Capítulo 14 - Na Floresta Escura
— Bem, e que tal isso — Jace disse, ainda sem olhar para Clary.
Ele não tinha realmente olhado para ela desde que ela e Simon tinham chegado aos degraus da frente da casa que os Lightwood estavam morando agora. Ao invés disso ele estava inclinado em uma das janelas altas na sala de estar, olhando lá fora, em direção ao céu escurecendo rapidamente.
— Um cara assiste ao funeral de seu irmão de nove anos e perde toda a diversão.
— Jace — Alec falou, em uma voz um tanto cansada — não.
Alec estava desmoronado em uma das cadeiras gastas e estofadas demais que eram as únicas coisas para se sentar na sala. A casa tinha a sensação de um lugar pertencente a estranhos: era decorada em tecidos florais estampados, tons pastéis e babados, e tudo nela era ligeiramente degastado ou esfarrapado. Havia uma tigela de vidro cheia de chocolates no fim da pequena mesa próxima a Alec; Clary, faminta, tinha comido um pouco e os achou esfarelados e secos. Ela se perguntou que tipo de pessoas tinham vivido aqui. O tipo que fugia quando as coisas ficavam difíceis, ela pensou azedamente; eles mereciam ter suas casas tomadas.
— Não o quê? — Jace perguntou.
Estava escuro o suficiente do lado de fora agora para que Clary pudesse ver seu rosto refletido no vidro da janela. Seus olhos pareciam negros. Ele estava usando roupas de luto de Caçador de Sombras – eles não usavam a cor dos equipamentos e combate. A cor da morte era branco, e a jaqueta branca que Jace usava tinha runas escarlates bordadas em torno da gola e dos punhos. Diferente da runas de batalha, que eram todas sobre agressão e proteção, estas falavam uma língua suave de cura e dor. Haviam faixas de metal martelado em torno de seus pulsos também, com runas iguais sobre elas. Alec estava vestido do mesmo modo, todo em branco com as mesmas runas vermelho-ouro traçando sobre o material. Ela fazia seu cabelo parecer mais preto.
Jace, Clary pensou, por outro lado, todo em branco, parecia como um anjo. Embora um do tipo vingador.
— Você não está bravo com Clary. Ou Simon — Alec explicou — pelo menos eu não acho que você esteja bravo com Simon — ele adicionou, com uma fraca, careta preocupada.
Clary meio que esperava Jace rebater com uma irritada resposta, mas tudo o que ele disse foi:
— Clary sabe que eu não estou com raiva dela.
Simon, reclinando na parte de trás do sofá, revirou seus olhos. Porém só disse:
— O que eu não entendi é como Valentim conseguiu matar o Inquisidor. Pensei que projeções não pudessem afetar na realidade.
— Elas não podem ser capazes — Alec respondeu — são apenas ilusões, Tanto o ar colorido quanto a fala.
— Bem, não neste caso. Ele alcançou dentro do Inquisidor e torceu... — Clary estremeceu — houve bastante sangue.
— Como um bônus especial para você — Jace disse para Simon.
Simon ignorou isso.
— Teve alguma vez um Inquisidor que não morreu uma morte horrível? — ele se perguntou em voz alta. — É como ser o baterista do Spial Tap.
Alec esfregou uma mão no rosto.
— Eu não acredito que meus pais não sabem sobre isso ainda. Não posso dizer que estou interessado em contar a eles.
— Onde estão os seus pais? — Clary perguntou. — Pensei que eles estivessem lá em cima.
Alec balançou a cabeça.
— Eles ainda estão no cemitério. No túmulo de Max. Nos mandaram de volta. Eles queriam ficar lá sozinhos por um tempo.
— E Isabelle? — Simon perguntou. — Onde ela está?
O humor, tal como estava, deixou a expressão de Jace.
— Ela não vai sair do quarto. Acha que o que aconteceu a Max foi sua culpa. Ela nem mesmo foi para o funeral.
— Você tentou falar com ela?
— Não — Jace respondeu — ao invés disso nós estivemos esmurrando repetidamente a sua cara. Por que, você acha que isso não funcionaria?
— Só pensei em perguntar — o tom de Simon era leve.
— Nós iremos dizer a ela este negócio sobre Sebastian não ser realmente Sebastian — Alec falou — poderia fazê-la se sentir melhor. Ela acha que deveria ter sido capaz de dizer que havia algo errado sobre Sebastian, mas se ele era um espião... — Alec deu de ombros — ninguém notou nada de errado. Nem mesmo os Penhallow.
— Eu achava que ele era um retardado — Jace apontou.
