Capítulo 14 - Como Cinzas
Clary voltou lentamente à consciência. Com a sensação de tontura, ela se lembrou da primeira manhã no Instituto, quando havia acordado sem fazer ideia de onde estava. Seu corpo inteiro doía, e parecia que alguém tinha quebrado um haltere de ferro em sua cabeça.
Ela estava deitada de lado, a cabeça apoiada em algo áspero, e havia um peso ao redor de seu ombro. Olhando para baixo, viu uma mão magra pressionada protetoramente contra seu tórax. Reconheceu as tatuagens, as fracas cicatrizes brancas, até mesmo o mapeamento azul das veias em seu antebraço. O peso dentro de seu peito diminuiu e ela sentou-se com cuidado, saindo debaixo do braço de Jace.
Eles estavam no quarto dele. Ela reconheceu a incrível limpeza, a cama cuidadosamente arrumada com seus cantos costumeiros. Ainda não estava desorganizado. Jace estava dormindo, encostado na cabeceira da cama, ainda com as mesmas roupas que usara na noite anterior. Estava até com seus sapatos. Tinha claramente adormecido segurando-a, mas ela não tinha nenhuma lembrança disso. Ainda estava respingado com a estranha substância prata do clube.
Ele se mexeu um pouco, como se sentindo que ela tinha saído, e passou o braço livre em torno de si mesmo. Não parecia ferido ou machucado, ela pensou, apenas exausto, seus longos cílios escuros dourados enrolados no vazio das sombras sob seus olhos. Ele parecia vulnerável dormindo – um garoto pequeno. Ele podia ter sido o Jacedela.
Mas ele não era. Ela se lembrou da boate, suas mãos sobre as dela no escuro, os corpos e sangue. Seu estômago se agitou e Clary colocou a mão sobre a boca, engolindo as náuseas. Se sentiu enjoada pelo o que lembrou, e por baixo do mal-estar havia uma pontada incômoda, a sensação de que estava faltando alguma coisa.
Alguma coisa importante.
— Clary.
Ela se virou. Os olhos de Jace estavam semiabertos; ele estava olhando para ela através de seus cílios, o dourado de seus olhos embotados em exaustão.
— Porque você está acordada? — ele perguntou. — Está quase amanhecendo.
As mãos dela estavam enroladas no emaranhado de cobertores.
— Noite passada — a voz dela estava desigual — os corpos... o sangue...
— O quê?
— Foi o que eu vi.
— Eu não... — ele balançou a cabeça — drogas de fadas. Você sabia...
— Pareceu tão real.
— Sinto muito — seus olhos se fecharam — eu queria me divertir. Supostamente era para te deixar feliz. Te fazer ver coisas bonitas. Pensei que nos divertiríamos juntos.
— Eu vi sangue. E pessoas mortas boiando em tanques...
Ele balançou a cabeça, seus cílios tremulando para baixo.
— Nada disso foi real...
— Mesmo o que aconteceu entre nós?
Clary se interrompeu, porque os olhos dele estavam fechados, seu peito subindo e descendo de forma constante. Ele estava dormindo.
Levantou-se sem olhar para Jace e foi para o banheiro. Ela ficou olhando-se no espelho, dormência se espalhando através de seus ossos. Estava coberta de manchas de resíduos prateados. Isso a lembrou da vez em que uma caneta metálica tinha estourado dentro de sua mochila, arruinando tudo dentro. Uma das alças de seu sutiã estava rompida, provavelmente onde Jace tinha puxado na noite anterior. Seus olhos estavam cercados com listras pretas manchadas de rímel, e sua pele e cabelo estavam pegajosos com prata.
Sentindo-se fraca e doente, ela tirou o vestido de seda e sua roupa íntima, jogando-os no cesto de roupa-suja antes de rastejar para dentro da água quente.
