Epílogo - A Ascensão Acena

O corredor do hospital era cegamente branco. Depois de tantos dias vivendo à luz de tochas, gás e a misteriosa pedra enfeitiçada, a iluminação fluorescente fazia as coisas parecerem amareladas e não-naturais. Quando Clary parou em frente ao balcão, percebeu que a enfermeira lhe entregando a prancheta tinha uma pele que parecia estranhamente amarelada sob as luzes brilhantes. Talvez ela seja um demônio, Clary pensou, entregando a prancheta de volta.
— Última porta no final do corredor — a enfermeira falou, mostrando um sorriso gentil.
Ou posso estar enlouquecendo.
— Eu sei — disse Clary. — Eu estava aqui ontem.
E anteontem, e um dia antes disso. Era começo da noite, e o corredor não estava cheio. Um velho se arrastava de chinelos e roupão, arrastando uma unidade móvel de oxigênio atrás dele. Dois médicos em jalecos verdes cirúrgicos carregavam copos de isopor de café, o vapor subindo da superfície do líquido para o ar gelado. Dentro do hospital, estava agressivamente ventilado com o ar-condicionado, embora do lado de fora o tempo tivesse finalmente se tornado outono.
Clary encontrou a porta no final do corredor. Estava aberta. Ela espreitou lá dentro, não querendo acordar Luke se ele estivesse dormindo na cadeira à beira do leito, como tinha estado nas últimas duas vezes que ela tinha ido. Mas ele estava em pé e conversando com um homem alto em um manto cor de pergaminho dos Irmãos do Silêncio. Ele se virou, como se sentindo a chegada de Clary, e viu que era Irmão Jeremiah.
Ela cruzou seus braços ao longo do seu peito.
— O que está acontecendo?
Luke parecia exausto, com merecidos três dias de barba mal feita em crescimento, óculos colocados no topo da cabeça. Ela podia ver a maior parte das ataduras que ainda envolviam a parte superior do tórax debaixo de sua camisa solta de flanela.
— Irmão Jeremiah já estava saindo — ele disse.
Levantando seu capuz, Jeremiah se moveu em direção à porta, mas Clary bloqueou o seu caminho.
— Então? — Ela o desafiou. — Você vai ajudar a minha mãe?
Jeremiah se aproximou dela. Ela podia sentir o frio que se suspendia fora do corpo dele como o vapor de um iceberg.
Você não pode salvar os outros até que primeiro salve a si mesma, disse a voz em sua mente.
— Essa coisa de biscoito da sorte está ficando realmente ultrapassada —Clary disse — o que há de errado com a minha mãe? Você sabe? Os Irmãos do Silêncio podem ajudá-la, como ajudaram Alec?
Nós não ajudamos ninguém, Jeremiah respondeu. Nem é nossa obrigação ajudar aqueles que voluntariamente se separaram da Clave.
Se afastou enquanto Jeremiah passava por ela para o corredor. Olhou-o se afastando, se confundindo com a multidão, nenhum deles lhe deu uma segunda olhada. Quando deixou seus próprios olhos caírem semicerrados, viu o tremular da aura de encantamento que o rodeava e se perguntou o que estavam vendo: outro paciente? Um médico apressado em um jaleco cirúrgico? Um visitante em luto?
— Ele estava dizendo a verdade — Luke falou atrás dela — ele não curou Alec, foi Magnus Bane. E não sabe o que há de errado com sua mãe também.
— Eu sei — Clary respondeu, se virando para o quarto.
Ela se aproximou do leito cuidadosamente. Era difícil conectar a pequena figura branca na cama, coberta de tubos por cima e por baixo, com seus vibrantes cabelos cor de chama com a mãe. Claro, o cabelo dela ainda era vermelho, espalhado por todo o travesseiro como fios de um xale de cobre, mas sua pele era tão pálida que Clary lembrou da Bela Adormecida em cera que viu no museu, cujo o peito subia e descia apenas porque estava animado por um mecanismo.
Ela tomou a fina mão de sua mãe e a segurou, como havia feito ontem, e no dia anterior. Podia sentir a pulsação batendo no pulso de Jocelyn, firme e insistente.