— Sim, mas isso é só porque... — Ales afundou mais profundamente em sua cadeira. Ele parecia exausto, sua pele uma pálida cor cinza contra o completo branco de suas roupas — isso dificilmente importa. Logo que ela descubra quais as ameaças de Valentim, nada mais vai animá-la.
— Mas ele faria realmente isso? — Clary perguntou. — Enviar um exército de demônios contra os Nephilim – quero dizer, ele ainda é um Caçador de Sombras, não é? Ele não poderia destruir seu próprio povo.
— Ele não se importa o suficiente sobre seus filhos para não destruí-los — Jace respondeu, encontrando os olhos dela através da sala. Seus olhares se prenderam — o que faz você pensar que ele se importa com seu povo?
Alec olhou de um para o outro, e Clary podia dizer por sua expressão que Jace não tinha falado com ele sobre Ihuriel ainda. Ele pareceu confuso, e muito triste.
— Jace...
— Isso explica uma coisa — Jace continuou sem olhar para Alec — Magnus estava tentando ver se podia utilizar uma runa de rastreamento em uma das coisas que Sebastian tinha deixado em seu quarto, para ver se podia localizá-lo desse modo. Ele disse que não estava conseguindo uma leitura de nada que nós demos a ele. Só... vazio.
— O que isso significa?
— Eram as coisas de Sebastian Verlac. O falso Sebastian provavelmente as pegou onde quer que ele o tenha interceptado. E Magnus não está conseguindo nada delas porque o verdadeiro Sebastian...
— Está provavelmente morto — Alec terminou — e o Sebastian que nós conhecemos é muito esperto para deixar alguma coisa para trás que pudesse ser usada para rastreá-lo. Tem que ser um objeto que está de alguma forma, muito conectado àquela pessoa. Uma relíquia de família, uma estela, uma escova com algum cabelo nela, algo como isso.
— O que é muito ruim — Jace continuou — por que se nós pudéssemos segui-lo, ele teria provavelmente nos levado direto a Valentim. Estou certo de que ele foi correndo direto de volta para seu mestre com um relatório completo. Provavelmente contar a ele tudo sobre a teoria maluca do Lago-Espelho de Hodge.
— Pode não ter sido louca — Alec apontou — eles tem guardas colocados nos caminhos que vão para o lago, e colocaram barreiras que vão avisá-los se alguém passar por lá.
— Fantástico. Eu tenho certeza que todos nós nos sentiremos muito mais seguros agora — Jace se inclinou para trás, contra a parede.
— O que eu não entendo — Simon disse — é porque Sebastian ficou por aqui. Depois de tudo o que ele fez a Izzy e Max, ele ia ser apanhado, não havia mais o que fingir. Quero dizer, mesmo que ele pensou ter matado Izzy ao invés de apenas tê-la golpeado, como ele iria explicar que os dois estavam mortos e ele ainda estava bem? Não, ele fracassou. Então por que passear por aí através da batalha? Por que ir à Garde me buscar? Eu estou realmente certo de que ele realmente não se importa se eu estava vivo ou morto.
— Agora você está sendo muito duro com ele — Jace observou — tenho certeza de que ele preferiria você morto.
— Na verdade — Clary falou — acho que ele ficou por minha causa.
O olhar de Jace chicoteou para os dela com um flash de ouro.
— Por sua causa? Na expectativa de outro encontro quente, é?
Clary se sentiu corar.
— Não. E nosso encontro não foi quente. Na verdade, nem mesmo foi um encontro. De qualquer maneira, esse não é o ponto. Quando ele foi para o salão, ele ficou tentando me levar para fora para que pudéssemos conversar. Ele queria algo de mim. Eu só não sei o que.
— Ou talvez ele só queria você — Jace disse. Olhando a expressão de Clary, ele adicionou: — não desse jeito. Quero dizer que talvez ele quisesse levar você para Valentim.
— Valentim não se importa comigo — Clary disse — ele sempre só se importou com você.
Algo piscou nas profundidades dos olhos de Jace.
— É disso que você chama? — Sua expressão era assustadoramente gélida. — Depois de tudo o que aconteceu no barco, ele está interessado em você. O que significa que você precisa ter cuidado. Muito cuidado. Na verdade, não faria mal algum se você passasse os próximos dias trancada. Você poderia se trancar no seu quarto como Isabelle.
— Eu não vou fazer isso.
— É claro que não, porque você vive para me torturar, não é?
— Nem tudo, Jace, é sobre você — Clary disse furiosamente.
— Possivelmente, mas você tem que admitir que a maioria das coisas é.
Clary resistiu ao desejo de gritar.
Simon limpou sua garganta.
— Falando em Isabelle... pensei que eu poderia mencionar isso, antes da discussão realmente terminar – acho que talvez eu devesse falar com ela.
