Capítulo 9

Ela dormiu até meio-dia, tomou os dois banhos que havia prometido a si mesma e então foi até o escritório de Arobynn. Ele tomava uma xícara de chá quando Celaena abriu a porta.
— Fico surpreso por vê-la fora da banheira — falou o mentor.
Contar a Sam a história sobre o mês no deserto a tinha lembrado de por que quisera tanto voltar para casa naquele verão e do que realizara. Não tinha motivo para ser tão cautelosa perto de Arobynn — não depois do que ele havia feito e do que ela havia passado. Portanto, Celaena apenas sorriu para o rei dos Assassinos ao segurar aberta a porta para os criados. Eles entraram com um baú pesado. Então outro. Depois outro.
— Devo perguntar? — Arobynn massageou as têmporas.
Os criados saíram às pressas, e Celaena fechou a porta. Sem dizer uma palavra, abriu as tampas dos baús. Ouro brilhou ao sol do meio-dia.
Voltou-se para Arobynn, agarrando-se à memória de como se sentira ao se sentar no telhado depois da festa. O rosto do mestre estava indecifrável.
— Acho que isso cobre minha dívida — falou ela, obrigando-se a sorrir. — E mais um pouco.
Arobynn permaneceu sentado.
Ela engoliu em seco, sentindo-se subitamente enjoada. Por que tinha achado que aquilo era uma boa ideia?
— Quero continuar trabalhando com você — prosseguiu Celaena, com cuidado. Ele havia olhado para ela daquela forma antes, na noite em que a espancou. — Mas não é mais meu dono.
Os olhos prateados se voltaram para os baús, então para a jovem. Em um momento de silêncio que durou para sempre, ela permaneceu imóvel enquanto o rei dos Assassinos a avaliou. Depois ele sorriu, com alguma tristeza.
— Pode me culpar por querer que este dia jamais chegasse?
Celaena quase desabou de alívio.
— Estou falando sério: quero continuar trabalhando com você.
Percebeu naquele momento que não poderia contar a Arobynn sobre o apartamento e que se mudaria... não imediatamente. Pequenos passos. Naquele dia, a dívida. Talvez em algumas semanas, pudesse mencionar que ia embora. Talvez o mentor nem mesmo se importasse por ela ter uma casa própria.
— E eu sempre ficarei feliz em trabalhar com você — disse Arobynn, mas continuou sentado. Ele tomou um gole de chá. — Quero saber de onde veio esse dinheiro.
Celaena se tornou ciente da cicatriz no pescoço quando falou:
— O Mestre Mudo. Pagamento por salvar a vida dele.
O mestre pegou o jornal da manhã.
— Bem, permita-me dar-lhe os parabéns. — Olhou para ela por cima do jornal. — Agora é uma mulher livre.
Celaena tentou não sorrir. Talvez não fosse livre no sentido amplo da palavra, mas pelo menos ele não poderia mais usar a dívida contra ela. Aquilo bastaria, por enquanto.
— Boa sorte com Doneval amanhã à noite — acrescentou Arobynn. — Avise se precisar de alguma ajuda.
— Contanto que não me cobre por isso.
Sem sorrir de volta, ele apoiou o jornal.
— Jamais faria isso. — Algo como mágoa percorreu seus olhos.
Lutando contra a vontade súbita de pedir desculpas, Celaena saiu do escritório sem dar outra palavra.
A caminhada de volta para o quarto foi longa. A assassina esperava cantar de alegria quando desse o dinheiro a ele, esperava saltitar pela Fortaleza. No entanto, ver o modo como Arobynn a olhou fez todo aquele ouro parecer... barato.
Um glorioso começo para o novo futuro.

***

Embora Celaena jamais quisesse colocar os pés no esgoto da cidade de novo, se viu de volta ao lugar naquela tarde. Ainda havia um rio fluindo pelo túnel, mas a passagem estreita que o ladeava estava seca, mesmo com a tempestade que caía na rua acima deles.
Uma hora antes, Sam aparecera no quarto de Celaena, vestido e pronto para espionar a casa de Doneval. Agora se esgueirava atrás dela, sem dizer nada conforme se aproximavam da porta de ferro da qual a jovem se lembrava bem demais. Ela apoiou a tocha ao lado da porta e passou as mãos pela superfície gasta e enferrujada.