Ela quer acordar, Clary pensou. Eu sei que quer.
— É claro que quer — Luke disse, e Clary caiu em si que tinha falado em voz alta — ela tem tudo para ficar melhor, mais ainda do que ela poderia saber.
Clary deitou a mão de sua mãe suavemente abaixo na cama.
— Você quer dizer Jace.
— É claro que eu quis dizer Jace. Ela esteve de luto por dezessete anos. Se eu pudesse lhe dizer que não precisava se lamentar... — ele interrompeu.
— Dizem que as pessoas em coma às vezes podem ouvir — Clary ofereceu.
Evidentemente, os médicos também haviam dito que este não era um coma comum, nenhuma lesão, nenhuma falta de oxigênio, nenhuma súbita falha do coração ou do cérebro tinha causado isso. Era como se ela estivesse apenas dormindo e não pudesse ser despertada.
— Eu sei — Luke falou — tenho falado com ela. Quase sem parar — ele mostrou um sorriso cansado. — Eu disse a ela como você foi corajosa. Como teria orgulho de você. Sua filha guerreira.
Algo afiado e doloroso subiu na parte de trás de sua garganta. Clary engoliu, olhando além de Luke na direção da janela, através da qual podia ver a parede branca de tijolos do edifício oposto. Sem vistas bonitas de árvores ou rios.
— Eu fiz as compras que você pediu — ela anunciou — tenho manteiga de amendoim, leite, cereais e pão dos Irmãos Fortunato — ela cavou no bolso de seus jeans — tenho o troco...
— Fique com ele. Você pode usá-lo na volta de táxi.
— Simon vai me levar — Clary respondeu. Ela checou o relógio de borboleta pendente no seu chaveiro — na verdade, ele provavelmente está lá embaixo agora.
— Bom, fico feliz que você esteja passando algum tempo com ele — Luke pareceu aliviado — fique com o dinheiro, de qualquer forma. Saia hoje à noite.
Clary abriu a boca para argumentar, e então fechou. Luke era, como sua mãe sempre tinha dito, uma rocha em momentos de angústia: sólido, confiável e totalmente imóvel.
— Vá para casa de vez em quando, ok? Você precisa dormir também.
— Dormir? Quem precisa dormir? — ele zombou, mas a garota viu o cansaço em seu rosto quando ele voltou a se sentar na cama da mãe.
Gentilmente, Luke afastou um fio de cabelo do rosto de Jocelyn. Clary se virou para longe, os olhos ardendo.

***

A van de Eric estava estacionada na beira da calçada enquanto Clary caminhava pela saída principal do hospital. O céu acima arqueava, o perfeito azul de uma porcelana chinesa, escurecendo para um tom safira sobre o rio Hudson, onde o sol estava se pondo.
Simon se inclinou para abrir a porta, e ela se arrastou acima do banco ao lado dele.
— Obrigada.
— Para onde? Voltar para casa? — Ele perguntou, puxando a van para o tráfego em primeira marcha.
Clary suspirou.
— Eu nem sei mais onde é isso.
Simon olhou-a de lado.
— Sentindo pena de si mesma, Fray?
Seu tom era de gozação, mas suave. Se olhasse atrás, ela ainda poderia ver as manchas escuras no banco traseiro onde Alec tinha se deitado, sangrando, em todo o colo de Isabelle.
— Sim. Não. Eu não sei. — Ela suspirou novamente, puxando um teimoso cacho do cabelo cor de cobre. — Tudo mudou. Tudo está diferente. Às vezes eu gostaria que tudo voltasse a ser do jeito que era antes.
— Eu não — Simon discordou, para sua surpresa — onde é que vamos? Me diga, subúrbio ou o centro pelo menos.
— Para o Instituto. Me desculpe — acrescentou, enquanto ele executava uma espantosa meia-volta ilegal. A van rodou sobre duas rodas, guinchando em protesto. — Eu devia ter te dito isso antes.
— Huh — disse Simon. — Você não tinha voltado ainda, certo? Desde que...
