Capítulo 9

Celaena acordou em uma cama que um dia fora sua, mas de alguma forma não parecia mais ser. Havia algo faltando no mundo, algo vital. Ela despertou das profundezas da sonolência e precisou de um longo momento para entender o que havia mudado.
Poderia ter achado que estava acordando na sua cama na Fortaleza, ainda era a protegida de Arobynn, ainda era rival de Sam, ainda era feliz por ser a Assassina de Adarlan para todo o sempre.
Poderia ter acreditado nisso se não tivesse notado que tantos de seus amados pertences haviam sumido daquele quarto familiar — pertences que agora estavam em seu apartamento do outro lado da cidade.
Sam tinha partido.
A realidade se escancarou e a engoliu inteira.
Celaena não se moveu na cama

***

Sabia que o dia estava passando por causa da luz que mudava na parede do quarto. Sabia que o mundo ainda girava, inalterado pela morte de um rapaz, ignorante ao fato de que ele sequer existira e respirara e a amara. Celaena odiou o mundo por continuar. Se nunca mais saísse daquela cama, daquele quarto, talvez nunca mais precisasse continuar.
A memória do rosto de Sam já ficava embaçada. Será que os olhos eram mais para marrom-dourado ou marrom-terra? Ela não conseguia se lembrar. E jamais teria a chance de descobrir.
Nunca mais veria aquele meio-sorriso. Nunca mais ouviria a risada dele, nunca mais poderia ouvi-lo dizer o nome dela como se significasse algo especial, algo que o título de Assassina de Adarlan jamais poderia significar.
Celaena não queria sair para um mundo no qual Sam não existia. Assim, observou a luz se mover e se transformar, e deixou o mundo continuar sem ela.

