Capítulo 1 - A Porção do Cálice

— Imagine uma cena relaxante. A praia em Los Angeles, areia branca, água azul batendo, você caminhando na beira da praia...
Jace abriu um dos olhos.
— Isso parece muito romântico.
O garoto sentado à frente dele suspirou e passou as mãos pelo cabelo escuro bagunçado. Embora fosse um dia frio do mês de dezembro, os lobisomens não sentiam a temperatura tão intensamente quanto os humanos, e Jordan havia tirado a jaqueta e arregaçado as mangas da camisa. Eles estavam sentados frente a frente em um trecho de grama escurecida numa clareira do Central Park, ambos com as pernas cruzadas, as mãos nos joelhos e as palmas viradas para cima.
Uma rocha se projetava e se erguia no chão perto deles. Ela se partia em pedregulhos maiores e menores, e, acima de um dos pedregulhos maiores, estavam Alec e Isabelle Lightwood. Quando Jace ergueu os olhos, Isabelle o encarou e deu um aceno de incentivo. Alec, ao observar o gesto, deu um tapinha no ombro dela. Jace percebera que ele dera uma bronca em Izzy, provavelmente dizendo para ela não interromper sua concentração. Ele sorriu para si; nenhum deles realmente tinha uma razão para estar ali, mas foram mesmo assim, “para dar apoio moral”. No entanto, Jace suspeitava que tivesse mais a ver com o fato de Alec odiar não ter o que fazer nesses dias, de Isabelle odiar que o irmão estivesse solitário e de ambos estarem evitando os pais e o Instituto.
Jordan estalou os dedos debaixo do nariz de Jace.
— Está prestando atenção?
Jace franziu a testa.
— Eu estava, até nós entrarmos no território dos anúncios classificados ruins.
— Ora, que tipo de coisa faz você se sentir calmo e em paz?
Jace tirou as mãos dos joelhos – a posição de lótus lhe dava câimbras nos pulsos – e se apoiou com os braços. O vento frio chacoalhava as poucas folhas secas que ainda estavam presas aos galhos das árvores, as quais apresentavam uma elegância frugal contra o céu pálido de inverno, como desenhos feitos com caneta e tinta.
— Matar demônios — falou ele. — Uma boa matança limpa é muito relaxante. As matanças bagunçadas são mais entediantes porque depois você precisa limpar tudo...
— Não — Jordan ergueu as mãos.
As tatuagens eram visíveis debaixo das mangas da camisa. Shanti, shanti, shanti. Jace sabia que isso significava “a paz que ultrapassa o entendimento” e que a palavra deveria ser dita três vezes para acalmar a mente. Mas nada parecia acalmar a dele atualmente. O fogo em suas veias também acelerava o pensamento, as ideias surgiam depressa demais, uma depois da outra, como fogos de artifício estourando. Os sonhos eram tão vívidos e saturados de cores quanto pinturas a óleo. Ele tentara tirar aquilo de dentro de si, passara horas e horas na sala de treinamento, com sangue, hematomas, suor e, uma vez, com dedos quebrados. Mas não conseguira nada senão irritar Alec com pedidos de símbolos de cura e, em uma ocasião memorável, acidentalmente incendiou uma das vigas.
Foi Simon quem observou que o colega de quarto meditava todos os dias, e que tal hábito acalmava os ataques de raiva incontroláveis que costumavam ser parte da transformação em lobisomem. A partir daí, fora um pequeno salto para Clary sugerir que Jace “poderia muito bem tentar”, e ali estavam eles, na segunda sessão. A primeira terminara com Jace deixando uma marca de queimadura no piso de madeira de Simon e Jordan, por isso, Jordan sugerira que eles ficassem ao ar livre para a segunda rodada, a fim de evitar mais danos à propriedade.
— Sem mortes — falou Jordan. — Estamos tentando fazer você ficar tranquilo. Sangue, mortes, guerra não são coisas tranquilas. Não há mais nada de que goste?
— Armas — falou Jace. — Eu gosto de armas.
— Estou começando a pensar que você tem um probleminha de filosofia pessoal aqui.
Jace inclinou-se para a frente, as palmas apoiadas na grama.
— Sou um guerreiro — disse ele. — Fui criado como um guerreiro. Não tinha brinquedos, eu tinha armas. Dormi com uma espada de madeira até completar 5 anos. Meus primeiros livros foram sobre demonologias medievais, cheios de iluminuras. As primeiras canções que aprendi foram cânticos para banir demônios. Sei o que me dá paz, e não são praias nem gorjeios de passarinhos em florestas tropicais. Quero uma arma e uma estratégia para vencer.
Jordan olhou fixamente para ele.
— Então está dizendo que o que te dá paz é a guerra.
Jace jogou as mãos para o alto e ficou em pé, tirando a grama do jeans.
— Agora você entendeu. — Ele ouviu o estalo da grama seca e deu meia-volta, a tempo de ver Clary se abaixar através de uma abertura entre duas árvores e emergir na clareira, com Simon a apenas alguns passos atrás. Clary estava com as mãos nos bolsos traseiros da calça e ria.
Jace os observou por um instante. Havia alguma coisa em olhar pessoas que não sabiam que estavam sendo observadas. Ele se recordou da segunda vez que viu Clary, do outro lado do salão principal do Java Jones. Ela estava rindo e conversando com Simon do mesmo jeito que fazia agora. Ele se lembrou da pontada desconhecida de ciúme no peito, dificultando a respiração, e da sensação de satisfação quando ela abandonou Simon e foi conversar com ele.
As coisas mudaram. Ele deixara de ser consumido pelo ciúme de Simon e passara a ter um respeito relutante pela tenacidade e coragem do rapaz, até efetivamente considerá-lo um amigo, embora duvidasse que um dia fosse capaz de dizer isso em voz alta. Jace observou quando Clary olhou por cima do ombro e soprou um beijo enquanto o cabelo vermelho balançava no rabo de cavalo. Ela era tão pequena, delicada, semelhante a uma boneca, pensara uma vez, antes de descobrir como a garota era forte.
Clary foi até Jace e Jordan, e Simon escalou o solo rochoso aos saltos, até o local em que Alec e Isabelle estavam sentados; ele desabou ao lado de Isabelle, que, no mesmo instante, se inclinou para dizer algo ao seu ouvido, a cortina de cabelos pretos encobrindo o rosto dela.
