Capítulo 11 - Atribuição de todos os pecados
Magnus disse que nenhuma eletricidade poderia ser usada durante a evocação de Azazel, portanto o apartamento estava iluminado apenas por velas. As velas queimavam em um círculo no centro da sala, todas com diferentes alturas e luminosidade, embora compartilhassem a mesma chama azul-clara.
Dentro do círculo, Magnus havia desenhado um pentagrama, usando uma vara de sorveira que queimou o padrão de triângulos sobrepostos no chão. Entre os espaços formados pelo pentagrama havia símbolos diferentes de tudo o que Simon tinha visto antes: não eram letras nem runas e emitiam um sentimento frio de ameaça, apesar do calor das chamas das velas.
Estava escuro do lado de fora das janelas agora, o tipo de escuridão que vinha com o pôr do sol antecipado que indicava a aproximação do inverno. Isabelle, Alec, Simon e, finalmente, Magnus – que estava entoando um cântico do livro Ritos proibidos - situavam-se cada um em um ponto cardeal em torno do círculo. A voz de Magnus aumentou e diminuiu, entoando as palavras em latim como uma oração invertida e sinistra.
As chamas subiram mais alto e os símbolos gravados no chão começaram a queimar e enegrecer. Presidente Miau, que estava observando de um canto da sala, chiou e fugiu para as sombras. As chamas azul-claras aumentaram, e agora Simon mal podia ver Magnus através delas. A sala foi ficando mais quente e o bruxo foi cantando mais rápido, com seus cabelos negros enrolando no calor úmido, o suor brilhando sobre as maçãs do rosto.
— Quod tumeraris: per Jehovam, Gehennam, et consecratam aquam quam nunc spargo, signumque crucis quod nunc facio, et per vota nostra, ipse nunc surgat nobis dicatus Azazel!
Houve uma explosão de fogo a partir do centro do pentagrama e uma onda espessa de fumaça negra surgiu, espalhando-se lentamente pela sala, fazendo com que todos, menos Simon, sufocassem e tossissem. Ela girou como um redemoinho, se aglutinando lentamente no centro do pentagrama, formando a figura de um homem.
Simon piscou. Ele não tinha certeza do que esperava, mas não era isso. Um homem alto de cabelos ruivos, nem jovem nem velho – um rosto sem idade, desumano e frio. Tinha ombros largos e vestia um terno preto bem cortado e sapatos engraxados. Em torno de cada pulso havia uma marca vermelho-escura entalhada, marcas de algum tipo de contenção, corda ou metal, que havia cortado a pele durante muitos anos. Chamas vermelhas saltavam de seus olhos.
Ele falou:
— Quem evoca Azazel? — Sua voz era como o som de metais colidindo.
— Eu — Magnus fechou firmemente o livro que estava segurando — Magnus Bane.
Azazel virou a cabeça lentamente para Magnus. Sua cabeça parecia girar artificialmente em seu pescoço, como a cabeça de uma cobra.
— Bruxo. Eu sei quem você é.
Magnus levantou as sobrancelhas.
— Você sabe?
— Evocador. Unificador. Destruidor do demônio Marbas. Filho de...
— Agora — disse Magnus rapidamente — não há necessidade de entrar neste assunto.
— Mas há sim — Azazel parecia razoável, até mesmo divertido — se é de assistência infernal que você necessita, por que não chamar seu pai?
Alec olhava boquiaberto para Magnus. Simon sentia muito por ele. Achou que nenhum deles jamais havia presumido que Magnus sabia quem era seu pai, além do fato de que era um demônio e que havia enganado sua mãe levando-a a acreditar que ele era seu marido. Alec claramente não sabia mais do que os outros e, Simon imaginou que provavelmente era algo com o qual ele não estava muito feliz.
— Meu pai e eu não nos damos bem — Magnus respondeu — prefiro não envolvê-lo.
Azazel levantou as mãos.
— Como queira, mestre. Você me prendeu dentro do pentagrama. O que procura?
Magnus não disse nada, mas ficou claro pela expressão no rosto de Azazel que o bruxo estava falando com ele em silêncio, mentalmente. As chamas saltaram e dançaram nos olhos do demônio, como crianças ansiosas para ouvir uma história.
— Lilith foi inteligente — o demônio disse, finalmente — trazer o garoto de volta da morte e garantir sua vida ligando-o a alguém que vocês não suportariam matar. Ela sempre foi melhor em manipular as emoções humanas do que a maioria de nós. Talvez por ela ter sido algo próximo a um ser mundano uma vez.
— Existe uma maneira? — Magnus parecia impaciente. — De quebrar o vínculo entre eles?
Azazel balançou a cabeça.
— Não sem matar os dois.
— Então, há uma maneira de atingir apenas Sebastian, sem ferir Jace? — Isabelle perguntou, ansiosa.
Magnus lhe lançou um olhar sufocante.
— Não com nenhuma arma que eu pudesse criar ou que eu tenha à minha disposição — respondeu Azazel — eu só posso criar armas cuja aliança seja demoníaca. Uma flecha de luz da mão de um anjo talvez pudesse queimar o que há de maligno no filho de Valentim e quebrar o laço e, ainda, fazer com que ele se torne mais benevolente por natureza. Se eu puder fazer uma sugestão...
— Oh — disse Magnus, estreitando os olhos felinos — por favor, faça.
— Posso pensar em uma solução simples que vai separar os garotos, manter o seu vivo, e neutralizar o perigo do outro. E eu pedirei muito pouco de você em troca.
— Você é meu servo. Se quer deixar este pentagrama, vai ter que fazer o que eu pedir, e não exigirá favores em troca.
Azazel sibilou, e o fogo brotou de seus lábios.
— Se eu não estiver preso aqui, então estarei preso lá. Não faz muita diferença para mim.
