Capítulo 12 - De Profundis

As mãos de Simon estavam pretas com o sangue.
Ele tinha tentado arrancar as barras da janela e a porta da cela, embora tocar qualquer uma delas por muito tempo tenha formado pontos marcados em suas palmas.
Eventualmente ele desmoronou, arfando, no chão, e olhou entorpecidamente para suas mãos enquanto os ferimentos cicatrizavam rapidamente, as lesões fechavam-se e a pele preta se descamava como um vídeo em alta velocidade.
Do outro lado da parede da cela, Samuel estava orando.
Se, quando o mal vem sobre nós, enquanto a espada, julgamento, ou peste, ou fome, nós perante nossa casa, e em tua presença, e gritamos para ti em nossa aflição, então tu nos ouve e ajuda...
Simon sabia que não podia orar. Ele tinha tentado antes, e o nome de Deus queimou sua boca e sufocou sua garganta. Ele se perguntou porque podia pensar nas palavras, mas não dizê-las. E por que podia suportar o sol do meio-dia e não morrer, mas não podia dizer suas últimas orações.
Fumaça começou a fluir abaixo no corredor como um fantasma resoluto. Era estranho vindo de um vampiro ser apresentado com o que podia ser descrito como vida eterna, e então morrer de qualquer maneira quando tinha dezesseis.
— Simon!
A voz era fraca, mas a sua audição a pegou sobre o estalo e crepitar de chamas crescentes. A fumaça no corredor havia anunciado o calor; o calor estava ali agora, pressionando-o como uma parede opressora.
— Simon!
A voz era de Clary. Ele reconheceria em qualquer lugar. Ele se perguntou se sua mente estava suplicando isso agora, um sentimento de memória do que ele mais tinha amado durante a vida para carregar com ele através do processo da morte.
— Simon, seu estúpido, idiota! Eu estou aqui! Na janela!
Simon saltou para seus pés. Ele duvidava que sua mente fosse suplicar por aquilo. Através da espessa fumaça ele viu algo branco se movendo contra as barras da janela.
Enquanto se aproximava, os objetos brancos evoluíram para mãos agarrando as barras.
Ele saltou para o beliche, gritando sobre o barulho do fogo.
— Clary?
— Ah, graças a Deus — uma das mãos se estendeu, apertou seu ombro — estamos indo te tirar daí.
— Como?
Simon demandou, não sem lógica, embora houve o som de uma briga e as mãos de Clary desapareceram, substituídas um momento mais tarde por outro par. Estas eram mãos maiores, inquestionavelmente masculinas, com articulações cicatrizadas e finos dedos de pianista.
— Calma aí.
A voz de Jace era calma, confiante, como se eles estivessem conversando em uma festa ao invés de lados opostos das barras de um calabouço rapidamente incendiando.
— Você pode querer ir para trás.
Atemorizado em obediência, Simon se moveu para o lado. As mãos de Jace apertaram-se nas barras, suas articulações embranquecendo alarmantemente. Houve um estalo, e a esquadria das barras sacudiu livre da pedra que a segurava e caiu ao lado da cama. Poeira da pedra choveu em uma sufocante nuvem branca.
O rosto de Jace apareceu no quadrado vazio da janela.
— Simon, VAMOS LÁ.
Ele se esticou. Simon alcançou e segurou as mãos de Jace. Se sentiu puxado para cima, e então estava agarrando a beirada da janela, se suspendendo pelo quadrado estreito como um cobra ziguezagueando através de um túnel.
Um segundo depois ele estava esparramado na grama úmida, olhando para um círculo de rostos preocupados acima dele. Jace, Clary e Alec. Todos estavam olhando para ele em preocupação.
— Você parece uma merda vampiro — Jace comentou — o que aconteceu com suas mãos?
Simon se sentou. Os ferimentos em suas mãos tinham curado, mas ainda estavam pretas onde ele tinha agarrado as barras de sua cela. Antes que ele pudesse responder, Clary o pegou em um súbito e feroz abraço.
— Simon — ela sussurrou — não acredito nisso. Eu nem mesmo sabia que você estava aqui. Pensei que você estava em Nova York até a noite passada...
— Yeah, bem — Simon respondeu — eu não sabia que você estava aqui também — ele olhou para Jace acima do ombro dela — na verdade, eu acho que foi expressamente dito que você não estava.
— Eu nunca disse isso — Jace apontou — eu apenas não te corrigi quando você estava, sabe, errado. Além do mais, eu te salvei de ser queimado até a morte, então calculo que você não está autorizado a estar nervoso.
Queimado até a morte. Simon se afastou de Clary e olhou ao redor. Eles estavam em um jardim quadrado, cercado de dois lados por paredes da fortaleza e nos outros dois lados por pesadas árvores. As árvores tinham sido limpas onde um caminho de cascalho levava da colina para a cidade – ela era alinhada com tochas de pedra enfeitiçada, mas apenas poucas estavam queimando, suas fracas luzes e erráticas.
Ele olhou acima para a Garde. Vendo por este ângulo, dificilmente podia dizer onde estava o incêndio – fumaça preta manchava o céu acima, e a luz em umas poucas janelas pareciam artificialmente brilhantes, mas as paredes de pedra escondiam bem seu segredo.
— Samuel — ele lembrou — nós temos que tirar Samuel.
Clary pareceu confusa.
— Quem?
— Eu não era a única pessoa lá. Samuel – ele estava na cela ao lado.
— A pilha de trapos que eu vi através da janela? — Jace recordou.
— Yeah. Ele é um tipo estranho, mas é um cara bom. Nós não podemos deixá-lo lá — Simon lutou para ficar de pé — Samuel? Samuel!
Não houve resposta. Simon correu para a janela baixa de barras ao lado da que ele tinha rastejado. Através das barras ele podia ver apenas fumaça girando.
— Samuel! Você está aí?
Alguma coisa se moveu dentro da fumaça – algo arqueado e escuro. A voz de Samuel, áspera pela fumaça, cresceu roucamente.
— Me deixe aqui! Vá embora!
— Samuel! Você vai morrer aí embaixo.
Simon puxou as barras. Nada aconteceu.
— Não! Me deixe sozinho! Eu quero ficar!
Simon olhou desesperadamente ao redor para ver Jace ao lado dele.