— Não. Jace me ligou e disse que Alec e Isabelle estavam bem. Aparentemente, os pais voltarão de Idris, agora que alguém realmente contou a eles o que está acontecendo. Eles vão estar aqui em poucos dias.
— Isso é estranho, falar de Jace? — Simon perguntou, a voz dele cuidadosamente neutra. — Quero dizer, desde que vocês descobriram...
Sua voz diminuiu.
— Sim? — Clary cortou-o, sua voz afiada. — Desde que eu descobri o quê? Que ele é um assassino travestido que molesta gatos?
— Não me admira que o gato dele odeia todo mundo.
— Ah, cala boca, Simon — Clary disse zangada — eu sei o que você quer dizer, e não, não foi estranho. Nada aconteceu entre nós, de qualquer forma.
— Nada? — Simon ecoou, em seu tom de simples descrença.
— Nada — Clary repetiu firmemente, virando-se para a janela para que ele não pudesse ver as lágrimas manchando suas bochechas.
Eles estavam passando uma fila de restaurantes e ela podia ver o Taki, iluminado brilhantemente no cair do crepúsculo. Viraram a esquina justo quando o sol desapareceu por trás da janela rosada do Instituto, inundando a rua abaixo com uma concha de luz que só eles podiam ver.
Simon estacionou em frente a porta e desligou o motor, balançando nervosamente as chaves na mão.
— Você quer que eu vá com você?
Ela hesitou.
— Não. Eu devo fazer isso sozinha.
Viu o olhar de decepção flutuar pelo rosto dele, mas desapareceu rapidamente. Simon, pensou, tinha crescido muito nestas últimas duas semanas, tal como ela. O que foi bom, pois não queria deixá-lo para trás. Ele era parte dela tanto quanto o seu talento para desenhar, o ar empoeirado do Brooklyn, o sorriso de sua mãe, seu próprio sangue de Caçador de Sombras.
— Tudo bem. Você vai precisar de uma carona mais tarde?
Ela balançou a cabeça.
— Luke me deu dinheiro para um táxi. De qualquer forma, você quer vir amanhã? — acrescentou. — Podemos assistir Trigun, com pipoca. Eu poderia passar um tempo no sofá.
Ele acenou.
— Isso parece bom.
Então Simon se inclinou em frente e roçou de leve um beijo em sua bochecha. Foi um beijo leve como uma folha soprada, mas ela sentiu um arrepio percorrer os seus ossos. Olhou-o nos olhos.
— Você acha que isso foi uma coincidência? — ela perguntou.
— O quê?
— Que nós fomos ao Pandemônio na mesma noite que Jace e os outros pintaram por lá, perseguindo um demônio? A noite anterior a Valentim vir atrás de minha mãe?
Simon balançou a cabeça.
— Eu não acredito em coincidências.
— Nem eu.
— Mas tenho que admitir — Simon acrescentou — coincidência ou não, que isso se tornou uma ocorrência fortuita.
— Ocorrência fortuita. Agora temos um nome de banda para você.
— É melhor do que a maioria dos que tivemos — Simon admitiu.
— Pode apostar.
Saltou para fora da van, fechando a porta atrás dela. Ouviu-o buzinar enquanto ela corria no caminho para a porta entre a folhas de grama alta, e acenou sem se virar.

***

O interior da catedral estava fresco e escuro, cheirava a chuva e papel úmido. Suas pegadas ecoaram alto no piso de pedra, e ela pensou em Jace na igreja em Brooklyn: Pode haver um Deus, Clary, e pode ser que não, mas acho que não interessa. De qualquer forma, nós estamos por nossa própria conta.
No elevador, ela deu uma olhada em si mesma no espelho enquanto a porta rangia fechada atrás dela. A maior parte das suas contusões e arranhões tinham se curado, ficando invisíveis. Se perguntou se Jace já tinha visto o seu visual tão cerimonioso quanto o de hoje – ela se vestiu para ir ao hospital, uma saia pregueada preta, gloss labial rosa e uma antiga blusa com gola de marinheiro. Achou que ela parecia ter oito anos de idade.
