Capítulo 11 - Fumaça e Aço

A unidade de terapia intensiva do hospital Beth Israel sempre lembrava a Clary as fotos que tinha visto da Antártida: era fria e remota, e tudo era sempre cinza, branco ou azul pálido. As paredes do quarto de sua mãe eram brancas, os tubos que serpenteavam em torno da cabeça dela e as inúmeras caixas de instrumentos ao redor da cama eram cinza, o cobertor puxado ao redor de seu peito era azul pálido. O rosto dela estava branco. A única cor no quarto era seu cabelo vermelho, estendido em toda a extensão nevada do travesseiro como uma brilhante bandeira fora do lugar, plantada no polo sul.
Clary se perguntou como Luke estava fazendo para pagar por este quarto particular, de onde o dinheiro tinha vindo e como o conseguiu. Ela considerou perguntar a ele quando ele voltasse da pequena cafeteria no terceiro andar. O café que vinha da máquina lá parecia com alcatrão e tinha gosto disso também, mas Luke parecia viciado nessas coisas.
As pernas de metal da cadeira ao lado da cama chiaram quando Clary a puxou e lentamente sentou, alisando a saia sobre suas pernas. Sempre que vinha ver sua mãe, se sentia nervosa e com a boca seca, como se estivesse prestes a ficar em problemas por alguma coisa. Talvez porque as únicas vezes que ela tinha visto o rosto de sua mãe assim, liso e sem animação, era quando sua mãe estava prestes a explodir com raiva.
— Mãe — ela disse.
Se aproximou e tomou a mão esquerda de sua mãe; havia ali uma marca de picada acima do punho, onde Valentim tinha enfiado um tubo. A pele da mão de sua mãe – sempre calejada, salpicada com tinta e terebintina – parecia como a casca seca de uma árvore.
Clary dobrou seus dedos ao redor dos de Jocelyn sentindo um nó duro vindo em sua garganta.
— Mãe, eu... — Ela limpou a garganta. — Luke disse que você pode me ouvir. Eu não sei se isso é verdade ou não. De qualquer modo, vim porque eu precisava falar com você. Olha, o negócio é, é que...
Ela engoliu de novo e olhou em direção à janela, a faixa de céu azul visível no canto da parede de tijolos que dava de frente ao hospital.
— É Simon. Algo aconteceu com ele. Algo que foi culpa minha.
Agora que não estava olhando para o rosto do sua mãe, a história jorrou para fora dela, tudo: como ela conheceu Jace e os outros Caçadores de Sombras, a procura pelo Cálice Mortal, a traição de Hodge e a batalha de Renwick, a descoberta que Valentim era seu pai tanto quanto era de Jace. Mais dos recentes eventos também: a visita noturna à Cidade dos Ossos, a Espada da Alma, o ódio da Inquisidora por Jace, a mulher com o cabelo prata. E então ela disse a sua mãe sobre a Corte de Seelie, sobre o preço que a Rainha tinha exigido, e o que aconteceu a Simon mais tarde. Ela podia sentir as lágrimas queimando em sua garganta enquanto falava, mas era um alívio dizer aquilo, desabafar com alguém, mesmo que esse alguém não pudesse ouvi-la.
— Então, basicamente, eu ferrei tudo pra valer. Lembro de você me dizendo que crescer é quando se começa a olhar para trás, desejando poder mudar as coisas. Acho que significa que eu cresci agora. É só que... que eu... — eu pensei que você estaria lá quando eu crescesse.
Ela sufocou em lágrimas justo quando alguém atrás dela limpou a garganta.
— Há quanto tempo você está aí de pé?
— Não muito tempo — Luke disse — eu te trouxe café.
Ele segurou o copo, mas ela acenou ele para longe.
— Eu odeio esse negócio. Tem gosto de chulé.
Luke sorriu com aquilo.
— Como você sabe que tem gosto de chulé?