— Você? — Alec perguntou, e então, parecendo ligeiramente envergonhado por seu próprio embaraço, adicionou rapidamente: — é só que... ela não saiu do seu quarto por sua própria família. Por que ela sairia por você?
— Talvez por que eu não sou da família — Simon apontou.
Ele estava de pé com as mãos nos bolsos, seus ombros para trás. Mais cedo, quando ela tinha sentado perto dele, tinha visto que havia ainda uma fina linha branca circulando seu pescoço onde Valentim tinha cortado sua garganta, e cicatrizes em seus pulsos onde tinham sido cortados também. Seu encontro com o mundo dos Caçadores de Sombras tinha mudado Simon, e não só a superfície dele, ou mesmo seu sangue; a mudança veio mais profunda que isso.
Ele estava ereto, com sua cabeça erguida, e qualquer coisa que Jace ou Alec jogassem nele e não parecia se importar. O Simon que teria se assustado com eles, ou ficado desconfortável por eles, tinha desaparecido.
Clary sentiu uma súbita dor em seu coração, e notou com uma sacudida o que era. Ela estava perdendo ele – perdendo Simon. Simon como ele tinha sido.
— Acho que vou fazer uma tentativa de fazer com que Isabelle fale comigo — Simon disse — não pode doer.
— Mas está quase escuro — Clary observou — prometemos a Luke e Amatis que estaríamos de volta antes do sol se pôr.
— Eu te levo de volta — Jace disse — quanto a Simon, ele pode se virar em seu próprio caminho de volta no escuro... não pode, Simon?
— É claro que ele pode — Alec disse indignadamente, como se estivesse ansioso por compensar seu desdém anterior por Simon — ele é um vampiro... — ele adicionou — e só agora percebi que você provavelmente estava brincando. Deixa pra lá.
Simon sorriu. Clary abriu sua boca para protestar de novo – e a fechou. Parcialmente por que ela estava, sabia, não sendo razoável. E parcialmente por que havia um olhar no rosto de Jace enquanto ele olhava além dela, para Simon, um olhar silencioso que a assustou: ele era divertido, Clary pensou, misturado com gratidão e talvez até mesmo... o mais surpreendente de tudo – um pouco de respeito.
Foi uma caminhada curta entre a nova casa dos Lightwood e a de Amatis; Clary desejou que fosse mais longa. Ela não podia afastar a sensação de que cada momento que ela passava com Jace era algo precioso e limitado, que eles estavam próximos de algum invisível prazo final que os separaria para sempre.
Ela olhou de lado para ele. Estava olhando direto a frente, quase como se ela não estivesse lá. A linha de seu perfil era penetrante na nítida luz da pedra enfeitiçada que iluminava as ruas. Seu cabelo enrolado contra a bochecha não escondia o suficiente a cicatriz branca sobre a têmpora onde havia tido uma marca. Ela podia ver a corrente brilhando em sua garganta, onde o anel dos Morgenstern se pendurava. Sua mão esquerda estava nua; suas juntas pareciam feridas. Então ele realmente estava se curando como um mundano, como Alec tinha pedido para.
Ela estremeceu. Jace olhou para ela.
— Você está com frio?
— Eu só estava pensando — ela respondeu — estou surpresa que Valentim foi atrás do Inquisidor ao invés de Luke. O Inquisidor é um Caçador de Sombras, e Luke... Luke é um Ser do Submundo. E tem mais, Valentim o odeia.
— Mas de certo modo, o respeita, mesmo que ele seja um Ser do Submundo — Jace disse, e Clary pensou no olhar que Jace deu a Simon mais cedo, e então tentou não pensar nisso.
Ela odiava pensar em Jace e Valentim como sendo de algum modo iguais, mesmo na coisa mais trivial como um olhar.
— Luke está tentando conseguir que a Clave mude, pense de um novo modo. Isso é exatamente o que Valentim queria, mesmo que seus objetivos não sejam – bem, os mesmos. Luke é um iconoclasta. Ele quer mudança. Para Valentim, o Inquisidor representava a antiga e ultraconservadora Clave que ele odeia tanto.
— E eles foram amigos uma vez — Clary apontou — Luke e Valentim.
— As marcas do que foram uma vez — Jace disse, e Clary podia dizer que ele estava citando algo pelo tom meio escarnecedor em sua voz — infelizmente, você nunca realmente odeia qualquer um tanto quanto alguém que você já se importou uma vez. Eu imagino que Valentim tem algo especial planejado para Luke, no percurso, depois que ele assumir.
— Mas ele não vai assumir — Clary disse, e quando Jace nada disse, sua voz aumentou — ele não vai vencer, ele não pode. Ele não pode realmente querer a guerra, não contra Caçadores de Sombras e Seres do Submundo...