***

Alguém falava do lado de fora da porta. Três homens com vozes baixas. O burburinho a acordou, e Celaena viu que o quarto estava escuro, as luzes da cidade brilhavam além das janelas.
— Jayne e Farran esperarão uma retaliação — disse um homem. Harding, um dos assassinos mais talentosos de Arobynn, e um concorrente fervoroso de Celaena.
— Os guardas deles estarão alerta — falou outro, Tern, um assassino mais velho.
— Então vamos matar os guardas e, enquanto estiverem distraídos, alguns de nós vão atrás de Jayne e Farran. — Arobynn. Celaena tinha uma lembrança vaga de ter sido carregada, horas ou anos ou uma vida atrás, daquele quarto escuro que cheirava a morte até a cama.
Respostas abafadas de Tern e Harding, depois...
— Atacamos esta noite — grunhiu o rei dos Assassinos. — Farran mora na casa, e, se cronometrarmos direito, mataremos os dois enquanto estiverem dormindo.
— Chegar ao segundo andar não é tão simples quanto subir as escadas — desafiou Harding. — Mesmo os exteriores são vigiados. Se não conseguirmos passar pela frente, há uma pequena janela no segundo andar que podemos pular usando o telhado da casa ao lado.
— Um salto como esse pode ser fatal — replicou Tern.
— Basta — interrompeu Arobynn. — Decidirei como invadir quando chegarmos. Mande os outros se prepararem para partir em três horas. Quero que estejamos a caminho à meia-noite. E ordene que mantenham as bocas fechadas. Alguém deve ter informado Farran se ele sabia que devia montar uma armadilha para Sam. Nem mesmo contem a seus criados aonde vão.
Concordância relutante, em seguida passos quando Tern e Harding saíram.
Celaena manteve os olhos fechados e a respiração constante quando a fechadura virou na porta do quarto. Ela reconheceu as passadas regulares e confiantes do rei dos Assassinos se aproximando. Sentiu o cheiro de Arobynn ao ficar de pé ao lado dela, observando. Sentiu os longos dedos ao lhe acariciarem os cabelos e a bochecha.
Então os passos saíram, a porta se fechou... e foi trancada. A jovem abriu os olhos, o brilho da cidade oferecia luz o suficiente para que visse que a fechadura na porta tinha sido trocada desde que partira; agora trancava apenas pelo lado de fora. Arobynn a havia trancado do lado de dentro.
Para evitar que Celaena fosse com eles? Para evitar que ajudasse a se vingar de Farran por cada centímetro de pele que ele havia torturado, cada fração de dor que Sam havia sofrido?
Farran era um mestre da tortura e tinha passado a noite inteira com Sam.
Ela se sentou, a cabeça girando. Não conseguia se lembrar da última vez que comera. Comida podia esperar. Tudo podia esperar.
Porque em três horas, Arobynn e os assassinos se aventurariam para revidar. Eles a privariam do direito de se vingar — da satisfação de massacrar Farran e Jayne e qualquer um que ficasse no caminho. E Celaena não tinha intenção de permitir que o fizessem.
A assassina saiu batendo os pés até a porta e confirmou que estava trancada. Arobynn a conhecia bem demais. Sabia que quando o cobertor do luto fosse arrancado... Mesmo se conseguisse arrombar a fechadura, não tinha dúvida de que haveria pelo menos um assassino vigiando o corredor do lado de fora. O que lhe deixava a janela.
A própria janela estava destrancada, mas a queda de dois andares era formidável. Enquanto dormia, alguém trocara seu traje por uma camisola. Celaena vasculhou o armário em busca da roupa — as botas tinham sido projetadas para escalar —, mas tudo o que encontrou foram duas túnicas pretas, calças combinando e botas pretas comuns.
Não havia armas à vista, e Celaena não levara nenhuma consigo. No entanto, anos morando naquele quarto tinham sua vantagem. A jovem manteve os movimentos silenciosos ao puxar as tábuas soltas sob as quais, há muito tempo, escondera um conjunto de quatro adagas. Ela embainhou duas na cintura e enfiou as outras duas nas botas. Então encontrou as espadas gêmeas que mantinha disfarçadas como parte da estrutura da cama desde que tinha 14 anos. Nem as adagas nem a espada tinham sido boas o bastante para que as levasse consigo ao se mudar. Agora serviriam.
Quando terminou de prender as lâminas às costas, ela trançou os cabelos de novo e colocou o manto, jogando o capuz sobre a cabeça.
Celaena mataria Jayne primeiro. Depois arrastaria Farran para um lugar no qual pudesse revidar adequadamente e levar o tempo que quisesse. Dias, até. Quando essa dívida estivesse paga, quando Farran não tivesse mais agonia ou sangue para oferecer, a assassina colocaria Sam nos braços da terra e o mandaria para o além-mundo sabendo que fora vingado.
Ela abriu a janela com cuidado, avaliando o pátio da frente. As pedras escorregadias com orvalho reluziam à luz do poste, e as sentinelas ao portão de ferro pareciam concentradas na rua abaixo.
Bom.
Aquela morte era dela, a vingança era de Celaena. De mais ninguém.
Um fogo negro se acendeu no estômago, espalhando-se pelas veias conforme a assassina saltou para o parapeito da janela e passou para fora.
Os dedos encontraram apoio nas grandes pedras brancas, e, com um olho nos guardas no portão distante, Celaena desceu pela lateral da casa. Ninguém reparou nela, ninguém olhou em sua direção. A Fortaleza estava silenciosa, a calma antes da tempestade que cairia quando Arobynn e os assassinos começassem a caçada.
A queda da jovem foi suave, não mais que um sussurro de botas contra paralelepípedos escorregadios. Os guardas estavam tão concentrados na rua que não reparariam quando ela saltasse pela cerca perto dos estábulos nos fundos.
Esgueirar-se pelo exterior da casa foi tão simples quanto sair do quarto, e Celaena estava dentro das sombras dos estábulos no momento em que a mão de alguém se esticou, segurando-a.
Ela foi jogada para o lado e já havia sacado uma adaga quando o barulho da batida de seu corpo na construção de madeira parou de ecoar.
O rosto de Wesley, cheio de ódio, a encarava no escuro.
— Que merda pensa que vai fazer? — sussurrou ele, sem soltar a mão do ombro de Celaena, nem mesmo enquanto ela segurava a adaga contra a lateral do pescoço dele.
— Saia do caminho — urrou a assassina, mal reconhecendo a própria voz. — Arobynn não pode me manter trancada.
— Não estou falando de Arobynn. Use sua cabeça e pense, Celaena! — Um lampejo dela, uma parte que de alguma forma tinha sumido desde que destruíra o relógio, percebeu que aquela poderia ser a primeira vez que Wesley se dirigia a ela pelo nome.
— Saia do caminho — repetiu ela, forçando mais a ponta da lâmina contra a garganta exposta de Wesley.
— Sei que quer vingança — disse o homem, sem fôlego. — Eu também, pelo que ele fez com Sam. Sei que você...
Celaena girou a lâmina, inclinando o suficiente ao ponto de Wesley recuar para evitar que ela cortasse uma linha profunda na garganta.
— Não entende? — suplicou o guarda-costas, os olhos brilhando no escuro. — Tudo isso é só...
Mas o fogo queimou na jovem e ela girou, usando um movimento que o Mestre Mudo havia ensinado naquele verão, então os olhos de Wesley perderam o foco ao ser golpeado com o punho da adaga na têmpora. O homem caiu como uma pedra.
Antes que sequer terminasse de cair, Celaena disparava para a cerca. Um momento depois, saltou e desapareceu nas ruas da cidade.