— Porque este é o Inferno, nem eu estou livre disso — disse Magnus, com o ar de alguém citando um velho ditado.
Azazel mostrou um sorriso metálico.
— Você pode não ser orgulhoso como o velho Fausto, bruxo, mas você é impaciente. Estou certo de que minha vontade de permanecer neste pentagrama vai superar o seu desejo de me ver aqui dentro.
— Oh, eu não sei. Sempre fui bastante ousado nas questões de decoração, e ter você aqui acrescenta um toque extra ao ambiente.
— Magnus — Alec falou, claramente não entusiasmado com a ideia de um demônio imortal se instalando no apartamento de seu namorado.
— Com ciúmes, pequeno Caçador de Sombras? — Azazel sorriu para Alec. — O bruxo não faz o meu tipo, e além disso, eu dificilmente iria querer despertar a ira de seu...
— Basta — Magnus interrompeu — diga-nos o que você quer em troca de seu plano.
Azazel esfregou suas mãos – que eram duras como as de um operário, cor de sangue, cobertas com unhas pretas.
— Uma memória feliz — ele respondeu — de cada um de vocês. Algo para me divertir enquanto estou preso, como Prometeu à sua pedra.
— Uma memória? — Isabelle repetiu, espantada. — Você quer dizer que ela desapareceria de nossas cabeças? Não seríamos mais capazes de recordá-la?
Azazel estreitou os olhos para ela através das chamas.
— O que você é, pequena? Uma Nephilim? Sim, eu tomaria a sua memória e ela se tornaria minha. Você deixaria de saber que aquilo lhe aconteceu. Embora, por favor, evite me dar memórias de demônios que você abateu sob a luz da lua. Não é o tipo de coisa que eu gosto. Não, eu quero que essas memórias sejam... pessoais.
Ele sorriu, e seus dentes brilhavam como uma grade de ferro.
— Eu sou velho — Magnus falou — tenho muitas memórias. Eu daria uma, se necessário. Mas não posso pedir isso para o resto de vocês. Ninguém deve ser forçado a desistir de algo assim.
— Eu faço — Isabelle disse imediatamente — por Jace.
— Eu também, é claro — Alec respondeu, e depois foi a vez de Simon.
Ele pensou de repente em Jace cortando os pulsos e dando-lhe o seu sangue na sala minúscula no barco de Valentim. Arriscando a própria vida por Simon. Em seu coração podia ter sido por causa de Clary, mas era ainda assim era uma dívida.
— Estou dentro.
— Bom — disse Magnus — todos vocês, tentem pensar em memórias felizes. Elas devem ser verdadeiramente felizes. Algo que lhes dê prazer em lembrar.
Ele lançou um olhar azedo ao demônio presunçoso no pentagrama.
— Estou pronta — Isabelle falou.
Ela estava com os olhos fechados e as costas retas, como se preparada para sentir dor. Magnus se aproximou dela e colocou os dedos contra sua testa, murmurando baixo.
Alec observava Magnus com sua irmã, com a boca apertada e os olhos fechados. Simon fechou seus próprios olhos também, às pressas, e tentou pensar em uma memória feliz – algo a ver com Clary? Mas muitas de suas memórias sobre ela agora estavam tingidas com a preocupação pela sua segurança. Algo de quando eles eram muito jovens? Uma imagem nadou até a superfície de sua mente – um dia quente de verão em Coney Island, ele nos ombros de seu pai, Rebecca correndo atrás deles, arrastando um punhado de balões. Ele olhando para o céu, tentando encontrar formas nas nuvens, e o som da risada de sua mãe. Não, ele pensou, essa não. Eu não quero perder essa...
Houve um toque frio em sua testa. Ele abriu os olhos e viu Magnus abaixando a mão. Simon piscou para ele, sua mente em branco.
— Mas eu não estava pensando em nada, protestou.
Os olhos felinos de Magnus estavam tristes.
— Sim, você estava.
Simon olhou ao redor da sala, se sentindo um pouco tonto. Os outros pareciam sentir o mesmo, como se estivessem acordando de um sonho estranho; ele olhou nos olhos de Isabelle, sob a agitação escura de seus cílios, e se perguntou o que ela tinha pensado, qual felicidade ela tinha dado.
Um ronco baixo do centro do pentagrama atraiu o olhar de Izzy. Azazel estava de pé, tão perto da borda do círculo quanto podia, um rosnado lento vindo de sua garganta.
Magnus se virou e olhou para ele, com um olhar de nojo no rosto. Sua mão estava fechada, e algo parecia estar brilhando entre seus dedos, como se ele segurasse uma luz de bruxa. Ele se virou e atirou-o rápido para o centro do pentagrama.
A visão de vampiro de Simon o captou. Era um cordão de luz que se expandiu enquanto voava, em um círculo que continha múltiplas imagens. Simon viu um pedaço de azul do mar, a borda de um vestido de cetim que balançava enquanto a pessoa que o vestia girava, um vislumbre do rosto de Magnus, um menino com olhos azuis – e, em seguida, Azazel abriu os braços e o círculo de imagens desapareceu em seu corpo, como um pedaço de lixo sendo sugado para dentro da turbina de um avião.
Azazel engasgou. Seus olhos, que haviam estado disparando lampejos de fogo vermelho, agora brilhavam como fogueiras e sua voz estalou quando ele falou.
— Ahhhh. Delicioso.
Magnus falou bruscamente.
— Agora cumpra a sua parte da barganha.
O demônio lambeu os lábios.
— A solução para seu problema é a seguinte: você me solta no mundo, eu pego o filho de Valentim e o levo para viver no inferno. Ele não morrerá, e, portanto, Jace viverá, mas o outro terá deixado este mundo para trás, e então, lentamente, sua conexão quebrará. Você terá o seu amigo de volta.