— O que te faz pensar que os Caçadores de Sombras irão lutar com os Seres do Submundo? — Jace perguntou, e ele ainda não estava olhando para ela.
Eles estavam andando ao longo da rua do canal, e ele estava olhando lá fora para a água, seu queixo apertado.
— Só por que Luke disse? Luke é um idealista.
— E por que isso é uma coisa ruim?
— Não é. É só que eu não sou — Jace disse, e Clary sentiu uma pontada de frieza em seu coração pelo vazio em sua voz.
Desespero, raiva, ódio. Estas eram as qualidades de um demônio. Ele está agindo do modo como pensa que deve agir.
Eles tinham chegado à casa de Amatis. Clary parou aos pés dos degraus, virando-se para encará-lo.
— Talvez. Mas você não é como ele, também.
Ele saltou um pouco com isso, ou talvez fosse apenas a firmeza em seu tom. Jace virou sua cabeça para olhar para ela pelo o que pareceu como a primeira vez desde que eles tinham deixado os Lightwood.
— Clary... — ele começou, e se interrompeu, com uma tomada de fôlego — tem sangue em sua manga. Você está machucada?
Ele se moveu em direção a ela, pegando seu pulso. Clary olhou abaixo e viu, para sua surpresa, que ele estava certo – havia uma irregular mancha escarlate na manga direita de seu casaco. O que era estranho era que ainda estava vermelho brilhante. Sangue seco não deveria ser uma cor mais escura? Ela fechou a cara.
— Esse não é meu sangue.
Ele relaxou ligeiramente, seu aperto em seu pulso se soltando.
— É do Inquisidor?
Ela agitou sua cabeça.
— Na verdade acho que é de Sebastian.
— Sangue de Sebastian?
— Sim... quando ele veio para o salão na outra noite, lembra, seu rosto estava sangrando. Eu acho que Isabelle deve ter golpeado ele, mas de qualquer modo... eu toquei seu rosto e consegui este sangue em mim — ela olhou mais de perto — pensei que Amatis tivesse lavado o casaco, mas acho que ela não lavou.
Clary esperou que ele a largasse, mas ao invés disso ele segurou seu pulso por um longo momento, examinando o sangue, antes de retornar seu braço para ela, aparentemente satisfeito.
— Obrigado.
Ela olhou para ele por um momento antes de balançar a cabeça.
— Você não vai me dizer o que é, não é?
— Sem chance.
Ela jogou seus braços em exasperação.
— Eu vou entrar. Te vejo mais tarde.
Ela se virou e se guiou pelos degraus da porta da frente de Amatis.
Não houve nenhum modo de ela ter sabido que no momento em que ela virou de costas, o sorriso desapareceu do rosto de Jace, ou que ele ficou por um longo tempo na escuridão uma vez que a porta se fechou atrás dela, cuidando dela, virando um pequeno pedaço de fio, entre seus dedos.
***
— Isabelle — Simon chamou.
Tinha tomado dele algumas tentativas para encontrar a porta, mas o grito de “Vai embora!” que tinha emanado de trás de uma o convenceu que ele tinha feito a escolha certa.
— Isabelle, me deixe entrar.
Houve um baque abafado e a porta reverberou ligeiramente, como se Isabelle tivesse jogado alguma coisa nela. Possivelmente um sapato.
— Eu não quero falar com você e Clary. Eu não quero falar com ninguém. Me deixe sozinha, Simon.
— Clary não está aqui. E eu não vou embora até que você fale comigo.
— Alec! — Isabelle gritou. — Jace! Façam ele ir embora!
Simon esperou. Não houve som vindo debaixo. Ou Alec tinha saído ou ele estava fingindo que tinha.
— Eles não estão aqui, Isabelle. Só eu.
Houve um silêncio. Finalmente Isabelle falou de novo. Desta vez sua estava voz mais de perto, como se ela estivesse de pé apenas do outro lado da porta.
— Você está sozinho?
— Estou sozinho — Simon confirmou.
A porta rangeu aberta. Isabelle estava lá em uma camisola preta, seu longo cabelo solto e emaranhado sobre seus ombros. Simon nunca a tinha visto daquele jeito: pés descalços, cabelo despenteado, sem maquiagem.
— Você pode entrar.
Ele passou para dentro do quarto. Na luz que vinha da porta, ele podia ver, como sua mãe teria dito, que parecia que um tornado tivesse atingido o cômodo. Roupas estavam espalhadas no chão em pilhas, uma mala aberta no chão como se tivesse explodido. O brilhante chicote dourado estava pendurado de uma lado da cabeceira da cama, um sutiã branco do outro. Simon desviou seus olhos. As cortinas estavam fechadas, as luzes apagadas.
