Capítulo 14 - Quais sonhos podem vir
Jace se jogou inquieto na estreita cama na Cidade do Silêncio. Ele não sabia onde os Irmãos dormiam, e eles não pareciam muito animados a revelar. O único lugar ali que parecia ser para ele dormir era em uma das celas abaixo da Cidade onde normalmente mantinham prisioneiros.
Deixaram a porta aberta para ele, para que assim, Jace não sentisse que estava preso, mas o lugar não podia nem pelo máximo esforço de imaginação ser chamado de agradável.
O ar era denso e grosso. Tirara a camisa e se deitou nas cobertas usando apenas seus jeans, mas ainda estava muito quente. As paredes eram de um cinza maçante. Alguém escrevera as letras JG na pedra logo acima da armação da cama, deixando-o a imaginar o que aquilo significava – e não havia mais nada no quarto a não ser a cama, um espelho rachado que lhe dava o seu próprio reflexo em pedaços torcidos e a pia. Sem mencionar as mais que desagradáveis recordações que o quarto trazia à tona.
Os Irmãos entraram e saíram de sua mente a noite toda, até que Jace se sentiu um trapo torcido. Já que eram tão sigilosos sobre tudo, ele não tinha ideia se haviam feito algum progresso. Não pareciam satisfeitos, mas, por outro lado, nunca pareciam.
O verdadeiro teste, ele sabia, era dormir. O que ele sonharia? Dormir: possivelmente para sonhar. Ele se virou depressa, escondeu o rosto nos braços. Não achava que podia aguentar outro sonho sobre ferir Clary. Achou que podia realmente perder a cabeça, e a ideia o assustou. O prospecto de morrer nunca lhe assustara muito, mas o pensamento de ir à loucura era quase a pior coisa que podia imaginar. Mas dormir era o único jeito de saber. Ele fechou os seus olhos e decidiu dormir.
Ele dormiu, e sonhou.
Estava de volta ao vale – o vale em Idris onde lutara com Sebastian e quase morrera. Era outono, não verão como era da última vez que estivera ali. As folhas explodiam em ouro, rubro, laranja e vermelho. Jace estava de pé na margem do pequeno rio – um riacho, na verdade – que cortava o vale ao meio. À distância, vindo até ele, estava alguém, alguém que ainda ele não conseguia ver claramente, mas as passadas dessa pessoa eram diretas e determinadas.
Ele tinha tanta certeza que era Sebastian que não foi até a figura chegar perto suficiente para ver claramente, que ele percebeu que não podia ser.
Sebastian era alto, mais alto que Jace, mas essa pessoa era pequena – o rosto estava na sombra, mas era uma cabeça ou duas mais baixo que Jace – e magra, com os ombros finos da infância, e pulsos esqueléticos saindo das mangas muito curtas de sua camisa.
Max.
A visão do irmão menor atingiu Jace como um soco, e ele caiu de joelhos na grama verde. A queda não doeu. As sensações eram diminuídas pelo sonho que era.
Max tinha a mesma aparência de sempre. Um garoto de joelhos largos à beira do crescimento e saindo daquele estágio de criancinha. Agora nunca sairia.
— Max — Jace falou — Max, sinto muito.
— Jace.
Max ficou onde estava. Uma brisa veio e bagunçou o cabelo castanho do seu rosto. Seus olhos, atrás dos óculos, estavam sérios.
— Não estou aqui por minha causa. Não estou aqui para te assombrar ou fazer você se sentir culpado.
Claro que não está, disse uma voz na cabeça de Jace. Max sempre te adorou, te venerou, achou que você era maravilhoso.
— Os sonhos que você está tendo — Max falou — são mensagens.
— Os sonhos são influência de um demônio, Max. Os Irmãos do Silêncio disseram...
— Eles estão errados — Max exclamou rapidamente — há só alguns poucos deles agora, e seus poderes estão mais fracos do que costumavam ser. Esses sonhos querem te dizer alguma coisa. Você não os está entendendo direito. Não estão te dizendo para ferir Clary. Estão te alertando do que você já é.
Jace sacudiu a cabeça lentamente.
— Não entendo.