Ela lavou o cabelo várias vezes, tentando tirar a imundície prata seca. Era como tentar tirar tinta a óleo. O cheiro se prolongava demais, como a água de um vaso depois que as flores estão apodrecidas, leve, doce e estragada em sua pele. Nenhuma quantidade de sabão parecia ser capaz de se livrar dele.
Finalmente convencida de que estava tão limpa quanto conseguia, se secou e foi para o quarto principal para se vestir. Foi um alívio vestir novamente sua calça jeans e botas e deslizar em uma camiseta confortável de algodão. Foi só então, quando colocou sua segunda bota, que a sensação incômoda voltou, a sensação de que estava faltando alguma coisa. Ela congelou.
Seu anel. O anel dourado que lhe permitia falar com Simon.
Tinha sumido.
Freneticamente, ela procurou por ele, rasgando pelo cesto de roupa para ver se o anel tinha ficado preso em seu vestido, depois procurando em cada centímetro do quarto de Jace enquanto ele dormia tranquilamente. Ela vasculhou o tapete, as roupas de cama, verificou as gavetas do criado- mudo.
Por fim ela sentou-se, seu coração batendo contra o peito, uma sensação de mal estar no estômago.
O anel tinha sumido. Perdido, em algum lugar, de alguma forma. Ela tentou se lembrar da última vez que o tinha visto. Certamente tinha brilhado em sua mão enquanto ela manejava aquele punhal contra os demônios Elapid. Tinha caído na loja de quinquilharias? Na boate?
Ela cravou as unhas em suas coxas sob a calça jeans até a dor fazê-la ofegar. Concentre-se, disse a si mesma. Foco.
Talvez o anel tivesse caído de seu dedo em outro lugar no apartamento. Provavelmente Jace a tinha carregado pelas escadas em algum ponto. Era uma chance pequena, mas toda chance tinha que ser explorada.
Ela levantou-se e foi tão silenciosamente quanto pôde para o corredor. Se moveu em direção ao quarto de Sebastian e hesitou. Ela não podia imaginar porque o anel estaria lá, e acordá-lo apenas seria contraproducente. Ela se virou e fez seu caminho pelas escadas em vez disso, andando com cuidado para mascarar o som de suas botas.
Sua mente estava correndo. Sem uma forma de contatar Simon, o que ela ia fazer? Precisava contar a ele sobre a loja de antiguidades, as adamas. Ela deveria ter falado com ele mais cedo. Queria dar um soco na parede, mas forçou sua mente a desacelerar, a considerar suas opções.
Sebastian e Jace estavam começando a confiar nela; se ela pudesse ficar longe deles brevemente, em uma rua movimentava da cidade, poderia usar um telefone público para ligar para Simon. Poderia entrar na internet de alguma cafeteria e mandar um e-mail a ele. Ela sabia mais sobre a tecnologia mundana do que eles. Perder o anel não significava que tinha acabado.
Ela não desistiria.
Sua mente estava tão ocupada com pensamentos sobre o que fazer em seguida que a princípio não viu Sebastian. Felizmente, ele estava de costas para ela, parado na sala de estar, encarando a parede.
Já na parte inferior da escada, Clary congelou, depois correu pelo chão e encostou-se contra a meia parede que separava a cozinha da sala maior. Não havia nenhuma razão para pânico, disse a si mesma. Ela morava aqui. Se Sebastian a tivesse visto, ela poderia dizer que tinha descido para pegar um copo de água.
Mas a chance de observá-lo sem o seu conhecimento era muito tentadora. Clary virou o corpo ligeiramente, espreitando por cima e ao redor do balcão da cozinha.
Sebastian ainda estava de costas para ela. Ele tinha mudado de roupa desde a boate. A jaqueta do exército tinha ido embora; ele usava uma camisa de abotoar e calça jeans. Quando se virou, sua camisa levantou, ela pôde ver que seu cinto de armas estava pendurado com ele. Quando ele levantou a mão direita, Clary viu que ele segurava sua estela – e havia algo no jeito como ele a segurava, apenas por um momento, com uma reflexão cuidadosa, que a lembrou do jeito que sua mãe segurava um pincel.