— Eu apenas sei — ela se inclinou a frente e beijou a fria bochecha de Jocelyn antes de se levantar. — Tchau, mãe.
A caminhonete azul de Luke estava estacionada no estacionamento embaixo do hospital. Eles tinham ido para a rodovia FDR antes que ele falasse:
— Eu ouvi o que você disse no hospital.
— Achei que você estava escutando — ela falou sem raiva.
Não havia nada que ela tinha dito à sua mãe que Luke não pudesse saber.
— O que aconteceu com Simon não foi culpa sua.
Clary ouviu as palavras, mas pareciam ricochetear como se tivesse uma parede invisível ao redor dela. Como a parede que Hodge tinha construído quando os traiu por Valentim, mas daquela vez ela não podia ouvir nada através do vidro, não podia sentir também. Clary estava em um entorpecimento como se tivesse sido lacrada em gelo.
— Você me ouviu, Clary?
— É uma coisa legal para se dizer, mas é claro que foi minha culpa. Tudo o que aconteceu a Simon foi minha culpa.
— Por que ele estava com raiva de você quando voltou para o hotel? Ele não voltou ao hotel por que estava com raiva de você, Clary. Eu ouvi falar de situações como esta antes. Eles os chamam de “Novatos da escuridão”, aqueles que são os semitransformados. Ele teria se sentido atraído de volta ao hotel pela compulsão que não podia controlar.
— Porque ele tinha o sangue de Raphael nele. Mas isso nunca teria acontecido também se não fosse por mim. Se eu não o tivesse levado na festa...
— Você pensou que ele estaria a salvo lá. Não o pôs em nenhum perigo que não tenha se colocado também. Você não pode se torturar desse jeito — Luke disse, virando na Ponte do Brooklyn. A água deslizava debaixo deles como prata derretida. — Não há nenhum propósito nisso.
Ela desmoronou devagar em seu assento, curvando os dedos nas mangas de seu casaco de capuz verde de tricô. Suas beiradas estavam desgastadas e os fios picavam em sua bochecha.
— Olha — Luke continuou — em todos os anos que conheço Simon, sempre houve um lugar onde Simon queria estar, e ele sempre lutou como louco para ter certeza de chegar lá e ficar.
— E onde é isso?
— Onde você está. Lembra quando você caiu daquela árvore na fazenda quando tinha dez anos e quebrou seu braço? Lembra de como ele fez com que o levassem de carona dentro da ambulância, a caminho do hospital? Ele chutou e gritou até que deixassem.
— Você riu — Clary se lembrou — e minha mãe te bateu no ombro.
— Foi difícil não rir. Determinação como aquela aos dez anos é difícil de se ver. Ele era como um pitbull.
— Se pitbulls usassem óculos e fossem alérgicos a erva daninha.
— Você não pode por um preço nesse tipo de lealdade — Luke disse, mais seriamente.
— Eu sei. Não me faça me sentir pior.
— Clary, estou dizendo a você que ele fez suas próprias decisões. Que você está se culpando por ser o que você é. E isso não é culpa de ninguém e nada que possa mudar. Disse a ele a verdade, e fez a sua própria cabeça que precisava fazer algo sobre isso. Todo mundo tem escolhas a fazer; ninguém tem o direito de tirar aquelas escolhas de nós. Nem mesmo por amor.
— Mas esse é o problema — Clary respondeu — quando você ama alguém, não tem uma escolha.
Ela pensou no jeito como seu coração se contraiu quando Isabelle lhe telefonou para dizer que Jace tinha sumido. Ela deixou a casa sem um momento de hesitação ou pensamento.
— O amor tira suas escolhas.
— É muito melhor do que ter alternativa — Luke replicou.
Ele guiou a caminhonete para Flatblush. Clary não respondeu, apenas olhou entediadamente pela janela. A área pouco depois não era uma das partes mais bonitas do Brooklyn; ambos os lados da avenida era alinhados com feios prédios comerciais e lojas de oficina. Normalmente ela odiava isso, mas agora a vizinhança combinava com seu humor.
