Capítulo 12 - Eleitos do Céu
Quando Alec retornou para o apartamento de Magnus, todas as luzes estavam apagadas, mas a sala de estar estava brilhando com uma chama branco-azulada. Precisou de vários momentos para que ele percebesse que estava vindo de um pentagrama.
Ele chutou seus sapatos para fora, perto da porta, e foi nas pontas dos pés tão silenciosamente quanto podia para dentro do banheiro do quarto principal. O quarto estava escuro, um fio de luzes multicoloridas de Natal ao redor da moldura da janela a única iluminação. Magnus estava dormindo de barriga para cima, as cobertas puxadas à sua cintura, deixando descoberto o umbigo.
Alec rapidamente se despiu, e só de cueca subiu na cama, esperando não acordar Magnus. Infelizmente, ele não contava com Presidente Miau, que estava metido dentro das cobertas. O cotovelo de Alec desceu diretamente para a cauda do gato, e Presidente Miau disparou para fora da cama, fazendo Magnus se sentar, piscando.
— O que está acontecendo?
— Nada — Alec respondeu, silenciosamente xingando todos os gatos — eu não podia dormir.
— E então você saiu? — Magnus rolou de lado e tocou o ombro nu de Alec. — Sua pele está fria, e você cheira como a noite.
— Eu estava andando por aí — Alec disse, agradecido que estivesse escuro demais no quarto para que Magnus realmente visse seu rosto.
Sabia que era um horrível mentiroso.
— Por onde?
É preciso preservar alguns mistérios em um relacionamento, Alec Lightwood.
— Alguns lugares — Alec disse alegremente — sabe. Lugares misteriosos.
— Lugares misteriosos?
Alec assentiu.
Magnus caiu para trás contra os travesseiros.
— Vejo que você foi para a Cidade dos Loucos — ele murmurou, fechando seus olhos — você me trouxe algo de volta?
Alec se inclinou mais perto e beijou Magnus na boca.
— Apenas isso — ele disse suavemente, recuando, mas Magnus, que tinha começado a sorrir, já tinha segurado seus braços.
— Bem, se você vai me acordar, poderia muito bem fazer isso valer o meu tempo.
E ele puxou Alec para cima dele.
***
Considerando que eles já passaram uma noite na cama juntos, Simon não esperava que sua segunda noite com Isabelle fosse um tanto quanto estranha. Mas por outro lado, dessa vez Isabelle estava sóbria, acordada e obviamente esperando algo dele. O problema era que ele não estava certo do que, exatamente.
Ele tinha dado a ela uma camisa com botões para vestir, e ele olhou para longe educadamente enquanto ela saía debaixo do cobertor e encostava as costas contra a parede, dando a ele bastante espaço.
Simon não se incomodou em trocar de roupa, apenas tirou seus sapatos e meias e se arrastou para perto dela em sua camiseta e jeans. Eles deitaram lado a lado por um momento, e então Isabelle rolou contra ele, jogando um braço desajeitadamente sobre ele. Seus joelhos se colidiram. Uma das unhas dos pés de Isabelle arranhou o seu tornozelo dele. Ele tentou se mover para frente, e suas testas bateram.
— Ai! — Isabelle disse indignada. — Você não deveria ser melhor com isso?
Simon estava aturdido.
— Por quê?
— Todas aquelas noites que você passou na cama da Clary, envolto no bonito abraço platônico de vocês — ela falou, pressionando o rosto contra o ombro dele, de modo que sua voz estava abafada — eu imaginei...
— Nós só dormimos — Simon replicou.
Ele não queria dizer sobre como Clary se encaixava perfeitamente contra ele, sobre como estar na cama com ela era tão natural como respirar, sobre a maneira com que o cheiro do cabelo dela o relembrava de infância, raio de sol, simplicidade e graça. Isso, ele tinha a sensação de que não seria útil.
— Eu sei. Mas eu não durmo apenas — Isabelle disse irritada — com ninguém. Eu normalmente não fico a noite, absolutamente. Tipo, nunca.
— Você disse que queria…
— Oh, cale a boca — Izzy falou e o beijou.
Isso foi ligeiramente mais efetivo. Ele tinha beijado Isabelle antes. Amava a textura dos seus lábios suaves, a forma como as mãos dele tocavam em seu longo cabelo escuro. Mas enquanto ela se pressionava contra ele, ele também sentiu o calor do seu corpo, suas nuas pernas longas contra ele, o pulso do seu sangue – e o estalo das suas presas quando elas saíam.
Ele se afastou apressadamente.
— Agora o que é isso? Você não quer me beijar?
— Eu quero — ele tentou dizer, mas suas presas estavam no caminho.
Os olhos de Isabelle se alargaram.
— Oh, você está com fome. Quando foi a última vez que você teve algum sangue?
— Ontem — ele conseguiu dizer, com alguma dificuldade.
Ela deitou de costas contra o travesseiro dele. Seus olhos estavam impossivelmente grandes e pretos lustrosos.
— Talvez você devesse se alimentar. Sabe o que acontece se não fizer.
— Não tenho sangue algum comigo. Eu terei que voltar ao apartamento — Simon disse.
Suas presas já tinham começado a retrair.
Isabelle o pegou pelo braço.
— Você não tem que beber sangue frio de animal. Eu estou aqui.
O choque das suas palavras foi como um pulso de energia zunindo através do corpo dele, deixando os seus nervos em chamas.
— Você não está falando sério.
— Claro que estou.
Ela começou a desabotoar a camisa que estava usando, mostrando sua garganta, sua clavícula, e o rendilhado de fracas veias visíveis por baixo da sua pele pálida. A camisa caiu aberta. Seu sutiã azul cobria um pouco mais do que muitos biquínis, mas Simon ainda sentiu sua boca seca. Seu sangue piscava como um semáforo vermelho abaixo da sua clavícula.
Isabelle.
Como se lesse a sua mente, ela esticou a mão para cima e afastou seu cabelo, largando-o sobre um ombro, deixando a lateral da sua garganta descoberta.
— Você não quer...?
Ele pegou o seu pulso.
— Isabelle, não faça isso — ele disse urgentemente — eu não posso me controlar, não posso controlar isso. Eu poderia te machucar, te matar.
Os olhos dela brilharam.
— Você não irá. Pode se controlar. Se controlou com Jace.
— Eu não estou atraído pelo Jace.
— Nem mesmo um pouco? — ela perguntou esperançosa. — Nem um pouquinho? Porque isso seria meio excitante. Ah, bem. Que pena. Olhe, atraído ou não, você o mordeu quando estava faminto e morrendo, e ainda se conteve.
— Eu não me contive com Maureen. Jordan teve que me afastar.
— Você se afastará — ela levou o seu dedo e o pressionou aos lábios dele, depois o correu para baixo da garganta dele, sobre seu peito, parando onde o coração dele tinha uma vez batido — confio em você.