Ela fechou os olhos. Parecia um tecido compactando num gancho, o puxão dentro de seu coração quando reconheceu algo em Sebastian que a lembrava de sua mãe ou de si mesma. Que a lembrava de que por mais que o sangue dele fosse veneno, era o mesmo sangue que corria em suas próprias veias.
Ela abriu os olhos novamente a tempo de ver uma porta se formando na frente de Sebastian. Ele pegou um cachecol que estava pendurado em um cabide na parede e saiu pela escuridão.
Clary tinha uma fração de segundo para decidir. Ficar e procurar nos quartos, ou seguir Sebastian e ver onde estava indo. Seus pés fizeram a escolha antes de sua mente. Girando para longe da parede, ela disparou através da abertura escura momentos antes de se fechar atrás dela.
***
O quarto onde Luke estava deitado era iluminado apenas pelo brilho das lâmpadas da rua que vinha através das ripas da janela. Jocelyn sabia que podia ter pedido uma lanterna, mas preferiu desse jeito. A escuridão escondia a extensão dos ferimentos de Luke, a palidez de seu rosto, as crescentes bolsas sob seus olhos.
Na verdade, na escuridão, ele parecia muito mais com o garoto que tinha conhecido em Idris antes de o Círculo ser formado. Ela se lembrava dele no pátio da escola, magro e de cabelos castanhos, olhos azuis e mãos nervosas. Fora o melhor amigo de Valentim, e por causa disso, nunca ninguém tinha realmente olhado para ele. Até mesmo ela, ou não teria sido tão cega de não perceber os sentimentos dele.
Ela se lembrou do dia de seu casamento com Valentim, o sol brilhante e claro através do telhado de cristal do Salão dos Acordos. Ela tinha dezenove anos e Valentim vinte, e se lembrava agora do quão infelizes seus pais ficaram quando ela escolheu se casar tão jovem. Sua desaprovação parecia ser nada para ela – eles não entendiam. Estava tão certa de que nunca haveria alguém para ela além de Valentim.
Luke tinha sido o melhor homem. Ela se lembrava de seu rosto enquanto caminhava pelo corredor – tinha olhado para ele apenas brevemente antes de voltar sua atenção para Valentim. Se lembrava de pensar que ele não devia estar bem, que parecia estar com dor. E mais tarde, na Praça do Anjo, enquanto os convidados circulavam – a maior parte dos membros do Círculo estavam lá, desde Maryse e Robert Lightwood, já casados, até Jeremy Pontmercy, de apenas quinze anos – ela tinha ficado com Luke e Valentim, e alguém fez a velha piada de que se o noivo não tivesse aparecido, a noiva teria que se casar com o melhor homem.
Luke estava vestindo roupas de gala, com as runas douradas para boa sorte no casamento deles, e ele estava muito bonito, mas enquanto todo mundo riu, ele tinha ficado terrivelmente branco. Ele deve realmente odiar a ideia de casar comigo, ela havia pensado. Se lembrava de tocar no seu ombro com uma risada.
— Não olhe desse jeito — ela brincou — sei que nós nos conhecemos há um bom tempo, mas eu te prometo que você nunca vai ter que casar comigo!
E depois Amatis chegara, arrastando um Stephen que dava risada, e Jocelyn tinha esquecido tudo sobre Luke, a maneira que ele olhara para ela – e o jeito estranho que Valentim encarou-o.
Jocelyn olhou para Luke agora e relaxou em sua cadeira. Os olhos dele estavam abertos, pela primeira vez em dias, e fixos nela.
— Luke — ela sussurrou.
Ele parecia confuso.
— Por quanto tempo... estive dormindo?
