Capítulo 1 - A Flecha de Valentim

— Você ainda está bravo?
Alec, se encostando contra a parede do elevador, olhou através do pequeno espaço para Jace.
— Eu não estou com raiva.
— Ah, sim, você está.
Jace gesticulou acusadoramente para seu meio-irmão, então gemeu enquanto a dor acertava acima de seu braço. Cada parte dele doía desde a aquela tarde quando caiu três andares através da madeira apodrecida sobre uma pilha de metais. Até seus dedos estavam machucados.
Alec, que tinha recentemente colocado as muletas de lado depois de sua luta com Abbadon, não parecia muito melhor do que Jace. Suas roupas estavam cobertas com lama e seu cabelo escorrido em suadas tiras. Havia um longo corte em sua bochecha.
— Eu não estou — Alec repetiu através de seus dentes — só porque você disse que dragões estavam extintos...
— Eu disse que estavam quase extintos.
Alec mostrou um dedo em direção a ele.
— Quase extintos — ele ecoou, sua voz tremendo com raiva — NÃO É EXTINTO O SUFICIENTE.
— Tô vendo que terei que mudar a definição no livro de demonologia. De “quase extinto’ para “não extinto o suficiente para Alec. Ele prefere seus monstros realmente, realmente extintos.” Isso vai te fazer feliz?
— Meninos, meninos — Isabelle falou, examinando o seu rosto na parede espelhada do elevador — não briguem. — Ela se virou, afastando-se do vidro com um sorriso luminoso. — Tudo bem, foi só um pouco mais de ação do que esperávamos, mas acho que foi divertido.
Alec olhou para ela e balançou a cabeça.
— Como é que você consegue nunca se suja de lama?
Isabelle encolheu os ombros filosoficamente.
— Eu sou pura de coração. Isso repele a sujeira.
Jace suspirou tão alto que Isabelle se virou para ele com uma carranca. Ele balançou seus dedos untados de lama para ela. Suas unhas eram arcos negros.
— Imundo por dentro e por fora.
Isabelle estava prestes a responder quando o elevador aterrissou em uma parada com o som do freio chiando.
— Está na hora de consertar esta coisa — ela comentou, puxando a porta para abrir.
Jace a seguiu pela entrada, já se preparando para despir sua armadura e armas e ir para uma ducha quente. Ele tinha convencido seus meios-irmãos a caçarem com ele, apesar do fato de que nenhum deles estava inteiramente confortável em sair por conta própria agora que Hodge que não estava lá para lhes dar instruções. Mas Jace tinha precisado da luta, da atenção da dificuldade de matar e da distração das lesões. E sabendo que ele precisava disso, os irmãos tinham ido junto, rastejando através dos desertos e túneis do metrô imundos até encontrarem o demônio Dragonidae e mataram-no. Os três trabalharam em conjunto em perfeito uníssono, do jeito que sempre fizeram. Como uma família.
Jace abriu seu casaco e o lançou em um dos ganchos pendurados na parede. Alec estava sentado no banco de madeira ao lado dele, chutando suas botas cobertas de lama. Estava zumbindo desafinado sob a sua respiração, deixando Jace saber que ele não estava chateado. Isabelle estava puxando os grampos para fora de seu longo cabelo escuro, permitindo que ele caísse em torno dela.
— Eu estou com fome agora — ela disse. — Eu queria que mamãe estivesse aqui para cozinhar alguma coisa para nós.
— É melhor que ela não esteja — Jace discordou, desafivelando seu cinto de armas — senão já estaria gritando por causa dos tapetes.
— Você está certo sobre isso — uma voz fria falou.
Jace girou ao redor, suas mãos ainda no cinto, e viu Maryse Lightwood, de braços cruzados, em pé na porta de entrada. Ela usava um rígido blazer preto de viagem e seu cabelo, preto como de Isabelle, estava preso atrás em uma fita grossa. Seus olhos, de um azul glacial, varreram os três como um holofote de inspeção.
— Mãe!