— Saia — Jace pediu, e quando Simon se inclinou para o lado, ele chutou as barras, que quebraram violentamente de suas amarras e tombaram na cela de Samuel.
Samuel deu um grito rouco.
— Samuel! Você está bem?
Uma visão de Samuel sendo esmagado no crânio pela queda das barras subiu perante os olhos de Simon.
A voz de Samuel subiu em um grito.
— VÁ EMBORA!
Simon olhou de lado para Jace.
— Eu acho que ele pretende ficar.
Jace balançou a cabeça loira em exasperação.
— Você tinha que fazer um amigo de prisão maluco, não tinha? Não podia só contar os ladrilhos de teto ou tomar um rato de estimação como os prisioneiros normais fazem?
Sem esperar por uma resposta, Jace se abaixou e rastejou através da janela.
— Jace! — Clary gritou, e ela e Alec se apressaram acima, mas Jace já estava através da janela, caindo na cela abaixo. Clary atirou a Simon um olhar zangado. — Como você pôde deixá-lo fazer isso?
— Bem, ele não podia deixar aquele cara lá embaixo para morrer — Alec disse inesperadamente, embora ele próprio parecesse um pouco ansioso — é de Jace que estamos falando aqui...
Ele se interrompeu enquanto duas mãos se elevavam para fora da fumaça. Alec agarrou uma e Simon a outra, e juntos eles puxaram Samuel como um frouxo saco de batatas e o depositaram sobre o gramado.
Um momento depois Simon e Clary estavam agarrando as mãos de Jace e puxando-o para fora, embora ele fosse consideravelmente menos mole e xingou quando eles acidentalmente bateram a cabeça dele no peitoril. Jace os sacudiu para longe, rastejando o resto do caminho para a grama e então, desmoronando em suas costas.
— Ai — ele disse, olhando acima para o céu — acho que pesquei algo — ele se sentou e olhou acima para Samuel — ele está bem?
Samuel se sentava encurvado no chão, as mãos espalmadas sobre seu rosto. Ele se balançava para frente e para trás silenciosamente.
— Acho que há algo de errado com ele — Alec comentou.
Ele se aproximou para tocar o ombro de Samuel. Samuel se sacudiu para longe, quase tombando.
— Me deixe sozinho — ele disse, sua voz rachando — por favor. Me deixe sozinho, Alec.
Alec ficou completamente rígido.
— O que você disse?
— Ele disse para deixá-lo — Simon repetiu, mas Alec não estava olhando para ele, nem mesmo sequer percebeu que ele tinha falado.
Estava olhando para Jace – que, subitamente muito pálido, já tinha começado a se levantar.
— Samuel — Alec falou. Seu tom era estranhamente duro — tire as mãos para longe de seu rosto.
— Não — Samuel enfiou seu queixo abaixo, seus ombros tremendo — não, por favor. Não.
— Alec! — Simon protestou. — Você não pode ver que ele não está bem?
Clary pegou a manga de Simon.
— Simon, há algo de errado.
Seus olhos estavam em Jace – quando não estavam? – enquanto ele se movia para olhar a figura encolhida de Samuel. As pontas dos dedos de Jace estavam sangrando. Ele empurrou seu cabelo para longe dos olhos, deixando faixas ensanguentadas através de sua bochecha. Pareceu não notar. Seus olhos estavam largos, sua boca uma linha plana e zangada.
— Caçador de Sombras — ele falou. Sua voz era mortalmente clara — nos mostre seu rosto.
Samuel hesitou, então baixou suas mãos. Simon nunca tinha visto seu rosto antes, e não tinha notado quão magro Samuel era, ou quão velho parecia. Seu rosto estava meio coberto por uma espessa barba cinza, os olhos nadando em buracos escuros, as bochechas marcadas com linhas. Mas apesar de tudo isso, ele era ainda – de algum modo – estranhamente familiar.
Os lábios de Alec se moveram, mas nenhum som veio. Foi Jace quem falou.
Hodge.

***

— Hodge? — Simon repetiu em confusão — mas não pode ser. Hodge era... e Samuel, ele não pode ser...
— Bem, é isso que Hodge faz, aparentemente — Alec falou amargamente — ele faz você pensar que é alguém que ele não é.
— Mas ele disse... — Simon começou.
Clary apertou sua mão, e as palavras morreram em seus lábios. A expressão no rosto de Hodge era o suficiente. Não culpa, realmente, ou mesmo horror em ser descoberto, mas uma terrível dor que era difícil de se olhar por muito tempo.
— Jace — Hodge falou baixinho — Alec... eu lamento muito.
Jace moveu-se então, do modo como se movia quando estava lutando, como a luz através da água. Ele estava de pé em frente a Hodge com a adaga para fora, a ponta afiada dela dirigida na garganta de seu velho tutor. O brilho refletido do fogo deslizava pela lâmina.
— Eu não quero suas desculpas. Quero uma razão do porquê eu não deveria matar você agora mesmo, bem aqui.
— Jace — Alec pareceu alarmado — Jace, espere.
Houve um súbito rugido enquanto parte do telhado da Garde subiu em línguas laranja de fogo. Calor tremulou no ar e iluminou a noite. Clary podia ver cada lâmina da grama no terreno, cada linha no rosto fino e sujo de Hodge.
— Não — Jace continuou.
Sua expressão enquanto encarava Hodge lembrou Clary de outra máscara como rosto. De Valentim.
— Você sabia o que meu pai fez comigo, não sabia? Sabia de todos os seus segredos sujos.
Alec estava olhando incompreensivelmente de Jace para seu velho tutor.
— Do que você está falando? O que está acontecendo?
O rosto de Hodge enrugou.
— Jonathan...
— Você sempre soube, e nunca disse nada. Todos esses anos no Instituto, e você nunca disse nada.
A boca de Hodge caiu.
— Eu... eu não tinha certeza — ele sussurrou — quando você não vê uma criança desde que ela era um bebê... eu não tinha certeza de quem você era, muito menos o que você era.
— Jace? — Alec estava olhando de seu melhor amigo para Hodge, seus olhos azuis apavorados, mas nenhum dos dois estava prestando atenção a nada além do outro.
Hodge parecia um homem sendo espremido, seus olhos esbugalhando.
Clary pensou no homem bem vestido em sua biblioteca alinhada de livros, que tinha oferecido chá e gentis conselhos a ela. Parecia como há mil anos.