Ela queria se jogar em cima dele, mas as bandagens grossas ainda envolvidas em torno de seu peito a detiveram. Pegou sua mão em vez disso e a colocou contra sua bochecha, seus dedos entrelaçados aos dele. Ela fechou os olhos, e quando o fez, sentiu lágrimas deslizarem sob as suas pálpebras.
— Cerca de três dias.
— Jocelyn — ele disse, parecendo realmente alarmado agora — porque estamos na estação? Onde está Clary? Eu realmente não me lembro...
Ela baixou as mãos entrelaçadas e, com a voz mais firme que conseguiu fazer, contou a ele o que tinha acontecido – sobre Sebastian e Jace, o metal demoníaco incorporado em suas costelas e a ajuda do Praetor Lupus.
— Clary — ele falou imediatamente quando ela terminou — nós temos que ir atrás dela.
Puxando sua mão da dela, ele começou a lutar em uma posição sentada. Mesmo na penumbra, Jocelyn podia ver sua palidez aprofundar quando ele estremeceu com a dor.
— Isso não é possível. Luke, deite-se, por favor. Você não acha que se houvesse alguma maneira de ir atrás dela, eu teria ido?
Ele balançou as pernas para o lado da cama e então estava sentado. Depois, com um suspiro, baixou as cabeças nas mãos. Ele parecia horrível.
— Mas o perigo...
— Acha que eu não pensei sobre o perigo? — Jocelyn colocou as mãos em seus ombros e o empurrou suavemente de volta contra os travesseiros. — Simon esteve em contato comigo todas as noites. Ela está bem. Está bem. E você não está em forma para fazer alguma coisa sobre isso. Se matar não vai ajudá-la. Por favor, confie em mim, Luke.
— Jocelyn, eu não posso simplesmente ficar aqui deitado.
— Você pode — ela disse, levantando-se — e vai, mesmo que eu tenha que sentar em cima de você. O que diabos está errado com você, Lucian? Enlouqueceu? Estou apavorada com Clary, e tenho estado apavorada com você também. Por favor, não faça isso... não faça isso comigo. Se qualquer coisa acontecer com você...
Ele olhou para ela com surpresa. Já havia uma mancha vermelha sobre as ataduras brancas que envolviam seu peito, onde seus movimentos tinham aberto a ferida.
— Eu...
— O quê?
— Eu não estou acostumado com você me amando — ele falou.
Havia uma brandura em suas palavras que ela não associou com Luke, e apenas fitou-o por um momento antes de dizer:
— Luke. Deite-se, por favor.
Com uma espécie de submissão, ele se inclinou para trás contra os travesseiros. Estava respirando com dificuldade. Jocelyn se lançou para o criado-mudo, serviu um copo de água e, retornando, empurrou na mão dele.
— Beba. Por favor.
Luke pegou o copo, seus olhos azuis seguindo-a enquanto ela se sentou na cadeira ao lado da cama, onde esteve por tantas horas que estava surpresa por ela e a cadeira não terem se tornado uma só.
— Você sabe no que eu estava pensando? — ela perguntou. — Pouco antes de você acordar?
Ele tomou um gole de água.
— Você parecia muito distante.
— Eu estava pensando no dia em que casei com Valentim.
Luke baixou o copo.
— O pior dia da minha vida.
— Pior do que o dia em que você foi mordido? — ela perguntou, cruzando as pernas.
— Pior.
— Eu não sabia. Eu não sabia como você se sentia. Eu gostaria de ter sabido. Acho que as coisas teriam sido diferentes.
Ele olhou para ela, incrédulo.
— Como?
— Eu não teria casado com Valentim. Não se eu soubesse.
— Você casaria...
— Eu não casaria — ela interrompeu bruscamente — eu era estúpida demais para perceber como você se sentia, mas também era estúpida demais para perceber comoeu me sentia. Eu sempre te amei. Mesmo que não soubesse disso — ela se inclinou e beijou-o suavemente, não querendo machucá-lo; depois colocou sua bochecha contra a dele — me prometa que você não vai se colocar em perigo. Prometa.