— Os anjos me mandaram para falar com você porque te conheço — Max explicou, na sua clara voz de criança — eu sei como você é com as pessoas que ama, nunca iria feri-las deliberadamente. Mas você não destruiu toda a influência de Valentim dentro de si ainda. A voz dele ainda sussurra para você, e você não acha que a ouve, mas ouve. Os sonhos estão dizendo que até matar essa parte de você, você não pode ficar com Clary.
— Então eu a matarei. Farei o que tenho que fazer. Só me diga como.
Max abriu um alegre sorriso e estendeu a sua mão. Havia ali uma adaga com o cabo prateado – a adaga com o cabo prateado de Stephen Herondale, a da caixa. Jace a reconheceu imediatamente.
— Pegue isso — instruiu Max — e vire-a contra si. A parte de você que está aqui no sonho comigo deve morrer. O que acordará depois será o purificado.
Jace pegou a faca. Max sorriu.
— Bom. Há vários de nós aqui no outro lado que estão preocupados com você. Seu pai está aqui.
— Valentim não...
— Seu pai real. Ele me disse para falar para você usar isso. Ceifará tudo o que está corrompido em sua alma.
Max sorriu como um anjo quando Jace virou a faca para si, a lâmina para dentro. Então, no último momento, Jace hesitou. Era muito próximo do que Valentim fizera com ele, perfurando-o no coração. Ele pegou a lâmina e fez uma longa incisão em seu antebraço direito, do cotovelo até o pulso. Não houve dor. Trocou a faca para a mão direita e fez o mesmo no outro braço. Sangue verteu nos longos cortes dos braços, um vermelho mais claro do que o sangue da cor de rubis na vida real. Ele derramou de sua pele e caiu na grama.
Ouviu Max soltar o fôlego suavemente. O garoto se curvou e tocou o sangue com os dedos da mão direita. Quando os levantou, brilhavam em escarlate. Ele deu um passo em direção a Jace, depois outro. Tão perto assim, Jace podia ver claramente o rosto de Max – sua pele perfeita de criança, a translucidez das pálpebras, os seus olhos – Jace não se lembrava dele tendo olhos tão negros. Max pôs as mãos na pele do peito do Jace, logo acima do coração, e com o sangue começou a traçar um desenho ali, uma runa. Não uma que Jace já tenha visto antes, com cantos sobrepostos e estranhos ângulos à sua forma.
Terminando, Max abaixou a mão e recuou, a cabeça inclinada para o lado, um artista examinando seu mais recente trabalho. Uma súbita onda de agonia passou por Jace. Sentiu como se a sua pele no peito queimasse.
Max o observava parado, sorrindo, flexionando a mão ensanguentada.
— Isso te machuca, Jace Lightwood? — disse, e sua voz não era mais a de Max, mas de outro alguém, alta, áspera e familiar.
— Max... — sussurrou Jace.
— Como você lidou com a dor, agora a dor lidará com você — Max falou, e seu rosto começara a brilhar e mudar — como causou mágoa, sentirá mágoa. Você é meu agora, Jace Lightwood. Você é meu.
A agonia o cegava. Jace caiu para frente, as mãos arranhando o peito, e tombou para a escuridão.
***
Simon se sentou no sofá, seu rosto nas mãos. Sua mente zunia.
— A culpa é minha. Eu poderia ter matado Maureen também quando bebi o sangue dela. Está morta por minha causa.
Jordan se esparramou na poltrona oposta a ele. Ele estava vestindo jeans e uma camiseta verde sobre uma camisa de mangas longas com buracos nos punhos para os polegares, preocupado com o assunto. A medalha dourada do Praetor Lupus em seu pescoço brilhava.
— Qual é. Não tinha como você saber. Ela estava bem quando a coloquei no táxi. Aqueles caras devem ter pegado e matado-a depois.
Simon sentiu a cabeça leve.
— Mas eu a mordi. Ela não vai voltar, não é? Não vai se tornar uma vampira?
— Não. Qual é, você sabe dessas coisas melhor do que eu. Você teria que ter lhe dado um pouco do seu sangue para ela se tornar uma vampira. Se ela tivesse bebido seu sangue e depois morrido, sim, nós estaríamos lá no cemitério em vigilância. Mas ela não bebeu. Quero dizer, acho que você lembraria de ter feito algo assim.