— E depois? — Magnus perguntou lentamente. — Nós te soltamos no mundo e depois você volta e se deixa ser preso novamente?
Azazel riu.
— Claro que não, bruxo tolo. O preço do favor é a minha liberdade.
— Liberdade? — Alec falou, parecendo incrédulo. — Um Príncipe do Inferno solto no mundo? Nós já lhe demos nossas memórias...
— As lembranças foram o preço que você pagou para ouvir o meu plano — Azazel replicou — minha liberdade é o que você vai pagar para ter meu plano executado.
— Isso é trapaça, e você sabe disso — Magnus falou — você está pedindo o impossível.
— E você também — Azazel rebateu — por todos os direitos, seu amigo está perdido para sempre. “Porque, se um homem fizer voto ao Senhor, ou um juramento ligando sua alma, ele não violará a sua palavra”. E pelos termos da magia de Lilith, suas almas estão vinculadas, e ambos concordaram.
— Jace nunca concordaria... — Alec começou.
— Ele disse as palavras. Por vontade própria ou por coerção, não importa. Você está me pedindo para romper um vínculo que apenas o Céu pode desatar. Mas o Céu não vai lhe ajudar, você sabe tão bem quanto eu. É por isso que os homens evocam demônios e não anjos, não é? Este é o preço que você paga pela a minha intervenção. Se não quer pagá-lo, deve aprender a aceitar o que perdeu.
O rosto de Magnus estava pálido e sério.
— Vamos conversar entre nós e discutir se a sua oferta é aceitável. Enquanto isso,eu expulso você.
Ele acenou com a mão e Azazel desapareceu, deixando para trás o cheiro de madeira carbonizada.
As quatro pessoas na sala se olhavam incredulamente.
— O que ele está pedindo — disse Alec, finalmente — não é possível, é?
— Teoricamente, qualquer coisa é possível — Magnus respondeu, olhando para frente como se estivesse encarando um abismo — mas soltar um Demônio Maior no mundo... não apenas um Demônio Maior, um Príncipe do Inferno, o segundo depois do próprio Lúcifer... a destruição que ele poderia causar...
— Não é possível — Isabelle falou — que Sebastian pudesse causar tanta destruição quanto?
— É como Magnus disse: tudo é possível — Simon ecoou amargamente.
— Não deve haver nenhum crime maior aos olhos da Clave — Magnus falou — quem quer que soltasse Azazel no mundo, seria um criminoso procurado.
— Mas se fosse para destruir Sebastian... — Isabelle começou.
— Nós não temos provas de que Sebastian está planejando alguma coisa. Pelo o que sabemos, ele poderia estar apenas querendo se estabelecer em uma casa de campo agradável em Idris.
— Com Clary e Jace? — Alec perguntou, incrédulo.
Magnus deu de ombros.
— Quem sabe o que ele quer com eles? Talvez esteja apenas solitário.
— De jeito nenhum ele sequestraria Jace daquela cobertura porque precisava desesperadamente de um amor entre caras — Isabelle respondeu — ele está planejando alguma coisa.
Todos olharam para Simon.
— Clary está tentando descobrir. Ela precisa de algum tempo. E não digam “nós não temos tempo” — acrescentou — ela sabe disso.
Alec passou a mão pelos cabelos escuros.
— Tudo bem, mas nós simplesmente desperdiçamos um dia inteiro. Um dia que não tínhamos. Sem mais ideias estúpidas — a voz dele estava estranhamente aguda.
— Alec — Magnus chamou. Ele colocou uma mão no ombro do namorado; Alec estava parado, olhando com raiva para o chão. — Você está bem?
Alec olhou para ele.
— Quem é você mesmo?
Magnus deu um pequeno suspiro; ele pareceu – pela primeira vez em que Simon conseguia lembrar – realmente nervoso. Durou apenas um momento, mas estava lá.
— Alexander...
— Cedo demais para brincar com a coisa da memória feliz, entendi — disse Alec.
— Você acha? — A voz de Magnus disparou.
Antes que Alec pudesse dizer qualquer outra coisa, a porta se abriu e Maia e Jordan entraram. Suas bochechas estavam vermelhas por causa do frio, e – Simon viu com uma pequena surpresa – Maia usava a jaqueta de couro de Jordan.
— Acabamos de vir da delegacia — ela contou excitada — Luke ainda não acordou, mas parece que ele vai ficar bem...
Ela parou, olhando para o pentagrama ainda brilhante, as nuvens de fumaça negra e as manchas queimadas no chão.
— Então, o que vocês fizeram aqui?
***
Com a ajuda de uma ilusão, e da habilidade de Jace para se pendurar com um braço só sob uma ponte velha arqueada, Clary e Jace escaparam da polícia italiana sem serem presos. Depois que pararam de correr, eles desabaram contra a lateral de um edifício, rindo, lado a lado, com as mãos entrelaçadas. Clary sentiu um momento de pura felicidade e teve que enterrar o rosto no ombro de Jace, lembrando a si mesma com uma rígida voz interna, que este não era ele, antes que seu riso desaparecesse no silêncio.
Jace pareceu entender o silêncio repentino como um sinal de que ela estava cansada. Ele segurou sua mão de leve enquanto fizeram o caminho de volta para a rua onde haviam começado, com o canal estreito e as pontes em ambas as extremidades. Entre elas, Clary reconheceu a casa branca sem decoração de onde haviam saído. Um arrepio correu sobre ela.
— Está com frio?
Jace a puxou e a beijou; ele era tão mais alto do que ela que precisava se abaixar ou levantá-la para isso; neste caso, ele fez o último, e ela conteve uma arfada quando ele a ergueu e atravessou a parede da casa. Depois de deixá-la no chão, ele empurrou a porta – que havia aparecido de repente, por trás deles – fechando-a com um estrondo, e estava prestes a tirar sua jaqueta quando surgiu o som de uma risada abafada.