— Então, você já tem notícias de...? — Luke começou, aparentemente decidindo que era hora de mudar de assunto.
— Simon? Sim, você sabe que eu tenho — Clary respondeu antes que Luke pudesse terminar.
— Na verdade, eu ia dizer Jace.
— Oh.
Jace tinha ligado para seu celular várias vezes e deixado mensagens. Ela não tinha pegado ou ligado de volta. Não falar com ele era sua penitência para o que aconteceu a Simon. Essa era a pior forma que ela podia pensar em punir a si mesma.
— Não, eu não tenho.
A voz de Luke estava cuidadosamente neutra.
— Você pode querer. Só para ver se ele está bem. Ele provavelmente está tendo um péssimo momento, considerando...
Clary se deslocou em seu assento.
— Eu pensei que você tinha checado com Magnus. Te ouvi falando com ele sobre Valentim e toda a coisa sobre a inversão da Espada da Alma. Tenho certeza que ele diria a você se Jace não estivesse bem.
— Magnus pode me assegurar sobre a saúde física de Jace. Sua saúde mental, por outro lado...
— Esqueça, eu não vou ligar para Jace — ela ouviu a frieza em sua própria voz e estava quase chocada consigo mesma — tenho que estar lá para Simon agora. E não é porque a saúde mental dele é tão importante também.
Luke suspirou.
— Se ele está tendo problemas vindos dos termos de sua condição, talvez ele devesse...
— É claro que ele está tendo problemas! — Ela atirou a Luke um olhar acusador, apesar de ele estar se concentrando no tráfego e não ter notado. — Você de todas as pessoas deveria entender o que é...
— Acordar um monstro um dia? — Luke não parecia amargo, apenas cansado. — Você está certa, eu entendo. E se ele quiser falar comigo, eu ficaria feliz conversar sobre o assunto. Ele vai passar por isso, mesmo se pensar que não.
Clary fez uma careta. O sol estava se firmando bem atrás deles, fazendo com que o espelho retrovisor brilhasse como ouro. Os olhos dela piscaram com a luminosidade.
— Não é a mesma coisa. Pelo menos você cresceu sabendo que lobisomens eram reais. Antes que ele possa dizer a alguém que ele é um vampiro, ele vai ter que convencê-los que os vampiros existem em primeiro lugar.
Luke pareceu que ia dizer algo sobre isso, então mudou de ideia.
— Eu tenho certeza que você está certa.
Eles estavam em Williamsburg agora, dirigindo abaixo da Avenida Kent meio vazia, armazéns surgindo acima deles de ambos os lados.
— Contudo, peguei uma coisa para ele. Está no porta-luvas. Só em caso...
Clary abriu o compartimento e franziu as sobrancelhas. Ela tirou um panfleto brilhante dobrado.
— Como se assumir com seus pais. LUKE. Não seja ridículo. Simon não é gay, ele é um vampiro.
— Eu reconheço isso, mas tudo no panfleto sobre dizer aos pais as difíceis verdades sobre si mesmo que eles podem não aceitar. Talvez ele pudesse adaptar um dos discursos, ou apenas ouvir os conselhos em geral...
— Luke! — Ela falou tão estridente que ele puxou a caminhonete numa freada com um alto guinchar dos freios.
Eles estavam bem em frente a casa dele, a água no Rio East brilhava sombriamente a direita deles, o céu listrado com fuligem e sombras. Outra sombra mais escura encurvava-se na varanda da frente de Luke.
Luke estreitou seus olhos. Na forma de lobo, tinha dito a Clary, sua visão era perfeita; na forma humana, ele continuava míope.
— Será que...
— Simon. Sim — ela sabia que era ele mesmo pelo contorno — seria melhor eu ir falar com ele.
— Claro. Eu vou, ah, dar uma volta. Eu tenho coisas a pegar.
— Que tipo de coisas?