Isabelle, recobrando sua compostura, correu para sua mãe para um abraço.
Alec levantou e se juntou a elas, tentando esconder o fato de que ainda estava mancando.
Jace ficou onde estava. Havia alguma coisa nos olhos de Maryse quando ela o encarou que tinha congelado-o no lugar. O que ele tinha dito era tão ruim assim? Aquela piada sobre a obsessão dela com os antigos tapetes o tempo todo...
— Onde está papai? — Isabelle perguntou, se afastando de sua mãe. — E Max?
Então houve uma imperceptível pausa. Em seguida Maryse respondeu:
— Max está em seu quarto. E seu pai, infelizmente, ainda está em Alicante. Havia alguns negócios lá que requeriam sua atenção.
Alec, geralmente mais sensitivo a temperamentos do que sua irmã, pareceu hesitar.
— Há algo de errado?
— Eu poderia perguntar isso a você — o tom de sua mãe era seco — você está mancando?
Alec era um terrível mentiroso. Isabelle interferiu por ele, facilmente:
— Nós estávamos correndo atrás de um demônio Dragronidae nos túneis do metrô. Mas não foi nada.
— E suponho que o Grande Demônio com que vocês lutaram na semana passada não foi nada também?
Mesmo Isabelle ficou em silêncio com aquilo. Ela olhou para Jace, que preferiu que ela não tivesse olhado.
— Não foi planejado — Jace estava tendo dificuldade em se concentrar.
Maryse não o tinha cumprimentado ainda, não disse muito mais que um oi, e ela ainda o estava encarando com olhos como punhais azuis. Houve uma sensação de um buraco oco em seu estômago que estava começando a se alastrar. Nunca tinha olhado para ele daquele jeito antes, não importasse o que ele fizesse.
— Foi um erro...
— Jace!
Max, o mais jovem dos Lightwood, espremeu seu caminho em torno de Maryse e se arremessou no hall, escapando das mãos de sua mãe.
— Vocês voltaram! Todos vocês voltaram — ele virou em um círculo, sorrindo para Alec e Isabelle em triunfo — eu pensei ter ouvido o elevador.
— E eu pensei ter dito a você para ficar em seu quarto — Maryse replicou.
— Eu não me lembro disso — Max respondeu, com uma seriedade que mesmo Alec teve que sorrir.
Max era pequeno para sua idade, parecia ter sete anos, mas tinha uma autocontida seriedade que, combinado com o tamanho desproporcional de seus óculos, davam a ele o ar de alguém mais velho. Alec se aproximou e bagunçou o cabelo de seu irmão, mas Max ainda observava Jace, olhos brilhando. Jace sentiu o frio que apertava seu estômago relaxar ligeiramente, provavelmente porque Jace era muito mais indulgente com a presença de Max.
— Ouvi dizer que você lutou com um Grande Demônio — disse — foi incrível?
— Foi... diferente — Jace disfarçou — como foi em Alicante?
— Foi incrível. Nós vimos as coisas mais legais. Existe um enorme arsenal em Alicante e eles me levaram a alguns dos lugares onde fazem as armas. Me mostraram uma nova maneira de fazer lâminas serafim também, para que elas durem mais. Vou pedir para Hodge me mostrar...
Jace não pôde falar nada; seus olhos piscaram instantaneamente para Maryse, sua expressão incrédula. Então Max não sabia sobre Hodge? Ela não tinha dito a ele?
Maryse viu seu olhar e os lábios dela se afinaram em uma linha.
— Já chega, Max.
Ela pegou seu filho mais novo pelo braço.
O garoto suspendeu a cabeça para olhá-la com surpresa.
— Mas eu estava falando para Jace...
— Eu posso ver isso — ela o empurrou gentilmente em direção à Isabelle — Isabelle, Alec, levem seu irmão para o quarto dele. Jace... — lá estava uma tensão em sua voz quando falou o nome dele, como se ácido invisível estivesse secando as sílabas em sua boca — vá se limpar e me encontre na biblioteca o mais breve que você puder.