Clary parou na frente de Jace, balançando nos calcanhares com um sorriso.
— Como estão as coisas?
— Jordan quer que eu pense numa praia — comentou Jace, em tom de tristeza.
— Ele é teimoso — advertiu Clary. — Está dizendo que gosta disso.
— Não estou, não — retrucou Jace.
Jordan fez um barulho, mostrando desagrado.
— Se não fosse por mim, você estaria correndo pela Madison Avenue e atirando faíscas por todos os orifícios. — O garoto se pôs de pé, encolheu os ombros cobertos pelo casaco verde e falou para Clary: — Seu namorado é doido.
— É, mas ele é gostoso — retrucou Clary. — É isso.
Jordan fez uma careta de brincadeira.
— Vou cair fora. Tenho que encontrar Maia no centro.
Ele fez um gesto de despedida engraçadinho e foi embora, se enfiando entre as árvores e desaparecendo com o passo silencioso do lobo que era debaixo da própria pele.
Jace observou sua partida. Salvadores improváveis, pensou. Seis meses atrás, ele não teria acreditado se alguém dissesse que ia acabar tendo aulas de comportamento com um lobisomem.
Jordan, Simon e Jace meio que tinham começado uma amizade nos últimos meses. Jace não conseguia evitar usar o apartamento deles como um refúgio, que o mantinha distante das pressões diárias do Instituto e distante das lembranças de que a Clave ainda não estava preparada para a guerra contra Sebastian.
Erchomai. A palavra tocou algum ponto da mente de Jace com a delicadeza de uma pena e o fez estremecer. Ele viu uma asa de anjo, arrancada do corpo, estirada numa poça de sangue dourado. Estou chegando.

***

— O que houve? — perguntou Clary; Jace subitamente pareceu estar a milhões de quilômetros dali.
Desde que o fogo celestial entrara em seu corpo, ele tendia a divagar por mais tempo. Clary tinha a sensação de que era um efeito colateral pelo fato de ele reprimir as emoções. Ela sentiu uma pontada de dor. Quando o conhecera, Jace era muito controlado e só um tiquinho de seu eu verdadeiro vazava pelas fissuras da armadura pessoal, como a luz passando pelas rachaduras de uma parede. Foi necessário um longo tempo para romper todas aquelas defesas.
Agora, porém, o fogo em suas veias o obrigava a se controlar, a engolir as emoções em prol da segurança. Mas quando o fogo se extinguisse, será que ele seria capaz de demolir aquelas defesas?
Ele piscou; a voz dela o chamara de volta. O sol de inverno estava alto e frio e destacava os ossos do rosto de Jace, além de acentuar as olheiras. Ele esticou a mão para segurar a dela e respirou fundo.
— Você está certa — falou, usando uma voz baixa e mais séria que ele reservava apenas para ela. — Isto está ajudando... as lições com Jordan. Está ajudando, e eu gosto disto.
— Eu sei — Clary segurou o pulso dele.
A pele era quente sob o toque; ele parecia ter ficado alguns graus mais quente que o normal desde o encontro com a Gloriosa. O coração dele ainda batia no ritmo familiar, regular, mas o sangue nas veias parecia bombear com a energia cinética do fogo prestes a arder.
Ela ficou na ponta dos pés para beijar a bochecha dele, mas Jace se virou e os lábios se tocaram. Eles não tinham feito nada além de se beijar desde que o fogo queimara pela primeira vez no sangue dele, e mesmo isso era feito com muita cautela. Jace tomava cuidado agora, a boca roçando a dela delicadamente, a mão segurando o ombro. Por um momento, seus corpos se encontraram, e ela sentiu a batida e a pulsação do sangue dele. Jace a puxou para si, e uma faísca direta e forte passou no meio deles, como o zumbido de eletricidade estática.
Jace interrompeu o beijo e deu um passo para trás, com um suspiro. Antes que Clary pudesse dizer alguma coisa, um coro de aplausos sarcásticos irrompeu da colina mais próxima. Simon, Isabelle e Alec acenavam para eles. Jace fez uma mesura enquanto Clary dava um passo para trás, levemente constrangida, os polegares enfiados no cós do jeans.
Jace soltou um suspiro.
— Devemos nos juntar aos nossos amigos irritantes e voyeurs?
— Infelizmente, é o único tipo de amigos que nós temos.
Clary bateu o ombro contra o braço dele, e os dois se dirigiriam para as rochas. Simon e Isabelle estavam lado a lado e conversavam em voz muito baixa. Alec estava sentado um pouco afastado e fitava a tela de seu celular com uma expressão de concentração intensa.
Jace desabou ao lado de seu parabatai.
— Ouvi dizer que se você encarar tempo suficiente uma coisa dessas, ela toca.
— Ele mandou uma mensagem de texto para Magnus — explicou Isabelle, olhando por cima do ombro com ar de reprovação.
— Eu não — respondeu Alec automaticamente.
— Mandou, sim — retrucou Jace, e esticou o pescoço para olhar por cima do ombro de Alec. — E está telefonando. Dá para ver as chamadas realizadas.
— É aniversário dele — explicou Alec, e fechou o telefone.
Ele parecia menor nos últimos dias, quase esquelético no pulôver azul desbotado com furinhos nos cotovelos, e os lábios mordidos e rachados. Clary sentia pena dele. Depois que Magnus terminara com ele, Alec passara a primeira semana após o rompimento numa confusão de tristeza e descrença. Nenhum deles conseguia realmente acreditar. Ela sempre pensara que Magnus amava Alec, que realmente o amava; era evidente que Alec também tinha acreditado nisso.
— Eu não queria que ele pensasse que eu não... que pensasse que eu me esqueci.
— Você está com saudades.
Alec deu de ombros.
— Olhe só quem fala: “Oh, eu a amo. Oh, ela é minha irmã. Oh, por quê, por quê, por quê...”
Jace jogou um punhado de folhas secas em Alec e fez o garoto cuspir. Isabelle estava rindo.
— Você sabe que ele tem razão, Jace.
— Me passe o telefone — disse Jace, ignorando Isabelle. — Ande, Alexander.
— Não é da sua conta — falou Alec e afastou o celular. — Esqueça isso tudo, está bem?
— Você não come, não dorme, fica olhando para o telefone, e eu é que tenho que esquecer tudo isso? — retrucou Jace.
