Capítulo 16 - Anjos de Nova York
— Chegamos — Maureen falou para Simon.
Ela parou no meio da calçada e olhava para um grande prédio de vidro e pedra que se erguia diante deles. Foi claramente projetado para parecer um dos complexos de apartamentos de luxo construídos no Upper East Side, em Manhattan, antes da Segunda Guerra Mundial, mas os toques da modernidade estragavam tudo – as grandes janelas, o telhado cor de cobre intocado por acetatos de cobre, os estandartes pendurados na frente do edifício, prometendo APARTAMENTOS DE LUXO A PARTIR DE $750,000.
Aparentemente, a compra de um iria lhe garantir o uso de um jardim no terraço, uma academia, uma piscina aquecida e um serviço de portaria vinte e quatro horas, começando em dezembro. No momento, o lugar ainda estava em construção, e as placas de PROIBIDA A ENTRADA: PROPRIEDADE PRIVADA estavam presas nos andaimes que cercavam o prédio.
Simon olhou para Maureen. Ela parecia estar se acostumando rapidamente a ser vampira. Eles haviam corrido pela Ponto Queensboro e passado pela Segunda Avenida para chegar ali, e seus chinelos estavam em farrapos. Mas ela não diminuiu a velocidade, e não pareceu surpresa em não se cansar. Ela olhava para o prédio agora com uma expressão beatificada, seu pequeno rosto brilhando com o que Simon só podia supor que era por expectativa.
— Esse lugar está fechado — ele observou, sabendo que aquilo era óbvio — Maureen...
— Silêncio.
Ela estendeu uma pequena mão e puxou um cartaz preso num canto do andaime. Ele se soltou com um estrondo de placas de gesso e pregos sendo arrancados. Alguns caíram ao chão, aos pés de Simon. Maureen jogou a placa de gesso quadrada para o lado e sorriu para o buraco que fizera.
Um velho que estava passando, andando com um pequeno poodle vestido de xadrez numa correia, parou e observou.
— Você devia arrumar um casaco para sua irmãzinha — ele disse a Simon — magrela como é, ela vai congelar nesse frio.
Antes que Simon pudesse responder, Maureen virou-se para o homem com um sorriso feroz, mostrando todos os dentes, incluindo as presas afiadas.
— Eu não sou irmã dele — sibilou.
O homem empalideceu, pegou o cachorro nos braços e saiu correndo.
Simon sacudiu a cabeça para Maureen.
— Você não precisava fazer isso.
As presas dela perfuraram o lábio inferior, algo que acontecia frequentemente com Simon antes de se acostumar com elas. Finas gotas de sangue desceram pelo seu queixo.
— Não me diga o que fazer — ela rebateu impertinente, mas as presas se recolheram.
Ela limpou o queixo com o dorso da mão, um gesto de criança, lambuzando-se o sangue. Então, ela virou para o buraco que fez.
— Vamos.
Ela passou agachada, e ele seguiu atrás. Atravessaram uma área onde a equipe de construção claramente depositava o lixo. Havia ferramentas quebradas por toda a parte, tijolos arruinados, sacolas plásticas velhas e latas de Coca-Cola sujando o chão. Maureen ergueu a saia e abriu caminho graciosamente pelos destroços, um olhar de desgosto no rosto. Ela pulou por uma estreita vala e subiu uma fileira de degraus rachados de pedra. Simon a seguiu.
Os degraus levavam para um conjunto de portas de vidro abertas. Atrás das portas, podia-se ver um saguão de mármore adornado. Um pesado candelabro apagado pendia do teto, apesar de não haver nenhuma luz para iluminar seus cristais suspensos. Seria muito escuro na sala para um humano enxergar. Havia uma mesa de mármore para o porteiro se sentar, uma espreguiçadeira verde debaixo de um espelho de bordas douradas, e elevadores em cada lado da sala.
Maureen apertou o botão do elevador e, para a surpresa de Simon, este se acendeu.
— Aonde vamos? — Ele perguntou.
Quando o elevador chegou, Maureen entrou, Simon logo atrás. O elevador tinha um interior dourado e vermelho, com espelhos de vidro fosco em cada parede.
— Subir — ela apertou o botão do terraço e riu — até o Céu.
E as portas se fecharam.
***
— Não consigo achar Simon.