Não que importasse o que Jace pensava de como ela se parecia, ela se lembrou, agora ou sempre. Se perguntou se eles seriam do jeito que Simon era com sua irmã: uma mistura de aborrecimento e um amor irritado. Ela não podia imaginar.
Ouviu altos miaus antes mesmo da porta do elevador se abrir.
— Ei, Church — ela disse, se ajoelhando para a bola cinza ziguezagueando no piso — onde está todo mundo?
Church, que claramente queria que sua barriga fosse esfregada, resmungou ameaçadoramente. Com um suspiro, Clary lhe acariciou.
— Gato debiloide — ela disse, coçando-o com vigor. — Onde...
— Clary! — Era Isabelle, se lançando no saguão em uma saia vermelha longa, o cabelo preso em cima de sua cabeça com grampos cheios de joias. — É tão bom ver você!
Ela desceu sobre Clary com um abraço que quase desequilibrou-a.
— Isabelle — Clary arfou. — É bom te ver, também — acrescentou, deixando Isabelle puxá-la para uma posição em pé.
— Eu estava tão preocupada com você — Isabelle disse alegremente. — Depois que vocês saíram para a biblioteca com Hodge e eu fiquei com Alec, ouvi a mais terrível explosão. Quando cheguei à biblioteca, vocês, é claro, tinham desaparecido, e tudo estava espalhado no chão. E havia sangue e uma coisa pegajosa preta pra todo o lado — ela estremeceu — o que foi aquilo?
— A maldição — Clary disse calmamente — a maldição de Hodge.
— Oh, certo — Isabelle concordou — Jace me falou sobre Hodge.
— Ele falou? — Clary estava surpresa.
— Que ele retirou a maldição de si e foi embora? Sim, disse. Eu achei que ele ficaria para dizer adeus — Isabelle acrescentou — estou meio decepcionada com ele. Mas acho que ele estava com medo da Clave. Ele vai entrar em contato no final das contas, eu aposto.
Então Jace não contou que Hodge os traiu, Clary pensou, não tendo certeza de como se sentia sobre isso. Se Jace estava tentando poupar Isabelle da confusão e desapontamento, talvez não devesse interferir.
— De qualquer maneira — Isabelle continuou — foi horrível, eu não sei o que teríamos feito se Magnus não tivesse aparecido e emagicado Alec de volta ao normal. É uma palavra, “emagicado”? — Ela enrugou suas sobrancelhas. — Jace nos contou tudo sobre o que aconteceu na ilha depois. Na verdade, nós já sabíamos mesmo antes, porque Magnus estava ao telefone falando sobre isso a noite toda. Todo mundo no Submundo estava fofocando sobre isso. Você é famosa, sabe.
— Eu?
— Claro. A filha de Valentim.
Clary estremeceu.
— Então eu acho que Jace é famoso também.
— Ambos são famosos — Isabelle concordou na mesma voz animada — os famosos irmão e irmã.
Clary olhou Isabelle curiosamente.
— Eu não esperava que você tivesse essa alegria em me ver, tenho que admitir.
A outra garota colocou as mãos em seu quadril indignadamente.
— Por que não?
— Eu não achava que você gostava de mim tanto assim.
O brilho de Isabelle se esvaiu e ela olhou para baixo em seus dedos prateados.
— Não acho que eu goste — ela admitiu — mas quando fui procurar por você e Jace, e vocês foram embora... — A voz dela foi sumindo. — Eu não estava apenas preocupada com ele, estava preocupada com você, também. Há algo tão... tranquilizador em você. E Jace fica muito melhor quando você está ao redor.
Os olhos de Clary se arregalaram.
— Ele fica?
— Fica, na verdade. Menos sarcástico, de alguma forma. Não que ele seja amável, mas deixa você ver a bondade nele — ela se interrompeu — e acho que eu me ressentia com você no início, mas agora percebo que era estupidez. Só porque nunca tive um amigo que fosse uma garota, não significava que eu não pudesse aprender a ter uma.