Ela sentiu a mão livre dele em seu cabelo.
— Eu prometo.
Jocelyn se inclinou para trás, parcialmente satisfeita.
— Eu queria poder voltar no tempo. Consertar tudo. Casar com o cara certo.
— Mas então nós não teríamos a Clary — ele a lembrou.
Ela adorava o jeito que ele falava “nós” tão casualmente, como se não houvesse nenhuma dúvida em sua mente de que Clary era sua filha.
— Se você estivesse lá mais vezes enquanto ela estava crescendo... — Jocelyn suspirou — apenas sinto que fiz tudo errado. Eu estava tão focada em protegê-la que acho que a protegi demais. Ela pula de cabeça para o perigo sem pensar. Quando estávamos crescendo, nós víamos nossos amigos morrerem na batalha. Ela nunca viu. E eu não iria querer isso para ela, mas às vezes me preocupo de que ela não acredite que pode morrer.
— Jocelyn — a voz de Luke era suave — você a criou para ser uma boa pessoa. Alguém com valores, que acredite no bem e no mal, e se esforça para ser boa. Como você sempre foi. Não se pode criar uma criança para acreditar no oposto dos pais. Não acho que ela não acredita que pode morrer. Acho que, justamente como você sempre fez, ela acredita que existem coisas pelas quais vale a pena morrer.
***
Clary se rastejou depois de Sebastian através de uma rede de ruas estreitas, mantendo-se nas sombras próximas ao lado dos edifícios. Eles não estavam mais em Praga – o que era óbvio. As estradas eram escuras, o céu era de um azul límpido de manhã bem cedo, e as placas penduradas acima das lojas e armazéns estavam todas em francês. Assim como as placas da rua: RUE DE LA SEINE, RUE JACOB, RUE DE L’ABBAYE.
Enquanto eles se moviam pela cidade, pessoas passavam como fantasmas. Um carro ocasional retumbou por ela, caminhões paravam nos fundos de lojas, fazendo entregas matinais. O ar cheirava a água do rio e lixo. Ela já tinha quase certeza de onde estavam, e depois de uma curva, uma rua os levou a uma avenida larga onde um letreiro surgiu da escuridão enevoada. Setas apontavam em direções diferentes, mostrando o caminho para a Bastilha, Notre Dame e para Quartier Latin.
Paris, Clary pensou, deslizando por trás de um carro estacionado quando Sebastian atravessou a rua. Nós estamos em Paris.
Era irônico. Ela sempre quis ir para Paris com alguém que conhecesse a cidade. Sempre quis caminhar por suas ruas, ver o rio, desenhar os prédios.
Mas nunca tinha imaginado isso. Nunca imaginado rastejar atrás de Sebastian, através do Boulevard Saint Germain, próximo a um poste amarelo brilhante, acima de uma avenida onde os bares estavam fechados, mas as calçadas estavam cheias de garrafas de cerveja e bitucas de cigarro, e por uma rua estreita com casas. Sebastian parou diante de uma, e Clary congelou, grudada contra a parede.
Ela assistiu quando ele levantou a mão e digitou um código numa caixa ao lado da porta, os olhos dela seguindo os movimentos dos dedos dele. Houve um clique; a porta abriu e ele deslizou por ela.
No momento em que a porta se fechou, Clary disparou atrás dele, fazendo uma pausa para introduzir o mesmo código – X235 – e esperando ouvir o suave som que significava que a porta estava destrancada. Quando o som veio, ela não teve certeza se estava mais aliviada ou surpresa. Não devia ser tão fácil assim.
Um momento depois, estava dentro de um pátio. Era quadrado, cercado por todos os lados por uma aparência comum de edifícios. Três escadas eram visíveis através de portas abertas. Sebastian, no entanto, havia desaparecido.
Então não ia ser tão fácil assim.