— Eu não acredito em você — Jace respondeu — você sabia que Valentim não estava morto. Ele deve ter dito a você...
— Ele não me disse nada — Hodge arfou — quando os Lightwood me informaram que iam pegar o filho de Michael Wayland, eu não tinha ouvido uma palavra de Valentim desde a revolta. Eu tinha pensado que ele tivesse me esquecido. Tinha mesmo rezado para que ele estivesse morto, mas eu nunca soube. E então, na noite antes de você chegar, Hugo veio com uma mensagem para mim de Valentim. “O garoto é meu filho.” Isso foi tudo o que disse — Hodge tomou uma fôlego irregular — eu não tinha ideia se acreditava nele. Pensei que eu sabia... pensei que eu sabia, apenas olhando para você, mas não havia nada, nada, para me dar certeza. E imaginei que fosse um truque de Valentim, mas que truque? O que ele estava tentando fazer? Eu não tinha ideia, mas estava claro o suficiente para mim Valentim tinha um propósito...
— Você deveria ter me dito o que eu era  Jace disse, tudo em uma respiração, como se as palavras tivessem sendo perfuradas para fora dele — eu podia ter feito alguma coisa sobre isso. Me matado, talvez.
Hodge levantou a cabeça, olhando para Jace através de seu emaranhado cabelo imundo.
— Eu não tinha certeza — ele disse novamente, meio que para si mesmo — e nas horas em que eu me perguntava... pensei, talvez, que a educação poderia importar mais do que o sangue... que você poderia ser ensinado...
— Ensinado a quê? A não ser um monstro? — A voz de Jace tremeu, mas a adaga em sua mão estava firme. — Você deveria saber melhor. Ele te fez um rastejante covarde, não fez? E você não era um garotinho sem saída quando ele fez isso. Você poderia ter lutado de volta.
Os olhos de Hodge caíram.
— Tentei fazer o meu melhor por você — ele falou, mas até mesmo aos ouvidos de Clary suas palavras soaram fracas.
— Até Valentim voltar — Jace observou — e então você fez tudo o que ele te pediu... me deu a ele como eu fosse um cachorro que tinha pertencido a ele uma vez, que ele te pediu para tomar conta por alguns anos...
— E então você partiu — Alec completou — nos deixou. Realmente achou que poderia se esconder aqui, em Alicante?
— Eu não vim aqui para me esconder — Hodge respondeu, sua voz sem vida — eu vim aqui para parar Valentim.
— E você espera que nós acreditemos nisso? — Alec soou zangado novamente agora. — Você sempre esteve do lado de Valentim. Poderia ter escolhido virar as costas para ele...
— Eu nunca poderia ter escolhido isso! — A voz de Hodge subiu. — A seus pais foi dada a chance de uma nova vida... eu nunca tive a chance! Eu estive preso no Instituto por quinze anos...
— O Instituto era a nossa casa! — Alec exclamou. — Era realmente tão ruim viver conosco... fazer parte de nossa família?
— Não por causa de vocês — a voz de Hodge era irregular — eu amava vocês, crianças. Mas vocês eram crianças. E nenhum lugar de onde você nunca é autorizado a sair pode ser um lar. Eu passava semanas às vezes sem falar com um adulto. Nenhum outro Caçador de Sombras iria confiar em mim. Nem mesmo seus pais realmente gostavam de mim; eles me toleravam por que não tinham escolha. Eu nunca pude me casar. Nunca ter meus próprios filhos. E eventualmente, vocês crianças teriam crescido e partido, e então eu não teria sequer isso. Eu vivia com medo, tanto quanto vivi de modo algum.
— Você não pode nos fazer sentir pena de você — Jace falou — não depois do que fez. E o que no inferno você estava com medo, gastando todo seu tempo na biblioteca? Ácaros? Nós éramos os que saíam e lutavam com os demônios!
— Ele estava com medo de Valentim — Simon disse — você não entendeu...
Jace atirou a ele um olhar venenoso.
— Cala a boca, vampiro. Isso não é de modo algum sobre você.
— Não de Valentim exatamente — Hodge corrigiu, olhando para Simon quase pela primeira vez, desde que foi arrastado da cela.
Havia algo naquele olhar que surpreendeu Clary – uma quase cansada – afeição.
— Minha própria fraqueza em relação a Valentim me preocupava. Eu sabia que ele retornaria um dia. Sabia que ele faria uma oferta por poder novamente, uma oferta para governar a Clave. E eu sabia o que ele poderia me oferecer. Liberdade da minha maldição. Um lugar no mundo. Eu poderia ser um Caçador de Sombras novamente em seu mundo. Eu nunca poderia ser algo novamente neste mundo — havia uma lembrança indefesa em sua voz que era dolorosa de se ouvir — e eu sabia que eu seria muito fraco para recusar se oferecesse isso.
— E olha a vida que você conseguiu — Jace cuspiu — apodrecendo nas celas da Garde. Valeu a pena nos trair?
— Você sabe a resposta disso — Hodge soou exausto — Valentim tirou a maldição de mim. Ele tinha jurado que o faria, e o fez. Pensei que ele iria me trazer de volta para o Círculo, ou o que restou dele. Ele não o fez. Nem mesmo me queria. Eu sabia que não haveria lugar para mim no seu mundo novo. E sabia que eu tinha vendido tudo o que tinha por uma mentira — ele olhou abaixo para suas rachadas mãos imundas — havia só uma coisa que eu tinha deixado – uma chance de fazer algo diferente do que um absoluto desperdício da minha vida. Depois que eu ouvi que Valentim tinha matado os Irmãos do Silêncio – que ele tinha a Espada Mortal – eu sabia que ele iria atrás do Espelho Mortal depois. sabia que ele precisava de todos os três Instrumentos. E eu sabia que o Espelho Mortal estava aqui em Idris.
— Espere — Alec levantou uma mão — o Espelho Mortal? Você quer dizer, sabe onde ele está? E quem o tem?
— Ninguém o tem — Hodge respondeu — ninguém pode ser dono do Espelho Mortal. Nenhum Nephilim, e nenhum Ser do Submundo.
— Você realmente ficou maluco lá embaixo — Jace disse, empurrando seu queixo em direção as janelas incendiando dos calabouços — não é?