Clary se afastou de Jace quando as luzes se acenderam ao redor deles. Sebastian estava sentado no sofá, com os pés em cima da mesa de centro. Seu cabelo claro estava desgrenhado; seus olhos pretos estavam brilhantes. Ele não estava sozinho, também. Havia duas garotas ali, uma de cada lado dele. Uma era loira, e usava uma saia curta e um top brilhante de lantejoulas. Ela estava com a mão espalmada sobre o peito de Sebastian. A outra era mais jovem e mais discreta, com o cabelo preto curto, uma faixa de veludo vermelho na cabeça e um vestido preto rendado.
Clary sentiu seus nervos estreitarem. Vampira, ela pensou. Ela não sabia como tinha percebido isso – pode ter sido pelo brilho de cera branca da pele da garota ou a profundidade de seus olhos, ou talvez Clary simplesmente estivesse aprendendo a perceber estas coisas, da maneira que os Caçadores de Sombras faziam.
A garota percebeu que ela sabia; Clary percebeu. A menina sorriu, mostrando seus pequenos dentes pontiagudos, e depois se inclinou para introduzi-los na clavícula de Sebastian. As pálpebras dele tremeram, os cílios claros baixando sobre os olhos escuros. Ele olhou para Clary através deles, ignorando Jace.
— Você aproveitou seu pequeno encontro?
Clary desejava poder dizer algo rude, mas apenas balançou a cabeça afirmativamente.
— Bem, então, gostaria de se juntar a nós? — ele perguntou, indicando as duas garotas. — Para uma bebida?
A garota de cabelos escuros riu e disse algo em italiano para Sebastian com a voz questionadora.
— Não — Sebastian respondeu — Lei è mia sorella.
A garota voltou ao lugar, parecendo decepcionada. A boca de Clary estava seca. De repente, ela sentiu a mão de Jace contra a dela, seus dedos calejados ásperos.
— Acho que não — ele falou — nós vamos subir. A gente se vê amanhã.
Sebastian mexeu os dedos e o anel de Morgenstern em sua mão refletiu a luz, faiscando como um sinal de fogo.
— Ci vediamo.
Jace levou Clary para fora da sala e subiu as escadas de vidro; só quando eles estavam no corredor foi que ela sentiu como se tivesse recuperado o fôlego. Este Jace diferente era uma coisa. Sebastian era outra. A sensação de ameaça que emanava dele era como uma fumaça que subia de um incêndio.
— O que ele disse? — ela perguntou. — Em italiano?
— Ele disse, “Não, ela é minha irmã” — ele não contou o que a garota perguntou a Sebastian.
— Ele faz muito isso? — Eles pararam em frente ao quarto de Jace, na soleira da porta. — Trazer garotas aqui?
Jace tocou seu rosto.
— Ele faz o que quer, e eu não pergunto. Ele poderia trazer um coelho rosa de seis metros de altura de biquíni para casa se quisesse. Não é meu assunto. Mas se você está me perguntando se eu trouxe alguma garota para cá, a resposta é não. Eu não quero ninguém além de você.
Não era isso o que ela estava perguntando, mas balançou a cabeça de qualquer maneira, como se estivesse tranquilizada.
— Eu não quero voltar lá embaixo.
— Você pode dormir no meu quarto comigo esta noite — seus olhos dourados estavam luminosos no escuro — ou você pode dormir no quarto principal. Você sabe que eu nunca iria lhe pedir que...
— Eu quero ficar com você — ela respondeu, surpreendendo a si própria com a veemência da resposta.
Talvez fosse apenas que a ideia de dormir naquele quarto, onde Valentim havia dormido, onde ele tinha sonhado em viver novamente com sua mãe, era demais. Ou talvez ela estivesse cansada, e só tinha passado uma noite na mesma cama que Jace, e eles haviam dormido apenas com suas mãos se tocando, como se houvesse uma espada desembainhada entre eles.
— Dê-me um segundo para limpar o quarto. Está uma bagunça.
— Realmente, quando estive lá antes, acho que vi um grão de poeira no peitoril da janela. É melhor começar por lá.
Ele puxou uma mecha de seu cabelo, enrolando-a entre os dedos.
— Sem querer trabalhar ativamente contra meus próprios interesses, mas acho que você vai precisar de algo para dormir. Um pijama, ou...
Ela pensou no guarda-roupa cheio de roupas no quarto principal. Ela ia ter que se acostumar com a ideia. Poderia muito bem começar agora.
— Vou pegar uma camisola.
Alguns instantes mais tarde, de pé na frente de uma gaveta aberta, ela pensou que era lógico que o tipo de camisolas que os homens compravam porque queriam que as mulheres de suas vidas usassem, não era necessariamente o tipo de coisa que você compraria para si mesma.
Clary geralmente dormia de regata e short, mas tudo aqui era de seda, renda ou de pouquíssimo pano, ou todos os três. Ela finalmente encontrou uma de seda verde-clara que terminava no meio da coxa. Pensou nas unhas vermelhas da garota no andar de baixo, aquela com a mão no peito de Sebastian. Suas próprias unhas estavam roídas, e as unhas do pé nunca estavam decoradas com muito mais do que um esmalte claro. Ela se perguntou como seria se fosse mais como Isabelle, tão consciente de seu próprio poder feminino que poderia empunhá-lo como uma arma em vez de olhar para ele confusa, como alguém que era presenteado com um objeto de decoração e que não tinha ideia de onde exibi-lo.
Ela tocou no anel de ouro em seu dedo para dar sorte antes de ir para o quarto de Jace. Ele estava sentado na cama, sem camisa, usando uma calça de pijama preta, lendo um livro na fraca luz amarela da lâmpada de cabeceira. Ela parou por um momento, observando-o. Podia ver contorno delicado dos músculos sob sua pele quando ele virava as páginas – e podia ver a Marca de Lilith um pouco acima de seu coração. Ela não se parecia com as linhas negras das suas outras marcas; tinha uma cor vermelho-prateada, como mercúrio tingido de vermelho. Parecia não pertencer a ele.