Isabelle, encostada num pilar na Ironworks e tentando não se preocupar, olhou para Jordan à sua frente. Ele era mesmo exageradamente alto, pensou ela. Devia ter pelo menos um metro e oitenta. Achou-o bastante atraente na primeira vez que o viu, com o cabelo escuro desarrumado e olhos esverdeados, mas agora que sabia que era o ex de Maia, ela o passou firmemente para o espaço mental que reservava para garotos fora de alcance.
— Bem, eu não o vi. Achei que você devia ser o protetor dele.
— Ele me disse que voltaria logo. Isso foi há quarenta minutos. Pensei que ele fosse ao banheiro.
— Que tipo de guardião é você? Não devia ter ido ao banheiro com ele? — Isabelle exigiu.
Jordan ficou aterrorizado.
— Homens não seguem outros homens para ir ao banheiro.
Isabelle suspirou.
— O pânico homossexual latente irá segui-lo o tempo todo — falou ela — tudo bem. Vamos procurá-lo.
Rodearam a festa, entrando e saindo na multidão de convidados. Alec estava sozinho numa mesa, zangado, brincando com um copo vazio de champanhe.
— Não, eu não o vi — falou em resposta à pergunta deles — apesar de admitir que não estava o procurando.
— Bem, então agora pode procurar conosco — Isabelle comentou — vai lhe dar algo mais a fazer além de se sentir miserável.
Alec deu de ombros e se juntou a eles. Eles decidiram se separar e rondar a festa. Alec subiu para procurar nas passarelas e no segundo piso. Jordan saiu para ver o terraço e a entrada. Isabelle ficou com a área da festa. Ela estava se perguntando se olhar debaixo das mesas seria mesmo ridículo, quando Maia se aproximou por trás dela.
— Está tudo bem? — Ela inquiriu. Ela olhou na direção de Alec, e depois na direção que Jordan havia tomado. — Eu reconheço uma formação de busca quando vejo uma. O que vocês estão procurando? Há algum problema?
Isabelle lhe colocou a par da situação de Simon.
— Eu falei com ele por volta de meia hora atrás.
— Jordan também, mas ele sumiu agora. E já que tem gente tentando matá-lo ultimamente...
Maia abaixou o copo na mesa.
— Vou ajudar vocês a procurar.
— Você não precisa. Sei que não está se sentindo superamigável com Simon agora...
— Isso não significa que eu não queira ajudar se ele estiver em apuros — Maia respondeu, como se Isabelle estivesse sendo ridícula — Jordan não devia estar observando-o?
Isabelle levantou as mãos.
— Sim, mas aparentemente homens não seguem outros homens para ir ao banheiro, ou algo assim. Ele não estava fazendo muito sentido.
— Garotos nunca fazem — Maia observou, seguindo-a.
Elas entraram e saíram da multidão, mesmo Isabelle já tendo certeza que não iriam encontrá-lo. Ela sentia um pequeno frio no estômago que só aumentava e esfriava mais.
Quando todos haviam voltado à mesa de onde haviam saído, ela parecia ter tomado um copo de água gelada.
— Ele não está aqui — ela falou finalmente.
Jordan praguejou, depois olhou de forma culpada para Maia.
— Desculpe-me.
— Já ouvi piores — ela respondeu — e agora, qual é o próximo passo? Alguém tentou ligar para ele?
— Cai direto na caixa postal — respondeu Jordan.
— Alguma ideia para onde ele poderia ter ido? — Perguntou Alec.
— Na melhor das hipóteses, voltou ao apartamento — Jordan sugeriu — na pior, aquelas pessoas que estiveram atrás dele finalmente o pegaram.
— Pessoas que o quê? — Alec ficou confuso.
Isabelle tinha contado para Maia a história de Simon, porém ainda não tivera a chance de contar para o irmão.
— Vou voltar ao apartamento para procurar por ele — Jordan disse — se estiver lá, perfeito. Se não, mesmo assim é onde eu devia começar. Eles sabem onde ele vive; estiveram nos mandando mensagens lá. Talvez haja uma mensagem — ele não parecia acreditar muito no que dizia.
Isabelle tomou uma decisão numa fração de segundo.
— Eu vou com você.
— Você não precisa...
— Preciso sim. Eu falei para Simon que ele devia vir aqui hoje à noite; sou a responsável. Além disso, essa festa não está me animando muito mesmo.
— É — Alec concordou, aliviado com a ideia de sair dali — eu também. Talvez todos nós deveríamos ir. Contamos para Clary?