— Precisaremos entrar por aqui amanhã — disse ela, a voz quase inaudível por cima do gorgolejo do rio de esgoto. — A frente da casa está muito bem vigiada. Sam passou um dedo pela fenda entre a porta e o batente.
— Se não encontrarmos um modo de arrastar um aríete até aqui, acho que não vamos conseguir passar.
Celaena lançou um olhar sombrio ao colega.
— Poderia tentar bater.
Ele deu uma gargalhada sussurrada.
— Tenho certeza de que os guardas vão agradecer por isso. Talvez me convidem para tomar uma cerveja também. Quero dizer, depois que terminarem de encher minha barriga de flechas. — O rapaz deu tapas no abdômen firme. Sam vestia o traje que Arobynn o obrigara a comprar, e Celaena tentava não olhar muito para como a roupa exibia bem sua forma física.
— Então não podemos atravessar essa porta — murmurou Celaena, passando a mão pela porta de novo. — A não ser que descubramos quando os criados jogam o lixo fora.
— Não é confiável — replicou Sam, ainda avaliando a porta. — Podem esvaziar as lixeiras quando tiverem vontade.
Ela xingou e olhou pelo esgoto. Que lugar horrível para quase ter morrido. Celaena certamente esperava que esbarrasse em Philip no dia seguinte. Aquele babaca arrogante nem veria o golpe até que ela estivesse bem diante dele. O homem nem mesmo a reconhecera da festa na outra noite.
Celaena sorriu devagar. Que melhor maneira de se vingar de Philip senão invadir pela mesmíssima porta que ele revelou?
— Então um de nós vai precisar ficar aqui por algumas horas — sussurrou a assassina, ainda encarando a porta. — Com a elevação do lado de fora da porta, os criados precisam dar alguns passos para alcançar a água. — O sorriso aumentou. — E tenho certeza de que se estiverem carregando um monte de lixo, provavelmente não vão pensar em olhar para trás.
Os dentes de Sam refletiram a luz da tocha quando ele sorriu.
— E ficarão ocupados por tempo o suficiente para que alguém entre de fininho e encontre um bom lugar para se esconder no porão e esperar o restante do tempo até 19h30.
— Que surpresa terão amanhã ao encontrarem a porta do porão aberta.
— Acho que essa será a menor das surpresas amanhã.
Celaena pegou a tocha.
— Com certeza será. — Sam a seguiu de volta pela passagem do esgoto. Os dois acharam uma tampa de bueiro em um beco obscuro, longe o bastante da casa para que ninguém suspeitasse.
Infelizmente, isso significava uma longa caminhada de volta pelos esgotos.
— Soube que pagou Arobynn esta manhã — falou o rapaz, com os olhos nas pedras escuras sob os pés. Ele ainda mantinha a voz baixa. — Qual é a sensação de estar livre?
A jovem olhou de esguelha para o colega.
— Não é como imaginei.
— Fico surpreso por ele ter aceitado o dinheiro sem discussão.
Celaena não disse nada. À luz fraca, Sam inspirou entrecortado.
— Acho que talvez eu vá embora — sussurrou ele.
A assassina quase tropeçou.
— Embora?
Ele não a olhava.
— Vou para Eyllwe, até Banjali, para ser exato.
— Em uma missão? — Era comum que Arobynn os enviasse por todo o continente, mas o modo como Sam falava parecia... diferente.
— Para sempre — respondeu ele.
— Por quê? — A voz de Celaena pareceu um pouco esganiçada aos próprios ouvidos.
Sam a encarou.
— O que tenho que me mantenha aqui? Arobynn já mencionou que pode ser útil nos estabelecermos no sul também.
— Arobynn... — A jovem fervilhou de ódio, lutando para manter a voz sussurrada. — Conversou com ele a respeito disso?
Sam fez um movimento interrompido com os ombros.
— Casualmente. Não é oficial.
— Mas... mas Banjali fica a milhares de quilômetros de distância.
— Sim, mas Forte da Fenda pertence a você e Arobynn. Sempre serei... uma alternativa.