— Jace — Clary estava olhando ansiosamente acima da Garde, seu telhado coroado com uma rede espinhosa de chamas vermelho ouro — o fogo está se espalhando. Nós devemos sair daqui. Podemos conversar lá embaixo na cidade...
— Eu estive trancado no Instituto por quinze anos — Hodge continuou, como se Clary não tivesse falado — eu não podia colocar nem uma mão ou um pé do lado de fora. Passei todo o meu tempo na biblioteca, estudando meios de remover a maldição que a Clave tinha colocado em mim. Aprendi que somente um Instrumento Mortal poderia revertê-la. Eu li livro após livro contando a história da mitologia do Anjo, como ele subiu do lago sustentando os Instrumentos Mortais e os deu para o Caçador de Sombras Jonathan, o primeiro Nephilim, e como havia três deles: Cálice, Espada e Espelho...
— Nós sabemos de tudo isso — Jace interrompeu exasperado — você ensinou isso para nós.
— Vocês pensam que sabem de tudo, mas não sabem. Enquanto eu continuava mais e mais nas várias versões da história, aconteceu de novo e de novo a mesma ilustração, a mesma imagem – nós todos vimos isso – o Anjo se elevando do lago com a Espada em uma mão e o Cálice na outra. Eu nunca pude entender porque o Espelho não estava retratado. Então eu percebi. O Espelho é o lago. O lago é o Espelho. Eles são um e o mesmo.
Lentamente, Jace abaixou a adaga.
— O Lago Lyn?
Clary pensou no lago, como um espelho subindo para encontrar com ela, a água despedaçando-se sobre o impacto.
— Eu caí no lago quando cheguei aqui. Havia algo sobre ele. Luke disse que ele tinha estranhas propriedades e que o Povo das Fadas o chamavam de Espelho dos Sonhos.
— Exatamente — Hodge começou ansiosamente — e eu percebi que a Clave não tinha conhecimento disso, que o conhecimento havia sido perdido com o tempo. Mesmo Valentim não sabia...
Ele foi interrompido por um ruído de colisão, o som de uma torre mais distante da Garde desmoronando. Isso enviou uma exposição de fogos de faíscas vermelhas e brilhantes.
— Jace — Alec disse, levantando sua cabeça em alarme — Jace, nós temos que sair daqui. Levante-se — ele ordenou a Hodge, puxando-o pelo braço — você pode dizer à Clave o que você acabou de nos contar.
Hodge ficou instável sob seus pés. O que isso deve ser, Clary pensou com um forte dor indesejável de pena, viver sua vida envergonhado não apenas pelo o que você fez, mas o que estava fazendo e o que sabia que iria fazer? Hodge tinha desistido há muito tempo de tentar viver uma vida melhor ou uma diferente dessa; tudo o que ele queria era não ter medo, e então ele estava com medo o tempo todo.
— Vamos lá — Alec, ainda segurando o braço de Hodge, o impulsionou à frente.
Mas Jace ficou na frente de ambos, bloqueando seu caminho.
— Se Valentim conseguir o Espelho Mortal — ele disse — o que acontece então?
— Jace — Alec interrompeu, ainda segurado o braço de Hodge — agora não...
— Se ele disser isso para a Clave, nunca ouvirão vindo dele — Jace falou — para eles somos apenas crianças. Mas Hodge deve isso a nós — ele se virou para seu antigo tutor — você disse que percebeu que tinha que parar Valentim. Parar o quê? O Espelho dará poder para ele fazer o quê?
Hodge balançou sua cabeça.
— Eu não posso...
— E nada de mentiras — a adaga surgiu; sua mão estava apertada no cabo — por que talvez a cada mentira que você me disser, eu irei cortar um dedo. Ou dois.
Hodge encolheu-se para trás, verdadeiro medo em seus olhos. Alec pareceu chocado.
— Jace. Não. Assim é o seu pai. Você não é assim.
— Alec — Jace falou. Ele não olhou para seu amigo, mas seu tom era como o toque de uma mão arrependida — você realmente não sabe o quanto eu sou semelhante.
Os olhos de Alec encontraram-se com os de Clary por cima da grama. Ele não imagina porque Jace está agindo assim, ela pensou. Ele não sabe.
Ela deu um passo adiante.
— Jace, Alec está certo – nós podemos levar Hodge para o Salão e ele pode dizer a Clave o que ele nos disse...
— Se ele fosse capaz de dizer à Clave, já teria feito isso — Jace rebateu sem olhar para ela — o fato apenas prova que ele é um mentiroso.
— A Clave não é confiável! — Hodge protestou desesperadamente. — Há espiões nela – homens de Valentim – eu não poderia dizer a eles onde o Espelho está. Se Valentim encontrar o Espelho, ele será...
Ele nunca terminou sua frase. Algo brilhante prata luziu no luar, um cravo de luz na escuridão. Alec gritou. Os olhos de Hodge saltaram largamente enquanto ele oscilava, arranhando seu peito. Enquanto ele afundava para trás, Clary viu o por que: o cabo de um longo punhal projetava-se de suas costelas, como o punho de uma seta furiosa seu alvo.
Alec, pulando a frente, pegou seu antigo tutor enquanto ele caía, e o baixava gentilmente para o chão. Ele olhava acima sem resposta, seu rosto salpicado com o sangue de Hodge.
— Jace, por que...
— Eu não... — o rosto de Jace estava branco, e Clary viu que ele ainda segurava sua adaga, firmemente agarrado a seu lado. — Eu...
Simon girou ao redor, e Clary virou com ele, olhando dentro da escuridão. O fogo iluminou a grama com um infernal brilho laranja, mas estava escuro entre as árvores do lado da colina – e então algo imergiu da escuridão, uma figura sombria, com um familiar cabelo escuro bagunçado. Ele se moveu na direção deles, a luz pegando em seu rosto e refletindo em seus olhos escuros; eles pareciam estar queimando.
— Sebastian? — Clary perguntou.
Jace olhou selvagemente de Hodge para Sebastian, permanecendo incerto no canto do jardim; Jace parecia quase aturdido.
— Você — ele disse — você... fez isso?
— Eu tive que fazer isso — Sebastian respondeu — ele teria matado você.
— Com o quê? — A voz de Jace subiu e falhou. — Ele nem mesmo tinha uma arma...