— Eu também, na verdade. E Isabelle?
— Sim?
— Você não precisa fingir ser legal. É melhor quando você age como você mesma.
— Uma vaca, você quer dizer? — Isabelle disse, e riu.
Clary estava prestes a protestar quando Alec entrou, se equilibrando na entrada em um par de muletas. Uma de suas pernas estava com ataduras, seus jeans enrolados até o joelho, e havia um outro curativo em sua têmpora, sob os cabelos escuros. Em todo o caso, ele parecia espantosamente saudável para quem estava quase morrendo quatro dias atrás. Ele acenou uma muleta em saudação.
— Oi — Clary disse, surpresa em vê-lo em pé e por aí. — Você está...
— Bem? Eu estou bem. Não vou mesmo precisar delas dentro de alguns dias.
Culpa preencheu sua garganta. Se não fosse por ela, Alec não estaria de muletas.
— Estou realmente feliz por você estar bem, Alec — ela falou, colocando cada peso de sinceridade em sua voz que ela pudesse reunir.
Alec piscou.
— Obrigado.
— Então Magnus curou você? — Clary perguntou. — Luke disse...
— Ele fez! — Isabelle exclamou. — Foi tão incrível. Ele apareceu e ordenou que todos saíssem do quarto e fechou a porta. Faíscas azuis e vermelhas ficavam explodindo pelo corredor por baixo da porta.
— Não me lembro de nada — Alec disse.
— Então ele se sentou na cama de Alec a noite toda e pela manhã para ter certeza de que ele acordaria bem — Isabelle continuou.
— Também não me lembro disso — Alec acrescentou apressadamente.
Os lábios vermelhos de Isabelle se curvaram em um sorriso.
— Eu me pergunto como Magnus soube para ter vindo? Eu perguntei a ele, mas ele não me disse.
Clary lembrou do papel dobrado que Hodge tinha atirado ao fogo após Valentim ter ido embora. Ele era um homem estranho, pensou, que tinha tirado tempo para fazer o que podia para salvar Alec, embora traísse todo mundo e tudo o que tinha cuidado.
— Eu não sei — Clary respondeu.
Isabelle deu de ombros.
— Acho que ele ouviu sobre isso em algum lugar. Parece viciado em uma enorme rede de fofoca. Ele é como uma garota.
— Ele é o Alto Bruxo do Brooklyn, Isabelle — Alec lembrou-a. Mas não sem alguma diversão. Ele se virou para Clary — Jace está na estufa, se você quiser vê-lo. Eu levo você.
— Você leva?
— Claro — Alec parecia só um pouco desconfortável. — Por que não?
Clary olhou para Isabelle, que sacudiu os ombros. Seja lá o que estava querendo, ele não ia dividir com sua irmã.
— Vão em frente — Isabelle disse — eu tenho coisas para fazer, de qualquer forma. — Ela acenou uma mão para eles. — Xô!
Eles partiram pelo corredor juntos. Alec ia rápido, mesmo com muletas. Clary teve que correr para manter o passo.
— Eu tenho as pernas curtas — ela lembrou a ele.
— Me desculpe — ele diminuiu, arrependido. — Olha — ele começou — aquelas coisas que você disse para mim, quando eu gritei com você sobre o Jace...
— Eu me lembro — ela falou em uma voz pequena.
— Quando você me disse aquilo, sabe, aquilo que eu estava apenas... aquilo era por que... — Ele pareceu estar tendo problemas em formar uma frase completa. Ele tentou de novo. — Quando você disse que eu estava...
— Alec, não.
— Claro. Não importa. — Ele apertou seus lábios juntos. — Você não quer falar sobre aquilo.
— Não é isso. É que me sinto terrível sobre o que eu disse. Aquilo foi horrível. Não era verdade de forma...
— Mas era verdade — Alec interrompeu — cada palavra.
— Isso não faz ficar tudo bem. Nem tudo era verdade, sobre você nunca ter matado um demônio. Ele disse que era porque você estava sempre o protegendo e a Isabelle. Foi uma coisa boa o que ele estava dizendo sobre você. Jace pode ser um idiota, mas ele... — Te ama, ela estava para dizer, e parou. — Ele nunca disse uma coisa ruim sobre você para mim, nunca. Eu juro.