— Talvez você não devesse.
— Eu sou uma Caçadora de Sombras. Posso te repelir se for preciso.
— Jace não me repeliu.
— Jace está apaixonado pela ideia de morrer — Isabelle replicou — eu não estou.
Ela fechou suas pernas ao redor do quadril dele – Izzy era espantosamente flexível – e deslizou para frente até que pudesse roçar seus lábios contra os dele. Simon queria beijá-la, queria tanto que todo o seu corpo doía. Ele abriu sua boca hesitante, tocando a língua dela com a sua, e sentiu uma dor aguda. Sua língua tinha deslizado junto à ponta afiada da sua presa. Simon provou seu próprio sangue e se afastou abruptamente, virando seu rosto para longe dela.
— Isabelle, eu não posso.
Ele fechou seus olhos. Ela era quente e suave em seu colo, provocante, torturante. Suas presas doíam muito; sentia por todo o seu corpo que arames afiados estavam retorcendo-se dentro de suas veias.
— Eu não quero que você me veja assim.
— Simon — gentilmente ela tocou sua bochecha, virando seu rosto em direção ao dela — isso é o que você é…
Suas presas tinham retraído, lentamente, mas ainda doíam. Ele escondeu seu rosto nas mãos e falou entre dedos.
— Você não pode querer isso. Você não pode me querer. Minha própria mãe me jogou para fora de casa. Eu mordi Maureen... ela era apenas uma criança. Quero dizer, olhe para mim, olhe o que eu sou, onde eu vivo, o que eu faço. Eu sou um nada.
Isabelle acariciou seu cabelo de leve. Ele olhou para ela entre seus dedos. De perto, podia ver que seus olhos não eram negros, mas um castanho muito escuro, salpicados com dourado. Estava certo de que podia ver pena neles. Ele não sabia o que esperava que ela dissesse. Isabelle usava garotos e os dispensava. Isabelle era linda, durona e perfeita e não precisava de nada. Muito menos de um vampiro que não era nem sequer bom em ser um vampiro.
Ele podia senti-la respirar. Ela tinha cheiro doce – sangue, mortalidade, gardênias.
— Você não é um nada. Simon. Por favor. Deixe-me ver seu rosto.
Relutantemente ele abaixou suas mãos. Ele podia vê-la mais claramente agora. Ela parecia suave e adorável no luar, sua pele pálida e cremosa, seu cabelo como uma cachoeira negra. Ela desprendeu suas mãos em torno do pescoço dele.
— Olhe para elas — Isabelle falou, tocando as cicatrizes brancas de marcas de cura que enchiam sua pele prateada como flocos de neve – na sua garganta, em seus braços, nas curvas dos seus seios. —Feias, não são?
— Nada sobre você é feio, Izzy — Simon respondeu, honestamente chocado.
— Garotas não deveriam estar cobertas de cicatrizes — Isabelle disse para constar — mas elas não te incomodam.
— Elas são parte de você. Não, claro, elas não me incomodam.
Ela tocou os lábios dele com os dedos.
— Ser um vampiro é parte de você. Eu não pedi para você vir aqui na noite passada porque eu não podia pensar em outra pessoa para pedir. Eu quero ficar com você, Simon. Isso me assusta muito, mas eu quero.
Os olhos dela brilharam, e antes que ele pudesse se perguntar por mais do que um minuto se aquilo eram lágrimas, ele se inclinou para frente e a beijou.
Dessa vez não foi desajeitado. Dessa vez ela se apoiou nele, e ele subitamente estava debaixo dela, rolando-a para cima dele. Seu longo cabelo caía ao redor dos dois como uma cortina. Ela sussurrou para ele suavemente enquanto ele corria as mãos subindo nas costas dela. Podia sentir suas cicatrizes debaixo das pontas dos seus dedos, e queria dizer-lhe que pensava nelas como uma ornamentação, testemunhos de sua bravura que apenas a faziam mais bonita. Mas isso significava parar de beijá-la, e ele não queria fazer isso.
Ela estava gemendo e se movendo nos braços dele; seus dedos estavam no cabelo de Simon enquanto os dois rolavam de lado, e agora ela estava debaixo dele, e os braços cheios com a suavidade e calor dela, e a boca dele com o gosto dela, e do cheiro da sua pele, sal e perfume e... sangue.
Ele se enrijeceu novamente, por toda a parte, e Isabelle sentiu. Ela prendeu seus ombros. Estava resplandecente na escuridão.
— Vá em frente — ela sussurrou. Ele podia sentir o seu coração, batendo contra o peito dele — eu quero que você faça.
Ele fechou seus olhos, pressionou sua testa na dela, tentou se acalmar. Suas presas estavam de volta, pressionadas em seus lábios inferiores, duras e dolorosas.
— Não.
Suas longas pernas perfeitas o envolveram, seus tornozelos prendendo, segurando-o para ela.
— Eu quero que você faça.
Seus seios pressionaram-se contra o peito dele enquanto ela se arqueava, descobrindo sua garganta. O cheiro do seu sangue estava em todos os lugares, por ele todo, preenchendo o quarto.
— Você não está assustada? — ele sussurrou.
— Sim. Mas eu ainda quero que você faça.
—Isabelle, eu não posso…
Ele a mordeu.
Seus dentes deslizaram, afiados, na veia da sua garganta como uma faca cortando a casca de uma maçã. Sangue explodiu em sua boca. Não era como nada que ele tinha experimentado antes. Com Jace, mal estava vivo; com Maurren a culpa tinha esmagado-o mesmo quando bebeu dela. Ele certamente nunca teve a impressão que nenhuma dessas pessoas, as quais ele mordeu, gostaram disso.
Mas Isabelle arfou, seus olhos se abrindo e seu corpo arqueando-se contra ele. Ela ronronou como um gato, acariciando seu cabelo, suas costas, pequenos movimentos urgentes das suas mãos dizendo Não pare, não pare. Calor derramava-se dela, para dentro dele, iluminando o seu corpo; ele nunca sentiu, imaginou, algo assim. Podia sentir a força, o batimento certo do seu coração, martelando através das suas veias para dentro das dele, e por aquele momento era como se ele vivesse novamente, e seu coração contraiu com pura euforia…
Ele se afastou. Não estava certo como, mas se separou e rolou de costas, seus dedos enfiando forte no colchão aos seus lados. Ainda estava estremecendo enquanto suas presas retraiam. O quarto brilhou ao redor dele da forma com que acontecia nos poucos momentos depois que ele bebia sangue de um humano vivo.
— Izzy... — ele sussurrou.
Estava com medo de olhar para ela, com medo de que agora que seus dentes não estavam mais em sua garganta, ela o olharia com repulsa ou horror.
— O quê?
— Você não me parou.
Era meio acusação, meio esperança.
— Eu não queria.