Havia uma quantidade surpreendente de agitação em sua voz. Clary sabia como a infelicidade de Alec o incomodava, mas não tinha certeza se Alec tinha noção disso. Em circunstâncias normais, Jace teria matado, ou ao menos ameaçado, qualquer um que magoasse Alec; mas agora era diferente. Jace gostava de vencer, mas não dava para vencer nada com o coração partido, mesmo que fosse o de outra pessoa. Mesmo que fosse de uma pessoa que você amasse.
Jace se inclinou e tirou o telefone da mão do parabatai. Alec protestou e esticou o braço para pegar o aparelho, mas Jace o afastou com uma das mãos, rolando pela tela para ver as mensagens habilmente com a outra mão. “Magnus, retorne a ligação. Preciso saber se você está bem...” Ele balançou a cabeça.
— Tudo bem, não. Não mesmo. — Com um movimento decidido, quebrou o telefone ao meio. A tela ficou em branco enquanto Jace deixava as peças caírem no chão. — Pronto.
Alec baixou os olhos para as peças quebradas sem acreditar.
— Você QUEBROU meu TELEFONE.
Jace deu de ombros.
— Caras não permitem que outros caras fiquem ligando para outros caras. Tá, saiu errado. Amigos não deixam que amigos fiquem ligando para ex-namorados e depois desligando. Sério. Você tem que parar.
Alec parecia furioso.
— Então você quebrou meu telefone novinho em folha? Valeu mesmo.
Jace sorriu com serenidade e se recostou na rocha.
— De nada.
— Veja o lado bom — emendou Isabelle. — Você não vai mais receber as mensagens da mamãe. Ela me enviou seis hoje. Eu desliguei o telefone. — E ela bateu no bolso com um olhar expressivo.
— O que ela quer? — perguntou Simon.
— Reuniões constantes — falou Isabelle. — Tomar depoimentos. A Clave continua querendo ouvir o que aconteceu quando enfrentamos Sebastian em Burren. Todos nós temos que dar informações, tipo, umas cinquenta vezes. Como Jace absorveu o fogo celestial da Gloriosa. Descrições dos Caçadores de Sombras malignos, do Cálice Infernal, das armas que eles usaram, dos símbolos que estavam marcados neles. O que vestiam, o que Sebastian vestia, o que todo mundo vestia... tipo tele-sexo, só que chato.
Simon fez um barulho de quem se engasgava.
— O que achamos que Sebastian quer — continuou Alec. — Quando ele vai voltar. O que vai fazer quando voltar.
Clary apoiou os cotovelos nos joelhos.
— É sempre bom saber que a Clave tem um plano cuidadoso e confiável.
— Eles não querem acreditar — falou Jace, e fitou o céu. — Esse é o problema. Não importa quantas vezes contemos o que vimos em Burren. Nem quantas vezes digamos o quanto os Crepusculares são perigosos. Eles não querem acreditar que os Nephilim realmente poderiam ser corrompidos. Esses Caçadores de Sombras poderiam matar os Caçadores de Sombras.
Clary presenciara quando Sebastian criara os primeiros Crepusculares. Ela vira a expressão vazia em seus olhos, a fúria com que lutavam. Eles a apavoravam.
— Eles não são mais Caçadores de Sombras — acrescentou ela em voz baixa. — Aliás, nem pessoas eles são mais.
— É difícil acreditar, se você não viu — disse Alec. — E Sebastian tem poucos deles. Um grupo pequeno, disperso... eles não querem acreditar que seja uma ameaça de fato. Ou, se for uma ameaça, preferem acreditar que é uma ameaça maior para nós, para Nova York, mas não para os Caçadores de Sombras como um todo.
— Eles não estão errados: se Sebastian se importa com alguma coisa é com Clary — falou Jace, e Clary sentiu um calafrio na espinha, uma mistura de nojo e apreensão. — Ele não possui emoções de fato. Não como nós. Mas, se as tivesse, ele as teria por causa dela. E por causa de Jocelyn. Ele a odeia. — Jace fez uma pausa, com ar pensativo. — Mas não acho que tentaria um ataque direto. Seria muito... óbvio.
— Espero que você tenha dito isso à Clave — falou Simon.
— Umas mil vezes — informou Jace. — Não creio que tenham muita consideração pelas minhas ideias.
Clary baixou o olhar para as próprias mãos. Tinha sido interrogada pela Clave, assim como o restante deles, e respondera a todas as perguntas. No entanto ainda havia coisas sobre Sebastian que ela não revelara, que não contara a ninguém. As coisas que ele dissera querer dela.
Ela não havia sonhado muito desde que eles voltaram de Burren com as veias de Jace cheias de fogo, mas quando tinha pesadelos, eram sobre o irmão.
— É como tentar lutar contra um fantasma — falou Jace. — Eles não são capazes de rastrear Sebastian, não conseguem encontrá-lo nem encontrar os Caçadores de Sombras que ele transformou.
— Eles estão fazendo o que podem — disse Alec. — Estão reforçando as barreiras ao redor de Idris e Alicante. Todas as barreiras, na verdade. E enviaram dezenas de especialistas para a Ilha de Wrangel.
A Ilha de Wrangel era a sede de todas as barreiras do mundo, dos feitiços que protegiam o planeta, e Idris em especial, dos demônios e de invasões demoníacas. A rede de barreiras não era perfeita, por isso algumas vezes os demônios conseguiam passar por elas mesmo assim, mas Clary só seria capaz de imaginar a gravidade da situação se as barreiras não existissem.
— Ouvi mamãe dizer que os feiticeiros do Labirinto Espiral andaram procurando um meio de reverter os efeitos do Cálice Infernal — falou Isabelle. — Sem dúvida, seria mais fácil se eles tivessem cadáveres para estudar...
Ela parou a frase no meio; Clary sabia o porquê. Os corpos dos Caçadores de Sombras malignos abatidos em Burren tinham sido trazidos de volta à Cidade dos Ossos para que os Irmãos do Silêncio os examinassem. Porém isto jamais aconteceu. Da noite para o dia, os corpos entraram em decomposição até ficarem como cadáveres com décadas de putrefação. Não havia nada a fazer além de queimar os restos.
Isabelle recuperou a voz:
— E as Irmãs de Ferro estão fabricando armas em massa. Vamos receber milhares de lâminas serafim, espadas, chakrams, tudo... forjado no fogo celestial. — Ela olhou para Jace.