Ela avançou pelo pátio, consciente de que enquanto fazia isso, estava fora do abrigo das sombras e no aberto, onde podia ser vista. O céu estava clareando a cada momento que passava. O conhecimento de que estava visível arrepiou os pelos de sua nuca, e ela se abaixou para a sombra da primeira escadaria que encontrou.
Era simples, com degraus de madeira levando para cima e para baixo, e um espelho barato na parede onde Clary podia ver seu próprio rosto pálido. Havia um cheiro distinto de lixo podre, e ela se perguntou por um momento se estava perto de onde as latas de lixo eram armazenadas antes de sua mente cansada se ligar e ela perceber: o fedor era da presença de demônios.
Seus músculos cansados começaram a tremer, mas ela apertou as mãos em punhos. Estava dolorosamente consciente de sua falta de armas. Ela respirou fundo o ar fétido e começou a fazer seu caminho até os degraus.
O cheiro ficou mais forte e o ar mais escuro quando fez seu caminho escada a baixo, e desejava ter uma estela e uma runa de visão noturna. Mas não tinha nada a ser feito quanto a isso.
Continuou descendo quando a escadaria curvou-se ao redor de si mesma e de repente estava grata pela falta de luz quando pisou em algo pegajoso. Clary agarrou o corrimão e tentou respirar pela boca. A escuridão era espessa, e ela andava cegamente, seu coração batendo tão alto que tinha certeza de que devia estar anunciando sua presença. As ruas de Paris, o mundo comum, pareciam a eras de distância. Havia apenas a escuridão e ela mesma, descendo e descendo.
E depois a luz brilhava ao longe, um ponto minúsculo, como a ponta de um fósforo explodindo em chamas. Ela aproximou-se do corrimão, quase agachada, enquanto a luz aumentava. Podia ver sua própria mão agora, e o esboço dos degraus abaixo dela. Havia apenas mais alguns. Chegou ao final da escada e olhou ao redor.
Qualquer semelhança com um prédio comum foi embora. Em algum lugar ao longo do caminho, as escadas de madeira tinham se transformado em pedra, e ela estava agora em uma pequena sala com paredes de pedra, iluminada por uma lanterna que emitia uma luz esverdeada doentia. O chão era de pedra lisa e polida, e esculpida com vários símbolos estranhos. Beirou em torno deles enquanto atravessava a sala até a única outra saída, um arco de pedra curvada. No alto estava colocado um crânio humano entre o V de dois enormes machados ornamentais cruzados.
Através da arcada, ela conseguia ouvir vozes. Estavam muito distantes para entender o que diziam, mas eram vozes, contudo. Por esse caminho, elas pareciam dizer. Nos siga.
Clary olhou para o crânio, e seus olhos vazios olharam de volta para ela, ironicamente. Ela se perguntava onde estava – se Paris ainda estava acima dela ou se tinha entrado em outro mundo, do jeito que fez uma vez quando entrou na Cidade dos Ossos. Pensou em Jace, que ela deixou dormindo no que agora parecia ser outra vida.
Estava fazendo isso por ele, lembrou a si mesma. Para tê-lo de volta.
Ela atravessou o arco para o corredor além dele, instintivamente achatando-se contra a parede.
Caminhou silenciosamente, as vozes cada vez mais e mais altas. Estava escuro ali, mas não sem luz. A cada poucos metros, outra tocha esverdeada queimava, exalando um odor carbonizado.
Uma porta abriu-se de repente na parede à sua esquerda, e as vozes ficaram mais altas.
— ... não como o pai dele — alguém disse, as palavras tão ásperas quanto uma lixa — Valentim não entraria em um acordo conosco, afinal. Ele nos tornaria escravos. Esse vai nos dar este mundo.
Muito lentamente, Clary olhou ao redor do beiral.
A sala estava vazia, paredes lisas e sem móveis. Dentro dela havia um grupo de demônios. Eles eram lagartos, com pele verde-amarronzada escura, mas cada um tinha um conjunto de seis tentáculos de polvo que faziam um som seco e deslizante quando eles se moviam. Suas cabeças eram bulbosas, alienígenas, definidas com facetados olhos negros.