A porta se fechou atrás dela com um clique e Jace olhou para cima. Clary viu seu rosto mudar. Ela poderia não ser uma grande fã de camisolas, mas Jace definitivamente era. O olhar em seu rosto causou um arrepio sobre pele dela.
— Você está com frio?
Ele jogou as cobertas para o lado e Clary se arrastou para dentro delas. Jace colocou o livro no criado mudo. Eles deslizaram juntos debaixo do cobertor até ficarem deitados de frente um para o outro. No barco, eles haviam passado o que pareceram horas se beijando, mas isto era diferente. Aquilo tinha sido em público, sob o olhar da cidade e das estrelas. Agora havia uma súbita intimidade, apenas os dois debaixo do cobertor, com a respiração e o calor de seus corpos se misturando. Não havia ninguém para observá-los, ninguém para detê-los, não havia razão para parar. Quando ele estendeu a mão e acariciou sua bochecha, ela pensou que o trovão causado pelo seu próprio sangue circulando em seus ouvidos poderia ensurdecê-la.
Seus olhos estavam tão próximos que ela podia ver o padrão de dourado que clareava e escurecia em suas íris, como um mosaico de opala. Ela tinha sentido frio por tanto tempo, e agora sentia como se estivesse queimando e derretendo, ao mesmo tempo, dissolvendo-se nele – e eles mal estavam se tocando. Ela percebeu seu olhar sendo atraído para os lugares onde ele era mais vulnerável – suas têmporas, seus olhos, a veia na base de sua garganta, onde ela queria beijar para sentir a pulsação contra seus lábios.
A mão dele, marcada por cicatrizes, se moveu sobre sua bochecha, seu ombro, sua cintura, percorrendo-a numa carícia única que terminou em seu quadril. Ela podia ver por que os homens gostavam tanto de camisolas de seda. Não havia atrito, era como deslizar as mãos sobre o vidro.
— Me diga o que você quer — ele falou num sussurro que não conseguiu disfarçar a rouquidão em sua voz.
— Eu só quero que você me abrace enquanto eu durmo. Isso é tudo o que quero agora.
Seus dedos, que estavam traçando círculos lentos em seu quadril, pararam.
— Isso é tudo?
Não era o que ela queria. O que ela queria era beijá-lo até perder a noção de tempo, espaço e localização, como tinha feito no barco – queria beijá-lo até esquecer quem ela era e por que estava ali. Queria usá-lo como uma droga. Mas essa era uma ideia muito ruim.
Ele a observava, inquieto, e ela se lembrou da primeira vez que o viu e como tinha pensado que ele parecia tão mortal quanto lindo, assim como um leão. Isto é um teste,ela pensou. E talvez um perigoso.
— Isso é tudo.
Seu peito subiu e desceu. A Marca de Lilith parecia pulsar contra a pele acima de seu coração. A mão dele apertou seu quadril. Ela podia ouvir sua própria respiração superficial.
Ele a puxou em sua direção, virando-a de costas para ele até que eles estivessem encaixados como colheres. Ela engoliu uma arfada. A pele dele estava quente contra a dela, como se ele estivesse um pouco febril. Mas o modo como seus braços estavam ao redor dela era familiar. Os dois encaixavam, como sempre, com sua cabeça sob o queixo dele, sua coluna contra os músculos rígidos do peito e abdome dele, suas pernas dobradas sobre as dele.
— Tudo bem — ele sussurrou, e a sensação da respiração dele contra a parte de trás de seu pescoço provocou um arrepio através de seu corpo — então, vamos dormir.
E isso foi tudo. Lentamente seu corpo relaxou, as batidas de seu coração desaceleraram. Ela sentiu os braços de Jace ao seu redor do mesmo jeito de sempre. Confortáveis. Ela fechou as mãos sobre as dele e fechou os olhos, imaginando a cama voando livre desta prisão estranha, flutuando através do espaço ou na superfície do oceano, apenas com eles dois sozinhos.
Ela dormiu assim, com a cabeça debaixo do queixo de Jace, sua coluna alinhada ao corpo dele, suas pernas entrelaçadas. Foi a melhor noite de sono que ela teve em semanas.
***
Simon sentou na beira da cama no quarto de hóspedes de Magnus, olhando para a mochila em seu colo.
Ele podia ouvir vozes vindo da sala de estar. Magnus estava explicando para Maia e Jordan o que havia acontecido naquela noite, com Izzy ocasionalmente relembrando de algum detalhe. Jordan estava dizendo algo sobre pedir comida chinesa para que eles não morressem de fome; Maia riu e disse que, contanto que não fosse do restaurante Jade Wolf, estaria ótimo.
Morrendo de fome, pensou Simon.
Ele estava ficando com fome, com fome suficiente para senti-la, como um puxão em todas as suas veias. Era uma espécie de fome diferente da humana. Ele sentiu que havia um vazio em seu interior. Se alguém batesse em seu estômago, ele pensou, soaria como um sino.
— Simon — porta se abriu e Isabelle deslizou para dentro. Seu cabelo preto estava solto, quase alcançando sua cintura — você está bem?
— Estou.
Ela viu a mochila em seu colo e os ombros dela tencionaram.
— Você está indo embora?
— Bem, eu não estava planejando ficar para sempre. Quero dizer, ontem à noite foi... diferente. Você me pediu...
— Certo — ela disse em uma voz estranhamente calma — bem, pelo menos você pode pegar uma carona com Jordan. A propósito, você percebeu o jeito dele e de Maia?
— Percebi o quê?
Ela baixou a voz.