— Você não tem que jurar. Eu já sei.
Ele parecia tranquilo, mesmo confiante de uma maneira que nunca soou antes. Ela olhou para ele, surpresa.
— Eu sei que não matei o Abbadon. Mas apreciei você ter me dito que tinha.
Ela riu tremulamente.
— Você apreciou eu ter mentido para você?
— Você fez isso por simpatia. Isso significa muito, você foi gentil comigo mesmo depois do modo como te tratei.
— Acho que Jace teria ficado muito chateado por eu ter mentido se ele não estivesse tão abalado naquela hora — Clary ponderou — não tão bravo quanto ficaria se soubesse o que eu disse a você antes, apesar de tudo.
— Eu tenho uma ideia — Alec falou, sua boca torcendo-se nos cantos — não vamos dizer a ele. Quero dizer, talvez Jace possa decapitar um demônio Du'sien a uma distância de cinquenta metros só com um saca-rolha e um elástico, mas às vezes acho que ele não sabe muito sobre as pessoas.
— Acho que sim.
Clary sorriu.
Eles tinham chegado ao início da escada espiral que levava ao telhado.
— Eu não posso ir para cima — Alec tocou sua muleta contra um degrau de metal.
Ela retiniu metalicamente.
— Tudo bem. Posso achar meu caminho.
Ele virou como se fosse embora, então virou a cabeça, ainda de costas para ela.
— Eu deveria ter adivinhado que você era irmã de Jace. Vocês dois tem o mesmo talento artístico.
Clary interrompeu, o seu pé no degrau mais baixo. Ela estava voltando.
— Jace desenha?
— Não.
Quando Alec sorriu, seus olhos azuis eram lâmpadas acesas, e Clary pôde ver o que Magnus tinha encontrado de tão cativante sobre ele.
— Eu só estava brincando. Ele não consegue desenhar uma linha reta.
Rindo, ele saiu capengando em suas muletas. Clary o viu ir embora, confusa. Um Alec que soltava piadas e fazia gracinhas de Jace era algo com que ela poderia se acostumar, mesmo que o seu senso de humor fosse algo inexplicável.

***

A estufa estava do jeito que ela se lembrava, embora o céu acima do telhado de vidro estivesse azul agora. O limpo e suave cheiro das flores limpava a cabeça. Respirando profundamente, ela se empurrou através dos estreitos galhos e folhas.
Encontrou Jace sentado na bancada em mármore, no meio da vegetação. Sua cabeça estava inclinada, e ele parecia estar virando um objeto nas mãos, à toa.
Ele olhou para cima enquanto Clary mergulhava debaixo de um galho, e rapidamente fechou a mão ao redor do objeto.
— Clary — ele pareceu surpreso — o que você está fazendo aqui?
— Eu vim te ver. Queria saber como você estava.
— Estou bem.
Ele estava vestindo jeans e uma camiseta branca. Ela podia ver as suas contusões sumindo, como as manchas escuras sobre a polpa branca de uma maçã. Claro, pensou, as verdadeiras lesões eram internas, escondidas de todos, mesmo dele.
— O que é isso? — ela perguntou, apontando para a sua mão fechada.
Ele abriu os dedos. Um irregular caco de prata descansava em sua palma, refletindo azul e verde em seus cantos.
— Um pedaço do espelho do Portal.
Ela sentou no banco ao lado dele.
— Dá para ver alguma coisa?
Ele o virou um pouco, deixando a luz passar como a água sobre ele.
— Pedaços do céu. Árvores, um caminho... Eu fico angulando, tentando ver a mansão. Meu pai.
— Valentim — ela corrigiu. — Por que você iria querer vê-lo?
— Pensei que talvez eu pudesse ver o que ele está fazendo com o Cálice Mortal — disse relutantemente — onde ele está.
— Jace, não é mais nossa responsabilidade. Não é problema nosso. Agora que a Clave finalmente sabe o que aconteceu, os Lightwood estarão de volta. Deixe eles lidarem com isso.