— Jace — Alec cortou o grito de Jace — venha aqui. Me ajude com Hodge.
— Ele teria matado você — Sebastian disse novamente — ele teria...
Mas Jace tinha se ajoelhado ao lado de Alec, guardando sua adaga no cinto. Alec estava segurando Hodge em seus braços, sangue na frente de sua camisa agora.
— Pegue a estela de meu bolso — ele disse para Jace — tente uma iratze...
Clary, rígida com o horror, sentiu Simon se mexer ao lado dela. Ela se virou para olhar para ele e ficou chocada – ele estava branco como papel, exceto por um excitado rubor vermelho nas bochechas. Ela podia ver as veias serpenteando debaixo de sua pele, como o crescimento de alguma delicada ramificação de coral.
— O sangue — ele sussurrou, sem olhar para ela — tenho que me afastar.
Clary se estendeu para pegar sua manga, mas ele recuou para trás, puxando seu braço do alcance dela.
— Não, Clary, por favor. Me deixe ir. Eu vou ficar bem; vou estar de volta. Eu só...
Ela começou a segui-lo, mas ele era rápido demais. Simon desapareceu na escuridão entre as árvores.
— Hodge... — Alec soava em pânico. — Hodge, fique firme...
Mas seu tutor estava lutando delicadamente, tentando se puxar para longe dele, longe da estela na mão de Jace.
— Não.
O rosto de Hodge era da cor de cimento. Seus olhos se lançaram de Jace para Sebastian, que ainda estava pairando nas sombras.
— Jonathan...
— Jace — Jace disse, quase em um sussurro — me chame Jace.
Os olhos de Hodge descansaram nele. Clary não podia decifrar o olhar neles. Súplica, sim, mas algo mais do que isso, cheio de pavor, ou algo como isso, e com emergência. Ele suspendeu uma mão repelindo.
— Não você — ele sussurrou, e sangue espirrou de sua boca com as palavras.
Um olhar de dor brilhou através do rosto de Jace.
— Alec, faça a iratze – eu não acho que ele quer que eu o toque.
A mão de Hodge apertava em garra; ele agarrou a manga de Jace. O agitar de sua respiração era audível.
— Você nunca... foi...
E ele morreu. Clary podia dizer o momento que a vida o deixou. Não era uma coisa calma e instantânea, como em um filme; sua voz sufocou em um gorgolejo, seus olhos rolaram para trás e ele ficou frouxo e pesado, seu braço arqueado desajeitadamente atrás dele.
Alec fechou os olhos de Hodge com as pontas de seus dedos.
— Vá em paz, Hodge Starkweather.
— Ele não merece isso — a voz de Sebastian era aguda — ele não era um Caçador de Sombras; era um traidor. Ele não merece as últimas palavras.
A cabeça de Alec se ergueu. Ele abaixou Hodge para o chão e ficou de pé, seus olhos azuis eram como gelo. Sangue listrava suas roupas.
— Você não sabe nada sobre isso. Você matou um homem desarmado, um Nephilim. Você é um assassino.
O lábio de Sebastian se curvou.
— Você acha que eu não sei quem ele era? — Ele gesticulou para Hodge. — Starkweather estava no círculo. Ele traiu a Clave, e então foi amaldiçoado por isso. Ele deveria ter morrido pelo o que fez, mas a Clave foi indulgente - e onde isso os levou? Ele traiu todos nós de novo quando vendeu o Cálice Mortal para Valentim apenas para conseguir que sua maldição fosse retirada – uma maldição que ele merecia — ele pausou, respirando difícil — eu não deveria ter feito isso, mas você não pode dizer que ele não mereceu.
— Como você sabe tanto sobre Hodge? — Clary exigiu. — E o que está fazendo aqui? Pensei que você tinha concordado em ficar no salão.
Sebastian hesitou.
— Vocês estavam demorando tanto — ele falou finalmente — fiquei preocupado. Pensei que vocês poderiam precisar de minha ajuda.
— Então você decidiu nos ajudar matando o cara com que nós estávamos conversando? — Clary reclamou. — Por que você pensou que ele tinha um passado sombrio? Quem... quem faz isso? Isso não faz nenhum sentido.
— Isso é por que ele está mentindo — Jace falou. Ele estava olhando para Sebastian – um frio e estudado olhar — e não muito bem. Pensei que você seria um pouco mais rápido em seus pés lá, Verlac.
Sebastian encontrou o olhar dele igualmente.
— Eu não sei o que você quer dizer, Morgenstern.
— Ele quer dizer — Alec interferiu, andando à frente — que se você realmente acha que o que fez foi justificado, você não se importaria em vir com a gente para o Salão dos Acordos e explicar por si mesmo para o conselho. Importaria?
Várias batidas de coração se passaram antes que Sebastian sorrisse – o sorriso que tinha encantado Clary antes, mas agora havia alguma coisa um pouco fora de equilíbrio sobre ele, como uma pintura pendurada ligeiramente torta sobre uma parede.
— É claro que não.
Ele se moveu na direção deles lentamente, quase passeando, como se não tivesse uma preocupação no mundo. Como se ele não tivesse cometido um assassinato.
— É claro — ele falou — é um pouco estranho que você esteja tão chateado porque eu matei um homem quando Jace estava planejando cortar seus dedos fora, um por um.
A boca de Alec se apertou.
— Ele não teria feito isso.
— Você... — Jace olhou para Sebastian com nojo — você não tem ideia do que está falando.
— Ou talvez — Sebastian respondeu — está apenas zangado por que eu beijei sua irmã. Por que ela me queria.
— Eu não quis — Clary disse, mas nenhum deles estava olhando para ela — quero dizer, querer você.
— Ela tem este pequeno hábito, você sabe – o modo que ela suspira quando você a beija, como se estivesse surpresa? — Sebastian parou bem em frente a Jace agora, sorrindo como um anjo. — É bastante encantador; você deve ter notado isso.
Jace pareceu como se ele quisesse vomitar.
— Minha irmã...
— Sua irmã — Sebastian ecoou — ela é sua irmã? Por que vocês dois não agem assim. Acha que as outras pessoas não podem ver o modo como olham um para o outro? Acha que está escondendo o modo como se sente? Acha que todo mundo não acha isso doentio e estranho? Porque é.