Ele lhe acenou a distância.
— Coisas de comer. Eu vou estar de volta em meia hora. Entretanto, não fique do lado de fora. Entre em casa e tranque a porta.
— Você sabe que eu vou.
Ela observou enquanto a caminhonete se afastava para longe, então se virou em direção a casa. Seu coração estava pulando. Ela tinha falado com Simon por telefone algumas vezes, mas não o tinha visto desde que trouxeram-no, grogue e respingado de sangue, para a casa de Luke nas primeiras horas daquela horrível manhã para se limpar antes de ele ir para a casa. Pensou que ele devia ir ao Instituto, mas claro que aquilo era impossível. Simon nunca iria ver o interior de uma igreja ou sinagoga de novo.
Ela tinha observado o amigo andando na frente da porta, ombros arqueados como se estivesse andando contra um vento forte. Quando a luz da varanda acendeu automaticamente, ele esquivou-se dela, Clary sabia que era porque ele tinha pensado que era a luz do sol e começou a chorar silenciosamente no banco traseiro da caminhonete, as lágrimas espalhando na estranha marca preta em seu antebraço.
— Clary — Jace tinha sussurrado, e se aproximou da mão dela, mas ela tinha recuado dele, exatamente como Simon tinha recuado da luz.
Ela não tocaria nele. Nunca tocaria nele novamente. Esta era a sua pena, o seu pagamento pelo o que tinha feito a Simon.
Agora, enquanto se elevava nos degraus da varanda de Luke, sua boca ficou seca e a garganta apertada com a pressão das lágrimas. Disse a si mesma que não iria chorar. Chorar apenas o faria se sentir pior.
Simon estava sentado nas sombras em um canto da varanda, observando-a. Ela podia ver o brilho de seus olhos na escuridão. Se perguntou se eles tinham tido aquele tipo de luz neles antes; ela não podia se lembrar.
— Simon?
Ele ficou em pé em um simples e gracioso movimento suave que enviou um tremor acima de sua coluna. Se havia uma coisa que Simon nunca tinha sido, era gracioso.
Havia algo mais nele, algo diferente...
— Desculpe se assustei você — ele falou cuidadosamente, quase formalmente, como se fossem estranhos.
— Está tudo bem, é só... Há quanto tempo você está aqui?
— Não muito. Eu só posso sair depois que o sol começa a baixar, lembra-se? Eu acidentalmente pus minha mão centímetros fora da janela ontem e quase carbonizei meus dedos. Felizmente, me curo rápido.
Ela tateou por sua chave, destrancando a porta, movendo-a aberta. A pálida luz se derramou na varanda.
— Luke disse que deveríamos ficar lá dentro.
— Porque as coisas nojentas — Simon disse, passando por ela — saem no escuro.
A sala de estar estava cheia da morna luz amarela; Clary fechou a porta atrás deles e trancou o ferrolho. O casaco azul de Isabelle ainda estava pendurado em um gancho na porta. Ela pretendia levá-lo a uma lavanderia para ver se eles podiam tirar as manchas de sangue, mas não tinha tido oportunidade. Ela olhou para aquilo por um instante, se endurecendo antes de virar para Simon.
Ele estava parado no meio da sala, as mãos nos bolsos de seu casaco. Usava jeans e uma camiseta desgastada escrito Eu amo Nova York que tinha pertencido ao pai dele. Tudo nele era familiar para Clary, e ainda assim parecia como um estranho.
— Seus óculos — ela disse, tardiamente percebendo o que tinha parecido estranho — você não está usando eles.
— Você já viu um vampiro usar óculos?
— Bem, não, mas...
— Eu não preciso mais deles. Visão perfeita parece que vem com o pacote.
Ele sentou no sofá e Clary se juntou a ele, sentando-se ao lado dele, mas não muito perto. De perto ela podia ver como a pele pálida parecia, traços azuis de veias apareciam logo abaixo da superfície. Os olhos sem os óculos pareciam grandes e escuros, os cílios como chicotes de tinta preta.