Agora ele a encarava. Clary se perguntou como é que eles poderiam ser irmãos e se parecerem tão pouco. Ela não podia ter pelo menos aqueles cílios longos escuros ou os ossos angulares do rosto? Parecia pouco justo.
— Quando olhei através do Portal e vi Idris, eu sabia exatamente o que Valentim estava tentando fazer, ele queria ver se me sensibilizava. E isso não importou, eu ainda queria ir muito para casa, mais do que poderia ter imaginado.
Ela balançou sua cabeça.
— Não vejo o que há de tão incrível em Idris. É apenas um lugar. A maneira como você e Hodge falam sobre isso... — ela interrompeu.
Ele fechou sua mão sobre o caco novamente.
— Eu era feliz lá. Foi o único lugar em que fui realmente feliz.
Clary arrancou uma haste de um arbusto próximo e começou a puxar suas folhas.
— Você sentiu pena de Hodge. É por isso que não disse a Alec e a Isabelle o que ele realmente fez.
Ele deu de ombros.
— Eles vão descobrir qualquer hora, sabe.
— Eu sei. Mas não vai ser eu quem vai dizer a eles.
— Jace... — A superfície do lago estava verde com as folhas caídas. — Como você pôde ter sido feliz lá? Sei o que você pensou, mas Valentim foi um péssimo pai. Ele matou seus animais de estimação, mentiu para você, e sei que ele batia em você – e nem tente fingir que não.
A cintilação de um sorriso flutuou no rosto de Jace.
— Somente nas quintas-feiras alternadas.
— Então, como podia...
— Foi a única vez que senti certeza sobre quem eu era. Onde eu pertencia. Soa burrice, mas... — Ele balançou os ombros. — Eu mato demônios porque sou bom nisso e foi o que me foi ensinado a fazer, mas não é quem eu sou. E eu estava parcialmente bem com isso porque depois que pensei que o meu pai tinha morrido, eu estava livre. Sem importância. Ninguém para ficar de luto. Ninguém tinha interesse na minha vida, porque eles tinham sido parte do que foi dado a mim — seu rosto parecia como se tivesse sido esculpido em algo duro — eu não me sinto mais assim.
O galho ficou inteiramente desnudo de folhas; Clary o jogou de lado.
— Por que não?
— Por sua causa. Se não fosse por você, eu teria ido com o meu pai através do Portal. Se não fosse por você, eu iria atrás dele agora mesmo.
Clary olhou para baixo no lago obstruído. Sua garganta queimou.
— Eu achei que você se sentia deslocado.
— Tem sido assim por muito tempo — ele falou simplesmente — acho que eu estava deslocado pela ideia de sentir como se eu não pertencesse a lugar nenhum. Mas você me fez sentir que eu pertenço.
— Eu quero você venha comigo a um lugar — ela disse abruptamente.
Ele observou-a. Algo sobre a forma como a luz dourada refletia nos cabelos caindo nos olhos dele a fez se sentir insuportavelmente triste.
— Onde?
— Eu estava esperando que você viesse comigo para o hospital.
— Eu sabia — seus olhos se estreitaram até que eles parecessem bordas de moedas — Clary, aquela mulher...
— Ela é sua mãe também, Jace.
— Eu sei. Mas ela é uma estranha para mim. Eu sempre tive apenas um pai, e ele foi embora. É pior do que estar morto.
— Eu sei. E sei que não há nenhum ponto em dizer a você o quão ótima minha mãe é, a incrível, fantástica e maravilhosa pessoa que ela é, e que você tem sorte em conhecê-la. Não estou pedindo isso para você, estou pedindo por mim. Acho que se ela ouvir a sua voz...
— Então o quê?
— Ela poderia acordar.
Clary o encarou com firmeza. Ele segurou seu olhar e, em seguida, quebrou-o com um sorriso torto, um pouco cansado, mas um sorriso verdadeiro.
— Tudo bem. Eu vou com você.
Ele se levantou.