Simon olhou para ela. Ela estava deitada de costas, seu peito subindo e descendo rápido, como se estivesse correndo. Havia duas feridas na lateral da sua garganta, e duas minúsculas linhas de sangue que desciam do seu pescoço para sua clavícula. Obedecendo um instinto que parecia correr profundo sob a pele, Simon se inclinou para perto e lambeu o sangue da sua garganta, provando sal, provando Isabelle. Ela estremeceu, seus dedos tremendo no cabelo dele.
— Simon...
Ele recuou. Ela estava olhando para ele com seus grandes olhos escuros, muito sérios, suas bochechas coraram.
— Eu...
— O quê?
Por um momento selvagem ele pensou que ela fosse dizer ”Eu te amo”, mas ao invés disso ela negou com sua cabeça, bocejou e enganchou seu dedo sobre uma das presilhas do jeans dele. Seus dedos brincaram com a pele nua na sua cintura.
Em algum lugar, Simon leu que bocejo era um sinal de perda de sangue. Ele entrou em pânico.
— Você está bem? Eu bebi muito? Você se sente cansada? Você...
Ela se arrastou para perto dele.
— Eu estou bem. Você se fez parar. E eu sou uma Caçadora de Sombras. Nós repomos sangue com o triplo da taxa que mundanos normais fariam.
— Você... — Ele mal podia se fazer perguntar. — Você gostou?
— Sim — sua voz estava rouca — eu gostei.
— Jura?
Ela riu.
— Você não poderia dizer?
— Eu pensei que talvez você estivesse fingindo.
Ela se levantou em um cotovelo e fitou-o com seus brilhantes olhos escuros – como olhos poderiam ser escuros e brilhantes ao mesmo tempo?
— Eu não finjo, Simon. E eu não minto, e não simulo.
— Você é uma arrasadora de corações, Isabelle Lightwood — ele disse, tão levemente quanto podia com o sangue dela ainda correndo por ele como fogo — Jace disse a Clary uma vez que você passaria por cima de mim com botas de salto alto.
— Isso foi naquela época. Você é diferente agora — ela olhou para ele — você não tem medo de mim.
Ele tocou seu rosto.
— E você não tem medo de nada.
— Eu não sei — seu cabelo caiu para frente — talvez você vá partir meu coração.
Antes que ele pudesse dizer algo, ela o beijou, e Simon se perguntou se ela podia sentir o gosto do seu próprio sangue.
— Agora cale a boca. Eu quero dormir — ela falou, e se curvou ao lado dele e fechou os olhos.
De alguma forma, agora eles se encaixavam onde não encaixaram antes. Nada era desajeitado, ou espetava-o, ou batia contra as suas pernas. Não parecia como infância, raio de sol e gentileza. Parecia estranho, quente, excitante, poderoso e... diferente.
Simon ficou acordado, seus olhos no teto, a mão acariciando distraidamente o cabelo preto sedoso de Isabelle. Ele se sentiu como se tivesse sido pego por um tornado e depositado em algum lugar muito, muito distante, onde nada era familiar. Eventualmente ele virava sua cabeça e beijava Izzy, muito levemente, na testa; ela se mexia e murmurava, mas não abria os seus olhos.
***
Quando Clary acordou de manhã, Jace ainda estava dormindo, curvado de lado, seu braço esticado apenas o suficiente para tocar o ombro dela. Ela beijou sua bochecha e se levantou. Estava para ir com as pontas dos pés para dentro do banheiro a fim de tomar um banho quando foi derrotada pela curiosidade. Ela foi em silêncio para a porta do quarto e espiou.
O sangue na parede do corredor se fora, o gesso estava sem marcas. Estava tão limpo que ela se perguntou se toda a coisa tinha sido um sonho – o sangue, a conversa na cozinha com Sebastian, tudo isso. Ela deu um passo ao outro lado do corredor, colocando suas mãos contra a parede onde a impressão ensanguentada da mão tinha estado…
— Bom dia.
Ela girou. Era seu irmão. Ele tinha saído do seu quarto silenciosamente e estava de pé no meio do corredor, considerando-a com um sorriso torto. Ele parecia ter tomado banho recentemente; seu cabelo louro úmido estava da cor de prata, quase metálico.
— Você planeja vestir isso todo o tempo? — ele perguntou, olhando sua camisola.
— Não, eu estava...
Ela não queria dizer que estava verificando se ainda havia sangue no corredor. Ele apenas a olhou, divertido e superior. Clary se afastou.
— Eu vou me vestir.
Ele disse algo atrás dela, mas Clary não parou para ouvir o que era, apenas disparou de volta para o quarto de Jace e fechou a porta atrás dela. Um momento mais tarde ela ouviu vozes no corredor – a de Sebastian novamente, e a de uma garota, falando um italiano musical. A garota da noite passada, ela pensou. Aquela que ele disse estar dormindo no seu quarto. Foi apenas então que ela percebeu o quanto suspeitou que ele estava mentindo.
Mas ele estava falando a verdade. Eu estou te dando uma chance, ele disse. Você pode me dar uma?
Ela podia? Era sobre Sebastian que eles estavam falando. Ela ponderou sobre isso mais agitadamente enquanto tomava banho e se vestia cuidadosamente. As peças no guarda-roupa tinham sido selecionadas para Jocelyn, estavam tão longe do seu estilo normal que era difícil escolher o que usar. Ela encontrou um par de jeans – de marca, a etiqueta de preço ainda presa nele – e uma camisa de seda pontilhada com uma gola no pescoço que tinha uma aparência vintage que ela gostou. Jogou sua própria jaqueta por cima e seguiu de volta para o quarto de Jace, mas ele tinha ido embora, e não foi difícil imaginar para onde. O barulho de pratos, o som de risos e o cheiro de comida flutuaram do andar de baixo.
Ela desceu os degraus de vidro dois de cada vez, mas pausou no degrau inferior, olhando para a cozinha. Sebastian estava inclinado contra a geladeira, braços cruzados, e Jace estava fazendo algo em uma panela que envolvia cebolas e ovos. Ele estava descalço, seu cabelo bagunçado, sua camisa desabotoada ao acaso, e a visão dele fez seu coração dar ponta cabeça. Ela nunca o tinha visto assim, pelo primeiro momento na manhã, ainda com aquela aura dourada de sono agarrada a ele, e sentiu uma tristeza aguda que todas essas primeiras vezes estavam acontecendo com um Jace que não era de fato o seu Jace.
Mesmo que ele parecesse feliz, olhos livres de sombras, gargalhando enquanto virava os ovos na panela e deslizava a omelete em cima do prato. Sebastian disse algo para ele, e Jace olhou até Clary e sorriu.
— Mexido ou frito?
— Mexidos. Eu não sabia que você sabia fazer ovos.