Simon sentiu o gosto de sangue azedo no fundo da garganta.
— Acharam que ela era a minha namorada. Alertaram-me de que a matariam se eu não aparecesse, e quando não fui, eles cortaram a garganta dela. Ela deve ter esperado lá o dia inteiro, imaginando se eu iria. Esperando que eu aparecesse...
Seu estômago revirou e ele se inclinou, respirando com dificuldade, tentando afastar os engasgos.
— Sim — disse Jordan — mas a questão é: quem são eles? — Ele deu um olhar severo a Simon. — Acho que agora é a hora de você ligar para o Instituto. Não amo os Caçadores de Sombras, mas sempre ouvi que os arquivos deles são incrivelmente completos. Talvez eles tenham alguma informação sobre o endereço na nota.
Simon hesitou.
— Qual é, você já fez muita bosta para eles. Deixe-os fazerem algo por você.
Dando de ombros, Simon foi pegar o telefone. Voltando à sala de estar, discou o número de Jace. Isabelle atendeu ao telefone no segundo toque.
— Você de novo?
— Desculpe-me — Simon falou, desajeitado.
Aparentemente, aquele pequeno intervalo no Santuário não suavizara a situação de Simon tanto quanto esperava.
— Eu estava procurando Jace, mas acho que posso falar com você...
— Encantador como sempre — disse Isabelle — achei que Jace estava com você.
— Não — Simon sentiu uma agitação de preocupação — quem te disse isso?
— Clary — respondeu Isabelle — talvez eles só estejam andando juntos por um tempinho — ela não parecia preocupada, o que fazia sentido; a última pessoa que mentiria sobre o paradeiro de Jace se ele estivesse em apuros seria Clary — bom, Jace deixou o telefone no quarto. Se você o vir, lembre-o que tem que estar na festa na Ironworks hoje à noite. Se ele não aparecer, Clary vai matá-lo.
Simon quase esqueceu de que devia estar naquela festa de noite.
— Certo. Olhe, Isabelle. Estou com problemas aqui.
— Despeje. Adoro problemas.
— Eu não sei se você vai gostar muito desse aqui — ele falou duvidoso, e contou a situação para ela rapidamente.
Isabelle ofegou de leve quando ele chegou à parte em que mordera Maureen, e ele sentiu a garganta se contrair.
— Simon — ela sussurrou.
— Eu sei, eu sei — ele disse miseravelmente — você acha que eu não sinto muito? Eu estou muito além disso.
— Se você a tivesse matado, teria quebrado a Lei. Você seria um fora da lei. Eu teria que te matar.
— Mas não matei — ele respondeu, a voz um pouco abalada — não fiz isso. Jordan jura que ela estava bem quando a pôs no táxi. E o jornal diz que a garganta dela foi cortada. Eu não fiz isso. Alguém fez isso para chegar até mim. Eu apenas não sei o porquê.
— Ainda não terminamos com esse assunto — a voz dela era grave — mas primeiro vá pegar a nota que deixaram. Leia para mim.
Simon fez como foi pedido, e foi recompensado por um nítido influxo de respiração por parte de Isabelle.
— Eu achei que esse endereço era familiar. Foi onde Clary me disse para encontrá-la ontem. É uma igreja. O quartel-general de algum tipo de culto de adoradores de demônios.
— O que um culto de adoradores de demônios iria querer comigo? — Simon perguntou, e recebeu um olhar curioso de Jordan, que estava apenas ouvindo metade da conversa.
— Não sei. Você é um Diurno. Tem poderes malucos. É um alvo para lunáticos e magos sombrios. É assim que as coisas são — Simon sentiu que Isabelle poderia ter sido um pouco mais simpática — olhe, você vai para a festa na Ironworks, não vai? Nos encontraremos lá e conversaremos sobre os próximos passos. E vou falar para a minha mãe o que está acontecendo com você. Eles já estão investigando a Igreja de Talto, então podem acrescentar isso ao banco de informações.
— Acho que sim — Simon concordou.
A última coisa que queria fazer era ir à festa.
— E leve Jordan com você — instruiu Isabelle — você pode aproveitar um guarda-costas.
— Não posso fazer isso. Maia vai estar lá.