— Você não tem que me dizer coisas boas sobre a sua mãe — ele acrescentou — eu já a conheço.
— Você conhece?
Ele deu de ombros ligeiramente.
— Ela cuidou de você, não é? — Ele olhou em direção ao telhado de vidro. — O sol está quase sumindo.
Clary ficou de pé.
— Nós devemos ir ao hospital. Eu pago o táxi — ela acrescentou depois — Luke me deu dinheiro.
— Isso não será necessário — o sorriso de Jace se alargou. — Vamos lá. Eu tenho algo para te mostrar.
— Mas de onde você tirou isso? — Clary exigiu, olhando para a moto empoleirada à beira do telhado da catedral.
Era um chamativo envenenado verde, com prata margeando as rodas e brilhantes chamas pintadas sobre o banco.
— Magnus estava reclamando que alguém havia deixado fora da casa dele, na última vez que ele fez uma festa — Jace explicou — eu o convenci a dá-la para mim.
— E você voou com ela até aqui?
Clary ainda estava observando a moto.
— Ahã. Estou ficando muito bom nisso — ele colocou uma perna por cima do banco, acenou para ela subir e sentar atrás dele — vamos, eu vou mostrar para você.
— Bem, pelo menos dessa vez você sabe como funciona — ela falou, ficando atrás dele — se a gente bater contra um estacionamento de supermercado eu vou matar você, sabia?
— Não seja ridícula. Não há estacionamento em Upper East Side. Por que dirigir quando você pode receber sua mercadoria em casa?
A moto começou a rugir, abafando sua risada. Gargalhando, Clary agarrou a cintura de Jace enquanto a moto se movia sob o inclinado teto do Instituto e se lançava no espaço.
O vento bagunçava seu cabelo enquanto eles se elevavam sobre a catedral, acima dos telhados altos e elevados prédios de apartamentos. E perante ela a cidade se estendia como um porta-joias cuidadosamente aberto, mais populosa e mais incrível do que tinha imaginado: havia o quadrado esmeralda do Central Park, onde uma corte de fadas se reunia em plena noite de verão, onde as luzes dos clubes e bares no centro, onde os vampiros dançavam noites afora no Pandemônio; onde nos becos de Chinatown os lobisomens se retiravam à noite, os seus pelos refletindo as luzes da cidade. Onde andavam bruxos em toda a sua extravagância, o glorioso olhar de gato, e aqui, enquanto se lançavam rio acima, ela via os flashes lançados de caudas multicoloridas sob a prateada água, o vislumbre, ao longe, de pérolas derramadas sobre os cabelos, e ouviu as risadas altas e onduladas das sereias.
Jace virou para olhar sobre seu ombro, o vento chicoteando em seus cabelos emaranhados.
— No que você está pensando? — ele gritou.
— Apenas como tudo é diferente agora, você sabe, agora que eu posso ver.
— Tudo lá é exatamente o mesmo — ele disse, angulando a moto para o Rio East. Eles foram em direção à ponte novamente — você é a única que é diferente.
As mãos apertaram convulsivamente a cintura de Jace enquanto eles mergulhavam mais e mais ao longo do rio.
— Jace!
— Não se preocupe — ele parecia irritantemente divertido — eu sei o que estou fazendo. Não vou afundar a gente.
Ela estreitou seus olhos contra o vento rasgante.
— Você está testando o que Alec disse sobre algumas dessas motos serem capazes de ir debaixo d’água?
— Não — ele nivelou a moto cuidadosamente enquanto subiam vindos da superfície do rio — acho que é só uma história.
— Mas Jace, todas as histórias são verdadeiras.
Ela não o ouviu rir, mas sentiu, através da gaiola de suas costelas sob seus dedos. Ela o abraçou fortemente enquanto ele dirigia a moto para cima, acelerando para que ela disparasse a frente e se lançasse ao lado da ponte como um pássaro libertado. Seu estômago caiu enquanto o rio prateado girava para longe e os pináculos da ponte deslizavam sob seus pés, mas desta vez Clary manteve seus olhos abertos, só para que ela pudesse ver tudo.

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