— Eu não entendi — Alec disse, olhando de sua mãe para Jace, e de volta — o que está acontecendo?
Jace pode sentir um suor frio subir ao longo de sua espinha.
— É sobre o meu pai?
Maryse estremeceu duas vezes, como se as palavras “meu pai” tivessem sido duas bofetadas.
— A biblioteca — repetiu, através de seus dentes apertados — nós vamos discutir o problema lá.
Alec interviu:
— O que aconteceu enquanto vocês estiveram fora não é culpa de Jace. Nós todos estávamos nisso. E Hodge disse...
— Nós iremos falar sobre Hodge mais tarde.
Os olhos de Maryse estavam em Max, seu tom de alerta.
— Mas mãe — Isabelle protestou — se você vai punir Jace, nós devemos ser castigados também. Isso seria o justo. Nós todos fizemos exatamente as mesmas coisas.
— Não — Maryse discordou, depois de uma pausa tão longa que Jace pensou que talvez ela não fosse dizer mais nada — vocês não fizeram.

***

— Regra número um do anime — Simon falou.
Ele se encostou contra uma pilha de travesseiros nos pés de sua cama, um pacote de batatas fritas numa mão e o controle remoto na outra. Estava usando uma camiseta preta que dizia: EU BLOGUEI A SUA MÃE e um par de jeans com um rasgo em um joelho.
— Nunca sacaneie um macaco cego.
— Eu sei — Clary respondeu, pegando uma batata frita e mergulhando-a na lata na bandeja equilibrada entre a TV e eles — por alguma razão, eles são sempre lutadores muito melhores do que monges guerreiros que podem enxergar — ela olhou para a tela — são aqueles caras dançando?
— Isso não é dançar. Estão tentando se matar um ao outro. Esse é o cara que é inimigo mortal do outro cara, se lembra? Matou o pai dele. Por que eles estariam dançando?
Clary mastigou sua batata e olhou pensativamente para a tela, onde animados redemoinhos rosa e nuvens amarelas ondulavam entre as figuras de dois homens alados, que flutuavam em torno um do outro, cada golpe um movimento brilhante. De vez em quando um deles falava, mas desde que tudo estava em japonês e com legendas em chinês, não esclarecia muito.
— O cara com o chapéu — ela disse — ele era o cara malvado?
— Não, o cara de chapéu era o pai. Ele era o imperador mágico, e aquele era o seu chapéu de poder. O cara mal era o com a mão mecânica que fala.
O telefone tocou. Simon colocou o saco de batatas fritas para baixo e se movimentou para levantar e atender. Clary colocou a mão em seu pulso.
— Não. Deixa pra lá.
— Mas pode ser o Luke. Ele poderia ligar do hospital.
— Não é o Luke — disse Clary, soando com mais certeza do que sentia — ele iria ligar para o meu celular, e não para sua casa.
Simon olhou-a por um longo momento antes de se afundar abaixo no tapete.
— Se você está dizendo.
Ela podia ouvir a dúvida em sua voz, mas também a certeza não dita, eu só quero que você seja feliz. Ela não tinha certeza se “feliz” era algo como agora, não com sua mãe no hospital, ligada a tubos e máquinas estridentes, e Luke como um zumbi, desmoronado em uma cadeira de plástico duro ao lado de sua cama. Sem se preocupar com Jace o tempo todo e pegar o telefone uma dúzia de vezes para ligar para o Instituto antes de colocá-lo de volta, sem discar o número. Se Jace quisesse falar com ela, ele podia ligar.
Talvez tivesse sido um erro levá-lo para ver Jocelyn. Ela tinha tido tanta certeza de que se sua mãe apenas ouvisse a voz de seu filho, seu primogênito, poderia despertar. Mas ela não tinha. Jace tinha estado rígido e desajeitado perto da cama, seu rosto como uma pintura de um anjo, os olhos vazios e indiferentes. Clary tinha finalmente perdido a paciência e gritado com ele, e ele gritou de volta antes de ir embora irritado.