— Eu vou falar com ela — Isabelle respondeu. Ela parecia muito mais confiante do que Simon se sentiria se estivesse em seu lugar — vejo você lá.
Ela desligou. Simon virou para Jordan, que estava deitado no futon, a cabeça apoiada em uma das almofadas bordados.
— Quanto você ouviu?
— O bastante para saber que vamos para uma festa de noite — Jordan respondeu — ouvi sobre o evento na Ironworks. Eu não estou na matilha de Garroway, então não fui convidado.
— Acho que agora você vem como o meu par.
Simon guardou o celular de volta no bolso.
— Tenho certeza suficiente sobre a minha masculinidade para aceitar — disse Jordan — é melhor arranjarmos algo bom para você vestir, contudo — ele gritou enquanto Simon voltava ao quarto — quero que você fique lindo.
***
Anos antes, quando a cidade de Long Island era um centro de indústrias ao invés de um bairro moderno cheio de galerias de arte e lojas de cafés, a Ironworks era uma fábrica têxtil. Agora era uma enorme estrutura de tijolos cujo interior se transformara num pequeno, porém, bonito espaço. O chão era feito de quadrados sobrepostos de aço escovado; vigas finas de aço arqueavam para cima, enroladas em cabos de minúsculas luzes brancas. Escadarias adornadas de ferro forjado espiralavam para cima até as passarelas decoradas com plantas penduradas. Um cantilever de vidro no ápice abria-se para uma vista do céu noturno. Havia até um terraço do lado de fora, construído sobre o Rio East, com uma visão espetacular da ponte da Rua Cinquenta e Nove, que se erguia à frente, estendendo-se desde o Queens até Manhattan como uma lança de gelo vistosa.
A matilha de Luke trabalhara duro para fazer o lugar parecer elegante. Havia grandes vasos de estanho habilmente localizados contendo flores marfim com longos caules e mesas cobertas com linho branco arranjadas num círculo em volta de um palco erguido, onde um quarteto de lobisomens com instrumentos de cordas fornecia música clássica.
Clary não pôde deixar de querer que Simon estivesse ali; ela estava certa que ele acharia que Quarteto de lobisomens com instrumentos fosse um bom nome para a banda.
Clary vagou de mesa em mesa, arrumando coisas que não precisavam ser arrumadas, remexendo em flores e endireitando objetos de prata que não estavam bagunçados. Apenas alguns dos convidados chegaram até agora, e nenhum deles eram pessoas que ela conhecia. Sua mãe e Luke estavam perto da porta, saudando as pessoas e sorrindo, Luke desconfortável num terno, e Jocelyn radiante num vestido azul sob medida.
Depois do que aconteceu nos dias anteriores, era bom ver a sua mãe alegre, apesar de Clary imaginar o quanto disso era sincero e o quanto era só para os convidados. Havia certa rigidez na boca de Jocelyn que deixava Clary preocupada – ela estava mesmo feliz, ou só sorrindo através da dor?
Não que Clary não soubesse como ela se sentia. Não importava o que estivesse acontecendo, ela não conseguia tirar Jace da cabeça. O que os Irmãos do Silêncio estavam fazendo? Ele estava bem? Eles poderiam consertar o que havia de errado com ele, bloquear a influência demoníaca? Ela passara a noite anterior às claras fitando a escuridão de seu quarto e se preocupando até se sentir literalmente enjoada.
Mais do que qualquer outra coisa, queria que ele estivesse ali. Escolhera o vestido que usava naquela noite – ouro pálido e mais adequado ao seu corpo do que qualquer coisa que geralmente vestia – com a esperança expressa que Jace gostasse; agora ele nem mesmo a veria usá-lo. Aquilo era uma coisa superficial de se preocupar, ela sabia; andaria vestindo um barril pelo resto da vida se isso significasse que Jace iria melhorar. Além disso, ele estava sempre dizendo que ela era linda, e nunca reclamava do fato de que na maioria das horas ela vestia jeans e tênis, mas Clary achou que ele gostaria da roupa.