Nos dias que se seguiram imediatamente à batalha em Burren, quando o fogo se espalhou pelas veias de Jace com violência suficiente para fazê-lo gritar algumas vezes por causa da dor, os Irmãos do Silêncio o examinaram repetidamente, o testaram com gelo e chamas, com metal bento e ferro frio, a fim de tentar ver se havia algum modo de retirar o fogo dele, de contê-lo.
Eles não encontraram nem sequer um modo. O fogo da Gloriosa, depois de capturado numa lâmina, parecia não ter pressa de habitar outra, nem de abandonar o corpo de Jace em troca de qualquer tipo de receptáculo, na verdade. O Irmão Zacarias dissera a Clary que, nos primórdios dos Caçadores de Sombras, os Nephilim tentaram capturar o fogo celestial dentro de uma arma, algo que pudessem brandir contra os demônios. Jamais conseguiram, e, um dia, as lâminas serafim se tornaram as armas escolhidas. No fim, mais uma vez, os Irmãos do Silêncio tinham desistido.
O fogo da Gloriosa contorcia-se nas veias de Jace como uma serpente, e, na melhor das hipóteses, ele só poderia ter esperanças de controlá-lo para não ser destruído por ele.
Ouviram o bipe alto de uma mensagem de texto chegando no celular; Isabelle tinha ligado o telefone.
— Mamãe diz para voltarmos ao Instituto agora — falou. — Tem uma reunião. Temos que participar. — A garota ficou em pé e espanou a terra do vestido. — Eu te convidaria para ir lá — disse ela a Simon — mas sabe como é, tem aquela história de ser banido por ser um morto-vivo e tal.
— Eu me lembro disso — concordou Simon, e se pôs de pé.
Clary fez um esforço para se levantar e estendeu a mão para Jace, que a aceitou e se levantou.
— Simon e eu vamos fazer compras de Natal — comentou ela. — E ninguém pode ir com a gente porque precisamos comprar os presentes de vocês.
Alec pareceu estar horrorizado.
— Ai, Deus. Então isso significa que preciso comprar presentes para vocês?
Clary balançou a cabeça.
— Caçadores de Sombras não... comemoram o Natal? — No mesmo momento, ela pensou no jantar desgastante de Ação de Graças na casa de Luke, quando pediram a Jace para cortar o peru e ele o abateu com uma espada até sobrarem pouco mais que alguns resquícios da ave. Talvez não.
— Nós trocamos presentes e comemoramos a mudança das estações — falou Isabelle. — Costumava haver uma celebração do Anjo no inverno, no dia em que os Instrumentos Mortais foram entregues a Jonathan Caçador de Sombras. Mas acho que os Caçadores de Sombras se aborreceram por serem deixados de lado em todas as comemorações mundanas, por isso muitos Institutos têm festas de Natal. A de Londres é a mais famosa. — A garota deu de ombros. — Mas não acho que a gente vá fazer isso... este ano.
— Ora — Clary sentiu-se mal. Sem dúvida eles não queriam festejar o Natal depois de perder Max. — Bem, deixem ao menos a gente comprar presentes para vocês. Não é preciso ter uma festa ou coisa assim.
— Exato — Simon ergueu os braços para o alto. — Tenho que comprar presentes de Chanuká. É obrigatório pela lei judaica. O Deus dos Judeus é um Deus zangado. E ele gosta muito de presentes.
Clary sorriu para ele. Estava ficando cada vez mais fácil dizer a palavra “Deus” ultimamente.
Jace suspirou e beijou Clary – um beijo breve de despedida na testa dela, mas que a fez estremecer. O fato de não poder tocar Jace nem beijá-lo de verdade estava começando a deixá-la nervosa. Ela prometera a ele que isso nunca importaria, que o amaria mesmo que nunca pudessem voltar a se tocar, mas odiava isso, de qualquer forma, odiava sentir falta do modo reconfortante como seus corpos sempre se encaixavam.
— Vejo você mais tarde — prometeu Jace. — Vou voltar com Alec e Izzy...
— Não, você não vai, não — falou Isabelle inesperadamente. — Você quebrou o telefone de Alec. Tá certo que a gente queria fazer isso há várias semanas...
— ISABELLE — disse Alec.
— Mas o fato é, você é o parabatai de Alec e o único que não foi ver Magnus. Vá até lá e fale com ele.
— E digo o quê? — perguntou Jace. — Não dá para convencer as pessoas a não terminarem o namoro... ou talvez dê — emendou ele rapidamente ao ver a expressão de Alec. — Quem sabe? Vou tentar.
— Valeu — Alec deu um tapinha no ombro de Jace. — Ouvi dizer que você sabe ser muito charmoso quando quer.
— Ouvi dizer a mesma coisa — falou Jace, e começou a correr de costas.
Até fazendo isso ele ficava bem, pensou Clary com tristeza. E sexy. Definitivamente sexy. Ela ergueu a mão num aceno sem entusiasmo.
— Vejo você depois — gritou ela. Se eu não morrer de frustração até lá.


Os Fray nunca foram uma família religiosa, mas Clary adorava a Quinta Avenida na época do Natal. O ar tinha cheiro de castanhas torradas no açúcar, e as vitrines reluziam em prata e azul, verde e vermelho. Este ano havia imensos cristais de gelo pendurados em cada poste, e eles refletiam a luz invernal em feixes dourados. Isso sem mencionar a gigantesca árvore de Natal, no Rockefeller Center. Ela lançava sua sombra sobre eles quando Clary e Simon se esticaram pelo portão no lado do rinque de patinação, observando os turistas levando tombos enquanto tentavam se deslocar no gelo.
Clary segurava um chocolate quente, o calor da bebida se espalhando pelo corpo. Ela se sentia quase normal; ir até a Quinta Avenida para ver as vitrines e a árvore era uma tradição de inverno para ela e Simon desde sempre.
— Parece os velhos tempos, não é? — comentou ele, ecoando os pensamentos dela enquanto apoiava o queixo nos braços cruzados sobre a grade.
A garota lhe deu uma olhadela de soslaio. Simon vestia um sobretudo e um cachecol pretos que destacavam a palidez da pele. Também tinha olheiras, o que indicava que não vinha se alimentando de sangue nos últimos dias. Ele parecia o que era: um vampiro cansado e faminto.