— Algo definitivamente aconteceu entre eles durante essa pequena viagem de carro. Eles estão bem carinhosos agora.
— Bem, isso é bom.
— Você está com ciúmes?
— Ciúmes? — Ele repetiu, confuso.
— Bem, você e Maia... — Ela acenou com a mão, olhando para ele através de seus cílios. — Você estava...
— Oh. Não. Não, de maneira alguma. Fico feliz por Jordan. Isso o fará realmente feliz.
Ele tinha certeza disso.
— Bom — Isabelle olhou para cima e Simon percebeu que suas bochechas estavam rosadas, e não apenas do frio — você poderia ficar aqui esta noite, Simon?
— Com você?
Ela assentiu com a cabeça, sem encontrar seu olhar.
— Alec está saindo para pegar mais roupas no Instituto. Ele perguntou se eu queria voltar com ele, mas eu... eu prefiro ficar aqui com você — ela ergueu o queixo, olhando-o diretamente — eu não quero dormir sozinha. Se eu ficar aqui, você pode ficar comigo?
Ele podia perceber o quanto ela odiava ter que perguntar isso.
— Claro — ele respondeu, tão levemente quanto podia, enquanto afastava o pensamento da fome de sua cabeça, ou pelo menos, tentava.
A última vez que ele tentou esquecer a fome, acabou com Jordan puxando-o para longe do corpo semiconsciente de Maureen. Mas isso aconteceu quando ele não tinha comido durante vários dias. Agora era diferente. Ele conhecia seus limites. Tinha certeza disso.
— Claro — Simon repetiu — seria ótimo.
***
Camille sorriu para Alec de seu divã.
— Então, onde Magnus pensa que você está agora?
Alec, que havia colocado uma tábua de madeira sobre dois blocos de concreto para formar uma espécie de banco, esticou as longas pernas e olhou para suas botas.
— No Instituto, pegando roupas. Eu estava indo para o Spanish Harlem, mas ao invés disso vim para cá.
Os olhos dela se estreitaram.
— E por quê?
— Porque eu não posso fazê-lo. Não posso matar Raphael.
Camille jogou as mãos para cima.
— E por que não? Você tem algum tipo de vínculo pessoal com ele?
— Eu mal o conheço. Mas eu estaria deliberadamente quebrando a Lei do Pacto ao matá-lo. Não que eu não tenha quebrado leis antes, mas há uma diferença entre quebrá-las por boas razões e quebrá-las por motivos egoístas.
— Oh, meu Deus — Camille começou a andar — me poupe de Nephilins com consciência.
— Sinto muito.
Seus olhos se estreitaram.
— Sente muito? Eu vou fazer você... — Ela se interrompeu — Alexander — ela continuou com uma voz mais composta — e quanto a Magnus? Se você continuar assim, vai perdê-lo.
Alec a observava enquanto ela se movia, felina e composta, sua expressão agora demonstrando nada além de uma simpatia curiosa.
— Onde Magnus nasceu? — Camille riu. — Você não sabe? Meu Deus. Batavia, se você quiser saber — ela bufou para o olhar dele de incompreensão — Indonésia. É claro que ainda era chamada de Índias Orientais Holandesas naquela época. Sua mãe era uma nativa, creio eu; seu pai era um colono estúpido. Bem, não o pai verdadeiro.
Seus lábios se curvaram em um sorriso.
— Quem era seu verdadeiro pai?
— O pai de Magnus? Um demônio, é claro.
— Sim, mas qual demônio?
— Como isso pode importar, Alexander?
— Tenho a sensação — Alec falou teimosamente — que ele é um demônio muito poderoso e importante. Mas Magnus não vai falar sobre ele.
Camille caiu de volta no divã com um suspiro.
— Bem, é claro que ele não vai. É preciso preservar algum mistério no relacionamento, Alec Lightwood. Um livro não lido é sempre mais emocionante do que um livro memorizado.
— Você quer dizer que eu conto muito a ele? — Alec aproveitou o conselho.
Em algum lugar dentro desta mulher bela, fria e fechada como uma concha, havia alguém que compartilhava uma experiência única com ele – de amar e ser amado por Magnus. Certamente ela devia saber alguma coisa, algum segredo, alguma chave que o impediria de estragar tudo.
— Estou quase certa que sim. Embora você esteja vivo há tão pouco tempo que eu não possa imaginar o quanto poderia haver para dizer. Mas certamente você não deve partir para as anedotas.
— Bem, me parece óbvio que a sua política de não dizer nada a ele não deu certo também.
— Eu não estava tão determinada a manter o relacionamento como você.
— Bem — Alec começou a perguntar, sabendo que era uma má ideia, mas sem conseguir evitar — se você estivesse interessada em manter, o que teria feito de diferente?
Camille suspirou dramaticamente.
— A questão, que você é muito jovem para entender, é que todos nós escondemos coisas. Nós escondemos de nossos amantes porque queremos apresentar o melhor de nós, mas também, porque se for amor de verdade, esperamos que o nosso amado simplesmente entenda, sem precisar perguntar. Em uma parceria verdadeira, do tipo que dura através dos tempos, há uma comunhão silenciosa.
— M-mas... — Alec balbuciou — pensei que ele quisesse que eu me abrisse. Quer dizer, eu tenho dificuldade de me abrir, mesmo com pessoas que conheci minha vida inteira, como Isabelle, ou Jace...
Camille bufou.
— Isso é outra coisa. Você não precisa de outras pessoas em sua vida depois de ter encontrado seu verdadeiro amor. Não é de admirar que Magnus sinta que não pode se abrir para você, quando você conta tão pesadamente com essas outras pessoas. Quando o amor é verdadeiro, você deve conhecer cada desejo do outro, cada necessidade. Você está ouvindo, jovem Alexander? Porque meu conselho é precioso, e não é dado muitas vezes...