— É claro que eu ainda tenho que usá-los em minha casa ou minha mãe iria surtar. Eu vou ter que dizer a ela que estou usando lentes.
— Você tem que dizer a ela, e ponto final — Clary disse, mais firme do que se sentia — você não pode esconder sua... sua condição para sempre.
— Eu posso tentar — ele passou uma mão através do cabelo escuro, sua boca se contorcendo — Clary, o que eu vou fazer? Minha mãe continua me trazendo comida e eu tenho que jogá-la pela janela – eu não tenho saído há dois dias, mas não sei quanto tempo consigo continuar fingindo que tenho uma gripe. Daqui a pouco ela vai me levar a um médico, e então o quê? Eu não tenho batimento cardíaco. Ele vai dizer a ela que eu estou morto.
— Ou dizer que você é um milagre da medicina — Clary sugeriu.
— Isso não tem graça.
— Eu sei. Só estou tentando...
— Eu continuo pensando em sangue — Simon disse — sonho com ele. Acordo pensando nele. Muito em breve eu estarei escrevendo uma poesia mórbida emo sobre ele.
— Você não tem aquelas garrafas que Magnus te deu? Não está saindo por aí, está?
— Eu as tenho. Elas estão na minha mini-geladeira. Mas só tenho três últimas — sua voz soou aguda com a tensão — e quando eu correr atrás...
— Você não vai. Nós iremos conseguir mais — Clary respondeu, com mais confiança do que sentia.
Ela supôs que sempre poderia ir amigavelmente ao fornecedor local de Magnus de sangue de cordeiro, mas todo esse negócio a deixava nauseada.
— Olha, Simon, Luke acha que você deveria dizer a sua mãe. Você não pode esconder dela para sempre.
— Posso muito bem tentar.
— Pense em Luke — ela disse desesperadamente — você ainda pode viver uma vida normal.
— E o que dizer de nós? Você quer um namorado vampiro? — Ele riu amargamente. — Por que eu prevejo muitos encontros românticos em nosso futuro. Você bebendo uma piña colada virgem, e eu bebendo o sangue de uma virgem.
— Pense nisso como um obstáculo — Clary instou — você tem que aprender a trabalhar sua vida em torno disso. Muitas pessoas fazem isso.
— Eu não tenho certeza se sou uma pessoa. Não mais.
— Você é para mim. De qualquer modo, ser um humano é extremamente valorizado.
— Pelo menos Jace não pode me chamar mais de mundano. O que você está segurando? — ele perguntou, reparando no panfleto ainda enrolado na mão esquerda dela.
— Ah, isso? — Ela ergueu o panfleto. — Como se assumir com seus pais.
Ele esbugalhou seus olhos.
— É alguma coisa que você precisa me dizer?
— Isso não é para mim. É para você.
Clary deu o panfleto para ele.
— Eu não tenho que me assumir para minha mãe — Simon disse — ela já pensa que eu sou gay porque não me interesso por esporte e não tenho uma namorada séria ainda. Não que ela saiba de qualquer modo.
— Mas você tem que se assumir como um vampiro — Clary apontou — Luke pensou que talvez você pudesse, sabe, utilizar uma das sugestões do discurso no panfleto, só use a palavra “morto-vivo ao invés de...”
— Saquei, saquei — Simon abriu o panfleto — aqui, eu vou praticar em você.
Ele limpou sua garganta.
— Mãe. Eu tenho algo pra te dizer. Eu sou um morto-vivo. Agora, eu sei que você pode ter noções pré-concebidas sobre o morto-vivo. Sei que você pode não se sentir confortável com a ideia de eu ser um morto-vivo. Mas eu estou aqui para te dizer que os mortos-vivos são pessoas como eu e você — Simon interrompeu — bem, ok. Possivelmente é mais como eu do que com você.
— SIMON.