Bem, pensou ela. Quase como nos velhos tempos.
— Tem mais gente para comprarmos presentes — confessou ela. — Além disso, tem a pergunta sempre traumática de o-que-comprar-para-alguém-no-primeiro-Natal-depois-do-início-do-namoro.
— O que comprar para o Caçador de Sombras que tem tudo — comentou Simon, e deu um sorriso.
— Jace gosta de armas mais do que tudo — falou Clary. — Gosta de livros, mas eles têm uma biblioteca imensa no Instituto. Também gosta de música clássica... — Seu rosto se iluminou. Simon era músico e, embora sua banda fosse horrível e sempre mudasse de nome (atualmente ela se chamava Suflê Mortal), ele tinha prática. — O que daria a alguém que gosta de tocar piano?
— Um piano.
— Simon.
— Um metrônomo imenso que também pudesse fazer as vezes de arma?
Clary suspirou, exasperada.
— Uma partitura. Rachmaninoff é bem difícil, mas ele gosta de um desafio.
— Boa ideia. Vou ver se tem alguma loja de música por aqui — Clary, que já havia terminado de beber o chocolate quente, jogou o copo numa lata de lixo próxima e pegou o celular. — E quanto a você? O que vai dar para Isabelle?
— Não faço a menor ideia — respondeu Simon.
Eles caminharam até a avenida, onde um fluxo constante de pedestres que olhavam as vitrines amontoava as ruas.
— Ora, o que é isso?! Isabelle é fácil.
— É da minha namorada que você está falando — Simon franziu as sobrancelhas. — Eu acho. Não tenho certeza. Nós não conversamos sobre isso. Sobre a relação, quero dizer.
— Vocês têm que ter uma DR, Simon.
— O quê?
— Vocês têm que discutir a relação, definir as coisas. O que é, para onde vai. São namorados, só estão se divertido, estão enrolados ou o quê? Quando ela vai contar para os pais? Vocês podem sair com outras pessoas?
Simon ficou pálido.
— O quê? Isso é sério?
— É sério. Mas, nesse meio-tempo... perfume! — Clary puxou Simon pelas costas do casaco e o arrastou até uma loja de cosméticos. Era imensa do lado de dentro, com fileiras de frascos reluzentes por toda parte. — E uma coisa exótica — falou ela, indo até a área dos perfumes. — Isabelle não vai querer cheirar como as outras pessoas. Vai querer cheirar a figos, vetiver ou...
— Figos? Figos têm cheiro? — Simon pareceu horrorizado; Clary estava prestes a rir dele quando o telefone vibrou. Era a mãe.
ONDE VOCÊ ESTÁ?
Clary revirou os olhos e respondeu à mensagem. Jocelyn ainda ficava nervosa ao pensar que ela estava na rua com Jace. Muito embora, conforme Clary observara, provavelmente Jace fosse o namorado mais seguro do mundo, pois ele estava proibido de: (1) se aborrecer, (2) fazer avanços no quesito sexo e (3) fazer qualquer coisa que aumentasse a adrenalina.
Por outro lado, ele tinha sido possuído; ela e a mãe ficaram observando enquanto ele, imóvel, deixava Sebastian ameaçar Luke. Clary ainda não tinha contado tudo o que vira no apartamento que dividira com Jace e Sebastian durante aquele breve intervalo fora do tempo, uma mistura de sonho e pesadelo. Ela jamais contara à mãe que Jace tinha matado alguém; havia coisas que Jocelyn não precisava saber, coisas que Clary não queria enfrentar também.
— Tem tanta coisa nesta loja que posso imaginar o que Magnus ia querer — falou Simon, e pegou um frasco de vidro de glitter corporal flutuando em algum tipo de óleo. — Comprar presentes para alguém que terminou com o seu melhor amigo viola algum tipo de regra?
— Acho que depende. Quem é seu amigo mais chegado: Magnus ou Alec?
— Alec se lembra do meu nome — falou Simon, e pôs o frasco de volta no lugar. — E eu me sinto péssimo por ele. Compreendo por que Magnus fez isso, mas Alec está tão arrasado. Acho que, quando você lamenta de verdade, a pessoa que te ama deveria te perdoar.
— Acho que depende do que você fez — opinou Clary. — E não estou me referindo a Alec... falo em geral. Tenho certeza de que Isabelle te perdoaria por alguma coisa — emendou ela rapidamente.
Simon pareceu em dúvida.
— Fique parado aí — anunciou ela, balançando um frasco perto da cabeça de Simon. — Em três minutos, vou cheirar seu pescoço.
— Ora, eu nunca... — falou Simon. — Você esperou muito tempo para dar esse passo, Fray, é o que digo.
Clary não se importou com a resposta engraçadinha; ela ainda estava pensando no que Simon tinha falado sobre perdão e se lembrar de alguém, da voz, do rosto e dos olhos de alguém. Sebastian sentado à frente dela numa mesa em Paris. Você acha que pode me perdoar? Quero dizer, você acha que é possível perdoar alguém como eu?
— Algumas coisas são imperdoáveis — disse ela. — Não sou capaz de perdoar Sebastian.
— Você não o ama.
— Não. Mas ele é meu irmão. Se as coisas fossem diferentes...
Mas não eram diferentes. Clary abandonou aquele pensamento e se inclinou para sentir o cheiro.
— Você está com cheiro de figo e damasco.
— Acha de verdade que Isabelle quer cheirar como uma bandeja de frutas secas?
— Talvez não. — Clary pegou outro frasco. — Então, o que você vai fazer?
— Quando?
Clary ergueu o olhar, refletindo sobre a diferença entre uma tuberosa e uma rosa comum, e viu Simon fitá-la com uma expressão de espanto nos olhos castanhos. Ela falou:
— Bem, não dá para morar com Jordan para sempre, não é? Tem a faculdade...
— Você não vai para a faculdade — observou ele.
— Não. Mas sou uma Caçadora de Sombras. Nós continuamos a estudar depois dos 18, somos enviados a outros Institutos... essa é a nossa faculdade.
— Não gosto da ideia de ver você indo embora. — Ele pôs as mãos nos bolsos do casaco. — Não posso ir para a faculdade — comentou. — Minha mãe não vai pagar por ela, e eu não posso obter crédito estudantil. Legalmente, estou morto, na pior. Além disso, quanto tempo levaria para alguém na faculdade perceber que eles envelhecem, e eu não? Garotos de 16 anos não se parecem com veteranos, não sei se já percebeu.