Isabelle caiu pesadamente na ponta da cama e olhou para ele com um amargo divertimento.
— Uma vampiro corando. Quem teria imaginado — ela levantou seu queixo — então, você entrou. O que quer?
Apesar do olhar furioso dela, Simon pensou que ela parecia mais jovem do que o habitual, seus olhos grandes e pretos em seu chateado rosto branco. Ele podia ver as cicatrizes brancas que traçavam sua pele clara, por todo os seus braços nus, suas costas e clavícula, mesmo as pernas.
Se Clary continuar uma Caçadora de Sombras, ele pensou, um dia ela parecerá assim, com cicatrizes por toda parte. O pensamento não o perturbou tal qual uma vez poderia ter feito. Havia algo sobre o modo que Isabelle usava suas cicatrizes, como se ela fosse orgulhosa delas.
Ela tinha alguma coisa em suas mãos, algo que ela ficava virando entre os dedos. Era algo pequeno que cintilava fracamente na meia luz. Ele pensou por um momento que poderia ser uma joia.
— O que aconteceu a Max — Simon disse — não foi culpa sua.
Ela não olhou para ele. Estava olhando para o objeto abaixo, em suas mãos.
— Você sabe o que é isso? — ela perguntou, e segurou-o acima.
Parecia ser um pequeno soldado de brinquedo, esculpido em madeira. Um Caçador de Sombras de brinquedo, Simon percebeu, completo com vestimenta pintada de preto. O cintilar prateado que ele tinha notado era a pintura sobre a pequena espada que ele segurava; estava gasta.
— Isso era de Jace — ela contou, sem esperar ele responder — era o único brinquedo que ele tinha quando veio de Idris. Eu não sei, talvez fosse uma vez parte de um grande conjunto. Acho que ele o fez, mas nunca disse muito sobre isso. Ele costumava levá-lo para todo lugar quando era pequeno, sempre em um bolso ou o que quer que fosse. Então um dia eu percebi Max carregando o boneco por aí. Jace deveria ter cerca de treze então. Ele apenas o deu para Max, acho que foi quando ele ficou muito velho para isso. De qualquer forma, estava na mão de Max quando o acharam. Foi como se ele o agarrasse para se defender quando Sebastian... quando ele...
Ela se interrompeu. O esforço que ela estava fazendo para não chorar era visível; sua boca estava apertada em uma careta, pronta para se retorcer em uma careta.
— Eu deveria estar lá para protegê-lo. Eu deveria estar lá para ele se agarrar em mim, não em algum estúpido brinquedinho de madeira.
Ela lançou o boneco sobre a cama, seus olhos brilhando.
— Você estava inconsciente — Simon protestou — você quase morreu, Izzy. Não havia nada que você podia ter feito.
Isabelle balançou a cabeça, seu cabelo bagunçado pulando em seus ombros. Seu olhar feroz e selvagem.
— O que você sabe sobre isso? — Ela exigiu. — Você sabia que Max veio até nós na noite em que morreu e nos disse que tinha visto alguém escalar as torres demoníacas, e eu disse que ele estava sonhando e o mandei embora? E ele estava certo. Aposto que era o bastardo do Sebastian, subindo a torre e então ele pôde colocar as barreiras abaixo. E Sebastian o matou, então Max não poderia contar a ninguém o que tinha visto. Se eu apenas tivesse escutado, só tirado um segundo para escutar... isso não teria acontecido.
— Não havia nenhum jeito que você pudesse saber. E sobre Sebastian... ele não era realmente o primo dos Penhallow. Ele fez todos de tolos.
Isabelle não parecia surpresa.
— Eu sei. Eu ouvi você falando para Alec e Jace. Eu estava escutando do topo das escadas.
— Você estava escutando às escondidas?
Ela deu de ombros.
— Até a parte onde você disse que ia conversar comigo. Então eu voltei para cá. Eu não estava observando você — ela olhou para ele de lado — eu tenho que admitir, no entanto: você é persistente.
— Olha, Isabelle.
Simon deu um passo a frente. Ele estava estranhamente e subitamente consciente do fato de que ela não estava muito vestida, então ele evitou colocar uma mão no ombro dela ou fazer alguma coisa evidentemente consoladora.
— Quando meu pai morreu, eu sabia que não era minha culpa, mas eu ainda ficava pensando mais e mais sobre todas as coisas que eu deveria ter feito, deveria ter dito, antes de ele morrer.
— Yeah, bem, isso é minha culpa — Isabelle apontou — e o que eu deveria ter feito é ter escutado. E o que eu ainda posso fazer é perseguir o bastardo que fez isso e matá-lo.
— Eu não estou certo de que isso vai ajudar...