Luke o tinha observado ir embora com um tipo de interesse clínico em seu rosto esgotado.
— Essa é a primeira vez que eu vi vocês agirem como irmã e irmão — observou.
Clary não falou nada em resposta. Não havia importância em dizer a ele quão terrivelmente queria que Jace não fosse seu irmão. Você não pode arrancar o seu próprio DNA, não importa o quanto desejasse que pudesse. Não importa o quanto aquilo iria fazer você feliz.
Mesmo que ela não pudesse conseguir ser muito feliz, pensou, pelo menos aqui na casa de Simon, em seu quarto, se sentia confortável e em casa. Ela conhecia o lugar a tempo suficiente para lembrar de quando ele tinha uma cama em forma de caminhão de bombeiro e brinquedos Lego empilhados em um canto do quarto. Agora, a cama era um futon com uma brilhosa colcha listrada que tinha sido um presente de sua irmã, e as paredes eram lotadas com pôsteres de bandas como Rock Solid Panda e Stepping Razor. Tinha uma bateria postada no canto do quarto onde o Legos tinham ficado, e um computador no outro canto, a tela congelada em uma imagem do World of Warcraft. Era quase tão familiar quanto o seu próprio quarto em casa, que já não existia, então, pelo menos, esta era a segunda melhor coisa.
— Mais crianças — Simon disse melancolicamente.
Todos os personagens na tela tinham mudado para versões de si mesmos em tamanhos pequenos de bebês e estavam perseguindo uns aos outros em torno de balançantes potes e panelas.
— Estou mudando de canal — anunciou Simon, segurando o controle — cansei deste anime. Eu não posso dizer sobre o que é, e ninguém faz sexo.
— Claro que não — Clary disse, pegando outra batata — anime é um saudável entretenimento familiar.
— Se você estiver com disposição para um entretenimento menos saudável, nós poderíamos tentar os canais pornôs — Simon observou — quer ver The witches of Breastwick ou Como eu deitei com Dianne?
— Me dá isso! — Clary agarrou o controle remoto, mas Simon, gargalhando, já tinha mudado a TV para outro canal.
Sua risada se interrompeu abruptamente. Clary olhou acima com surpresa e o viu olhar sem expressão para TV. Um antigo filme em preto-e-branco estava passando – Drácula. Ela tinha visto antes com sua mãe. Béla Lugosi, magro e de rosto branca, na tela, envolto na conhecida capa de colarinho alto, os lábios puxados para trás e seus pontiagudos dentes.
— Eu nunca bebo... vinho — ele entoou em seu pesado sotaque húngaro.
— Eu adoro como as teias de aranha são feitas de borracha — Clary disse, tentando soar leve — pode-se perfeitamente ver isso.
Mas Simon já estava em seus pés, largando o controle remoto na cama.
— Já volto — ele murmurou.
O rosto dele estava da cor do céu do inverno pouco antes de chover. Clary o observou ir, mordendo forte seu lábio – era a primeira vez desde que sua mãe tinha ido ao hospital que ela notou que talvez Simon não estivesse muito feliz também.

***

Enxugando seu cabelo, Jace observou o seu reflexo no espelho com uma depreciativa carranca. Uma runa tinha cuidado das piores de suas contusões, mas não melhorava as sombras sob os seus olhos ou as linhas apertadas nos cantos da boca. Sua cabeça doía, e ele se sentiu um pouco tonto. Sabia que devia ter comido alguma coisa naquela manhã, mas acordou enjoado e ofegando por causa dos pesadelos, não querendo parar para comer, só esperando o alívio da atividade física para queimar os seus sonhos em contusões e suor.
Jogando a toalha de lado, ele pensou saudosamente no doce chá preto que Hodge fazia a partir das flores que floresciam à noite na estufa. O chá levava embora as pontadas de fome e trazia um rápido aumento de energia. Desde o sumiço de Hodge, Jace tinha tentado ferver as folhas das plantas em água para ver se ele conseguia produzir o mesmo efeito, mas o único resultado foi amargo líquido com sabor de cinzas que o fez engasgar e cuspir.