Clary guardou o frasco.
— Simon...
— Talvez eu devesse comprar alguma coisa para minha mãe — falou amargamente. — Que presente diz “Obrigado por me botar para fora de casa e fingir que morri”?
— Orquídeas?
Mas o humor de Simon já não estava mais para brincadeiras.
— Talvez não seja como nos velhos tempos — falou ele. — Normalmente eu compraria lápis ou material de desenho para você, só que você não desenha mais, né? A não ser com a estela? Você não desenha, e eu não respiro. Não é como no ano passado.
— Talvez você devesse conversar com Raphael — disse Clary.
— Raphael?
— Ele sabe como os vampiros vivem. Como ganham a vida, ganham dinheiro, arrumam apartamentos. Ele sabe essas coisas e poderia te ajudar.
— Poderia, mas não ajudaria — observou Simon, e franziu a testa. — Eu não ouvi falar nada do bando de Dumort desde que Maureen substituiu Camille. Sei que Raphael é o sucessor dela. E tenho quase certeza de que eles ainda acham que carrego a Marca de Caim; caso contrário, teriam mandado alguém atrás de mim agora. Questão de tempo.
— Não. Eles sabem que não é para tocar em você. Seria uma guerra contra a Clave. O Instituto foi muito claro — disse Clary. — Você está protegido.
— Clary, nenhum de nós está protegido.
Antes que Clary pudesse responder, ouviu alguém chamar seu nome. Totalmente confusa, olhou por cima do ombro e viu a mãe abrindo caminho em meio à multidão de clientes. Pela vitrine, Clary viu Luke, que esperava do lado de fora, na calçada. Com sua camisa de flanela, ele parecia não se encaixar entre os estilosos nova-iorquinos.
Livrando-se da multidão, Jocelyn se aproximou e abraçou a filha. Clary olhou para Simon por cima do ombro da mãe, confusa. Ele deu de ombros.
Finalmente, Jocelyn soltou Clary e deu um passo para trás.
— Eu tive tanto medo de que alguma coisa acontecesse a você...
— Na Sephora? — perguntou Clary.
Jocelyn franziu a testa.
— Vocês não ouviram? Pensei que Jace já teria enviado uma mensagem de texto a essa hora.
Clary sentiu uma súbita onda de frio pelas veias, como se tivesse engolido água muito gelada.
— Não. Eu... O que está acontecendo?
— Eu sinto muito, Simon — falou Jocelyn — mas Clary e eu temos que ir para o Instituto imediatamente.

***

O lugar onde Magnus morava não tinha mudado muito desde a primeira vez em que Jace estivera ali. A mesma entradinha e a única lâmpada amarela. Jace usou um símbolo de Abertura para passar pela porta da frente, subiu os degraus de dois em dois e tocou a campainha do apartamento. Era mais seguro que usar outro símbolo, calculou Jace. Afinal, Magnus podia estar jogando videogame pelado ou, na verdade, podia estar fazendo praticamente qualquer coisa. Quem saberia o que os feiticeiros inventavam no tempo livre?
Jace tocou de novo e, dessa vez, grudou o dedo na campainha. Tocou mais duas vezes, demoradamente, e Magnus afinal abriu a porta num tranco, furioso.
Ele estava usando um robe de seda preta por cima de uma camisa branca e calça de tweed. Os pés estavam descalços. O cabelo preto estava emaranhado, e via-se a sombra da barba por fazer.
— O que você está fazendo aqui?
— Ora, ora — respondeu Jace. — Isso não foi nada acolhedor.
— Porque não é para ser.
Jace ergueu uma sobrancelha.
— Pensei que fôssemos amigos.
— Não. Você é amigo de Alec. Ele era meu namorado, por isso eu tinha que te tolerar. Mas agora ele não é mais, então não preciso te aguentar. Não que vocês pareçam perceber isso. Você deve ser o... o quê, o quarto?... do grupo a vir me incomodar — Magnus contou nos dedos compridos. — Clary, Isabelle, Simon...
— Simon passou por aqui?
— Você parece surpreso.
— Não achei que ele estivesse tão interessado na sua relação com Alec.
— Eu não tenho uma relação com Alec — afirmou Magnus sem rodeios, mas Jace já estava passando por ele e entrando na sala de estar, olhando ao redor com curiosidade.
Uma das coisas que Jace sempre apreciara em segredo no apartamento de Magnus era que raramente parecia o mesmo duas vezes. Algumas vezes, era um loft grande e moderno. Outras, parecia um bordel francês ou um covil de ópio vitoriano ou o interior de uma nave espacial. Agora, porém, estava bagunçado e escuro. Pilhas de embalagens velhas de comida chinesa se amontoavam na mesa de café. Presidente Miau estava deitado no tapete de retalhos, as quatro patas muito esticadas e retas, como um cervo morto.
— Tem cheiro de coração partido aqui dentro — comentou Jace.
— É a comida chinesa — Magnus se jogou no sofá e esticou as pernas compridas. — Ande, acabe logo com isso. Diga o que você veio dizer.
— Acho que você devia voltar com Alec — falou Jace.
Magnus revirou os olhos e fitou o teto.
— E por que isso?
— Porque ele está infeliz — explicou Jace. — E está arrependido. Está arrependido pelo que fez. Não vai fazer de novo.
— Ah, ele não vai se encontrar em segredo com uma das minhas ex, nem planejar encurtar minha vida outra vez? Muito nobre da parte dele.
— Magnus...
— Além disso, Camille está morta. Ele não pode fazer isso de novo.
— Você entendeu — falou Jace. — Ele não vai mentir, nem enganar ou esconder coisas, nem qualquer outra coisa que esteja te aborrecendo.
Ele se jogou numa poltrona de couro e ergueu uma das sobrancelhas.
— Então?
Magnus virou para o lado.
— Por que você se importa se Alec está infeliz?
— Por que eu me importo? — repetiu Jace tão alto que Presidente Miau sentou-se muito empertigado, como se estivesse em choque. — Claro que eu me importo com Alec; ele é meu melhor amigo, meu parabatai. E ele está infeliz. E você também, pelo estado das coisas. Embalagens de comida por toda parte, você não fez nada para arrumar o local, seu gato parece morto...