Isabelle sacudiu a cabeça.
— É a festa da mãe dela. Não seria justo. Vamos ver o que podemos fazer só nós três.
— Nós três? — Perguntou Maia, um tom de irritação delicada assombrando sua voz.
— Você quer vir com a gente, Maia? — Era Jordan.
Isabelle congelou; não tinha certeza de como Maia reagiria ao ter o ex-namorado falando com ela diretamente. A boca da garota se apertou um pouquinho, e só por um momento ela olhou para Jordan – não como se o odiasse, mas pensativa.
— É o Simon — disse finalmente, como se isso decidisse tudo — vou pegar meu casaco.
***
As portas do elevador se abriram num turbilhão de escuridão e sombras. Maureen deu outra risada aguda e dançou para a escuridão, deixando Simon para segui-la com um suspiro.
Eles estavam numa grande sala de mármore sem janelas. Não havia pontos de luz, mas a parede da esquerda do elevador estava ajustada com um conjunto grande de portas duplas de vidro. Atrás delas, Simon podia ver a superfície lisa no telhado, e acima o negro céu noturno pontilhado com estrelas brilhando fracamente.
O vento soprava forte novamente. Ele seguiu Maureen pelas portas e saiu no ar frio, o vestido dela tremulando como uma mariposa batendo as asas numa ventania. O jardim do terraço era elegante como as placas prometiam. O chão era formado de lustrosos azulejos hexagonais de pedra; várias flores cresciam sob vidro e cercas vivas foram cuidadosamente cortadas nas formas de monstros e animais. O passadiço que eles seguiram era alinhado com minúsculas luzes brilhantes, e em volta deles erguiam-se altos prédios de apartamentos de vidro e aço, suas janelas brilhando com eletricidade.
O caminho terminava em um vão para uma fileira suspensa de degraus ladrilhados, sobre o qual era um imenso quadrado limitado em três lados pelo alto muro que rodeava o jardim. Claramente era uma área aonde os eventuais residentes do prédio iriam se socializar. Havia um grande bloco de concreto no centro do quadrado, que provavelmente algum dia teria uma grelha, pensou Simon, e a área era cercada por roseiras meticulosamente aparadas que floresceriam em junho, assim como as treliças adornando os muros um dia iriam sumir sob uma cobertura de folhas. Mais tarde seria um belo espaço, um jardim de luxo do Upper East Side onde você podia relaxar numa espreguiçadeira, com o Rio East resplandecendo no pôr do sol, e a cidade se estendia diante de você, um mosaico de luz tremeluzente.
Havia um porém. O chão ladrilhado fora deformado, salpicado com algum tipo de fluído negro e grudento que havia sido usado para desenhar um círculo irregular, dentro de um círculo maior ainda. O espaço entre os dois círculos era preenchido de runas rabiscadas. Mesmo Simon não sendo um Caçador de Sombras, já vira runas Nephilim suficientes para reconhecer quais vinham do Livro Branco.
Essas não vieram. Pareciam ameaçadoras e erradas, como uma maldição rabiscada numa língua estranha.
No centro do círculo estava o bloco de concreto. No topo dele um volumoso objeto retangular repousava, coberto com um tecido escuro. A sua forma lembrava um caixão. Mais runas estavam riscadas na base do bloco.
Se o sangue de Simon pudesse mudar de temperatura, teria ficado frio.
Maureen bateu palmas uma vez.
— Oh — disse em sua voz élfica — é lindo.
— Lindo? — Simon olhou rapidamente para a forma sobre o bloco de concreto — Maureen, que inferno...
— Então você o trouxe.
Foi uma voz de mulher que falou, refinada, forte e... familiar. Simon se virou. Parada na passagem atrás dele estava uma mulher alta com cabelo escuro curto. Era bem magra, vestindo um comprido casaco escuro, marcado na cintura como uma mulher fatal de um filme de espionagem dos anos quarenta.
— Maureen, obrigada — ela continuou. Ela tinha um rosto rígido e lindo, precisamente plano, com a maçã do rosto saliente e grandes olhos escuros — você fez seu trabalho muito bem. Pode ir agora.
Virou o olhar para Simon.
— Simon Lewis. Obrigada por vir.
No momento em que ela pronunciou o seu nome, Simon a reconheceu. Da última vez que a vira, ela estivera na chuva do lado de fora do Alto Bar.