Ela engoliu a bile. Se lembrou do Ravener, que tinha sido um dos primeiros demônios que tinha visto. Algo sobre a combinação grotesca de lagarto, insetos e alienígena fez seu estômago revirar. Ela se apertou mais perto da parede, ouvindo com dificuldade.
— Isso é, se você confiar nele.
Era difícil dizer qual deles estava falando. Seus tentáculos se abriam e recuavam enquanto eles se moviam, levantando e abaixando seus corpos bulbosos. Eles não pareciam ter bocas, mas sim pequenos tentáculos aglomerados que vibravam quando eles falavam.
— A Grande Mãe confiava nele. Ele é o filho dela.
Sebastian. É claro que eles estavam conversando sobre Sebastian.
— Ele também é um Nephilim. Eles são nossos grandes inimigos.
— Eles são seus inimigos também. Ele tem o sangue de Lilith.
— Mas aquele que ele chama de companheiro tem o sangue de nossos inimigos. Ele é dos anjos.
A palavra foi cuspida com tanto ódio que Clary sentiu como uma bofetada.
— O filho de Lilith nos assegura que ele o tem nas mãos, e na verdade, ele parece ser obediente.
Houve uma risada seca de inseto.
— Vocês jovens são consumidos demais com preocupação. O Nephilim há muito tempo tem mantido esse mundo longe de nós. Suas riquezas são grandes. Nós vamos bebê-lo, secá-lo e deixá-lo como cinzas. Quanto ao garoto anjo, ele será o último de sua espécie a morrer. Nós vamos queimá-lo em uma pira até que ele seja apenas ossos de ouro.
Raiva aumentou em Clary. Ela respirou fundo – um som baixo, mas um som. O demônio mais próximo a ela ergueu a cabeça. Por um momento, Clary congelou, presa no brilho de seus olhos negros espelhados.
Então ela se virou e saiu correndo. Correu de volta para a porta de entrada, pelas escadas e o caminho até a escuridão. Conseguia ouvir o barulho atrás dela, as criaturas gritando, e então o barulho deslizante se aproximando. Ela lançou um olhar sobre o ombro e percebeu que não ia conseguir. Apesar de sua vantagem inicial, eles estavam quase sobre ela.
Podia ouvir sua própria respiração dura, o ar entrando e saindo quando alcançou o arco, girou e saltou para agarrá-lo com as mãos. Virou-se para frente com toda a sua força, suas botas se dirigindo ao primeiro dos demônios, derrubando-o para trás quando ele guinchou alto. Ainda pendurada, ela pegou um dos machados cruzados abaixo do crânio e puxou.
Estava preso, ele não se moveu.
Ela fechou os olhos, agarrou-o apertado, e com toda a sua força, o puxou.
O machado saiu da parede com um som rasgando, soltando pedrinhas e argamassa. Desequilibrada, Clary caiu e ficou numa posição agachada, o machado estendido a sua frente. Era pesado, mas mal o sentiu. Estava acontecendo de novo, a mesma sensação da loja de lembranças. O retardamento do tempo, o aumento da intensidade dos sentidos. Ela podia sentir cada sussurro do ar contra sua pele, cada desnível do chão sob seus pés. Preparou-se quando o primeiro dos demônios se deslocou através da porta e recuou como uma tarântula, as pernas escavando o ar acima dela. Sob os tentáculos em seu rosto havia um par de longas presas pingando.
O machado em sua mão parecia balançar para frente por vontade própria, afundando profundamente no peito da criatura. Ela imediatamente se lembrou de Jace dizendo-lhe para não ferir o peito, mas para decapitar. Nem todos os demônios tinham corações. Mas, neste caso, ela teve sorte. Havia atingido o coração ou algum outro órgão vital. A criatura se debatia e gritava, o sangue borbulhava em torno da ferida, e depois desapareceu, deixando-a vacilar para trás, sua arma com fluído escorregadio em sua mão. O sangue do demônio era preto e fedorento, como alcatrão.