— Ele não está morto.
— Eu me importo com Alec — falou Jace, e fixou o olhar em Magnus. — Eu me importo com ele mais do que comigo.
— Você nunca pensou — refletiu Magnus, e puxou uma lasca do esmalte — que toda essa história de parabatai é um tanto cruel? Você pode escolher seu parabatai, mas então não pode nunca desescolhê-lo. Mesmo que ele se volte contra você. Olhe para Luke e Valentim. E, embora seu parabatai seja a pessoa mais próxima de você no mundo, em certos aspectos você não pode se apaixonar por ele. E, se ele morrer, uma parte de você morre também.
— Como sabe tanto sobre os parabatai?
— Eu conheço os Caçadores de Sombras — disse Magnus, dando tapinhas no sofá ao lado dele para que Presidente pulasse para as almofadas e cutucasse Magnus com a cabeça. Os dedos compridos do feiticeiro afundaram no pelo do gato. — E eu conheço há muito tempo. Vocês são criaturas estranhas. De um lado, tudo é humanidade e nobreza frágil, e do outro, tudo é fogo impensado dos anjos. — Os olhos dele se moveram até Jace. — Você, em particular, Herondale, pois tem o fogo dos anjos no sangue.
— Você já foi amigo de Caçadores de Sombras?
— Amigo? — repetiu Magnus. — O que isso realmente significa?
— Saberia se tivesse um — observou Jace. — Você tem? Você tem amigos? Quero dizer, além das pessoas que frequentam suas festas. A maioria tem medo de você ou parece te dever alguma coisa, ou então já dormiu com você, mas amigos... eu não vejo você com um monte deles.
— Ora, isso é novo — falou Magnus. — Nenhum dos outros do grupo tentou me insultar.
— Está funcionando?
— Se você quer saber se me senti subitamente impelido a voltar para Alec, então não — respondeu Magnus. — Surgiu um desejo estranho por pizza, mas não deve estar relacionado a ele.
— Alec disse que você faria isso: se desviar das perguntas pessoais com piadas — retrucou Jace.
Magnus semicerrou os olhos.
— E eu sou o único que faz isso?
— Exatamente. Aprenda com alguém que sabe. Você odeia falar de si e preferiria aborrecer as pessoas a fazê-las sentir pena. Quantos anos você tem, Magnus? A resposta verdadeira.
Magnus não disse nada.
— Quais eram os nomes dos seus pais? Qual é o nome do seu pai?
Magnus olhou feio para ele com os olhos verdes e dourados.
— Se eu quisesse me deitar num divã e falar mal dos meus pais para alguém eu iria a um psiquiatra.
— Ah — continuou Jace. — Mas meus serviços são de graça.
— Ouvi falar isso de você.
Jace sorriu e deslizou em sua cadeira. Havia uma almofada com a bandeira do Reino Unido sobre o divã. Ele a pegou e a colocou atrás da cabeça.
— Não tenho que ir a lugar algum. Posso ficar sentado aqui o dia todo.
— Ótimo! — falou Magnus. — Vou tirar um cochilo.
Ele esticou a mão para pegar um cobertor amassado no chão, justamente quando o celular de Jace tocou. Magnus observou, interrompido no meio do movimento, enquanto Jace remexia no bolso e abria o telefone para atender.
Era Isabelle.
— Jace?
— Sim. Estou na casa de Magnus. Talvez eu esteja fazendo algum progresso. O que aconteceu?
— Volte — pediu Isabelle, e Jace sentou-se muito ereto, a almofada caindo no chão.
A voz dela estava muito tensa. Ele percebia a rispidez nela, como as notas dissonantes de um piano mal-afinado.
— Para o Instituto. Imediatamente, Jace.
— Qual é o problema? — insistiu ele. — O que aconteceu?
E ele viu Magnus sentar-se muito esticado também, e o cobertor caiu da mão dele.
— Sebastian — falou Isabelle.
Jace fechou os olhos e viu sangue dourado e penas brancas espalhadas sobre o piso de mármore. Ele se recordou do apartamento, de uma faca nas mãos dele, do mundo a seus pés, de Sebastian apertando seu pulso e dos olhos negros profundos demais fitando-o com um prazer obscuro. Havia um zumbido nos ouvidos dele.
— O que foi? — A voz de Magnus interrompeu os pensamentos de Jace.
Ele percebeu que já estava na porta, o celular guardado no bolso. E se virou. Magnus estava atrás dele, a expressão sombria.
— Foi Alec? Ele está bem?
— E você se importa? — perguntou Jace, e Magnus se encolheu.
Jace não achou que já tivesse visto Magnus se encolher antes. Foi a única coisa que evitou que Jace batesse a porta antes de sair.

***

Havia dezenas de casacos e jaquetas desconhecidos pendurados na entrada do Instituto. Clary sentia os ombros vibrarem de tensão enquanto abria o zíper do próprio casaco de lã e o pendurava em um dos ganchos enfileirados nas paredes.
— E Maryse não disse o que aconteceu? — perguntou Clary.
A voz dela estava muito baixa por causa da ansiedade.
Jocelyn desenrolava um cachecol cinza comprido do pescoço e mal olhava para Luke enquanto ele o pegava e o pendurava num gancho. Os olhos verdes da mulher percorriam o cômodo, assimilando o portão do elevador, o teto abobadado, os murais desbotados de homens e anjos.
Luke balançou a cabeça.
— Só que houve um ataque à Clave e que temos que ir para lá o mais rápido possível.
— A parte do “nós” é que me preocupa. — Jocelyn enrolou o cabelo em um coque alto e prendeu-o com os dedos. — Não venho ao Instituto há anos. Por que eles me querem aqui?
Luke apertou o ombro dela para tranquilizá-la. Clary sabia o que Jocelyn temia, o que todos temiam. A única razão para a Clave querer que ela estivesse ali é porque havia notícias do filho.
— Maryse disse que estariam na biblioteca — falou Jocelyn.
Clary seguiu na frente. Ouvia Luke e a mãe conversando atrás de si, além do som macio dos passos, e os de Luke estavam mais lentos que antes. Ele ainda não havia se recuperado totalmente do ferimento que quase o matara em novembro.