Ela desceu os degraus e foi para o balcão da cozinha. O sol estava fluindo através das janelas – apesar da falta de relógios na casa, ela imaginou que fosse o fim da manhã – e a cozinha brilhava em vidro e cromo.
— Quem não pode fazer ovos? — Jace perguntou em voz alta.
Clary ergueu sua mão – ao mesmo tempo em que Sebastian. Ela não pôde evitar uma pequena pitada de surpresa e abaixou seu braço apressadamente, mas não antes de Sebastian ter visto e sorrido. Ele estava sempre sorrindo. Ela desejava que pudesse tirar isso do seu rosto com uma bofetada.
Olhou para longe dele e se ocupou em reunir um prato de café da manhã da mesa – pão, manteiga fresca, geleia, e bacon fatiado. Havia suco, também, e chá. Eles comem muito bem aqui, ela pensou. Entretanto, se nós nos baseássemos em Simon, garotos adolescentes estavam sempre famintos. Ela olhou em direção à janela – e olhou de novo. A vista não era mais de um canal, mas de um morro erguido à distância, coberto por um castelo.
— Onde nós estamos agora? — ela perguntou.
— Praga — Sebastian respondeu — Jace e eu temos uma incumbência a fazer aqui — ele olhou para fora da janela — nós provavelmente devemos ir logo, de fato.
Ela sorriu docemente para ele.
— Eu posso ir com vocês?
Sebastian negou com sua cabeça.
— Não.
— Por que não? — Clary cruzou seus braços sobre seu peito. — É alguma coisa com ligação viril que eu não posso fazer parte? Vocês estão cortando o cabelo combinando?
Jace entregou a ela seu prato com ovos mexidos nele, mas ele estava olhando para Sebastian.
— Talvez ela possa ir. Quero dizer, essa incumbência em particular não é perigosa.
Os olhos de Sebastian eram como as florestas no poema Frost, escuros e profundos. Eles não cederam em nada.
— Qualquer coisa pode se tornar perigosa.
— Bem, a decisão é sua.
Jace encolheu os ombros, alcançou um morango, colocou-o em sua boca e sugou o suco dos seus dedos. Agora assim, Clary pensou, havia uma clara e absoluta diferença sobre esse Jace e o dela. Seu Jace tinha uma curiosidade feroz e completamente consumidora sobre tudo. Ele nunca daria um encolher de ombros e continuaria com o plano de outra pessoa. Ele era como o oceano incessantemente se lançando contra a costa rochosa, e esse Jace era... um rio calmo, brilhando no sol.
Por que ele estava feliz?
A mão de Clary ficou tensa no seu garfo, seus nós se embranquecendo. Ela odiava aquela vozinha na sua cabeça. Como a Rainha Seelie, ela plantava dúvidas onde não deveria haver dúvidas, fazendo perguntas que não tinham respostas.
— Eu vou pegar minhas coisas.
Depois de apanhar outra cereja do prato, Jace enfiou na sua boca e disparou escada acima. Clary esticou a cabeça. Os limpos degraus de vidro pareciam invisíveis, fazendo parecer como se ele estivesse voando para cima, não correndo.
— Você não está comendo seus ovos.
Era Sebastian. Ele tinha contornado o balcão – ainda silenciosamente, maldito – e estava olhando para ela, suas sobrancelhas erguidas. Ele tinha um fraco sotaque, uma mistura de um sotaque de pessoas que viveram em Idris e algo mais britânico. Clary se perguntou se ele estava escondendo isso antes ou se ela apenas não tinha percebido.
— Eu realmente não gosto de ovos — ela confessou.
— Mas você não quis contar a Jace porque ele pareceu tão satisfeito em fazer o seu café da manhã.
Desde que estava correto, Clary não disse nada.
— Engraçado, não é? — Sebastian comentou. — As mentiras que as pessoas boas contam. Ele provavelmente irá fazer ovos para você todos os dias pelo resto da vida agora, e você irá engoli-los porque não pode contar que não gosta.
Clary pensou na Rainha Seelie.
— O amor faz de todos nós mentirosos?
— Exatamente. Rápida aluna, você não?
Ele deu um passo em direção a ela, e um formigamento ansioso queimou seus nervos. Ele estava usando a mesma colônia que Jace. Ela reconheceu o cheiro cítrico de pimenta preta, mas nele ela cheirava diferente. Errado, de alguma forma.
— Nós temos isso em comum — Sebastian disse, e começou a desabotoar sua camisa.
Ela se levantou apressadamente.
— O que você está fazendo?
— Calma aí, irmãzinha — ele abriu o último botão, e sua camisa ficou pendurada aberta. Ele sorriu preguiçosamente — você é a garota mágica das runas, não é?
Clary assentiu lentamente.
— Eu quero uma runa de força. E se é a melhor, eu a quero de você. Não negaria ao seu irmão mais velho uma runa, negaria? — Seus olhos escuros alisaram-na. — Além disso, você quer que eu lhe dê uma chance.
— E você quer que eu te dê uma chance. Então eu farei um acordo. Eu te darei uma runa de força se você me deixar ir na sua incumbência.
Ele tirou a camisa e a largou em cima do balcão.
— Combinado.
— Eu não tenho uma estela.
Ela não queria olhar para ele, mas era difícil não olhar. Ele parecia ter intencionalmente invadido seu espaço pessoal. Seu corpo era muito como o de Jace – duro, sem qualquer pedaço extra de carne em qualquer lugar, os músculos aparecendo claramente sob a pele. Ele era cheio de cicatrizes como Jace também, embora fosse tão pálido que as marcas brancas se evidenciavam menos do que contra a pele dourada de Jace. Na do seu irmão elas eram como caneta prateada em papel branco.
Ele retirou uma estela do seu cinto e entregou a ela.
— Use a minha.
— Tudo bem. Se vire.
Ele se virou.
Clary engoliu de volta um soluço. Suas costas nuas estavam riscadas com cicatrizes irregulares, uma atrás da outra, demais para ser um acidente ao acaso.
Marcas de chicote.
— Quem fez isso?
— Quem você acha? Nosso pai. Ele usava um chicote feito de metal de demônio, então nenhuma iratze poderia curá-las. Elas tinham a intenção de me fazer lembrar.
— Lembrar o quê?
— Dos riscos da obediência.
Ela tocou uma. Parecia quente debaixo das pontas dos seus dedos, como se fossem recém-feitas. Eram ásperas, mas onde a pele a circundava era lisa.
— Você não quer dizer “desobediência”?
— Eu quis dizer o que eu disse.
— Elas doem?
— Todo o tempo — impacientemente, ele olhou para trás sobre seu ombro — o que você está esperando?
— Nada.