— Eu preferiria ser uma alternativa em Forte da Fenda a ser chefe dos assassinos de Banjali. — Celaena odiava precisar manter a voz tão baixa. Queria atirar alguém contra a parede. Queria
demolir o esgoto com as próprias mãos.
— Vou partir no fim do mês — disse Sam, ainda calmo.
— Isso é em duas semanas!
— Tenho algum motivo para ficar?
— Sim! — exclamou a assassina, o mais alto possível, embora mantivesse o tom sussurrado. — Tem sim. — Ele não respondeu. — Não pode ir.
— Dê um motivo.
— Porque qual seria o objetivo de qualquer coisa se você simplesmente desaparecesse para sempre? — ciciou a jovem, abrindo os braços.
— O objetivo de quê, Celaena?
Como Sam podia estar tão calmo quando ela estava tão agitada?
— O objetivo de baía da Caveira, e o objetivo de me dar aquela partitura, e o objetivo de... o objetivo de contar a Arobynn que o perdoaria se jamais me ferisse de novo.
— Você disse que não se importava com o que eu pensava. Ou com o que eu fizesse. Ou se eu morresse, se não estou enganado.
— Menti! E sabe que menti, seu canalha idiota!
Sam riu baixinho.
— Quer saber como passei este verão? — Celaena ficou imóvel. Ele passou a mão pelos cabelos castanhos. — Passei cada dia lutando contra o impulso de cortar o pescoço de Arobynn. E ele sabia que eu o queria morto.
Vou matar você!, gritara Sam para Arobynn.
— Assim que acordei depois de ser espancado, percebi que precisava ir embora. Porque eu o mataria se não fosse. Mas não podia. — O rapaz avaliou o rosto de Celaena. — Não até que você voltasse. Não até que eu soubesse que estava bem, até que visse que você estava a salvo.
Respirar tornou-se muito, muito difícil.
— Ele também sabia — continuou Sam. — Então decidiu explorar isso. Não me recomendou para as missões. Em vez disso, me obrigou a ajudar Lysandra e Clarisse. Me obrigou a acompanhá-las pela cidade em piqueniques e festas. Isso se tornou um jogo entre nós: quanto dessa porcaria eu suportaria antes de perder a cabeça. Mas nós dois sabíamos que Arobynn sempre teria vantagem. Sempre teria você. Mesmo assim, passei cada dia do verão esperando que voltasse inteira. Mais que isso, esperava que voltasse para se vingar do que ele tinha feito a você.
Contudo, Celaena não tinha se vingado. Voltara e permitiu que o mentor a enchesse de presentes.
— E agora que está bem, Celaena, agora que pagou sua dívida, não posso ficar em Forte da Fenda. Não depois de tudo que ele fez conosco.
Ela sabia que era egoísta e horrível, mas sussurrou:
— Por favor, não vá.
Sam deu um suspiro irregular.
— Vai ficar bem sem mim. Sempre ficou.
Talvez em outra época, mas não agora.
— Como posso convencer você a ficar?
— Não pode.
Celaena jogou a tocha no chão.
— Quer que eu implore, é isso?
— Não, nunca.
— Então diga...
— O que mais posso dizer? — Sam se transtornou, o sussurro ficou áspero e ríspido. — Já contei tudo, já contei que, se ficar aqui, se tiver que morar com Arobynn, vou quebrar a porcaria do pescoço dele.
— Mas por quê? Por que não pode esquecer isso?
O rapaz a agarrou pelos ombros e a sacudiu.
— Porque amo você!
A boca de Celaena se escancarou.
— Amo você — repetiu Sam, sacudindo-a de novo. — Há anos. E ele machucou você e me fez assistir porque sempre soube o que eu sentia também. Mas se eu pedisse a você que escolhesse, escolheria Arobynn. E. Não. Posso. Suportar.
Os únicos ruídos eram da respiração dos dois, um ritmo irregular contra o fluxo do esgoto.
— É um grande idiota — sussurrou Celaena, segurando a frente do manto dele. — É um imbecil e um babaca e um grande idiota. — Pela expressão de Sam, parecia que fora golpeado. Mas ela continuou, segurando os lados do rosto dele. — Porque eu escolheria você.
E então Celaena o beijou.

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