De pé na frente do espelho à noite, quase se sentiu bonita. Sua mãe dissera que ela mesma teve um desabrochar tardio, e Clary, olhando para o próprio reflexo, imaginara se a mesma coisa podia lhe acontecer. Ela não era mais lisa como uma tábua – aumentara o número do sutiã no ano passado – e, se semicerrasse os olhos, achava que podia ver – sim, aqueles eram definitivamente quadris. Tinha curvas, pequenas, mas você tinha que começar em algum lugar.
Continuava usando joias simples – muito simples.
Ela levantou a sua mão e tocou o anel Morgenstern em sua corrente em volta do pescoço. Havia voltado a usá-lo, pela primeira vez em dias, naquela manhã. Sentia que era um gesto silencioso de confiança em Jace, uma forma de sinalizar sua lealdade, ele sabendo disso ou não. Ela decidiu que usaria aquilo até vê-lo de novo.
— Clarissa Morgenstern? — falou uma voz suave no seu ombro.
Clary virou, surpresa. A voz não era familiar.
De pé ali estava uma garota magra e alta que tinha aproximadamente vinte anos. A pele era pálida, da cor de leite, com várias veias verdes como seiva, e seu cabelo loiro tinha a mesma tintura esverdeada. Os olhos eram azuis sólidos, como mármore, e ela usava um vestido azul curto tão fino que Clary achou que ela devia estar congelando de frio. Uma memória emergiu lentamente das profundezas.
— Kaelie — Clary falou lentamente, reconhecendo a garçonete fada do Taki que servira a ela e aos Lightwood em mais de uma ocasião.
Um bruxulear a fez lembrar que havia uma insinuação sobre Kaelie e Jace já terem ficado, mas o fato parecia tão pequeno frente a tudo que acontecia que ela não se importou com isso.
— Eu não sabia... você conhece Luke?
— Não me confunda com uma convidada nesta ocasião — Kaelie avisou, sua mão pequena traçando um gesto casualmente indiferente no ar — minha senhora me mandou aqui para te encontrar, não para comparecer em festividades — ela olhou curiosa sobre o ombro, seus olhos todos azuis brilhando — apesar de eu não ter percebido que sua mãe estava se casando com um lobisomem.
Clary ergueu as sobrancelhas.
— E...?
Kaelie examinou-a de cima a baixo com algum divertimento.
— Minha lady disse que você era bem dura, apesar de ser pequena em tamanho. Na Corte seria menosprezada por ter uma estatura tão pequena.
— Nós não estamos na Corte — Clary respondeu — e não estamos no Taki, o que significa que se você veio até mim, tem cinco segundos para me dizer o que a Rainha Seelie quer. Eu não gosto muito dela, e não estou no clima para os seus joguinhos.
Kaelie apontou um dedo fino de unha verde para o pescoço de Clary.
— Minha lady disse para te perguntar por que você usa o anel Morgenstern. É em reconhecimento ao seu pai?
A mão de Clary foi ao pescoço.
— É por Jace... porque Jace o deu para mim — ela respondeu antes que pudesse se impedir, e então se xingou em silêncio.
Não era inteligente contar à Rainha Seelie mais do que devia.
— Mas ele não é um Morgenstern — Kaelie apontou — é um Herondale, e eles têm seu próprio anel. Um arranjo de garças, ao invés de estrelas da manhã. E isso não lhe cai melhor, uma alma que plana como um pássaro ao vento, ao invés de cair como Lúcifer?
— Kaelie — Clary rangeu os dentes — o que a Rainha Seelie quer?
A garota fada riu.
— Ora, só te dar isso.
Ela estendeu a mão segurando algo, um minúsculo pingente de prata em formato de sino, com um gancho na ponta para que pudesse ser preso a uma corrente. Quando Kaelie moveu a mão para a frente, o sino tocou, leve e agradável como chuva.
Clary recuou.
— Eu não quero presentes da sua senhora, pois eles vêm junto com mentiras e suposições. Não deverei nada à Rainha.
— Não é um presente — Kaelie explicou impacientemente — é um meio de convocação. A Rainha lhe perdoa por sua teimosia anterior. Ela espera que haja um momento, em breve, em que você irá querer a ajuda dela. Ela está disposta a lhe oferecer isso, caso você escolha pedir. Simplesmente toque esse sino, e um servo da Corte virá e lhe trará até ela.
Clary sacudiu a cabeça.