— Como você sabe? — Isabelle exigiu. — Você encontrou a pessoa responsável pela morte de seu pai e o matou?
— Meu pai teve um ataque cardíaco. Então, não.
— Então você não sabe do que está falando, sabe? — Isabelle levantou seu queixo e olhou para ele honestamente. — Venha aqui.
— O quê?
Ela acenou imperiosamente com seu dedo indicador.
— Venha aqui, Simon.
Relutantemente, ele foi na direção dela. Estava a meio metro de distância quando ela o agarrou pela frente da camisa, puxando-o para ela. Seus rostos estavam a centímetros; ele podia ver como a pele abaixo de seus olhos brilhava com as marcas das lágrimas recentes.
— Você sabe o que eu realmente preciso agora mesmo? — ela perguntou, pronunciando cada palavra claramente.
— Hum. Não?
— Ser distraída — ela respondeu.
E com uma meia virada, puxou o corpo dele para a cama ao lado dela.
Ele aterrissou suas costas no meio de uma emaranhada pilha de roupas.
— Isabelle — Simon protestou fracamente — você realmente acha que isso vai fazer você se sentir melhor?
— Acredite — Isabelle respondeu, colocando uma mão sobre seu peito, acima de seu coração parado — eu já me sinto melhor.
***
Clary descansava acordada na cama, olhando o trecho de luar enquanto ele fazia seu caminho através do teto. Seus nervos ainda estavam muito estridentes pelos eventos do dia para ela dormir, e não ajudava que Simon não tivesse chegado antes do jantar... ou depois dele. Eventualmente, ela tinha manifestado sua preocupação para Luke, que tinha atirado um casaco e seguido para os Lightwood. Ele tinha retornado parecendo divertido.
— Simon está bem, Clary. Vá para cama.
E então ele saiu de novo com Amatis, para outro de seus intermináveis encontros no Salão dos Acordos. Ela se perguntou se alguém já tinha limpado o sangue do Inquisidor.
Com nada para fazer, ela foi para a cama, mas o sono tinha permanecido teimosamente fora do alcance. Clary se mantinha vendo Valentim em sua cabeça, se aproximando do Inquisidor e rasgando seu coração. Do modo como ele tinha se virado para ela e dito, se você soubesse, manteria sua boca fechada. Pelo amor de seu irmão, senão pelo seu próprio. Acima de tudo, os segredos que ela tinha aprendido de Ithuriel esmagava seu peito.
Sob todas essas ansiedades estava o medo, constante com uma batida de coração, de que sua mãe iria morrer. Onde Magnus estava?
Houve um som sussurrante pelas cortinas, e um súbito clarear de luar derramado no quarto.
Clary sentou ereta, pegando a lâmina serafim que ela mantinha ao lado de sua cabeceira.
— Está tudo bem — uma mão veio abaixo sobre a dela – uma mão delgada com cicatrizes, familiar — sou eu.
Clary soltou sua respiração acentuadamente, e puxou tirou sua mão de volta.
— Jace. O que você está fazendo aqui. O que há de errado?
Por um momento, ele não respondeu, e ela virou o olhar para ele, puxando as roupas de cama ao seu redor. Ela se sentiu corar, perfeitamente consciente de que estava usando só de pijama de flanela – e então ela viu sua expressão, e seu embaraço enfraqueceu.
— Eu não sei — ele disse da maneira confusa de alguém caminhando de um sonho — eu não ia vir aqui. Estava vagando por aí a noite toda – não conseguia dormir – e me encontrei andando para cá. Para você.
Ela se sentou ereta, deixando as roupas de cama caírem ao redor de seus quadris.
— Por que você não pôde dormir? Alguma coisa aconteceu? — ela perguntou, e imediatamente se sentiu estúpida. O que não tinha acontecido?
Jace, no entanto, mal pareceu ouvir a pergunta.
— Eu tinha que ver você — ele disse, mais para si mesmo — sei que eu não deveria. Mas eu tinha.
— Bem, sente-se então — ela convidou, puxando suas pernas para dar espaço para ele se sentar na beira da cama — porque você está me assustando. Você tem certeza que nada aconteceu?
— Eu não disse que nada aconteceu.
Ele sentou-se na cama, fitando-a. Ele estava perto o suficiente para que ela tivesse só que se inclinar a frente e beijá-lo...
Seu peito apertou.
— São más notícias? Está tudo – estão todos...
— Não são ruins. E não são novidades. É o oposto de novidades. É algo que eu sempre soube, e você... você provavelmente sabe disso também. Deus sabe que eu não escondo isso tudo muito bem — seus olhos procuraram o seu rosto, lentamente, como se ele quisesse memorizá-lo — o que aconteceu — ele disse, e hesitou — é que eu percebi uma coisa.