— Você. Lembro-me de você. Me deu o seu cartão. A promotora musical. Nossa, você deve mesmo querer promover minha banda. Nem achava que éramos tão bons assim.
— Não seja sarcástico — a mulher disse — não há sentido nisso — ela olhou para o lado — Maureen. Você pode ir.
Sua voz fora firme dessa vez, e Maureen, que estivera pairando como um fantasma, chiou baixinho e correu para o caminho de onde eles haviam chegado. Ele a observou desaparecer nas portas que levavam aos elevadores, sentindo quase pena ao vê-la partir. Maureen não era muita companhia, mas sem ela, ele se sentia muito sozinho. Quem quer que a estranha mulher fosse, desprendia uma aura de poder obscuro que ele estivera muito drogado de sangue para perceber antes.
— Você foi difícil para mim, Simon — ela falou, e agora sua voz vinha de outra direção, há vários metros de distância.
Simon girou e viu que ela estava ao lado do bloco de concreto, no centro do círculo. As nuvens sopravam rapidamente sobre a lua, lançando sombras móveis no rosto dela. Já que estava na base da escada, ele teve que inclinar a cabeça para trás para olhá-la.
— Achei que pegá-lo seria fácil. Cuidar de um simples vampiro. Um recentemente criado. Nem um Diurno é algo que eu não tenha encontrado antes, mesmo não havendo um por cem anos. Sim — acrescentou, com um sorriso ao olhar dela — eu sou mais velha do que pareço.
— Você parece bem velha.
Ela ignorou o insulto.
— Enviei minhas melhores pessoas atrás de você, e só um retornou, com uma história ridícula sobre fogo sagrado e a ira de Deus. Ele ficou inútil para mim depois disso. Tive que eliminá-lo. Foi muito aborrecedor. Depois disso, decidi que devia cuidar de você, eu mesma. Te segui àquele estúpido show musical, e mais tarde, quando fui até você, eu a vi. A sua Marca. Como alguém que conhecia Caim pessoalmente, sou intimamente familiar com sua forma.
— Conhecia Caim pessoalmente? — Simon sacudiu a cabeça. — Você não pode esperar que eu acredite nisso.
— Acredite ou não. Não faz diferença para mim. Sou mais velha que os sonhos de sua espécie, garotinho. Andei pelas trilhas do Jardim do Éden. Conheci Adão antes mesmo de Eva. Fui sua primeira esposa, mas não fui obediente a ele, então Deus me excluiu e fez para Adão uma nova esposa, uma modulada ao corpo dele que podia ser útil para sempre — ela sorriu fracamente — tenho muitos nomes. Mas você pode me chamar de Lilith, a primeira de todos os demônios.
Com isso, Simon, que não sentia arrepios há meses, finalmente tremeu. Ele já ouvira o nome Lilith antes. Não podia se lembrar de exatamente onde, mas sabia que era um nome associado à escuridão, com coisas malignas e terríveis.
— Sua Marca me presenteou com um enigma — disse Lilith — eu preciso de você, entende, Diurno. Sua força de vida, seu sangue. Mas não poderia forçá-lo ou machucá-lo.
— Você... bebe sangue? — Simon perguntou.
Sentiu-se ofuscado, como se estivesse preso num estranho sonho. Certamente isso não podia estar acontecendo.
Ela riu.
— Sangue não é o alimento dos demônios, criança boba. O que eu quero de você não é para mim — estendeu uma mão fina — aproxime-se.
Simon sacudiu a cabeça.
— Eu não vou entrar nesse círculo.
Ela deu de ombros.
— Tudo bem, então. Eu só queria que você tivesse uma visão melhor.
Ela movimentou os dedos levemente, quase negligente, o gesto de alguém abrindo uma cortina. O tecido negro cobrindo o objeto em forma de caixão entre eles desapareceu.
Simon fitou o que havia sido revelado. Não errara sobre a forma de caixão. Era uma grande caixa de vidro, longa e extensa o suficiente para uma pessoa se deitar dentro. Um caixão de vidro, pensou, como o da Branca de Neve. Só que esse não era nenhum conto de fadas. O caixão estava cheio de um líquido sombrio, e flutuando naquele líquido – nu da cintura para cima, o cabelo loiro esbranquiçado flutuando sobre a cabeça como algas marinhas brancas – estava Sebastian.