Sabe por que está aqui, não sabe?, sussurrava a voz baixa atrás dela. Clary sabia que a voz não estava realmente ali, mas isso não ajudava. Não via o irmão desde o combate em Burren, mas o trazia em alguma parte pequenina da mente, um fantasma indesejado e intruso. Por minha causa. Você sempre soube que eu não tinha ido embora para sempre. Falei que isso aconteceria. Falei em voz alta para você.
Erchomai.
Estou chegando.
Eles chegaram à biblioteca. A porta estava entreaberta, e um burburinho de vozes transbordava dali. Jocelyn parou por um instante com a expressão tensa. Clary pôs uma das mãos na maçaneta.
— Você está pronta? — Ela não tinha percebido até aquele momento que a mãe vestia jeans pretos, botas e uma blusa preta de gola alta. Como se tivesse escolhido o que havia de mais próximo do uniforme de combate, sem se dar conta disso.
Jocelyn assentiu para a filha.
Alguém tinha empurrado toda a mobília da biblioteca para um canto e aberto um espaço imenso no meio do cômodo, bem em cima do mosaico do Anjo. Uma mesa imensa fora colocada ali, um grande bloco de mármore equilibrado sobre dois anjos de pedra. Ao redor da mesa, sentava-se o Conclave.
Clary conhecia alguns de seus integrantes pelo nome: Kadir e Maryse. Os outros eram apenas rostos familiares. Maryse estava parada, contando nomes nos dedos enquanto entoava em voz alta.
— Berlim — falou. — Sem sobreviventes. Bangcoc. Sem sobreviventes. Moscou. Sem sobreviventes. Los Angeles...
— Los Angeles? — repetiu Jocelyn. — Eram os Blackthorn. Eles estão...?
Maryse pareceu assustada, como se não tivesse percebido que Jocelyn havia entrado. Os olhos azuis passaram por Luke e Clary. Ela parecia abatida e exausta, o cabelo estava preso com firmeza e havia uma mancha (seria vinho tinto ou sangue?) na manga de seu casaco feito sob medida.
— Há sobreviventes — falou ela. — As crianças. Estão em Idris agora.
— Helen — disse Alec, e Clary se lembrou da garota que havia enfrentado Sebastian com eles em Burren.
Ela se recordava de Helen na nave do Instituto, com um garoto de cabelos escuros agarrado ao pulso dela. Seu irmão, Julian.
— A namorada de Aline — exclamou Clary, e viu o Conclave olhar para ela com hostilidade sutilmente velada.
Sempre faziam isso, como se quem ela era e o que representava os deixasse praticamente incapazes de enxergá-la. A filha de Valentim. A filha de Valentim.
— Ela está bem?
— Está em Idris, com Aline — respondeu Maryse. — Os irmãos e irmãs mais novos sobreviveram, embora pareça ter havido algum problema com o irmão mais velho, Mark?
— Algum problema? — repetiu Luke. — O que exatamente está acontecendo, Maryse?
— Não acho que vamos saber da história toda antes de chegarmos a Idris — falou Maryse, alisando o cabelo já alisado. — Mas houve ataques, alguns deles no curso de duas noites, em seis Institutos. Não temos certeza ainda de como os Institutos foram invadidos, mas sabemos...
— Sebastian — falou a mãe de Clary. As mãos estavam dentro dos bolsos do jeans preto, mas Clary suspeitava que, se a mãe não tivesse feito isso, ela veria as mãos de Jocelyn em punho. — Direto ao ponto, Maryse. Meu filho. Você não teria me chamado aqui se ele não fosse o responsável. Teria?
 Os olhos de Jocelyn encontraram os de Maryse, e Clary se perguntou se tinha sido assim quando as duas estiveram no Círculo, as bordas afiadas das personalidades de ambas encontrando-se e gerando faíscas.
Antes que Maryse pudesse falar, a porta se abriu e Jace entrou. Vermelho, com a cabeça fria e descoberta, e o cabelo louro desgrenhado por causa do vento. Não usava luvas, as pontas dos dedos estavam vermelhas por causa do clima, e as mãos tinham cicatrizes de Marcas novas e antigas. Ele viu Clary e deu um sorriso breve ao se acomodar numa cadeira contra a parede.
Como sempre, Luke interferiu para pacificar.
— Maryse? Sebastian foi o responsável?
Maryse respirou fundo.
— Sim, foi. E os Crepusculares estavam com ele.
— Claro que foi Sebastian — falou Isabelle. Ela estivera fitando a mesa, mas agora erguia a cabeça. O rosto refletia ódio e fúria. — Ele disse que estava chegando. Bem, agora ele chegou.
Maryse soltou um suspiro.
— Nós imaginamos que ele atacaria Idris. Era isso que os serviços de inteligência indicavam. Não os Institutos.
— Então ele fez algo que vocês não esperavam. Talvez a Clave devesse ter se planejado para isso — Jace baixou a voz. — Eu avisei. Avisei que ele ia querer mais soldados.
— Jace — disse Maryse. — Você não está ajudando.
— Eu não estava tentando ajudar.
— Eu teria acreditado que ele atacaria aqui primeiro — falou Alec. — Conforme Jace falou, e é verdade... todos que ele ama ou odeia estão aqui.
— Ele não ama ninguém — rebateu Jocelyn sem rodeios.
— Mãe, pare — pediu Clary.
O coração dela batia com força e de modo doloroso; ainda assim, ao mesmo tempo, havia uma sensação estranha de alívio.
Todo esse tempo esperando que Sebastian chegasse e agora ele tinha chegado. A espera havia acabado. A guerra teria início.
— E o que devemos fazer? Reforçar o Instituto? Nos esconder?
— Deixe-me adivinhar — falou Jace, com a voz cheia de sarcasmo. — A Clave chamou o Conselho. Outra reunião.
— A Clave ordenou evacuação imediata — afirmou Maryse, e, ao dizer isso, todos ficaram em silêncio, até Jace. — Todos os Institutos devem ser esvaziados. Todos os Conclaves devem retornar a Alicante. As barreiras ao redor de Idris serão redobradas depois de amanhã. Ninguém conseguirá entrar ou sair.
Isabelle engoliu em seco.
— Quando partiremos de Nova York?
Maryse empertigou-se. Um pouco do costumeiro ar de comando retornara, a boca estava contraída, e o queixo, cerrado com determinação.
— Arrumem suas coisas — ordenou ela. — Vamos embora hoje à noite.

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