— Jace — ela sussurrou de repente, e por nenhuma razão que ela pudesse identificar, ela estava assustada pelo o que ele estava prestes a dizer — Jace, você não tem...
— Eu estava tentando ir... para algum lugar. Mas eu ficava voltando para cá. Eu não podia parar de andar, não podia parar de pensar. Sobre a primeira vez que eu te vi, e como depois daquilo eu não podia te esquecer. Eu queria, mas não podia parar a mim mesmo. Forcei Hodge a deixar ser eu quem iria encontrar você e te levar de volta ao Instituto. E mesmo de volta, naquela estúpida cafeteria, quando eu vi você sentada no sofá com Simon, mesmo então aquilo pareceu errado para mim... eu deveria ter sido o que estava sentado com você. Quem te faria rir daquele jeito. Eu não podia me livrar desse sentimento. Que deveria ter sido eu. E quanto mais eu conhecia você, mais eu sentia isso – que nunca havia sido daquele jeito para mim antes. Eu sempre quis uma garota e então, chegava a conhecê-la e não a queria mais, mas com você o sentimento ficou mais e mais forte, até aquela noite quando você apareceu no Renwick e eu soube.E então eu descobri que a razão para eu me sentir dessa maneira – como se você fosse alguma parte de mim que eu tinha perdido e nunca nem mesmo sabia que eu estava perdendo, até que eu vi você de novo – que a razão era que você era minha irmã, isso pareceu com algum tipo de piada cósmica. Como se Deus estivesse cuspindo em mim. Eu nem mesmo sei por que – por pensar que eu pudesse na verdade ter você, que eu merecesse algo como isso, por ter aquela felicidade. Eu não podia imaginar o que eu tinha feito para estar sendo punido...
— Se você está sendo punido — Clary respondeu — então eu também estou. Porque todas as coisas que você sente, eu sinto também, mas não podemos... nós temos que parar de nos sentir dessa maneira, pois é a nossa única chance.
As mãos de Jace estavam apertadas em seus lados.
— Nossa única chance para quê?
— Para estarmos juntos. Porque de outra forma nós não podemos ficar ao lado um do outro, nem mesmo na mesma sala, e eu não posso suportar isso. Eu prefiro ter você em minha vida como um irmão do que não te ter.
— E suponho que vou ficar sentado enquanto você sai com os garotos, se apaixona por alguém, se casa... — sua voz se apertou — e enquanto isso, eu vou morrer um pouco mais a cada dia, assistindo.
— Não. Você não irá se importar com eles — ela disse, imaginando se ela poderia aguentar a ideia de um Jace que não se importava.
Ela não tinha pensado tão antecipadamente quanto ele, e quando tentou imaginar assisti-lo se apaixonando por alguém, casando com alguém, ela nem mesmo pôde retratar isso, não pôde retratar nada mais que um negro buraco vazio que se esticava a frente dela, para sempre.
— Por favor. Se você não disser nada... se nós fingirmos...
— Não há fingimento — Jace disse com absoluta clareza — eu te amo, e eu sempre vou amar você até eu morrer, e se houver uma vida depois desta, eu irei amar você então.
Ela segurou sua respiração. Ele tinha dito aquilo – as palavras que não iriam voltar atrás. Ela lutou por uma resposta, mas nenhuma veio.
— E eu sei que você acha que eu só quero ficar com você para... para mostrar a mim mesmo que monstro eu sou — ele falou — e talvez eu seja um monstro. Eu não sei a resposta para isso. Mas o que sei é que mesmo que haja sangue de demônio dentro de mim, há sangue humano dentro de mim também; e eu não poderia amar você como eu amo se eu não fosse pelo menos um pouco humano. Por que demônios querem. Mas eles não amam. E eu...
Ele se levantou então, com um tipo de brusquidão violenta, e atravessou o quarto até a janela. Ele parecia perdido, tão perdido quanto tinha estado no grande salão, de pé próximo ao corpo de Max.
— Jace? — Clary chamou, alarmada, e quando ele não respondeu, ela se mexeu em seus pés e foi até ele, pousando sua mão no braço dele.
Ele continuou olhando para a janela; seus reflexos no vidro eram quase transparentes – contornos fantasmagóricos de um garoto alto e de uma garota mais baixa, sua mão apertando ansiosamente a manga dele.
— O que há de errado?
— Eu não deveria ter falado com você desse jeito — ele respondeu, sem olhar para ela — me desculpe. Isso foi provavelmente muito para engolir. Você pareceu tão... chocada.
A tensão sustentava sua voz como um fio vivo.
— Eu estava. Passei os últimos dias imaginando se você me odiava. E então vi você esta noite e eu estava bastante certa que sim.
— Te odiava? — ele repetiu, parecendo perplexo.