***

Ela era fogo, era escuridão, era pó e sangue e sombra.
Disparava pelas ruas, cada passo mais rápido que o último conforme aquele fogo negro queimava pensamentos e sentimentos até que tudo que restasse fosse o ódio e a presa.
Celaena pegou ruas posteriores e saltou por cima de muros.
Mataria todos.
Mais e mais rápido, correndo até aquela linda casa na rua silenciosa, em direção aos dois homens que haviam destruído o mundo dela, pedaço por pedaço, osso por osso.
Tudo que precisava fazer era chegar a Jayne e Farran — todas as outras pessoas seriam vítimas.
Arobynn dissera que os dois estariam na cama. Isso significava que Celaena precisava passar por todos aqueles guardas no portão de entrada, na porta de entrada e no primeiro andar... sem falar das sentinelas que certamente estariam do lado de fora dos quartos.
Mas havia um modo mais fácil de passar por todos. Um modo que não envolvia a possibilidade de alertar Farran e Jayne se os guardas à porta de entrada soassem o alarme. Harding mencionara algo a respeito de uma janela no segundo andar pela qual poderia saltar... Harding era um bom saltador, mas Celaena era melhor.
Quando estava a poucas ruas dali, escalou a lateral de uma casa até chegar ao telhado e correr de novo, rápido o bastante para saltar pela abertura entre as casas.
A jovem tinha passado pela casa de Jayne vezes o suficiente nos últimos dias para saber que era separada das casas vizinhas por becos de provavelmente 4,50 metros de largura.
Saltou por outra fenda entre telhados.
Agora que pensava a respeito, a assassina sabia que havia uma janela no segundo andar voltada para um daqueles becos — e não dava a mínima para a direção em que a janela abria, apenas que a levaria para dentro antes que os vigias do primeiro andar reparassem.
O telhado esmeralda da casa de Jayne reluzia, e Celaena escorregou até parar no telhado da casa ao lado. Uma extensão ampla e plana do telhado inclinado estava entre ela e o longo salto pelo beco. Se mirasse corretamente e corresse rápido o bastante, poderia dar aquele salto e aterrissar do outro lado da abertura. A janela já estava escancarada, embora as cortinas tivessem sido fechadas, bloqueando qualquer visão do que estava do lado de dentro.
Apesar da névoa de ódio, anos de treinamento fizeram com que Celaena instintivamente observasse os telhados vizinhos. Seria por arrogância ou estupidez que Jayne não tinha sentinelas nos telhados próximos? Nem mesmo os guardas na rua ergueram o rosto para ela.
Celaena desamarrou a capa e permitiu que a vestimenta deslizasse até o chão. Qualquer peso adicional poderia ser fatal, e a assassina não tinha a intenção de morrer até que Jayne e Farran fossem cadáveres.
O telhado no qual estava tinha a altura de três andares e dava para a janela do segundo andar do outro lado do beco. Celaena calculou a distância e a velocidade com que cairia, em seguida se certificou de que as espadas cruzadas às costas estivessem bem presas. A janela era larga, mas ainda precisaria evitar que as lâminas ficassem presas no batente. Ela recuou o máximo que pôde para se dar espaço para correr.
Em algum lugar naquele segundo andar, dormiam Jayne e Farran. E em algum lugar daquela casa, eles haviam destruído Sam.
Depois que Celaena os matasse, talvez destruísse a casa, pedra após pedra.
Talvez destruísse a cidade inteira também.
Ela sorriu. Gostava de como aquilo soava.
Então respirou fundo e saiu correndo.
O telhado não tinha mais que 15 metros — 15 metros entre ela e o salto que a levaria diretamente através daquela janela aberta um nível abaixo, ou a estatelaria no beco.
Celaena acelerou para a beirada cada vez mais próxima.
Doze metros.
Não havia margem para erro, margem para medo ou tristeza ou qualquer coisa, exceto ódio ofuscante e cálculos frios e cruéis.
Nove metros.
Ela correu, reto como uma flecha, cada impulso das pernas e dos braços a aproximava mais.
Seis metros.
Três metros.
O beco abaixo se aproximava, a abertura parecia muito maior do que percebera.
Um metro e meio.
Mas não restava mais nada de si para que sequer considerasse parar.
Celaena chegou à beira do telhado e saltou.

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