fato, pois gostava muito das próprias órbitas oculares. Mas a atendente pegou o jeito depois de algumas vezes e o executou perfeitamente quando Celaena a agarrou por trás diversas vezes.
Depois ela mostrou como acertar as duas orelhas num golpe para desorientar o oponente, como beliscar a parte de dentro da coxa de um homem com força o bastante para fazê-lo gritar, onde pisar na parte mais delicada do pé, que pontos macios eram os melhores para acertar o cotovelo (Yrene, na verdade, golpeou Celaena com tanta força no pescoço que a assassina arquejou por um bom minuto). E então disse a Yrene para mirar na virilha — para sempre tentar acertar um golpe na virilha.
Quando a lua começava a descer, quando Celaena estava convencida de que Yrene poderia ter uma chance contra um agressor, finalmente pararam. A atendente parecia mais confiante, o rosto vermelho.
— Se vierem atrás de você por dinheiro — disse Celaena, indicando o queixo na direção dos mercenários caídos em uma pilha —, jogue as moedas que tiver bem longe e corra na direção oposta. Costumam ficar tão ocupados catando o dinheiro que terá uma boa chance de escapar.
Yrene assentiu.
— Eu deveria... eu deveria ensinar isso tudo a Jessa.
A assassina não sabia nem se importava quem era Jessa, mas falou:
— Se tiver chance, ensine a qualquer mulher que se interesse em ouvir.
Silêncio recaiu entre as duas. Havia tanto mais a aprender, tanto mais a ensinar a ela. Mas o alvorecer viria em cerca de duas horas e Celaena deveria voltar para o quarto, mesmo que só para fazer as malas e partir. Partir, não porque fora ordenada ou porque achava sua punição aceitável, mas... porque precisava. Precisava ir ao deserto Vermelho.
Ainda que fosse apenas para ver aonde Wyrd havia planejado levá-la. Ficar, fugir para outra terra, evitar o destino... não faria isso. Não podia ser como Yrene, um lembrete vivo de sonhos perdidos e esquecidos. Não, continuaria para o deserto Vermelho e seguiria aquele caminho, não importando aonde a levaria ou o quanto ferisse seu orgulho.
Yrene pigarreou.
— Você... algum dia precisou usar essas manobras? Não quero me intrometer. Quero dizer, não precisa responder se...
— Usei, sim, mas não porque estava naquele tipo de situação. Eu... — Celaena sabia que não deveria, mas falou: — Em geral sou eu a caçadora.
Yrene, para sua surpresa, apenas assentiu, ainda que um pouco triste. Havia tanta ironia, percebeu ela, nas duas trabalhando juntas — a assassina e a curandeira. Lados opostos da mesma moeda.
A atendente envolveu o próprio corpo com os braços.
— Como posso pagá-la por...?
Mas Celaena ergueu a mão. O beco estava vazio, mas conseguia senti-los, conseguia ouvir a mudança na névoa, na pressa dos ratos. Bolsões de silêncio. Encarou Yrene, voltando os olhos para a porta dos fundos. Um comando silencioso. A moça ficou pálida e rígida. Uma coisa era praticar, mas colocar as lições em ação, usá-las... a atendente do bar seria mais que um risco. Celaena indicou a porta com o queixo, uma ordem agora.
Havia pelo menos cinco homens — dois em cada ponta do beco convergindo para elas, e mais um montando guarda na ponta mais movimentada da rua.
Yrene passava pela porta dos fundos quando Celaena sacou a espada.
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