***
Não havia mensagens presas na porta do apartamento de Jordan, nada sobre ou debaixo do tapete de boas-vindas, e também nada imediatamente óbvio dentro do apartamento. Enquanto Alec ficava de guarda lá embaixo e Maia e Jordan revistavam a mochila de Simon na sala de estar, Isabelle, parada na porta do quarto de Simon, olhou em silêncio para o lugar em que ele dormira nos últimos dias.
Era tão vazio – apenas quatro paredes, sem nenhuma decoração, um chão vazio só com um colchão futon e um cobertor branco dobrado no pé, e uma única janela que dava para a Avenida B.
Ela podia ouvir a cidade – a cidade em que crescera, cujos barulhos sempre lhe cercaram, desde que era um bebê. Achava o silêncio de Idris terrivelmente anormal sem os barulhos dos alarmes de carro, pessoas gritando, sirenes de ambulância e música tocando que, em Nova York, nunca parava completamente, nem na calada da noite. Mas agora, olhando o pequeno quarto de Simon, pensou sobre como aqueles barulhos eram solitários, como eram distantes, e se ele estivera sozinho aqui à noite, deitado aqui fitando o teto, solitário.
Por outro lado, não era como se ela nunca tivesse visto o seu quarto na casa dele, que provavelmente era coberto de pôsteres de bandas, troféus esportivos, caixas daqueles jogos que adorava jogar, instrumentos musicais, livros – tudo que vinha junto com ter uma vida normal. Ela nunca pediu para ir lá, e ele nunca sugeriu. Ela tivera vergonha de conhecer a mãe dele, de fazer qualquer coisa que pudesse indicar uma relação maior do que estava querendo ter. Mas agora, olhando para essa concha vazia que era chamada de quarto, sentindo o vasto alvoroço sombrio da cidade em todo o seu redor, sentiu uma pontada de medo por Simon – misturada com uma igual pontada de lamento.
Virou-se de novo para o resto do apartamento, mas parou quando ouviu baixos murmúrios vindo da sala de estar. Reconheceu a voz de Maia. Não parecia zangada, o que era de se surpreender na verdade, considerando o quanto parecia odiar Jordan.
— Nada — ela estava dizendo — algumas chaves, papéis com pontos de jogo escritos neles.
Isabelle se inclinou na porta. Podia ver Maia, de pé em um lado do balcão na cozinha, a mão no bolso do zíper da mochila de Simon. Jordan, do outro lado do balcão, a olhava. Observando-a, Isabelle pensou, não o que ela estava fazendo – mas da forma que garotos te observavam quando estavam tão na sua que se fascinavam com cada movimento seu.
— Vou ver se tem algo na carteira.
Jordan, que havia trocado sua roupa formal para jeans e uma jaqueta de couro, franziu a testa.
— Estranho ele ter deixado isso. Posso ver?
Estendeu a mão na direção do outro lado do balcão.
Maia recuou tão rápido que deixou cair a carteira, a mão voando para cima.
— Eu não estava... — Jordan lentamente recolheu sua mão. — Desculpe-me.
Maia respirou fundo.
— Olhe, eu falei com Simon. Sei que você nunca quis me Transformar. Sei que você não sabia sobre o que estava acontecendo contigo. Lembro-me de como foi. Lembro-me de estar aterrorizada.
Jordan abaixou as mãos lenta e cuidadosamente na superfície do balcão. Era estranho, pensou Isabelle, observar alguém tão alto se fazer parecer inofensivo e pequeno.
— Eu devia estar lá por você.
— Mas o Praetor não deixaria você estar — Maia falou — evamos admitir, você não sabia nada sobre ser um lobisomem; seríamos duas pessoas descuidadas andando em círculos. Talvez tenha sido melhor você não estar lá. Me fez fugir para onde consegui ajuda. Da matilha.
— Primeiro eu esperei que o Praetor Lupus te convidasse a entrar — ele sussurrou — para que eu pudesse vê-la novamente. Então percebi que isso era egoísta e eu devia estar desejando não ter passado a enfermidade a você. Sabia que era meio a meio. Achei que você seria uma das sortudas.
— Bem, não fui — falou ela com praticidade — e ao longo dos anos formei você na minha mente, como... meio que um monstro. Achei que soubesse o que estava fazendo quando me mordeu. Achei que era vingança por eu beijar aquele garoto. Então te odiei. E te odiar deixou tudo mais fácil. Ter alguém para culpar.
— Você devia me culpar. Foi minha culpa.
Ela correu o dedo pela superfície do balcão, evitando os olhos dele.