***
A sala estava cheia com a luz translúcida do amanhecer. Clary sentou-se, observando Jace enquanto ele dormia. Ele estava do seu lado, seu cabelo ganhou uma cor bronze-claro no ar azulado. Seu rosto estava apoiado nas mãos, como uma criança. A cicatriz em forma de estrela em seu ombro estava à vista assim como os padrões das runas antigas em seus braços, costas e flancos.
Se perguntou se outras pessoas achariam as cicatrizes tão bonitas como ela, ou se apenas as via dessa maneira porque o amava e elas eram parte dele. Cada uma contava a história de um momento. Algumas tinham até mesmo salvo sua vida.
Jace murmurou em seu sono e virou-se de costas. Sua mão, com a runa da Visão preta no dorso, estava espalmada em sua barriga, e acima havia a runa que Clary não achava bonita: a runa de Lilith, aquela que o ligava a Sebastian.
Ela parecia pulsar, como o colar de rubi de Isabelle, ou como um segundo coração.
Silenciosa como um gato, ela ajoelhou na cama, estendeu a mão e puxou o punhal Herondale da parede. A fotografia dela com Jace se soltou, girando no ar antes de pousar de face para baixo no chão.
Engoliu em seco e olhou para ele. Mesmo agora, jace era tão vivo, parecia brilhar de dentro para fora, como se iluminado por um fogo interior. A cicatriz em seu peito pulsava em uma batida constante.
Ela levantou a faca.
Clary acordou com um sobressalto e com o coração batendo contra as costelas. O quarto girou como um carrossel: ainda estava escuro, e o braço de Jace estava em torno dela, sua respiração quente contra a nuca. Ela podia sentir o batimento cardíaco dele contra sua coluna. Fechou os olhos e engoliu contra o gosto amargo na boca.
Foi um sonho. Apenas um sonho.
Mas não havia jeito de voltar a dormir agora. Ela sentou-se cuidadosamente, afastando delicadamente o braço de Jace, e saiu da cama.
O chão estava gelado, e ela estremeceu quando seus pés descalços o tocaram. Ela encontrou a maçaneta da porta do quarto à meia-luz, e a abriu. E congelou.
Embora não houvesse janelas no corredor fora, havia luz vinda dos lustres pendentes. O chão estava marcado por poças de algo que parecia pegajoso e escuro. Ao longo de uma parede branca havia uma marca de sangue no formato evidente de uma mão. A parede estava respingada com sangue em intervalos que conduziam às escadas, onde havia uma grande mancha longa e escura.
Clary olhou para o quarto de Sebastian. Estava quieto, com a porta fechada, sem luz aparecendo por baixo. Ela pensou na garota loira, com o top de lantejoulas, olhando para ele. Clary olhou para a marca de mão novamente. Era como uma mensagem, uma mão estendida sinalizando “pare!”.
E então a porta de Sebastian se abriu.
Ele saiu. Estava vestindo uma camisa térmica e calça jeans preta, e seu cabelo branco-prateado estava amassado. Ele estava bocejando; olhou duas vezes quando a viu, e uma expressão de surpresa genuína passou por seu rosto.
— O que você está fazendo acordada?
Clary prendeu a respiração. O ar tinha um cheiro metálico.
— O que eu estou fazendo? O que você está fazendo?
— Descendo para pegar algumas toalhas para limpar esta bagunça — ele respondeu com naturalidade — vampiros e seus joguinhos...
—Isso não parece ser o resultado de um jogo, disse Clary.
— A garota... a garota humana que estava com você... o que aconteceu com ela?
— Ela ficou um pouco assustada ao ver as presas. Às vezes elas ficam — ao ver o olhar no rosto dela, ele riu — ela está bem. Talvez tenha até gostado. Ela está dormindo na minha cama agora, se você quiser verificar e ter certeza de que ela está viva.
— Não... Isso não é necessário — Clary baixou os olhos. Ela desejou estar usando algo além da camisola de seda. Ela se sentia nua — e você?
— Você está perguntando se eu estou bem?
Ela não tinha perguntado isso, mas Sebastian parecia satisfeito. Ele puxou o colarinho de sua camisa para o lado, e ela pôde ver duas marcas de perfurações em sua clavícula.
— Eu poderia usar uma iratze.
Clary não disse nada.
— Vamos descer — ele falou, e gesticulou para que ela o seguisse enquanto caminhava, descalço, descendo a escada de vidro.
Depois de um momento, Clary fez o que ele pediu. Ele foi acendendo as luzes enquanto passava, por isso, no momento em que ela chegou à cozinha, o lugar estava brilhando com uma luz quente.
— Vinho? — ele perguntou, abrindo a porta da geladeira.
Ela acomodou-se em um dos banquinhos no balcão, alisando sua camisola.
— Apenas água.
Ela o observou enquanto ele servia dois copos de água mineral – um para ela, um para ele. Seus movimentos suaves e econômicos eram como os de Jocelyn, mas o controle com o qual ele se movia deve ter sido ensinado por Valentim. Isso fazia lembrar-se do jeito como Jace se movimentava, como um dançarino cuidadosamente treinado.
Sebastian empurrou o copo em sua direção com uma mão, e com a outra levou seu próprio copo em direção a seus lábios. Quando ele terminou, deixou o copo no balcão.
— Você provavelmente sabe disso, mas brincar com vampiros certamente nos deixa com muita sede.
— Por que eu iria saber disso? — A pergunta saiu mais acentuada do que pretendia.
Ele encolheu os ombros.
— Percebi que você estava envolvida em algum joguinho com o Diurno.
— Simon e eu nunca tivemos nenhum “joguinho” — ela respondeu em tom gelado — na verdade, eu não consigo imaginar por que alguém iria querer que um vampiro se alimentasse de si próprio de propósito. Você não odeia e despreza os Seres do Submundo?
