Depois

Ela estava na carruagem havia dois dias, observando a luz mudar e dançar nas paredes. Saiu do canto apenas por tempo o suficiente para se aliviar ou pegar a comida que atiravam.
Celaena acreditara que poderia amar Sam e não pagar o preço. Tudo tem um preço, certa vez ouvira de um mercador de Seda de Aranha no deserto Vermelho. Como estava certo.
O sol brilhava dentro da carruagem de novo, enchendo-a de luz fraca. O caminho para as Minas de Sal de Endovier levava duas semanas, e cada quilômetro os levava mais e mais ao norte — e para o tempo mais frio.
Quando cochilava, sonhos e realidade indo e vindo, às vezes sem saber a diferença, costumava ser acordada pelos calafrios que atormentavam seu corpo. Os guardas não ofereceram qualquer proteção contra o frio.
Duas semanas naquela carruagem escura e fétida, com apenas as sombras e a luz na parede para lhe fazer companhia, e o silêncio pairando ao redor. Duas semanas, então Endovier.
Celaena ergueu a cabeça da parede.
O medo crescente fazia o silêncio vacilar.
Ninguém sobrevivia a Endovier. A maioria dos prisioneiros não sobrevivia um mês. Era um campo de morte.
Um tremor percorreu os dedos dormentes de Celaena. Puxou as pernas para mais perto do peito, apoiando a cabeça contra elas.
As sombras e a luz continuaram dançando na parede.

***

Sussurros animados, o estalo de pés ágeis na grama seca, o luar brilhando pela janela.
Celaena não sabia como tinha ficado de pé ou como chegara à minúscula janela com barras, as pernas duras e doloridas e cambaleantes pela falta de uso.
Os guardas estavam reunidos perto da beira da clareira na qual acamparam pela noite, olhando para o emaranhado de árvores. Tinham entrado na floresta Carvalhal em algum momento do primeiro dia, e agora só haveria árvores, árvores e mais árvores durante as duas semanas em que viajariam para o norte.
A lua iluminava a névoa que rodopiava pelo chão coberto de folhas, fazendo com que as árvores projetassem longas sombras como fantasmas à espreita.
E ali — de pé em um matagal de espinhos — estava um cervo branco.
O fôlego de Celaena falhou.
Ela se agarrou às barras da pequena janela quando a criatura olhou naquela direção. Os chifres altos pareciam brilhar ao luar, coroando o animal com uma grinalda de marfim.
— Pelos deuses — sussurrou um dos guardas.
A enorme cabeça do cervo se virou levemente — na direção da carruagem, na direção da pequena janela.
O Senhor do Norte.
Assim as pessoas de Terrasen sempre saberão como encontrar o caminho de casa, dissera Celaena a Ansel certa vez quando estavam deitadas sob um cobertor de estrelas e tracejavam a constelação do Cervo. Assim podem olhar para o céu, não importa onde estejam, e saberão que Terrasen está com elas para sempre.
Nuvens de ar quente sopraram do focinho do cervo, enroscando-se na noite fria.
Celaena fez uma reverência com a cabeça, embora mantivesse o olhar sobre o animal.
Assim as pessoas de Terrasen sempre saberão como encontrar o caminho de casa...
Uma rachadura no silêncio — abrindo-se cada vez mais conforme os olhos impenetráveis do cervo se mantinham fixos nela.
O lampejo de um mundo há muito destruído... um reino em ruínas. O cervo não deveria estar ali; não tão no interior de Adarlan ou tão longe de casa. Como sobreviveu aos caçadores que tinham sido soltos nove anos antes, quando o rei ordenou que todos os cervos brancos sagrados de Terrasen fossem massacrados?
E, no entanto, ali estava o animal, brilhando como um farol ao luar.
Estava ali.
E Celaena também.
Ela sentiu o calor das lágrimas antes de perceber que chorava.
Então o gemido inconfundível de arcos sendo puxados.
O cervo, o Senhor do Norte, o farol de Celaena, não se moveu.
— Corra! — O grito rouco saiu de dentro dela, estilhaçando o silêncio.
O animal continuava olhando para a garota.
Ela bateu na lateral da carruagem.
— Corra, droga!
O cervo se virou e disparou, um raio de luz branca ziguezagueando entre as árvores.
O ruído dos arcos, o chiado das flechas — todas erraram o alvo.
Os guardas xingaram, e a carruagem foi sacudida quando alguém a golpeou de frustração.
Celaena recuou da janela, foi bem para trás, até que se chocou contra a parede e caiu de joelhos.
O silêncio desaparecera. Na ausência dele, ela conseguia sentir a dor retumbante ecoar pelas pernas, e o latejar dos ferimentos que os homens de Farran tinham infligido, e a ardência dos pulsos e dos tornozelos esfolados pelas correntes. Conseguia sentir o buraco infinito ocupado por Sam um dia.
Iria para Endovier — seria escrava nas Minas de Sal de Endovier.
Medo, irrefreável e frio, a puxou para baixo.

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