— Eu te culpo. Mas... não do jeito que fazia antes.
Jordan estendeu uma mão e pegou o próprio cabelo com os punhos, puxando forte.
— Não há um dia que passe que eu não pense sobre o que fiz a você. Eu te mordi. Te Transformei. Te fiz o que é. Levantei minha mão contra você. Te feri. A única pessoa que amei mais que qualquer outra no mundo.
Os olhos de Maia brilhavam com lágrimas.
— Não fale isso. Isso não ajuda. Você acha que ajuda?
Isabelle deu uma tossida alta, entrando na sala de estar.
— Muito bem. Encontraram alguma coisa?
Maia desviou o olhar, piscando rapidamente. Jordan, abaixando as mãos, respondeu:
— Nada. Íamos olhar agora a carteira dele — ele a pegou de onde Maia havia deixado cair — aqui.
Ele jogou para Isabelle.
Ela pegou e a abriu. Passe escolar, carteira de identidade do estado de Nova York, uma palheta de guitarra enfiada no espaço reservado a guardar cartões de crédito. Uma nota de dez dólares e um recibo de dados. Outra coisa lhe chamou a atenção – um cartão de trabalho, metido sem cuidado atrás de uma foto de Simon e Clary, o tipo de foto que você devia ter tirado numa cabine de fotos barata de uma farmácia. Os dois sorriam.
Isabelle pegou o cartão e analisou-o. Tinha um desenho embaraçado e quase abstrato de uma guitarra flutuando entre as nuvens. Abaixo dali havia um nome: Satrina Kendal. Promotora de bandas. Logo abaixo, estava escrito um número de telefone e um endereço do Upper East Side. Isabelle franziu a testa. Algo, uma memória, saltou no fundo de sua mente.
Isabelle estendeu o cartão para Jordan e Maia, que estavam ocupados se olhar um para o outro.
— O que vocês acham disso?
Antes que pudessem responder, a porta do apartamento abriu e Alec entrou por ela. Tinha um olhar zangado.
— Vocês encontraram alguma coisa? Estou de pé lá embaixo por meia hora, e nem a coisa mais remotamente ameaçadora apareceu. A menos que vocês contem o universitário que vomitou nos degraus da frente.
— Aqui — disse Isabelle, passando o cartão para o irmão — veja isso. Algo não lhe parece estranho?
— Você quer dizer, além do fato de nenhum promotor de banda poder estar possivelmente interessado na banda ridícula de Lewis? — Alec inquiriu, pegando o cartão entre dois longos dedos. Linhas apareceram entre os olhos. — Satrina?
— Esse nome significa algo a você? — Perguntou Maia.
Seus olhos ainda estavam vermelhos, porém sua voz estava firme.
— Satrina é um dos dezessete nomes de Lilith, a mãe de todos os demônios. Ela é o motivo pelos quais os bruxos são chamados de filhos de Lilith — disse Alec — porque ela criava demônios, e eles em troca passavam a raça de bruxos adiante.
— E você tem todos os dezessete nomes gravados na memória? — Jordan parecia em dúvida.
Alec lhe atirou um olhar frio.
— Quem é você mesmo?
— Ah, cala a boca, Alec — Isabelle falou, no tom que só usava com o irmão — olhe, nem todo mundo tem o seu poder de memorizar fatos insignificantes. Não acho que você se lembre dos outros nomes de Lilith?
Com um olhar superior, Alec os disse:
— Satrina, Lilith, Ita, Kali, Batna, Talto...
— Talto! — Isabelle berrou — é isso. Sabia que estava lembrando de algo. Sabia que havia uma conexão!
Rapidamente, ela os deixou a par da Igreja de Talto, o que Clary encontrou lá e como isso se conectava com o bebê meio-demônio morto no Beth Israel.
— Queria que você tivesse me contado isso antes — Alec falou — sim, Talto é outro nome de Lilith. E Lilith sempre foi associada a bebês. Ela foi a primeira esposa de Adão, mas fugiu do Jardim do Éden porque não queria obedecer Adão ou Deus. Mas Deus a amaldiçoou por sua desobediência – qualquer filho que tivesse iria morrer. A lenda diz que ela tentou mais e mais vezes ter uma criança, mas todas nasceram mortas. No fim, jurou que teria sua vingança contra Deus enfraquecendo e assassinando crianças humanas. Pode-se dizer que ela é a deusa demônio das crianças mortas.