De pés descalços, caminhou para o quarto e pegou um jeans e uma camisa limpa. Puxou para trás seus cabelos loiros molhados, franzindo as sobrancelhas. Eles estavam muito longos agora, caindo em seus olhos – algo que Maryse com certeza iria desaprovar. Ela sempre desaprovava. Ele podia não ser filho biológico dos Lightwoods, mas o tratavam como se fosse desde que ele tinha sido adotado aos dez anos, depois da morte de seu próprio pai.
A suposta morte, Jace se lembrou, e aquele buraco dentro de seu estômago voltou à tona novamente. Ele se sentiu como uma lanterna de abóbora durante os últimos dias: como se as suas tripas tivessem sido arrancadas com um garfo e despejadas em uma pilha, enquanto um sorriso forçado permanecia engessado em seu rosto. Várias vezes se perguntou se alguma coisa que ele pensava sobre a sua vida, ou de si próprio, havia sido verdade. Achava que era um órfão, e não era. Achava que era filho único, e tinha uma irmã.
Clary.
A dor veio novamente, mais forte. Ele a empurrou para baixo. Seus olhos caíram sobre o pedaço de espelho quebrado que descansava em cima de sua penteadeira, ainda refletindo os galhos verdes e um céu azul de diamante. Era quase crepúsculo agora em Idris: o céu estava escuro como cobalto.
Sufocando o vazio, Jace colocou suas botas com força e se conduziu escadas abaixo para a biblioteca.
Ele se perguntou, enquanto se movia com barulho nos degraus de pedra abaixo, o que Maryse precisava falar em particular. Parecia querer arrastá-lo e castigá-lo. Ele não conseguia se lembrar da última vez que ela tinha descido uma mão sobre ele. Os Lightwood não davam castigos corporais – uma grande mudança ao ser trazido de Valentim, que tramava todos os tipos de castigos dolorosos para incentivar a obediência.
A pele de Caçador de Sombras de Jace sempre se curava, cobrindo tudo, mesmo o pior de todos os castigos. Nos dias e semanas após seu pai morrer, Jace podia se lembrar de procurar por cicatrizes em seu corpo, por alguma marca que seria um símbolo, uma recordação que o ligasse fisicamente a memória do seu pai.
Chegou à biblioteca e bateu uma vez antes de empurrar a porta e abri-la. Maryse estava ali, sentada na antiga cadeira de Hodge perto do fogo. A luz fluía através das janelas altas e Jace podia ver os toques de cinza em seus cabelos. Ela estava segurando uma taça de vinho tinto; havia uma garrafa para servir vinho sobre a mesa ao lado dela.
— Maryse — ele disse.
Ela saltou um pouco, derramando um pouco do vinho.
— Jace. Não ouvi você chegar.
Ele não se moveu.
— Você se lembra daquela música que costumava cantar para Isabelle e Alec quando eles eram pequenos e tinham medo do escuro, para fazê-los dormir?
Maryse pareceu ficar surpresa.
— Do que você está falando?
— Eu costumava ouvir você através das paredes. O quarto de Alec era ao lado do meu.
Ela não disse nada.
— Era em francês — Jace continuou — a música.
— Não sei por que você se lembrou de algo como isso.
Ela olhou para ele como se Jace a estivesse acusando de alguma coisa.
— Você nunca cantou para mim.
Houve uma pausa quase imperceptível.
— Ah. Você nunca teve medo do escuro.
— Que tipo de criança de dez anos de idade nunca tem medo do escuro?
Suas sobrancelhas se levantaram.
— Sente-se, Jonathan. Agora.
Ele foi lentamente, o suficiente para irritá-la, atravessando toda a sala e se atirando em um dos lugares ao lado da mesa.
— Prefiro que você não me chame de Jonathan.
— Por que não? É o seu nome — ela olhou para ele, considerando — há quanto tempo você sabe?