Ela firmou a ponta da estela em sua omoplata, tentando manter sua mão firme. Parte da sua mente acelerava, pensando em quão fácil seria tatuá-lo com algo que fosse prejudicá-lo, adoecê-lo, retorcer suas entranhas – mas o que aconteceria com Jace se ela fizesse? Sacudindo a cabeça para tirar o cabelo do rosto, ela cuidadosamente desenhou a runa Força na junção da omoplata e costas, lugar que, se ele fosse um anjo, teria asas.
Quando ela terminou, Sebastian se virou e pegou a estela dela, depois acomodou sua camisa de volta. Ela não esperava um obrigado – e não teve um. Ele rolou seus ombros para trás enquanto abotoava sua camisa e sorriu.
— Você é boa — ele falou, mas isso foi tudo.
Um momento mais tarde os degraus sacudiram-se e Jace retornou, encolhido em uma jaqueta Suede. Ele tinha prendido suas armas no cinto também, e usava luvas escuras sem as pontas dos dedos.
Clary sorriu para ele com um calor que não tinha sentido.
— Sebastian diz que eu posso ir com vocês.
Jace ergueu suas sobrancelhas.
— Cortes de cabelo combinando para todos?
— Eu espero que não — Sebastian respondeu — eu fico terrível com cachos.
Clary olhou abaixo para si mesma.
— Eu preciso me equipar?
— Não necessariamente. Esse não é o tipo de incumbência onde nós esperamos ter uma luta. Mas é bom estar preparada. Eu vou pegar algo da sala de armas — Sebastian falou, e desapareceu no andar superior.
Clary se xingou silenciosamente por não ter encontrado a sala de armas enquanto estava fazendo a busca. Certamente teria algo lá dentro que proveria algum tipo de pista sobre o que eles estavam planejando…
Jace tocou a lateral do seu rosto, e ela pulou. Quase tinha se esquecido de que ele estava ali.
— Você tem certeza de que quer fazer isso?
— Absolutamente. Eu vou enlouquecer dentro de casa. Além disso, você me ensinou a lutar. Imagino que você gostaria que eu usasse.
Seus lábios curvaram em um perverso sorriso; ele roçou o cabelo dela para trás e murmurou algo no seu ouvido sobre usar o que ela tinha aprendido. Ele se inclinou para longe quando Sebastian se uniu a eles, usando sua própria jaqueta, com um cinto de armas em suas mãos.
Havia uma adaga de atirar atravessada nele, e uma lâmina serafim. Ele estendeu a mão para puxar Clary para perto e colocou o cinto ao redor da sua cintura, dando duas voltas e fixando-o baixo nos seus quadris. Ela estava muito surpresa para empurrá-lo para longe e ele terminou antes que ela tivesse a chance.
Se afastando, Sebastian se moveu em direção à parede, onde o esboço de uma porta apareceu, brilhando como um vão de porta em um sonho.
Eles atravessaram-na.
***
Uma suave batida na porta da biblioteca fez Maryse erguer a cabeça. Era um dia nublado, escuro do lado de fora das janelas da biblioteca, e as lâmpadas projetavam pequenas piscinas de luz na sala circular. Ela não podia dizer quanto tempo esteve sentada atrás da mesa. Xícaras de café vazias enchiam a superfície na frente dela.
Ela ficou de pé.
— Entre.
Houve um suave clique quando a porta abriu, mas sem som de passos. Um momento mais tarde uma figura com manto cor de pergaminho deslizou para dentro da sala, seu capuz levantado encobrindo o rosto. Você nos chamou, Maryse Lightwood?
Maryse rolou seus ombros para trás. Ela se sentia dolorida, cansada e velha.
— Irmão Zacarias. Eu estava esperando… Bem. Isso não importa.
Irmão Enoch? Ele é mais velho que eu, mas acho que talvez esse seu chamado tenha algo a ver com o desaparecimento do seu filho adotivo. Tenho um interesse particular em seu bem-estar.
Ela olhou-o curiosamente. A maior parte dos Irmãos do Silêncio não mostrava ou falava seus sentimentos pessoais, se é que tinham algum. Alisando seu cabelo emaranhado para trás, ela saiu de trás da mesa.
— Muito bem. Quero mostrar-lhe algo.
Ela nunca tinha se acostumado aos Irmãos do Silêncio, à maneira silenciosa com que eles se moviam, como se seus pés não tocassem o chão. Zacarias pareceu pairar ao seu lado enquanto ela o conduzia ao outro lado da biblioteca para um mapa-múndi pregado na parede norte.
Era um mapa de Caçadores de Sombras. Mostrava Idris no meio da Europa e as barreiras ao redor dela como uma moldura de ouro.
Em uma prateleira abaixo do mapa estavam dois objetos. Um era um estilhaço de vidro incrustado com sangue seco. O outro era um bracelete de couro usado, decorado com a runa para poder angelical.
— Esses são…
O bracelete de Jace Herondale e o sangue de Jonathan Morgenstern. Entendo que as tentativas para rastreá-los foram sem sucesso?
— Não foi rastreamento precisamente — Maryse endireitou os ombros — quando eu estava no Círculo, havia um mecanismo que Valentim usava pelo qual podia localizar todos nós. A menos que estivéssemos em certos lugares protegidos, ele sabia onde estávamos todo o tempo. Pensei que houvesse uma chance de que ele talvez pudesse ter feito o mesmo com Jace quando ele era criança. Ele nunca pareceu ter problemas em encontrá-lo.
De que tipo de mecanismo você está falando?
— Uma tatuagem. Não uma do Livro Branco. Todos nós temos. Eu quase tinha me esquecido; não havia forma de se livrar.
Se Jace tem a tatuagem, ele deve saber disso, e tomaria medidas para evitar que você use a tatuagem para encontrá-lo.
Maryse negou com sua cabeça.
— Poderia ser minúscula, uma marca branca quase invisível sob seu cabelo, assim como a minha. Jace não teria sabido que tem – Valentim não iria contar.
Irmão Zacarias se moveu para longe dela, examinando o mapa. E qual foi o resultado do seu experimento?
— Jace a tem — Maryse disse, mas ela não soou satisfeita ou triunfante — eu o tenho visto no mapa. Quando ele aparece, o mapa acende, como uma faísca de luz, na localização onde ele está; e seu bracelete acende ao mesmo tempo. Então eu sei que é ele, e não Jonathan Morgenstern. Jonathan nunca apareceu no mapa.
E onde ele está? Onde está Jace?
— Eu o tenho visto aparecer, apenas por alguns segundos de cada vez, em Londres, Roma e Xangai. Apenas pouco tempo atrás mostrou sua existência em Veneza, e depois desapareceu novamente.
Como ele está viajando tão rapidamente entre as cidades?
— Por Portal? — Ela encolheu os ombros. — Eu não sei. Só sei que cada vez que o mapa pisca, eu sei que ele está vivo... por enquanto. E é como se eu pudesse respirar novamente, apenas por um tempo.