— Já chega — o olhar no rosto de Jace era assassino.
— Por que você está fazendo isso? — Clary perguntou. — Sebastian, por que você está dizendo todas essas coisas?
— Por que eu finalmente posso. Você não tem ideia de como tem sido ficar ao redor de todos vocês estes últimos dias, tendo de fingir que eu podia te aguentar. Que a sua visão não me deixava doente. Você — ele disse para Jace — a cada segundo que não está ofegando atrás de sua própria irmã, está choramingando mais e mais sobre o quanto seu pai não te amava. Bem, quem poderia culpá-lo? E você, sua estúpida cadela — ele se virou para Clary — dando aquele livro sem preço para um meia-raça de bruxo; tem um único neurônio nessa sua cabeça minúscula? E você... — Ele dirigiu seu próximo desprezo para Alec. — Acho que todos nós sabemos qual é o problema com você. Eles não devem deixar sua espécie na Clave. Você é nojento.
Alec empalideceu, embora ele parecesse mais atônito do que qualquer outra coisa. Clary não podia culpá-lo – era difícil olhar para Sebastian, para seu sorriso angelical, e imaginar que ele pudesse dizer essas coisas.
— Fingir que você podia nos suportar? — ela repetiu. — Mas por que você teria que fingir isso a menos que estivesse... a menos que estivesse nos espiando — ela terminou, percebendo a verdade, mesmo enquanto falava — a menos que você fosse um espião para Valentim.
O lindo rosto de Sebastian retorceu, a boca toda se afinando, seus longos e elegantes olhos estreitando em fendas.
— E finalmente entenderam. Eu juro, existem dimensões de demônios totalmente sem luz lá fora que estão menos no escuro do que vocês.
— Nós podemos não ser todos brilhantes — Jace respondeu — mas pelo menos estamos todos vivos.
Sebastian olhou para ele com nojo.
— Eu estou vivo — ele apontou.
— Não por muito tempo — Jace respondeu.
O luar explodiu na lâmina de sua faca enquanto ele se arremessava para Sebastian, seu movimento tão rápido que parecia borrado, mais rápido do que qualquer movimento humano que Clary tenha visto.
Até agora.
Sebastian se lançou de lado, esquivando o golpe, e pegou o braço da faca de Jace enquanto ela descia. A faca caiu no chão, e então Sebastian tinha Jace segurado pelas costas de sua jaqueta. Ele o suspendeu e o arremessou com uma inacreditável força. Jace voou pelo ar, acertando a parede da Garde com uma força de quebrar os ossos, e se dobrou para o chão.
— Jace!
A visão de Clary ficou branca. Ela correu para Sebastian para sufocar a vida para fora dele. Mas ele deu um passo para o lado dela e trouxe sua mão abaixo tão casualmente como se estivesse golpeando um inseto de lado. O golpe a pegou duramente ao lado da cabeça, enviando-a aos giros para o chão. Ela rolou, piscando uma névoa vermelha de dor fora de seus olhos.
Alec tinha pego seu arco das costas; uma seta já preparada. Suas mãos não tremiam enquanto ele mirava para Sebastian.
— Fique onde está — ele disse — e ponha as mãos atrás de suas costas.
Sebastian riu.
— Você não iria realmente atirar em mim.
Ele se moveu em direção a Alec com um fácil e descuidado passo, como se estivesse caminhando pelas escadas da porta da frente de sua casa.
Os olhos de Alec se estreitaram. Suas mãos elevaram em uma graciosa série de movimentos; ele puxou a seta para trás e a soltou. Ela voou em direção a Sebastian... e errou.
Sebastian tinha mergulhando ou se movido de algum modo, Clary não podia dizer, e a seta passou por ele, se alojando no tronco de uma árvore. Alec teve tempo apenas para um momentâneo olhar de surpresa antes que Sebastian estivesse sobre ele, arrebatando o arco fora de seu aperto.
Sebastian agarrou-o de suas mãos – quebrando-o ao meio, e o som do estilhaço fez Clary piscar como se estivesse ouvindo ossos se despedaçando. Ela tentou se arrastar para uma posição sentada, ignorando a abrasadora dor em sua cabeça. Jace estava deitado a poucos metros de distância dela, absolutamente parado. Ela tentou se levantar, mas suas pernas não pareciam estar funcionando adequadamente.
Sebastian jogou as metades quebradas do arco próximo a Alec. Alec já tinha uma lâmina serafim cintilando em sua mão, mas Sebastian a empurrou de lado enquanto Alec vinha para ele – empurrou-a de lado e pegou Alec pela garganta, quase levantando-o do chão. Ele apertou impiedosamente, cruelmente, sorrindo enquanto Alec sufocava e lutava.
— Lightwood — ele falou — eu já cuidei de um de vocês hoje. Eu não tinha esperado ter a sorte suficiente de fazer isso duas vezes.
Ele se afastou como uma marionete cujas cordas tinham sido puxadas. Libertado, Alec caiu para o chão, as mãos em sua garganta. Clary podia ouvir sua respiração agitada e desesperada – mas seus olhos estavam em Sebastian.
Uma sombra escura tinha se fixado nas costas dele e estava aderida a ele como uma sanguessuga. Ele gaarrava sua garganta, engasgando e asfixiando enquanto girava no lugar, agarrando a coisa que tinha segurado-o. Enquanto ele se virava, o luar caiu sobre ele, e Clary viu o que era.
Era Simon. Seus braços estavam envolvidos ao redor do pescoço de Sebastian, seus incisivos brancos brilhando como agulhas de osso. Era a primeira vez que Clary tinha visto ele realmente parecendo completamente com um vampiro, desde a noite que ele tinha se elevado de seu túmulo, e ela olhou em espanto horrorizado, incapaz de virar para longe.
Seus lábios estavam curvados para trás em um ranger, as presas completamente estendidas e afiadas como punhais. Ele as mergulhou no antebraço de Sebastian, abrindo um longo rasgão vermelho na pele.
Sebastian gritou alto e arremessou-se para trás, aterrissando duramente no chão. Ele rolou, Simon meio por cima dele, os dois arranhando um ao outro, rasgando e rosnando como dois cães em uma vala. Sebastian estava sangrando em vários lugares quando finalmente oscilou para seus pés e deu dois fortes chutes nas costelas de Simon. Simon se dobrou, agarrando seu meio.