— Sabe o quê?
— Não seja estúpido. Você sabe exatamente o que estou perguntando. — Ela virou a taça em seus dedos. — Há quanto tempo você sabe que Valentim é o seu pai?
Jace considerou e descartou várias respostas. Normalmente, ele poderia ter mudado o rumo da conversa com Maryse, fazendo-a rir. Ele era uma das únicas pessoas no mundo que poderia fazê-la rir.
— Quase o tanto de tempo que você.
Maryse balançou a cabeça lentamente.
— Eu não acredito nisso.
Jace se sentou ereto. Suas mãos estavam em punhos onde repousavam sobre os braços da cadeira. Ele podia ver um ligeiro tremor em seus dedos, e imaginou se já tinha tido isso antes. Achou que não. Suas mãos sempre tinham sido tão firmes quanto o seu batimento cardíaco.
— Você não acredita em mim?
Ele ouviu a incredulidade de sua própria voz e tremeu no íntimo. Claro que ela não acreditava nele. O que tinha sido evidente desde o momento em que tinha chegado em casa.
— Não faz sentido, Jace. Como você não pode saber quem é seu próprio pai?
— Ele me disse que ele era Michael Wayland. Vivíamos no país e na casa de Wayland...
— Um bonito toque — Maryse falou — e seu nome? Qual é o seu verdadeiro
nome?
— Você sabe meu verdadeiro nome.
— Jonathan Christopher. Eu sabia que este era o nome do filho de Valentim. Eu sabia que Michael tinha dado a seu filho o nome de Jonathan também. É um nome comum de Caçador de Sombras – nunca pensei que fosse estranho que eles compartilhassem isso, e o segundo nome do menino de Michael, eu nunca perguntei. Mas agora não consigo imaginar. Qual era o verdadeiro nome do meio do filho de Michael Wayland? Há quanto tempo Valentim esteve planejando o que ia fazer? Há quanto tempo ele sabia que iria assassinar Jonathan Wayland...? — Ela se interrompeu, seus olhos fixados em Jace. — Você nunca se pareceu com Michael, sabia? Mas às vezes as crianças não se parecem como seus pais. Eu não pensei sobre isso antes. Mas agora posso ver Valentim em você. O jeito como você olha para mim. Este desafio. Você não se importa com o que eu disse, não é?
Mas ele se importava. Tudo estaria bem se ele tivesse certeza de que ela não poderia perceber isso.
— Faria diferença se eu me importasse?
Ela colocou a taça sobre a mesa ao seu lado. Estava vazia.
— E você responde perguntas com perguntas lançadas a você, do jeito como Valentim sempre fazia. Talvez eu devesse ter sabido.
— Talvez não. Eu continuo sendo exatamente a mesma pessoa. O que eu tenho sido há sete anos. Nada mudou em mim. Se eu não fazia você lembrar de Valentim antes, não vejo o porque eu o faria agora.
Ela moveu seu olhar sobre ele e o afastou como se não pudesse suportar vê-lo diretamente.
— Certamente quando falávamos sobre Michael, você devia saber que não era possível ser sobre seu pai. As coisas que nós dissemos sobre ele nunca poderiam ser aplicadas a Valentim.
— Vocês diziam que ele era um bom homem — a raiva girava dentro dele. — Um corajoso Caçador de Sombras. Um pai carinhoso. Eu pensei que aquilo fosse suficientemente.
— E fotografias? Você deve ter visto fotografias de Michael Wayland e percebido que ele não era o homem que você chamava de pai — ela mordeu seu lábio — me ajude com algo, Jace.
— Todas as fotografias foram destruídas na Revolta. Foi o que você me disse. Agora me pergunto se esse não foi o motivo de Valentim ter queimado todas elas, assim ninguém poderia saber quem estava no Círculo. Eu nunca tive uma fotografia do meu pai — Jace disse, e se perguntou se soava tão amargo quanto se sentia.
Maryse colocou uma mão em sua têmpora e a massageou como se sua cabeça estivesse doendo.