Maryse fechou sua boca decididamente para que as outras palavras não derramassem para fora – a falta que sentia de Alec e Isabelle, mas não podia suportar ligar para eles, porque Alec a responsabilizaria pelo interrompimento da busca pelo seu próprio irmão. A maneira que ainda pensava em Max todos os dias era como se alguém tivesse esvaziado seus pulmões de ar, e ela agarrava seu coração, com medo que estivesse morrendo. Ela não podia perder Jace, também.
Posso entender. Irmão Zacarias dobrou suas mãos na frente dele.
Elas pareciam novas, não rugosas ou curvas, seus dedos delgados. Maryse frequentemente se perguntava como os Irmãos envelheciam e quanto tempo eles viviam, mas essa informação era secreta para a ordem.
Há poucas coisas mais poderosas que o amor da família. Mas o que não entendo é porque escolheu mostrar isso para mim.
Maryse deu um fôlego estremecido.
— Sei que eu deveria mostrar à Clave. Mas a Clave sabe dessa ligação com Jonathan agora. Eles estão caçando os dois. Irão matar Jace se encontrarem-no. E ainda assim manter a informação para mim mesma é traição certa — ela baixou a cabeça — decidi que contar a você, aos Irmãos, era algo que eu podia aguentar. Depois, será sua escolha mostrar ou não à Clave. Eu... eu não posso suportar que seja minha.
Zacarias ficou um silêncio por um longo momento. Depois sua voz, gentil em sua mente, disse: o mapa lhe diz que seu filho ainda está vivo. Se o der para a Clave, não acho que irá ajudá-los muito, além de mostras que ele está viajando rápido e é impossível de ser rastreado. Eles já sabem disso. Guarde o mapa. Eu não irei falar sobre isso por enquanto.
Maryse olhou para ele impressionada.
— Mas... você é um servente da Clave...
Como você, fui um Caçador de Sombras uma vez. Como você, vivi. E como você, havia aqueles que eu amava o bastante para colocar o bem-estar deles antes de qualquer outra coisa – qualquer juramento, qualquer débito.
— Você... — Maryse hesitou. — Você alguma vez teve filhos?
Não. Sem filhos.
— Sinto muito.
Não sinta. E tente não deixar o medo por de Jace devorar. Ele é um Herondale, e eles são sobreviventes…
Algo estalou dentro de Maryse.
— Ele não é um Herondale. Ele é um Lightwood. Jace Lightwood. Ele é meu filho.
Houve uma longa pausa. Em seguida, eu não quis implicar outra coisa, disse Zacarias. Ele soltou suas finas mãos e recuou. Há uma coisa pela qual você deve estar consciente. Se Jace aparecer no mapa por mais do que alguns segundos de cada vez, você terá que contar à Clave. Deve se preparar para a possibilidade.
— Eu não acho que posso. Eles mandarão Caçadores atrás dele. Montarão uma armadilha. Ele é apenas um menino.
Ele nunca foi apenas um menino, Zacarias replicou, e ele se virou para deslizar da sala.
Maryse não o observou ir. Ela tinha retornado a olhar para o mapa.
***
Simon?
Alívio abriu como uma flor em seu peito. A voz de Clary, tentadora, mas familiar, encheu sua cabeça. Ele olhou lateralmente. Isabelle ainda estava dormindo. A luz do meio-dia estava visível ao redor das extremidades das cortinas.
Você está acordado?
Ele rolou de costas, encarando acima ao teto. Claro que eu estou acordado.
Bem, eu não tinha certeza. Você está o que, seis, sete horas atrás de onde eu estou. É crepúsculo aqui.
Itália?
Nós estamos em Praga agora. É linda. Há um grande rio e muitos prédios com pináculos. Parece um pouco como Idris de longe. Está frio aqui, contudo. Mais frio do que em casa.
Tudo bem, já basta do informe sobre o tempo. Você está segura? Onde estão Sebastian e Jace?
Eles estão comigo. Eu me afastei um pouco, contudo. Falei que eu queria me comungar com a vista da ponte.
Então eu sou a vista da ponte?
Ela riu, ou ao menos ele sentiu algo que era como uma gargalhada na sua cabeça – uma suave gargalhada nervosa. Eu não posso ficar muito tempo. Entretanto, eles realmente não parecem suspeitar de nada. Jace... Jace definitivamente não suspeita. Sebastian é mais difícil de ler. Não acho que ele confie em mim. Eu fiz uma busca no seu quarto ontem, mas não havia nada – quero dizer, nada que indicasse o que eles estão planejando. Na noite passada...
Noite passada?
Nada. Era estranho como ela podia estar dentro da cabeça dele e Simon ainda podia sentir que ela estava escondendo algo.
Sebastian tem no seu quarto a caixa que minha mãe possuía. Com suas coisas de bebê dentro. Eu não posso imaginar por que.
Não perca seu tempo tentando entender Sebastian, Simon respondeu-lhe. Ele não vale isso. Descubra o que eles estão fazendo.
Eu estou tentando. Ela soou irritada. Você ainda está no Magnus?
Sim. Nós nos movemos para a fase dois do nosso plano.
Oh, sim? Qual era a fase um?
A fase um era sentar à mesa, pedir pizza, e argumentar.
Qual é a fase dois? Sentar à mesa, beber café e argumentar?
Não exatamente. Simon respirou fundo. Nós invocamos o demônio Azazel.
Azazel? A voz mental de Clary aumentou; Simon quase tapou suas orelhas. Então é essa que era a grande estúpida questão. Diga-me que você está brincando.
Eu não estou. É uma longa história.
Ele atualizou-a o melhor que pôde, observando Isabelle respirar enquanto o fazia, observando a luz fora da janela ficar mais brilhante.
Nós pensávamos que ele pudesse nós ajudar a encontrar uma arma que pudesse ferir Sebastian sem machucar Jace.
Sim, mas... invocar demônio? Clary não soou convencida. E Azazel não é um demônio comum. Eu sou aquela com o Time do Mal aqui. Você é o Time dos Bons. Mantenha isso em mente.
Você sabe que nada é simples assim, Clary.
Era como se ele pudesse senti-la suspirar, um fôlego de ar que passou sobre a pele dele, erguendo os cabelos da parte de trás do seu pescoço. Eu sei.
***
Cidades e rios, Clary pensou enquanto tirava as mãos do anel de ouro em sua mão direita e virava-se da vista da Ponte Charles de volta para Jace e Sebastian. Eles estavam lado a lado na antiga ponte de pedra, apontando para algo que ela não podia ver. A água abaixo era da cor do ferro, deslizando silenciosamente em torno das antigas estruturas da ponte; o céu era da mesma cor, crivado com nuvens negras.
O vento açoitou-a no cabelo e casaco enquanto Clary caminhava para se unir à Sebastian e Jace. Eles partiram novamente, os dois garotos conversando suavemente. Ela poderia ter se unido a conversa se quisesse, ela deveria, mas havia algo sobre a imóvel beleza da cidade, seus pináculos erguendo-se na névoa à distância, que a fez querer ficar em silêncio, olhar e pensar em si própria.