— Seu tolo carrapatinho — Sebastian rosnou, puxando seu pé de volta para outro golpe.
— Eu não o faria — disse uma voz calma.
Clary virou a cabeça, enviando outra explosão de dor atrás de seus olhos. Jace estava a poucos metros de Sebastian. Seu rosto estava ensanguentado, um olho inchado quase fechado, mas em uma mão estava queimando uma lâmina serafim, e a mão a segurava firmemente.
— Eu nunca matei um ser humano com uma dessa antes — Jace continuou — mas estou disposto a tentar.
O rosto de Sebastian contorceu. Ele olhou abaixo uma vez para Simon, e então levantou a cabeça e cuspiu. As palavras que ele disse a seguir eram em uma língua que Clary não reconheceu – e então ele se virou com a mesma aterrorizante rapidez com que tinha se movido quando atacou Jace, e desapareceu dentro da escuridão.
— Não! — Clary gritou.
Ela tentou se levantar, mas a dor era como uma seta queimando seu caminho através de seu cérebro. Ela se dobrou na grama úmida. Um momento depois Jace estava inclinado sobre ela, seu rosto pálido e ansioso. Ela olhou acima para ele, sua visão borrando – tinha de estar desfocada, não tinha, ou ela podia nunca teria imaginado a brancura ao redor dele, um tipo de luz...
Ela ouviu a voz de Simon e então a de Alec, e algo foi entregue a Jace... uma estela. Seu braço queimou, e um momento depois a dor começou a recuar, e sua cabeça clarear. Ela piscou para os três rostos pairando sobre ela.
— Minha cabeça...
— Você tem uma concussão — Jace respondeu — a iratze deve ajudar, mas nós temos de levar você para o médico da Clave. Ferimentos de cabeça podem ser traiçoeiros — ele entregou a estela de volta para Alec — acha que pode ficar de pé?
Ela acenou. Foi um erro. Dor por ela enquanto mãos se estendiam ajudá-la. Simon. Ela se inclinou contra ele com gratidão, esperando seu equilíbrio retornar. Ainda sentia como se pudesse cair a qualquer minuto.
Jace estava de fazendo careta.
— Você não deveria ter atacado Sebastian daquele modo. Nem mesmo tinha uma arma. O que estava pensando?
— O que todos nós estávamos pensando — Alec, inesperadamente, veio em defesa dela — que ele tinha te jogado pelo ar como uma bola de basquete. Jace, eu nunca tinha visto ninguém melhor do que você desse jeito.
— Eu... ele me surpreendeu — Jace disse um pouco relutantemente — ele deve ter tido algum tipo de treinamento especial. Eu não estava esperando isso.
— Yeah, bem — Simon tocou sua costela, recuando — acho que ele chutou um par das minhas costelas. Está tudo bem — ele adicionou para o olhar preocupado de Clary — elas estão curando. Mas Sebastian é definitivamente forte. Realmente forte — ele olhou para Jace — quanto tempo você acha que ele estará lá nas sombras?
Jace pareceu irritado. Ele fitou entre as árvores na direção que Sebastian tinha desaparecido.
— Bem a Clave vai pegá-lo – e o amaldiçoar, provavelmente. Eu gostaria de vê-los colocando a mesma maldição nele que colocaram em Hodge. Isso seria uma justiça poética.
Simon se virou ao lado e cuspiu nos arbustos. Ele limpou a boca com as costas de sua mão, seu rosto torcido em uma careta.
— Seu sangue tem gosto asqueroso... como veneno.
— Suponho que nós podemos adicionar isso para sua lista de qualidades encantadoras — Jace falou — me pergunto o que mais ele estava planejando hoje à noite.
— Nós precisamos voltar para o salão — o olhar no rosto de Alec era tenso, e Clary se lembrou que Sebastian tinha dito alguma coisa a ele, algo sobre outro dos Lightwood... —Você pode caminhar, Clary?
Ela se puxou para longe de Simon.
— Eu posso andar. E sobre Hodge? Nós não podemos deixá-lo.
— Nós teremos — Alec disse — terá tempo para voltarmos para ele se nós todos sobrevivermos a esta noite.
Enquanto eles saíam do jardim, Jace parou, puxou sua jaqueta, e a deitou sobre o Hodge, o rosto voltado para cima. Clary queria ir até Jace, colocar uma mão sobre seu ombro, mas algo no modo como ele se mantinha dizia para ela que não. Mesmo Alec não foi para perto dele ou ofereceu uma runa de cura, a despeito do fato de que Jace estava mancando enquanto ele andava colina abaixo.
Eles se moveram juntos pelo caminho em ziguezague, armas puxadas e prontas, o céu iluminado de vermelho pela Garde incendiando atrás deles. Mas não viram nenhum demônio.
A quietude e a luz misteriosa fez a cabeça de Clary latejar; ela sentiu como se estivesse em um sonho. A exaustão apoderou-se dela. Apenas colocar um pé na frente do outro era como levantar um bloco de cimento. Ela podia ouvir Jace e Alec falando a frente no caminho, suas vozes ligeiramente veladas a despeito de sua proximidade.
Alec estava falando suavemente, quase suplicante:
— Jace, o modo que você estava falando lá em cima, para Hodge. Você não pode pensar assim. Ser filho de Valentim não faz de você um monstro. Seja lá o que ele fez quando você era uma criança, seja lá o que ele te ensinou, você tem que ver que isso não é sua culpa...
— Eu não quero falar sobre isso, Alec. Nem agora, nem nunca. Não me pergunte sobre isso novamente.
O tom de Jace era selvagem, e Alec caiu em silêncio.
Clary quase podia sentir sua dor. Que noite, Clary pensou. Uma noite de tanta dor para todos. Ela tentou não pensar em Hodge, do suplicante, e deplorável olhar em seu rosto antes de ele morrer. Ela não tinha gostado de Hodge, mas ele não merecia o que Sebastian tinha feito com ele. Ninguém merecia.
Ela pensou em Sebastian, no modo como ele tinha se movido, como faíscas voando. Ela nunca tinha visto ninguém além de Jace se mover daquele jeito. Ela queria desvendar isso – o que tinha acontecido com Sebastian? Como um primo dos Penhallow tinha ficado tão forte, e como eles nunca notaram? Pensava que ele iria ajudá-la a salvar sua mãe, mas ele só queria pegar o Livro Branco para Valentim.