— Eu não acredito nisso — ela disse, como se para si mesma — isso é loucura.
— Então não acredite nisso. Acredite em mim — Jace respondeu, e sentiu o tremor em suas mãos aumentar.
Ela deixou cair as mãos.
— Você não acha que eu quero? — ela desabafou, e por um momento, Jace ouviu na voz dela o eco da Maryse que entrava no quarto dele a noite quando ele tinha dez anos e fitava com os olhos secos o teto, pensando no pai. Ela sentava em sua cama até que ele dormisse, pouco antes do amanhecer.
— Eu não sei — Jace respondeu — quando ele me perguntou se queria ir com ele de volta para Idris, eu disse não. Ainda estou aqui. Isso não conta nada?
Ela voltou a olhar a garrafa, como se considerando outro drink, então pareceu descartar a ideia.
— Eu gostaria que contasse — ela respondeu — mas há tantas razões para que seu pai pudesse querer que você continuasse no Instituto. Quando se trata de Valentim, eu não posso me dar ao luxo de confiar em ninguém tocado por sua influência.
— A influência dele tocou você — Jace replicou, e instantaneamente lamentou pelo olhar que apareceu no rosto dela.
— E eu o repudio ele — Maryse treplicou — e você? Você pode? — Seus olhos azuis eram da mesma cor dos de Alec, mas Alec nunca tinha olhado para ele daquele jeito. — Me diga que você odeia ele, Jace. Me diga que você odeia aquele homem e tudo o que ele defende.
Um momento se passou, e mais outro. Jace, olhando para baixo, viu que suas mãos estavam tão apertadas que os nós dos dedos estavam brancos e duros como os ossos em uma espinha de peixe.
— Eu não posso dizer isso.
Maryse sugou sua respiração.
— Por que não?
— Por que você não pode dizer que confia em mim? Eu vivi com você quase metade da minha vida. Você deveria me conhecer, com certeza, melhor do que isso.
— Você soa tão sincero, Jonathan. Você sempre foi, mesmo quando era um garotinho tentando colocar a culpa em Isabelle ou Alec, de algo que você fazia de errado. Eu conheci apenas uma pessoa que podia soar tão persuasiva quanto você.
Jace sentiu um gosto metálico em sua boca.
— Você quer dizer o meu pai.
— Havia apenas dois tipos de pessoas no mundo para Valentim. Aquelas que eram do Círculo e aquelas que eram contra ele. Estes últimos eram os inimigos, e os primeiros eram as armas de seu arsenal. Eu o vi tentar mudar cada um de seus amigos, mesmo sua própria esposa, em uma arma para a Causa – e você quer que eu acredite que ele não faria o mesmo com o seu próprio filho? — Ela balançou a cabeça. — Eu o conheci melhor do que isso.
Pela primeira vez, Maryse olhou para ele com mais tristeza do que com raiva.
— Você foi a seta atirada diretamente no coração da Clave, Jace. Você é a seta de Valentim. Quer você saiba, quer não.

***

Clary fechou a porta do quarto da TV com o volume alto e foi à procura de Simon. O encontrou na cozinha, curvado sobre a pia com a água correndo. Suas mãos estavam sob a torneira.
— Simon?
A cozinha era brilhante, de um amarelo alegre, as paredes decoradas com emoldurados desenhos a lápis e giz que Simon e Rebecca haviam feito na escola. Rebecca tinha algum talento para desenho, você podia dizer, mas nos rabiscos de Simon todas as pessoas pareciam como parquímetros com tufos de cabelos.
Ele não tinha virado até agora, embora ela pudesse dizer pela firmeza dos músculos em seus ombros que ele a tinha ouvido. Clary foi até a pia, descansando uma mão levemente em suas costas. Sentiu a acentuada saliência de sua espinha através do fino algodão de sua camiseta e se perguntou se o amigo tinha perdido peso. Ela não podia dizer só de olhar para ele, mas olhar para Simon era como se olhar em um espelho – quando você vê alguém todo dia, nem sempre nota as pequenas mudanças em sua aparência exterior.