— Eu não vou tocá-lo.
Kaelie deu de ombros.
— Então não custa nada pegá-lo.
Como se num sonho, Clary viu a própria mão se estender, os dedos pairando sobre o sino.
— Você faria qualquer coisa para salvá-lo, custe o que custar, não é mesmo? — Kaelie falou, a voz baixa e doce como o toque do sino.
Vozes de lembranças soaram na cabeça de Clary. Você já parou para pensar que mentiras há na história que sua mãe lhe contou, que serviram ao seu próprio propósito? Realmente acha que sabe cada um dos segredos de seu passado?
Madame Dorothea disse que Jace se apaixonaria pela pessoa errada.
Ele não está além da salvação. Mas será difícil.
O sino tiniu quando Clary o pegou, fechando a mão com ele dentro.
Kaelie sorriu, os olhos azuis brilhando como contas de vidro.
— Uma sábia escolha.
Clary hesitou. Mas antes que pudesse jogar o sino de volta para a garota fada, ouviu alguém chamar seu nome, e virou para ver sua mãe andando pela multidão até ela. Ela virou de volta rapidamente, mas não se surpreendeu ao ver que Kaelie havia sumido, tendo dissolvido na multidão como névoa queimando na luz do sol da manhã.
— Clary — disse Jocelyn, alcançando-a — eu estava te procurando, e depois Luke apontou para você, parada aí sozinha. Está tudo bem?
Parada aqui sozinha. Clary imaginou que tipo de feitiço Kaelie estivera usando; sua mãe deveria ser capaz de ver a maioria.
— Estou bem, mãe.
— Cadê Simon? Achei que ele viria.
É claro que ela pensaria em Simon primeiro, pensou Clary, e não em Jace. Mesmo que Jace devesse vir, e como namorado da Clary, ele provavelmente tinha que ter chegado cedo.
— Mãe — disse, então parou — você acha que algum dia vai gostar de Jace?
Os olhos verdes de Jocelyn se suavizaram.
— Eu notei que ele não estava aqui, Clary. Só não sabia se você iria querer falar sobre isso.
— Quero dizer — Clary continuou, obstinada — você acha que existe algo que ele possa fazer para fazer você gostar dele?
— Sim — respondeu Jocelyn — ele poderia te fazer feliz.
Ela tocou o rosto da Clary levemente, e Clary apertou a própria mão, sentindo o sino se pressionar contra a pele.
— Ele me faz feliz. Mas não pode controlar tudo no mundo, mãe. Outras coisas acontecem...
Ela atrapalhou-se com as palavras. Como poderia explicar que não era Jace fazendo-a infeliz, mas o que estava acontecendo com ele, sem revelar o que era?
— Você o ama tanto — disse Jocelyn gentilmente — que me assusta. Eu sempre quis te manter protegida.
— E olhe como isso deu certo — Clary começou, depois acalmou a voz.
Não era hora de culpar a mãe ou brigar com ela, não agora. Não com Luke observando-as na entrada, o rosto iluminado de amor e ansiedade.
— Se você pelo menos o conhecesse — ela falou, um pouco sem esperança — mas acho que todas dizem isso sobre o seu namorado.
— Você tem razão — Jocelyn concordou, surpreendendo-a — eu não o conheço, de forma alguma. Eu o vejo, e ele me faz lembrar um pouco da mãe dele, de algum modo. Eu não sei porque, ele não parece com ela, exceto que ela também era bonita, e tinha aquela terrível vulnerabilidade que ele tem...
— Vulnerabilidade? — Clary se espantou.
Nunca achara que alguém a não ser ela mesma pensasse em Jace como vulnerável.
— Ah, sim. Eu queria odiá-la por tirar Stephen de Amatis, mas você simplesmente não podia deixar de querer proteger Céline. Jace tem um pouco disso — ela pareceu perdida em pensamentos — ou talvez, seja apenas que coisas bonitas são tão facilmente quebradas pelo mundo — ela abaixou sua mão — não importa. Tenho minhas memórias para combater, mas são minhas memórias. Jace não devia suportar o peso delas. Entretanto, direi uma coisa a você. Se ele não te amasse como ama – e isso está escrito na cara dele sempre que te olha – eu não o toleraria por nem um minuto. Então mantenha isso em mente quando ficar zangada comigo.