Magnus tinha estado errado – não tinha sido por causa dos Lightwood que Valentim tinha descoberto sobre Ragnor Fell. Tinha sido por que ela tinha dito a Sebastian. Como ela pôde ter sido tão estúpida?
Estarrecida, ela mal notou como o caminho virou uma avenida, levando-os para a cidade. As ruas estavam desertas, as casas escuras, muitas dos postes de pedra enfeitiçada esmagados, seus vidros espalhados através da calçada. Vozes eram audíveis, ecoando como se a distância, e o brilho de tochas era visível aqui e ali entre as sombras entre os edifícios, mas...
— Está terrivelmente calmo — Alec comentou, olhando ao redor em surpresa — e...
— Não fede a demônios — Jace franziu as sobrancelhas — estranho. Vamos lá. Vamos para o Salão.
Embora Clary estivesse meio na expectativa de um ataque, eles não viram um único demônio enquanto se moviam através das ruas. Não um vivo, pelo menos – apesar de que eles passaram em um beco estreito, ela viu um grupo de três ou quatro Caçadores de Sombras reunidos em um círculo em torno de algo que pulsava e debatia-se no chão.
Eles estavam se revezando em apunhalá-lo com longas e afiadas varas. Com um estremecimento, ela olhou para longe.
O Salão dos Acordos estava iluminado como uma fogueira, pedras enfeitiçadas vertendo de suas portas e janelas. Eles se apressaram pelas escadas, Clary firmou-se quando tropeçou. Sua tontura estava ficando pior. O mundo parecia estar girando ao redor dela, como se estivesse dentro de um grande globo girando. Acima dela as estrelas eram listras brancas pintadas através do céu.
— Você deveria deitar — Simon disse, e então, quando ela não respondeu — Clary?
Com um enorme esforço, ela se obrigou a sorrir para ele.
— Eu estou bem.
Jace de pé na entrada do salão olhava para ela em silêncio. No forte brilho das pedras enfeitiçadas, o sangue no rosto dele e seu olho inchado pareciam feio, marcado e preto. Havia um embotado rugido dentro do salão, o murmúrio baixo de centenas de vozes. Para Clary isso soava como o bater de um enorme coração. As luzes das tochas agrupadas, juntamente com o brilho da pedra enfeitiçada transmitida em todo lugar, machucavam seus olhos e fragmentavam sua visão; ela podia ver somente vagas formas agora, vagas formas e cores. Branco, ouro e então o céu noturno acima, desbotando do escuro para azul pálido. Quão tarde era?
— Eu não os vejo eles — Alec, buscando ansiosamente ao redor da sala por sua família, soava como se estivesse à quilômetros ao longe, ou profundamente debaixo d'agua — eles deveriam estar aqui agora...
Sua voz se esvaiu enquanto a tontura de Clary piorou. Ela pôs a mão contra um pilar próximo para se firmar. Uma mão roçou por suas costas – Simon. Ele estava dizendo algo para Jace, soando ansioso. Sua voz desapareceu no padrão de dezenas de outras, elevando e caindo ao redor dela como uma onda quebrando.
— Nunca vi nada parecido com isso. Os demônios apenas se viraram ao redor e saíram, simplesmente desapareceram.
— Nascer do sol, provavelmente. Eles são receosos sobre nascer do sol e aqui não é diferente.
— Não, foi mais do que isso.
— Você só não quer pensar que eles poderão estar de volta na próxima noite, ou na próxima.
— Não diga isso; não há razão para dizer isso. Eles vão restaurar as barreiras de volta.
— E Valentim terá apenas que trazê-las abaixo novamente.
— Talvez não seja menos do que merecemos. Talvez Valentim estivesse certo – talvez nos aliarmos com os Seres do Submundo signifique que nós perdemos a bênção do Anjo.
— Silêncio. Tenha algum respeito. Eles estão contando os mortos na Praça do Anjo.
— Lá estão eles — Alec disse — lá, na plataforma. Parece que...
Sua voz falhou, e então ele se foi, empurrando seu caminho através da multidão. Clary semicerrou os olhos, tentando aguçar sua visão. Tudo o que ela podia ver eram borrões...
Ela ouviu Jace segurar sua respiração, e então, sem outra palavra, ele estava se enfiando através da multidão atrás de Alec. Clary soltou o pilar, querendo segui-los, mas tropeçou.
Simon a segurou.
— Você precisa descansar, Clary — ele falou.
— Não — ela sussurrou — eu quero ver o que aconteceu...
Ela se interrompeu. Simon estava olhando além dela, para Jace, e ele pareceu chocado. Firmando-se contra o pilar, ela se levantou, lutando para ver sobre a multidão... eles estavam lá, os Lightwood: Maryse com seus braços ao redor de Isabelle, que estava chorando, e Robert Lightwood sentado no chão segurando algo – não, alguém, e Clary pensou pela primeira vez que ela tinha visto Max, no Instituto, deitado frouxamente e dormindo sobre um sofá, seus óculos tortos inclinados e sua mão arrastando ao longo do chão. Ele consegue dormir em qualquer lugar, Jace tinha dito, ele quase parecia que estivesse dormindo agora, no colo de seu pai, mas Clary sabia que ele não estava.
Alec estava de joelhos, segurando uma das mãos de Max, mas Jace estava em pé no lugar, sem se mover, e mais do que qualquer outra coisa ele parecia perdido, como se não tivesse ideia de onde estava ou o que estava fazendo ali. Tudo o que Clary queria era correr para ele e colocar os braços ao seu redor, mas o olhar no rosto de Simon dizia a ela que não, e então sua memória da mansão e os braços de Jace ao redor dela lhe veio.
Ela era a última pessoa na terra que poderia dar algum conforto a ele.
— Clary — Simon chamou, mas ela estava se puxando para longe dele, apesar de sua tontura e da dor em sua cabeça.
Ela correu para a porta do Salão e a jogou aberta, correu pelos degraus e ficou lá, engolindo fôlegos de ar frio.
À distância, o horizonte estava listrado com vermelho fogo, as estrelas desbotando, branqueadas pelo céu clareando. A noite tinha acabado. O amanhecer tinha chegado.

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