Quando o próximo se lançou para ela, Clary abaixou, balançando o machado e cortando várias de suas pernas. Uivando, ele caiu de lado como uma cadeira quebrada. O demônio seguinte já pisou sobre seu corpo, tentando chegar até ela. Clary balançou novamente, seu machado se enterrando no rosto da criatura. Fluído borrifou e ela disparou para trás, pressionando-se contra a escada. Se um deles ficasse para trás, ela estava morta.
Enlouquecido, o demônio cujo rosto ela cortou, saltou de novo para ela. Clary girou com seu machado, cortando um de seus tentáculos, mas outro tentáculo se envolveu em torno do seu pulso. Agonia subiu por seu braço. Ela gritou e tentou puxar a mão de volta, mas o aperto do demônio era muito forte. Era como se milhares de agulhas ferventes estivessem esfaqueando sua pele. Ainda gritando, ela forçou o braço esquerdo e bateu com o punho no rosto da criatura, onde seu machado já o tinha cortado. O demônio deu um assobio e diminuiu seu aperto; Clary livrou a mão justamente quando ele recuou...
E, de repente, uma lâmina cintilante surgiu, enterrando-se no crânio do demônio. Enquanto ela olhava, o demônio desaparecia, e Clary viu seu irmão, uma lâmina serafim resplandecente na mão, fluído borrifado em sua camisa branca.
Atrás dele, a sala estava vazia, exceto pelo corpo de um dos demônios ainda se debatendo, mas com o líquido preto escorrendo de seus tocos de pernas decepadas, como o óleo de um carro esmagado.
Sebastian. Ela olhou-o com espanto. Ele tinha acabado de salvar a sua vida?
— Fique longe de mim, Sebastian — ela sibilou.
Ele não pareceu escutá-la.
— Seu braço.
Clary olhou para o seu antebraço direito, ainda pulsando em agonia. Uma grossa faixa de feridas em forma de círculos cercava o seu pulso onde o estúpido demônio havia prendido. As feridas já estavam escuras, transformando-se num doentio preto-azulado.
Ela olhou de volta para seu irmão. Seu cabelo branco parecia uma auréola na escuridão. Ou pode ter sido o fato de que sua visão estava indo embora. Luz estava cintilava em torno da tocha verde na parede também, e em torno da lâmina serafim queimando na mão de Sebastian. Ele estava falando, mas suas palavras estavam desfocadas, pouco nítidas, como se ele estivesse falando debaixo d‘água.
—... veneno mortal — ele estava dizendo — que diabos você estava pensando, Clarissa? — sua voz se desvaneceu, e de volta novamente. Ela lutou para se concentrar —... para lutar contra seis demônios Dahak com um machado ornamental...
— Veneno — ela repetiu, e por um momento o rosto dele ficou claro mais uma vez, as linhas de tensão ao redor de sua boca e os olhos acentuados e surpreendentes — então acho que você não salvou a minha vida, afinal, não é?
Sua mão se contraiu e o machado escorregou, fazendo barulho no chão. Ela sentiu seu suéter se agarrar à parede áspera quando começou a deslizar para baixo, querendo nada mais do que deitar no chão. Mas Sebastian não iria deixá-la descansar. Seus braços estavam sob os dela, levantando-a, e depois ele estava carregando-a, seu braço bom pendurado no pescoço dele. Ela queria lutar para longe dele, mas sua energia a abandonara. Sentiu uma dor aguda no lado de dentro do cotovelo, uma queimadura – o toque de uma estela. Dormência se espalhou por suas veias. A última coisa que viu antes de fechar os olhos foi o crânio no arco. Clary podia jurar que seus olhos vazios estavam cheios de risos.
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