Ela recusou o protesto de Clary de que não estava zangada com um sorriso e um tapinha na bochecha, e rumou de volta a Luke, com um último pedido para Clary entrar na multidão e se misturar. Clary assentiu sem dizer nada, olhando a mãe enquanto esta se afastava, e sentindo o sino queimar no interior de sua mão onde ela o apertava, como a ponta de um fósforo aceso.
***
A área em volta da Ironworks era na maioria armazéns e galerias de arte, o tipo de bairro que esvaziava à noite, então não demorou muito para Jordan e Simon encontrarem um lugar para estacionar. Simon pulou da caminhonete, só para encontrar Jordan já na calçada, olhando para ele criticamente.
Simon não botara na mala roupas legais quando saiu de casa – não tinha nada mais extravagante que uma jaqueta que pertencera ao seu pai – então ele e Jordan passaram a tarde rondando a East Village, procurando um traje descente para usar. Finalmente encontraram um antigo terno Zegna numa loja de consignação chamadaAmor salva o dia, que na maior parte vendia botas brilhantes e lenços Pucci dos anos sessenta. Simon suspeitou que era ali que Magnus comprava a maioria das suas roupas.
— Que foi? — Perguntou agora, conscientemente abaixando as mangas do terno.
Era um pouco pequeno para ele, apesar de Jordan opinar que se não abotoasse, ninguém notaria.
— Estou tão ruim assim?
Jordan deu de ombros.
— Você não vai quebrar espelhos. Estava só imaginando se você estava armado. Quer alguma coisa? Uma adaga, talvez?
Jordan abriu um pouco o terno, e Simon viu algo longo e metálico brilhante no revestimento interno.
— Não me admira que você e Jace se gostem tanto. Os dois são arsenais malucos ambulantes.
Simon sacudiu a cabeça em exaustão e virou para encarar a entrada da Ironworks. Estava do outro lado da rua, um imenso toldo dourado lançando sombra sobre um retângulo na calçada que fora decorada com um tapete vermelho escuro com a imagem dourada de um lobo estampada. Simon não pôde deixar de sentir um pouco de graça.
Encostada em uma das vigas que seguravam o toldo estava Isabelle. Ela estava com o cabelo preso e vestia um longo vestido vermelho, cortado ao lado para mostrar a maior parte de sua perna. Laços dourados corriam por seu braço direito. Pareciam braceletes, mas Simon sabiam que era na verdade seu chicote electrum. Estava coberta de Marcas. Ligavam seus braços, subiam pela coxa, passavam como um colar por seu pescoço e decoravam o peito, a maior parte do que estava visível, graças ao grande decote do vestido. Simon tentou não encarar.
— Oi, Isabelle.
Ao seu lado, Jordan também tentava não olhar.
— Hã — ele falou — oi. Sou o Jordan.
— Nós nos conhecemos — Isabelle disse friamente, ignorando a mão estendida dele — Maia estava tentando cortar sua cara. Por justa causa, também.
Jordan pareceu preocupado.
— Ela está aqui? Está bem?
— Está aqui. Não que seja de sua incumbência sentir ter interesse por ela...
— Sinto um senso de responsabilidade.
— E onde está esse seu senso? Em suas calças, talvez?
Jordan ficou indignado.
Isabelle acenou uma esbelta mão decorada.
— Olhe, o que você fez no passado é passado. Sei que agora é Praetor Lupus, e eu disse para Maia o que isso significa. Ela está querendo aceitar que você está aqui e te ignorar. Mas isso é tudo o que você irá conseguir. Não a chateie, não tente falar com ela, nem olhe para ela, ou vou te dobrar ao meio tantas vezes que você vai parecer um lobisomem origami.
Simon bufou.
— Nem ria — Isabelle apontou para ele — ela também não quer falar com você. Então, apesar do fato de ela estar totalmente linda hoje – e se eu fosse um menino avançaria nela – nenhum de vocês pode falar com ela. Entenderam?
Ambos assentiram, olhando para os sapatos como se fossem alunos recebendo detenção.
Isabelle se desencostou da viga.
— Ótimo. Vamos entrar.
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