— Tudo bem, tudo bem. A primeira coisa que você precisa entender é que eu sou a mesma pessoa. Eu sempre fui. Ser um morto-vivo não é a coisa mais importante para mim. É apenas parte de quem eu sou. A segunda coisa que você tem que saber é que isso não é uma escolha. Eu nasci desse jeito — Simon olhou de soslaio para ela por cima do panfleto — desculpe, eu renasci desse jeito.
Clary suspirou.
— Você não está tentando.
— Finalmente eu posso dizer a ela que ela pode me enterrar em um cemitério judeu — Simon disse, abandonando o panfleto — talvez eu deva começar por baixo. Dizer a minha irmã primeiro.
— Eu vou com você, se quiser. Talvez eu possa ajudá-las a entender.
Ele olhou para seu rosto, surpreso, e ela viu as rachaduras em sua armadura de humor amargo, e o medo que estava por baixo.
— Você faria isso?
— Eu... — Clary começou, e foi cortada por um súbito guinchar de pneus ensurdecedor e o som de vidro se estilhaçando.
Ela saltou sobre seus pés e correu para a janela, Simon ao seu lado. Puxou a cortina de um lado e olhou lá fora.
A caminhonete de Luke estava em cima gramado, seu motor rangendo, tiras de borracha queimada através da calçada. Um dos faróis da caminhonete estava brilhando; o outro tinha sido esmagado e havia uma mancha escura na grade da frente dele, e alguma coisa dobrada, branca e imóvel deitada abaixo das rodas da frente.
A bile subiu na garganta de Clary. Luke tinha atropelado alguém? Mas não – impacientemente, ela limpou o encantamento de sua visão como se estivesse limpando a sujeira de uma janela. A coisa embaixo das rodas de Luke não era humana. Era aplainada, branca, quase larval, e enrolava-se como um verme pregado em uma tábua.
A porta do lado do motorista se abriu e Luke saltou. Ignorando a criatura depositada debaixo das rodas dele, ele lançou-se através do gramado para a varanda. Seguindo-o com seu olhar, Clary viu o que outra forma escura esparramada nas sombras. Esta forma era humana – pequena, o cabelo trançado...
— É aquela garota lobisomem. Maia — Simon soou atônito — o que aconteceu?
— Eu não sei.
Clary agarrou sua estela em cima de uma estante. Eles se precipitaram pelos degraus e lançaram-se nas sombras onde Luke se encurvava, as mãos nos ombros de Maia, levantando-a e sustentando-a contra a lateral da varanda. Mais de perto, Clary pôde ver que a frente da camisa dela estava rasgada e havia uma ferida em seu ombro gotejando um lento pulsar de sangue.
Simon estancou. Clary quase bateu nele, deu um suspiro de surpresa e lhe atirou um olhar raivoso antes que ela percebesse. O sangue. Simon estava com medo dele, com medo de olhar para ele.
— Ela está bem — Luke disse, quando a cabeça de Maia rolou e ela gemeu. Ele bateu nas bochechas dela levemente e os olhos dela flutuaram se abrindo. — Maia, Maia, você pode me ouvir?
Ela piscou e acenou, parecendo confusa.
— Luke? — ela sussurrou. — O que aconteceu?
Ela se encolheu.
— Meu ombro...
— Vamos lá. É melhor você entrar — Luke içou-a em seus braços e Clary se lembrou que sempre achou-o surpreendentemente forte para alguém que trabalhava em uma livraria. Ele carregava várias caixas pesadas ao mesmo tempo. Agora ela sabia melhor.
— Clary. Simon. Vamos lá.
Eles seguiram para dentro, onde Luke deitou Maia no esfarrapado sofá cinza de camurça. Mandou Simon ir atrás de um cobertor e Clary para a cozinha buscar uma toalha molhada. Quando Clary retornou, encontrou Maia apoiada contra uma das almofadas, parecendo ruborizada e febril. Ela estava conversando rapidamente e nervosamente com Luke.