A ponte terminava em uma rua tortuosa de paralelepípedos alinhada com lojas para turistas, vendendo granadas vermelho-sangue e grandes pedaços de âmbar polonês dourado, pesados cristais boêmios e brinquedos de madeira. Mesmo a essa hora, turistas estavam do lado de fora dos bares, segurando entradas ou cartões que os dariam descontos em bebidas.
Sebastian gesticulou para eles saírem do caminho impacientemente, vociferando sua irritação em tcheco. O aperto de pessoas foi aliviado quando a rua se alargou em uma antiga praça medieval. Apesar do tempo frio, estava cheia com pedestres e quiosques que vendiam salsichas e cidra quente com especiarias.
Os três pararam para comer e sentaram em torno de uma mesa alta vacilante enquanto um enorme relógio na torre central começou a badalar a hora. Máquinas começaram a fazer barulho e um círculo de figuras de madeira dançando apareceu das portas de cada lado do relógio – os doze apóstolos, Sebastian explicou enquanto as figuras rodavam e rodavam.
— Há uma lenda — ele contou, inclinando-se para frente com sua mão em concha ao redor de uma xícara de cidra quente — que o rei arrancou os olhos do relojoeiro após esse relógio ter sido terminado para que ele não pudesse nunca construir algo tão bonito novamente.
Clary estremeceu e se moveu um pouco mais perto de Jace. Ele tinha estado em silêncio desde quando deixaram a ponte, como se perdido em pensamentos. Pessoas – garotas na maior parte – paravam para olhá-lo enquanto passavam, seu cabelo brilhante se sobressaltando entre as cores escuras do inverno da Cidade Velha.
— Isso é sadismo — ela comentou.
Sebastian correu seus dedos pelo rebordo da sua xícara, e lambeu a cidra.
— O passado é outro país.
— País estrangeiro — disse Jace.
Sebastian olhou para ele com olhos preguiçosos.
— O quê?
— O passado é um país estrangeiro: eles fazem as coisas diferentes lá — Jace explicou — essa é toda a citação.
Sebastian encolheu os ombros e afastou sua xícara. Você ganhava um euro se as devolvesse ao estande onde comprou a cidra, mas Clary suspeitou que Sebastian não se incomodaria em fingir ser um bom cidadão por um mísero euro.
— Vamos.
Clary não tinha terminado sua cidra, mas a dispensou de qualquer maneira e seguiu enquanto Sebastian os conduzia para longe da praça, para dentro de um labirinto estreito de ruas sinuosas. Jace corrigiu Sebastian, ela pensou. Certamente deveria ter sido algo secundário, mas o sangue de Lilith não deveria cegá-lo para seu irmão de tal maneira que ele pensasse que tudo que Sebastian fizesse fosse certo? Isso poderia ser um sinal – mesmo que um minúsculo sinal – de que o feitiço que os conectava estava começando a desaparecer?
Era estúpido ter esperanças, ela sabia. Mas algumas vezes esperança era tudo o que se tinha.
As ruas ficaram mais estreitas, mais escuras. As nuvens acima tinham bloqueado completamente o pôr-do-sol, e antigas lamparinas a gás queimavam aqui e ali, iluminando a penumbra nebulosa. As calçadas estavam estreitando-se, forçando-os a caminhar em fila, como se estivessem passando para o outro lado de uma ponte estreita. Apenas a visão de outros pedestres, aparecendo e desaparecendo na bruma, fez Clary sentir que não tinha atravessado algum tipo de dobra no tempo para dentro da cidade dos sonhos fora da sua própria imaginação.
Finalmente eles alcançaram um arco de pedra que se abria para dentro de uma pequena praça. A maioria das lojas tinha apagado suas luzes, embora do outro lado uma estivesse acesa. Dizia ANTIKVARIAT em letras douradas, e a janela estava cheia de antigas garrafas de exibição de diferentes substâncias, seus rótulos descascados marcados em latim. Clary se surpreendeu quando Sebastian seguiu para lá. Que utilidade eles possivelmente teriam para velhas garrafas?
Ela rejeitou o pensamento quando atravessaram a soleira. O interior da loja era mal iluminado e cheirava a naftalina, mas estava cheio de uma incrível seleção de quinquilharias – e não-quinquilharias.
Bonitos mapas celestiais guerreavam por espaço com recipientes de sal e pimenta com formato das figuras do relógio na Praça da Cidade Velha. Havia montes de tabaco antigo e latas de cigarro, selos amontoados em vidros, velhas câmeras com designer da Alemanha Oriental e Rússia, uma linda tigela de cristal lapidado. Uma antiga bandeira Checa pendurada em um mastro suspenso.
Sebastian se moveu para frente através das estantes em direção ao balcão no fundo da loja, e Clary notou que o que tinha achado ser um manequim era na verdade um homem velho com um rosto tão amassado e enrugado quanto um lençol antigo, inclinado contra o balcão com seus braços cruzados.
O próprio balcão era uma fachada de vidro e sustentava pilhas de joias antigas e esferas de vidros brilhantes, pequenas bolsas com correntes, fechos de joias e fileiras de abotoaduras.
Sebastian disse algo em checo, e o homem assentiu, indicando Clary e Jace com um puxão do seu queixo e um olhar suspeito. Seus olhos eram, Clary percebeu, de uma cor vermelha escura. Ela estreitou seus próprios olhos, se concentrando com força, e começou a tirar o encantamento dele.
Não foi fácil; parecia grudar nele como papel mata moscas. No final ela conseguiu afastar apenas o bastante para ver em flashes a verdadeira criatura de pé na frente dela – era alta e com forma humana, pele cinza e olhos vermelhos de rubi, uma boca cheia de dentes pontiagudos que se projetavam em todas as direções, e longos braços sinuosos que terminavam em cabeças como as da enguia – estreitas, de aparência malévola, e cheia de dentes.
— Um demônio Vetis — Jace murmurou em seu ouvido — eles são como dragões. Gostam de estocar coisas brilhantes. Quinquilharia, joias, é tudo o mesmo para eles.
Sebastian estava olhando para trás sobre seu ombro para Jace e Clary.
— Eles são meu irmão e irmã — falou depois de um momento — são inteiramente confiáveis, Mirek.
Um fraco tremor correu debaixo da pele de Clary. Ela não gostou da ideia de afirmar Jace como seu irmão, mesmo para o beneficio do demônio.
— Eu não gosto disso — o demônio Vetis falou — você disse que nós estaríamos lidando apenas com você, Morgenstern. E tanto quanto sei, Valentim tinha uma filha — sua cabeça apontou para Clary — e apenas um filho.
— Ele é adotado — Sebastian respondeu despreocupadamente, gesticulando para Jace.