— Mas você disse que ela era a mãe dos demônios — Maia lembrou.
— Ela era capaz de criar demônios espalhando gotas de seu sangue na terra de um lugar chamado Edom — Alec explicou — uma vez que nasceram por causa de seu ódio por Deus e pela humanidade, se tornaram demônios.
Ciente de que todos o fitavam, ele deu de ombros.
— É só uma história.
— Todas as histórias são verdadeiras — Isabelle disse.
Esse era o princípio de suas crenças desde que era criança, todos os Caçadores de Sombras acreditavam. Não havia religião, não havia verdade – e todos os mitos tinham um significado.
— Você sabe disso Alec.
— Eu sei outra coisa também — disse Alec, devolvendo à irmã o cartão — esse número de telefone e o endereço são ridículos. Sem chance de serem verdadeiros.
— Pode ser — Isabelle respondeu, enfiando o cartão no bolso — mas não temos mais nenhum lugar para começar a procurar. Então vamos começar por lá.
***
Simon só podia fitar. O corpo flutuando dentro do caixão – o de Sebastian – não parecia estar vivo; pelo menos, ele não estava respirando. Mas claramente também não estava exatamente morto. Havia sido há dois meses. Se estivesse morto, Simon tinha quase certeza, o corpo teria uma aparência bem pior.
Seu corpo estava muito branco, como mármore; uma mão tinha uma bandagem, mas tirando isso ele estava sem marcas. Parecia estar dormindo, os olhos fechados, os braços soltos nos lados. Só o fato do seu peito não levantar e descer indicava que havia alguma coisa muito errada.
— Mas — Simon falou, sabendo que soaria ridículo — ele está morto. Jace o matou.
Lilith pousou uma mão pálida na superfície de vidro do caixão.
— Jonathan — ela disse, e Simon se lembrou de que esse era, na verdade, seu nome.
A voz dela tinha uma estranha e suave qualidade quando o pronunciou, como se cantasse para uma criança.
— Ele é lindo, não é?
— Hã — Simon fitou com repugnância a criatura dentro do caixão – o garoto que assassinou Max Lightwood, de nove anos. A criatura que matou Hodge. Que tentara matar todos eles — não faz muito o meu tipo.
— Jonathan é único. Ele é o único Caçador de Sombras que já conheci que é parte Demônio Maior. Isso o torna muito poderoso.
— Ele está morto — Simon apontou.
Sentia que, de alguma forma, era importante continuar repetindo esse argumento, mesmo que Lilith não parecesse entendê-lo direito.
Lilith, olhando para Sebastian, franziu a testa.
— É verdade. Jace Lightwood andou por trás dele e o apunhalou nas costas, atravessando o coração.
— Como você...
— Eu estava em Idris quando Valentin abriu as portas do mundo dos demônios, e passei por ela. Não para lutar em sua batalha estúpida. Menos curiosidade do que qualquer outra coisa. Que Valentim pudesse ter tanta insolência... — Lilith fez uma pausa, dando de ombros — o Céu o eliminou por isso, é claro. Vi o sacrifício que ele fez; vi o Anjo se erguer e se virar contra ele. Vi o que foi trazido de volta. Sou a mais antiga dos demônios; conheço as Leis Antigas. Uma vida por uma vida. Corri até Jonathan. Era quase tarde demais. O que era humano nele morreu instantaneamente – o coração parou de bater, os pulmões pararam de se expandir. As Leis Antigas não eram o suficiente. Tentei trazê-lo de volta naquela hora. Ele já estava muito longe. Tudo o que pude fazer foi isso. Preservá-lo até esse momento.
Simon imaginou brevemente o que aconteceria se saísse correndo – passar por esse demônio insano e se jogar do terraço do prédio. Não podia ser ferido por nenhuma criatura viva; esse era o resultado da Marca, mas duvidava que seu poder se estendia a protegê-lo do chão. Mesmo assim, era um vampiro. Se caísse de quarenta andares e esmagasse cada osso do corpo, iria se curar disso? Engoliu em seco e encontrou Lilith olhando para ele em diversão.
— Você não quer saber — ela falou em sua voz fria e sedutora — a que momento eu me refiro?
Antes que ele pudesse responder, ela se inclinou para a frente, seus cotovelos no caixão.
— Suponho que saiba a história de como os Nephilim foram criados. Como o Anjo Raziel misturou o seu sangue ao sangue dos homens, e o deu para um homem beber, e que este homem se tornou o primeiro Nephilim. Sabe?