— Você está bem?
Ele revolveu a água com um duro movimento de seu punho.
— Claro. Eu estou bem.
Ela deslizou um dedo contra o queixo dele e virou seu rosto na direção do dela. Ele estava suando, seu cabelo escuro caindo sobre sua testa estava preso à sua pele, mas o ar que vinha pela janela semiaberta estava frio.
— Você não parece bem. Foi o filme?
Ele não respondeu.
— Me desculpe. Eu não deveria ter rido, é só que...
— Você não se lembra? — Sua voz soou rouca.
— Eu... — a voz de Clary morreu.
Aquela noite, recordar, parecia como correr ao longo de um nevoeiro de sangue e suor, de sombras vislumbradas, de entradas que caiam através do espaço. Ela se lembrava dos rostos brancos dos vampiros, como papel recortado contra a escuridão, se lembrou de Jace abraçando-a, gritando roucamente em seu ouvido.
— Não realmente. É um borrão.
Seu olhar se moveu passando por ela, e em seguida, de volta.
— Eu pareço diferente para você? — ele perguntou.
Ela levantou seus olhos para os dele. Eram da cor de café preto – não realmente preto, mas um rico castanho sem um toque de cinza ou avelã. Ele parecia diferente? Podia haver um toque extra de confiança no jeito como ele ficou desde o dia em que ele matou o Abbadon, o Grande Demônio; mas também havia cautela nele, como se estivesse assistindo ou esperando alguma coisa. Era algo que ela tinha notado em Jace também. Talvez aquilo fosse apenas a consciência da mortalidade.
— Você continua o mesmo Simon.
Ele semicerrou seus olhos em alivio, e enquanto seus cílios se abaixavam, ela viu como os ossos de seu rosto pareciam angulares. Ele tinha perdido peso, pensou, e estava prestes a dizer isso quando Simon se inclinou para baixo e a beijou.
Ela ficou tão surpresa com a sensação da boca dele sobre a sua que ficou toda rígida, agarrando o canto da pia para se apoiar. No entanto, não o empurrou para longe, claramente fazendo disso um sinal de encorajamento. Simon deslizou sua mão atrás da cabeça dela e aprofundou o beijo, separando os lábios dela com os seus. Sua boca era suave, mais suave do que a de Jace, e a mão que se fechava sobre seu pescoço era quente e gentil. Ele tinha gosto de sal.
Ela deixou seus olhos se fecharem e por um momento flutuou vertiginosamente na escuridão e no calor, sentiu os dedos dele movendo-se através de seus cabelos. Quando um estridente toque de telefone cortou o seu entorpecimento, Clary pulou para trás como se tivesse sido empurrada para longe, embora ele não tivesse se movido. Eles olharam um para o outro por um momento, em selvagem confusão, como duas pessoas que se encontram de repente transportadas para um estranho cenário em que nada é familiar.
Simon se afastou primeiro para alcançar o telefone pendurado na parede ao lado do armário de temperos.
— Alô? — ele soava normal, mas o peito dele subia e descia rápido. Segurou o fone para Clary. — É para você.
Clary pegou o telefone. Ela podia sentir o coração batendo na garganta, como as asas de um inseto preso debaixo de sua pele. É Luke, ligando do hospital. Alguma coisa aconteceu com minha mãe.
Ela engoliu.
— Luke? É você?
— Não. É Isabelle.
— Isabelle? — Clary olhou para cima e viu Simon olhando para ela, inclinado contra a pia. O rubor em suas bochechas tinha sumido. — Por que você... quero dizer, o que houve?
Havia um nó na voz da outra garota, como se ela tivesse chorado.
— Jace está aí?
Clary afastou o telefone, então pôde olhar para ele antes de trazê-lo de volta ao ouvido.
— Jace? Não. Por que ele estaria aqui?
A resposta de Isabelle ecoou pela linha telefônica como um suspiro.
— O problema é que... Jace se foi.

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