— Eu estava chegando pelo gramado quando cheirei alguma coisa. Algo podre, como lixo. Eu me virei e aquilo me acertou...
— O que acertou você? — Clary perguntou, entregando a toalha para Luke.
Maia franziu as sobrancelhas.
— Eu não vi. Ele me empurrou no chão e então... eu tentei chutá-lo, mas ele era muito rápido...
— Eu o vi — Luke disse, sua voz seca — eu estava dirigindo para casa e vi você atravessando o gramado – e então o vi te seguindo nas sombras dos seus calcanhares. Tentei gritar por você pela janela, mas você não me ouviu. Então ele te golpeou.
— O que estava seguindo ela? — Clary perguntou.
— Era um demônio Drevak — Luke respondeu, sua voz sombria — eles são cegos. Seguem pelo cheiro. Eu dirigi o carro por cima do gramado e atropelei-o.
Clary olhou a caminhonete pela janela. A coisa que estava se debatendo debaixo das rodas tinha ido, sem surpresa – demônios sempre voltam as suas dimensões quando morrem.
— Por que ele atacou Maia? — Ela deixou sua voz baixar enquanto pensava no que ocorreu a ela: — Você acha que foi Valentim? Procurando por sangue de um lobisomem para seu feitiço? Ele foi interrompido da última vez...
— Acho que não — Luke disse, para sua surpresa — demônios Drevak não são sugadores de sangue e eles definitivamente não podem causar o tipo de dano que você viu na Cidade do Silêncio. A maioria deles são espiões e mensageiros. Acho que Maia apenas ficou em seu caminho.
Ele dirigiu seu olhar para Maia, que gemia suavemente, seus olhos fechados.
— Você pode puxar a manga para eu poder ver seu ombro?
A garota lobisomem mordeu seu lábio e acenou, então arregaçou a manga de seu suéter. Havia um longo arranhão bem abaixo do ombro. Sangue tinha secado para uma crosta em seu braço. Clary sugou sua respiração quando viu que o corte vermelho alinhado estava circundado por finas linhas pretas saindo grotescamente para fora da pele.
Maia olhou abaixo de seu braço com óbvio horror.
— O que é isso?
— Demônios Drevak não tem dentes; tem espinhos venenosos em suas bocas — Luke respondeu — alguns desses espinhos devem ter quebrado em sua pele.
Os dentes de Maia começaram a bater.
— Veneno? Eu vou morrer?
— Não se trabalharmos rápido — Luke assegurou-a — vou ter que puxá-los, apesar de que eles vão machucar. Você acha que aguenta?
O rosto de Maia se contorceu em uma careta de dor. Ela conseguiu acenar.
— Apenas... tire-os de mim.
— Tirar o quê? — Simon perguntou, entrando na sala com um cobertor enrolado.
Ele deixou cair o cobertor quando viu o braço de Maia, e deu um passo involuntário para trás.
— O que é isso?
— Enjoado com sangue, mundano? — Maia disse, com um pequeno e retorcido sorriso. Então ela arfou. — Oh, isso dói...
— Eu sei — Luke falou, gentilmente envolvendo a toalha ao redor da parte mais baixa do braço dela.
Do seu cinto ele puxou uma faca de lâmina fina. Maia deu uma olhada na faca e apertou seus olhos fechados.
— Faça o que precisa — ela pediu em uma voz pequena — mas... eu não quero os outros olhando.
— Eu entendo — Luke se virou para Simon e Clary — vão para a cozinha, vocês dois. Liguem para o Instituto. Digam a eles o que aconteceu e mandem enviar alguém. Eles não podem mandar algum dos Irmãos, então alguém preferivelmente com treinamento médico, ou um bruxo.
Simon e Clary olharam para ele, paralisados com a visão da faca e o braço levemente arroxeado de Maia.
— Vão! — Luke ordenou, mais severamente, e dessa vez eles foram.

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