— Já ouvi isso.
— Como consequência, o Anjo criou uma nova raça de criaturas. E agora, com Jonathan, uma nova raça renasceu de novo. Da mesma forma que Jonathan Caçador de Sombras liderou os primeiros Nephilim, esse Jonathan liderará a nova raça que pretendo criar.
— A nova raça que você pretende... — Simon levantou as mãos. — Você sabe de uma coisa, se quiser liderar uma nova raça começando com um garoto morto, sem problemas. Não vejo o que isso tem a ver comigo.
— Ele está morto agora. Ele não precisa permanecer assim — a voz de Lilith era fria, sem emoção — há, é claro, uma espécie de Ser do Submundo cujo sangue oferece a possibilidade de, digamos, ressurreição.
— Vampiros. Você quer que eu transforme Sebastian em vampiro?
— O nome dele é Jonathan — o tom dela era agudo — e sim, de certa forma. Eu quero que você o morda, beba seu sangue, e dê a ele o seu sangue em troca...
— Eu não vou fazer isso.
— Você tem tanta certeza disso?
— Um mundo sem Sebastian — Simon usou o nome deliberadamente — é um mundo melhor do que um mundo com ele. Eu não vou fazer isso — raiva crescia dentro de Simon, uma onda rápida — eu não poderia fazer nem que quisesse. Ele está morto. Vampiros não podem trazer os mortos de volta. Você devia saber disso, já que é tão esperta. Quando a alma deixa o corpo, nada pode trazê-la de volta. Felizmente.
Lilith virou o olhar para ele.
— Você não sabe mesmo, sabe? — Ela perguntou. — Clary nunca te contou.
Simon começava a ficar de saco cheio.
— Nunca me contou o quê?
Lilith riu.
— Olho por olho, dente por dente, vida por vida. Para impedir o caos, deve haver ordem. Se uma vida é dada à Luz, deve-se dar uma vida à Escuridão também.
— Eu não tenho literalmente a mínima ideia do que você está falando. E não me importo — Simon disse lenta e deliberadamente — vocês vilões e seus programas assustadores estão começando a me irritar. Então vou embora agora. Pode tentar me impedir ameaçando ou me ferindo. Te estimulo a seguir em frente.
Ela olhou para ele e riu.
— Caim se levantou — ela recitou — você parece um pouco com a pessoa cuja Marca você carrega. Ele era inflexível, e você também. Também imprudente.
— Ele se levantou contra... — Simon sufocou com a palavra. Deus. — Estou só interagindo com você.
Ele se virou para partir.
— Eu não viraria as costas para mim se fosse você, Diurno — Lilith avisou, e havia algo em sua voz que o fez olhar para ela de novo, onde se inclinava no caixão de Sebastian — você acha que não pode ser ferido — ela falou com um olhar zombeteiro — e de fato não posso erguer uma mão contra você. Não sou tola; eu vi o fogo sagrado do divino. Não tenho desejo de vê-lo voltado contra mim. Não sou Valentim para barganhar com o que não posso entender. Sou um demônio, mas um muito velho. Conheço a humanidade melhor do que você pode pensar. Entendo as fraquezas de orgulho, de desejo por poder, de desejo da carne, de ganância, de vaidade e de amor.
— Amor não é uma fraqueza.
— Ah, não é? — Ela perguntou, e olhou para um ponto atrás dele, com um olhar frio e afiado como uma estalactite.
Ele se virou, não querendo, sabendo que não devia, e viu.
Ali no passadiço de tijolos estava Jace. Ele vestia um terno escuro e uma camisa branca. De pé à sua frente estava Clary, ainda no bonito vestido dourado que usara na festa da Ironworks. Seu cabelo ruivo longo e ondulado saíra de seu coque e descia pelos seus ombros. Ela estava bastante quieta no abraço de Jace. Quase pareceria uma foto romântica se não fosse o fato de que em uma das mãos, Jace segurava uma faca longa e brilhante com punho de osso, e a sua ponta estivesse pressionada contra a garganta de Clary.
Simon fitou Jace em total e absoluto choque. Não havia emoção no rosto de Jace, nenhuma luz em seus olhos. Ele parecia totalmente inexpressivo.
Bem de leve, ele inclinou a cabeça.
— Eu a trouxe, lady Lilith. Assim como pediu.
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