Ele se aproximou e então tocou seu rosto, levemente, apenas as pontas de seus dedos contra sua pele.
— Eu te disse que não podia dormir. Amanhã à meia-noite nós estaremos em guerra ou sob as regras de Valentim. Esta pode ser a última noite de nossas vidas, certamente a última normal. A última noite que nós poderemos ir dormir e nos levantar como nós sempre fizemos. E tudo o que eu podia pensar era que eu queria passar ela com você.
Seu coração pulou uma batida.
— Jace...
— Eu não quis dizer isso assim. Eu não vou te tocar, não se você não quiser. Eu sei que é errado – Deus, de todos os tipos de erro – mas eu só quero deitar com você e acordar com você, só uma vez, só uma vez em minha vida — havia desespero em sua voz — é só por esta noite. No grande esquema das coisas, o quanto uma noite pode importar?
Importa como vamos nos sentir de manhã. Penso no quanto pior será ser fingir que nós não significamos nada um para o outro na frente dos outros depois de termos passado a noite juntos, mesmo se tudo o que fizermos seja dormir. É como ter apenas um pouquinho de uma droga... que apenas faz você querer mais.
Mas esse era o motivo de ele dito tudo aquilo, ela percebeu. Porque não era verdade, não para ele; não havia nada que pudesse tornar isso pior, tal como não havia nada que que poderia fazer melhor. O que ele sentia era tão definitivo quanto uma prisão perpétua, e ela podia realmente dizer que era tão diferente para ela? E mesmo que ela esperasse que fosse, mesmo que esperasse poder algum dia ser persuadida pelo tempo, ou razão, ou desgaste gradual, a não sentir daquele mais modo, não importava. Não havia nada que ela tinha desejado em sua vida mais do que queria esta noite com Jace.
— Feche as cortinas, antes de você vir para a cama — ela disse — eu não posso dormir com tanta luz no quarto.
O olhar que varreu o rosto dele era de pura incredulidade. Ele realmente não tinha esperado que ela dissesse sim, Clary percebeu em surpresa, e um momento depois, ele a tinha envolvido com os braços, seu rosto enterrado em seu cabelo sempre bagunçado.
— Clary...
— Venha para cama — ela disse suavemente — está tarde.
Ela se puxou para longe dele e retornou para cama, subindo para ela e puxando as cobertas para sua cintura. De algum modo, olhando para ele daquele jeito, ela quase podia imaginar que as coisas eram diferentes, que fazia muitos anos e eles estavam juntos há bastante tempo, que tinha feito isso uma centena de vezes, que cada noite pertencia a eles, e não apenas aquela.
Clary apoiou seu queixo nas mãos e o observou enquanto ele puxava as cortinas fechadas e então abriu o zíper de sua jaqueta branca e a pendurou sobre as costas de uma cadeira. Ele estava usando uma camiseta cinza clara por baixo, e as marcas que retorciam seus braços nus brilharam sombriamente enquanto ele desafivelava seu cinto de armas e o colocava sobre o chão. Ele desamarrou suas botas e passou por sobre elas enquanto vinha em direção à cama, e se estendeu muito cuidadosamente ao lado de Clary.
Deitando em suas costas, ele virou sua cabeça para olhar para ela. Uma pequena luz filtrava dentro do quarto, passando pela beira da cortina apenas o suficiente para ela ver o contorno do rosto dele e o lampejo brilhante de seus olhos.
— Boa noite, Clary — ele disse.
Suas mãos descansavam de cada lado dele, seus braços esticados. Ele mal parecia estar respirando; não estava certa de que ela mesma estava respirando. Clary deslizou sua própria mão através do lençol, apenas o suficiente para que seus dedos se tocassem – tão levemente que dificilmente sentir que estava tocando alguém, Jace. As terminações nervosas nas pontas de seus dedos espetavam suavemente, como se ela estivesse segurando-os em cima de uma chama baixa. Ela o sentiu ficar tenso ao lado dela e então relaxar. Ele tinha fechado seus olhos, e seus cílios lançavam sombras finas contra a curva de suas bochechas. Sua boca curvou em um sorriso como se ele a sentisse observando-o, e ela se perguntou como ele pareceria de manhã, com seu cabelo bagunçado e olheiras debaixo de seus olhos. Apesar de tudo, o pensamento deu a ela uma sacudida de felicidade.
Ela enlaçou seus dedos através dos dele.
— Boa noite — ela sussurrou.
Com suas mãos juntas como duas crianças em um conto de fadas, Clary caiu no sono ao lado dele no escuro.
Eu teria feito exame de DNA a muito tempo! Kkkk
ResponderExcluirNossa sim. Já é 2007 ai, dava de boas.
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