— Adotado?
— Acho que você descobrirá que a definição da família moderna está realmente mudando a um passo impressionante esses dias — Jace comentou.
O demônio – Mirek – não pareceu impressionado.
— Eu não gosto disso — ele repetiu.
— Mas você irá gostar — Sebastian respondeu, pegando uma bolsa presa por uma cordinha à sua roupa.
Ele a virou de cabeça para baixo em cima do balcão, e uma ruidosa pilha de moedas caiu, fazendo barulho enquanto rolavam sobre o vidro.
— Tostões dos olhos de homens mortos. Uma centena deles. Agora, você tem o que nós combinamos?
Uma mão dentada tateou seu caminho sobre o balcão e mordeu gentilmente uma moeda. Os olhos do demônio piscaram vermelhos sobre a pilha.
— Isso é muito bom, mas não é o suficiente para comprar o que você busca.
Ele gesticulou com um braço ondulante, e acima dele apareceu o que pareceu para Clary como um pedaço de cristal rochoso – apenas que era mais brilhante, mais puro, prateado e bonito. Ela percebeu com um sobressalto que era o material a partir do qual as lâminas serafim eram feitas.
— Adama puro — Mirek falou — direto do Paraíso. Sem preço.
Raiva surgiu no rosto de Sebastian como raios, e por aquele momento Clary viu o garoto perverso na superfície, aquele que tinha rido enquanto Hodge jazia morto. Depois o aspecto se foi.
— Mas nós concordamos em um preço.
— Nós também concordamos que você viria sozinho — replicou Mirek.
Seus olhos vermelhos retornaram para Clary, e para Jace, que não tinha se movido, mas cujo aspecto tinha assumido a quietude controlada de um gato agachado.
— Eu direi a você o que mais pode me dar. Uma mecha do cabelo bonito da sua irmã.
— Ótimo — Clary disse, avançando — você quer um retalho do meu cabelo…
— Não! — Jace se moveu para bloqueá-la. — Ele é um feiticeiro de magia negra, Clary. Você não tem ideia do que ele poderia fazer com uma mecha do seu cabelo ou um pouco de sangue.
— Mirek — Sebastian disse lentamente, sem olhar para Clary.
E naquele momento ela se perguntou, se Sebastian queria barganhar uma mecha do seu cabelo pelo adama, o que estava impedindo-o? Jace tinha se oposto, mas ele também estava compelido a fazer o que Sebastian pedisse. Na crise, o que venceria? A compulsão, ou os sentimentos de Jace por ela?
— Absolutamente, não.
O demônio deu uma lenta piscadela como um lagarto.
— Absolutamente, não?
— Você não irá tocar em um fio de cabelo da cabeça da minha irmã — disse Sebastian — nem faltar à palavra com a nossa barganha. Ninguém engana o filho de Valentim Morgenstern. O preço estabelecido, ou…
— Ou o quê? — Mirek rosnou. — Ou você sentirá muito? Você não é Valentim, menininho. Agora, aquele era um homem que inspirava lealdade…
— Não — Sebastian concordou, deslizando a lâmina serafim do cinto — eu não sou Valentim. Não tenho a intenção de tratar com demônios como Valentim. Se eu não posso ter sua lealdade, terei seu medo. Saiba que sou mais poderoso do que meu pai jamais foi, e se você não lida de forma justa comigo, eu terei sua vida, e terei o que vim buscar — ele ergueu a lâmina que segurava — Dumah — sussurrou, e a lâmina lançou um brilho como a de uma coluna de fogo.
O demônio recuou, vociferando várias palavras em uma língua com som abafado. A mão de Jace já segurava uma adaga. Ele gritou para Clary, mas não rápido o bastante. Algo a golpeou forte no ombro, e ela caiu para frente, batendo no piso abarrotado. Girou de costas rapidamente e olhou para cima…
E gritou. Pairando sobre ela estava uma maciça cobra – ou ao menos era um grosso corpo escamoso e uma cabeça encoberta como a de uma cobra, mas seu corpo era articulado tal qual o de um inseto, contendo uma dúzia de pernas deslizantes que terminavam em garras chanfradas.
***
Simon caiu de novo no sono depois de falar com Clary. Quando acordou de novo, as luzes estavam acesas e Isabelle estava ajoelhada na beirada da cama, usando jeans e vestindo uma camiseta que ela deve ter pego emprestada de Alec. Tinha buracos nas mangas, e a costura ao redor da bainha estava se desfazendo. Ela tinha afastado a gola da garganta e usava a ponta de uma estela para traçar uma runa em cima da pele do seu peito, bem abaixo da sua clavícula.
Ele se levantou em seus cotovelos.
— O que você está fazendo?
— Iratze — ela respondeu — para isso.
Ela colocou o cabelo para trás da orelha e Simon viu os dois furinhos que tinha feito na lateral da sua garganta. Enquanto ela terminava a runa, elas se suavizaram, deixando apenas as mais leves manchas brancas para trás.
— Você está... bem? — Sua voz saiu como um sussurro. Insípida.
Estava tentando reprimir as outras perguntas que queria fazer. Eu te machuquei? Você acha que eu sou um monstro agora? Eu te assustei completamente?
— Estou. Eu dormi bem depois do que eu normalmente faço, mas acho que provavelmente é uma coisa boa.
Vendo a expressão dele, Isabelle deslizou a estela em seu cinto. Ela seguiu em direção a Simon com uma graça felina e se posicionou sobre ele, seu cabelo caindo ao redor deles. Estavam tão próximos que seus narizes se tocaram. Ela olhou-o sem piscar.
— Por que você está tão perturbado?
Simon pôde sentir o hálito dela contra o seu rosto, tão suave quanto um sussurro. Queria puxá-la para baixo e beijá-la – não mordê-la, apenas beijá-la – mas naquele exato momento o som da campainha do apartamento soou. Um segundo mais tarde, alguém bateu na porta do quarto – esmurrou-a, de fato, fazendo-a tremer em suas dobradiças.
— Simon. Isabelle — era Magnus — olhem, eu não me importo se vocês estão dormindo ou fazendo coisas impronunciáveis um com o outro. Vistam-se e saiam para a sala de estar agora.
Simon trocou olhares com Isabelle, que pareceu tão intrigada quanto ele.
— O que está acontecendo?
— Apenas saiam daí — Magnus repetiu, e o som dos seus passos em retirada era alto enquanto ele se afastava do quarto.
Isabelle rolou de Simon, muito para o seu desapontamento, e suspirou.
— O que você acha que é?
— Não tenho ideia — Simon respondeu — encontro de emergência do Time dos Bons, imagino.
Ele achou a frase divertida quando Clary usou. Isabelle, contudo, apenas negou com a cabeça e suspirou.
— Não tenho certeza se há tal coisa como Time dos Bons esses dias — ela disse.
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