— Não. Não me confunda com Valentim.
— É — ela murmurou — é um erro difícil de cometer.
— Não é minha culpa que eu pareça exatamente com ele e você se parece com ela — sua boca se torceu em uma expressão de desagrado ao falar de Jocelyn. Clary fez uma carranca para ele. — Está vendo? Lá vai você. Sempre olhando para mim desse jeito.
— De que jeito?
— Como se eu queimasse abrigos de animais por diversão e acendesse meus cigarros nas chamas.
Ele encheu mais um copo de água. Quando virou a cabeça em sua direção, Clary viu que as perfurações em sua garganta já estavam começando a cicatrizar.
— Você matou uma criança — ela disse bruscamente, sabendo que deveria manter a boca fechada e continuar fingindo que não achava que Sebastian era um monstro.
Mas pensou em Max. Ele estava claro em sua mente como se fosse a primeira vez que ela o tinha visto, dormindo em um sofá no Instituto com um livro no colo e os óculos tortos em seu pequeno rosto.
— Isso não é algo pela qual você possa ser perdoado, nunca.
Sebastian respirou.
— Então é isso. As cartas na mesa tão cedo, irmãzinha?
— O que você estava pensando? — Sua voz soou fina e cansada aos seus próprios ouvidos, mas ele se encolheu como se ela o tivesse estapeado.
— Você acreditaria em mim se eu lhe dissesse que foi um acidente? — ele perguntou, deixando o copo sobre o balcão. — Eu não queria matá-lo. Apenas nocauteá-lo, para que ele não contasse...
Clary o silenciou com um olhar. Ela sabia que não conseguia esconder o ódio em seus olhos: sabia que deveria, mas era impossível.
— É verdade. Eu queria derrubá-lo, como fiz com Isabelle. Mas julguei mal minha própria força.
— E Sebastian Verlac? O verdadeiro? Você o matou, não é?
Sebastian olhou para as próprias mãos como se fossem estranhas para ele: havia uma corrente de prata segurando uma placa de metal plana, como um bracelete de identificação, em torno de seu pulso direito, escondendo a cicatriz onde Isabelle tinha cortado sua mão.
— Eu não esperava que ele revidasse...
Desgostosa, Clary começou a sair do banco, mas Sebastian pegou em seu pulso, puxando-a para ele. Sua pele era quente contra a dela e ela se lembrou de Idris, quando o toque dele tinha queimado-a.
— Jonathan Morgenstern matou Max. Mas e se eu não for mais a mesma pessoa? Você não percebeu que eu não estou nem usando o mesmo nome?
— Me largue.
— Você acredita que Jace está diferente — Sebastian disse calmamente — acredita que ele não é a mesma pessoa, que o meu sangue o mudou. Não é?
Ela assentiu com a cabeça sem falar.
— Então por que é tão difícil acreditar que o contrário possa ter acontecido? Talvez o sangue dele tenha me mudado. Talvez eu não seja a mesma pessoa que fui.
— Você esfaqueou Luke. Alguém com quem eu me importo. Alguém que eu amo...
— Ele estava prestes a me explodir em pedaços com uma espingarda — Sebastian respondeu — você o ama; eu não o conheço. Eu estava salvando a minha vida e a de Jace. Você realmente não entende isso?
— E talvez você esteja apenas dizendo o que acredita que precisa dizer para que eu confie em você.
— Será que a pessoa que eu costumava ser se importaria com a sua confiança?
— Se você quisesse alguma coisa.
— Talvez eu só queira uma irmã.
Com isso, seus olhos encontraram os dele com uma incredulidade involuntária.
— Você não sabe o que é uma família. Ou o que faria com uma irmã, se tivesse uma.
— Eu tenho uma — sua voz era baixa. Havia manchas de sangue na gola de sua camisa, exatamente onde tocava em sua pele — estou te dando uma chance. Para ver que Jace e eu estamos fazendo a coisa certa. Você pode me dar uma chance?
Ela pensou no Sebastian que havia conhecido em Idris. Ela o tinha visto parecer divertido, simpático, independente, irônico, intenso e irado. Mas nunca o tinha visto parecer suplicante.
— Jace confia em você — ele falou — mas eu não. Ele acredita que você o ama suficientemente para jogar para o alto tudo o que valoriza e acredita para ficar com ele. Não importa o quê.
A mandíbula dela se apertou.
— E por que você acha que eu não faria?
Ele riu.
— Porque você é minha irmã.
— Nós não somos nada parecidos — ela atirou e viu o sorriso lento no rosto dele.
Ela engoliu o resto de suas palavras, mas já era tarde demais.
— Isso é o que eu teria dito. Mas vamos lá, Clary. Você está aqui. Não pode voltar. Você apostou tudo em Jace. Pode muito bem fazê-lo de todo o coração. Faça parte disso. Então você poderá tirar suas próprias conclusões sobre... mim.
Olhando para o chão de mármore, sem olhar para ele, ela assentiu com a cabeça ligeiramente.
Ele estendeu a mão e afastou o cabelo que tinha caído nos olhos dela e as luzes da cozinha refletiram no bracelete que ele usava, que ela tinha notado antes, com letras gravadas. Acheronta movebo. Corajosamente, ela colocou a mão em seu pulso.
— O que isso significa?
Ele olhou para onde a mão dela tocava na prata em seu pulso.
— Significa “assim, sempre aos tiranos”. Eu a uso para me lembrar da Clave. Dizem que este foi o grito dos romanos que assassinaram César antes que ele pudesse se tornar um ditador.
— Traidores — disse Clary, abaixando a mão.
Os olhos escuros de Sebastian brilharam.
— Ou revolucionários. A história é escrita pelos vencedores, irmãzinha.
— E você pretende escrever a sua parte?
Ele sorriu para ela, com seus olhos escuros acesos.
— Pode apostar que sim.
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