Capítulo 16 - Artigos de Fé

Desde a noite em que ela tinha voltado para casa e descoberto que sua mãe tinha sumido, Clary tinha imaginado vê-la novamente, bem e saudável, tão frequentemente que suas imaginações tinham tomado a qualidade de uma fotografia que tinha desbotado de estar sendo retirada e vista tantas vezes. Aquelas imagens subiram perante ela agora, enquanto ela fitava em descrença – imagens em que sua mãe, parecendo saudável e feliz, abraçava Clary e dizia a ela o quanto tinha sentido sua falta, mas que tudo estava bem agora.
A mãe em sua imaginação sustentava poucas semelhanças com a mulher que se mantinha em frente a ela agora. Ela se lembrava de Jocelyn como gentil e artística, uma mulher boêmia com seus macacões respingados de tinta, o cabelo ruivo em rabo de cavalo ou rapidamente preso com um lápis em um coque bagunçado.
Esta Jocelyn era tão brilhante e acentuada como uma faca, seu cabelo puxado para trás severamente, sem um fio fora do lugar; o negro áspero de sua vestimenta fazia seu rosto parecer pálido e duro. Nem era essa expressão que Clary tinha imaginado: Em vez de prazer, havia algo como horror no modo como olhava para Clary, seus olhos verdes quase arregalados.
— Clary — ela sussurrou — suas roupas.
Clary olhou abaixo para si mesma. Estava na vestimenta preta de Caçador de Sombras de Amatis, exatamente o que sua mãe tinha passado sua vida toda tendo a certeza de que sua filha nunca teria que usar.
Clary engoliu duro e se empertigou, agarrando a beirada da mesa com suas mãos. Ela podia ver o quão branco os nós de seus dedos estavam, mas suas mãos pareciam desconectadas de seu corpo de algum modo, como se pertencessem a outra pessoa.
Jocelyn andou em direção a ela, estendendo seus braços.
— Clary...
Clary se encontrou afastando-se para trás tão apressadamente que bateu no balcão com a parte inferior de suas costas. Dor surgiu através dela, mas ela dificilmente percebeu; estava olhando para sua mãe. Então foi Simon, sua boca ligeiramente aberta. Amatis também parecia chocada.
Isabelle se adiantou, pondo-se entre Clary e sua mãe. Sua mão deslizou sobre o avental, e Clary teve a sensação de que quando ela a puxasse para fora, estaria segurando seu fino chicote de electrum.
— O que está acontecendo aqui? — Isabelle exigiu. — Quem é você?
Sua voz forte ondulou ligeiramente enquanto ela parecia entender a expressão no rosto de Jocelyn; Jocelyn estava encarando-a, sua mão sobre o coração.
— Maryse — a voz de Jocelyn foi mal um sussurro.
Isabelle pareceu assustada.
— Como você sabe o nome de minha mãe?
A cor voltou ao rosto de Jocelyn em um ímpeto.
— É claro. Você é filha de Maryse. É só que... você se parece muito com ela — ela abaixou sua mão lentamente — eu sou Jocelyn Fr... Fairchild. Sou a mãe de Clary.
Isabelle tirou a mão do avental e olhou para Clary, seus olhos cheios de confusão.
— Mas você estava no hospital... em Nova York...
— Eu estava — Jocelyn disse em uma voz firme — mas graças a minha filha eu estou bem agora. E gostaria de ter um instante com ela.
— Eu não tenho certeza — Amatis disse — que ela quer um momento com você — ela se aproximou para colocar a mão no ombro de Jocelyn — isso deve ser um choque para ela...
Jocelyn se livrou de Amatis e se moveu em direção a Clary, estendendo suas mãos.
— Clary...
Finalmente Clary encontrou sua voz. Era uma voz fria e gelada, tão zangada que a surpreendeu.
— Como você chegou aqui, Jocelyn?
Sua mãe parou de repente, um olhar de incerteza passou sobre seu rosto.
— Eu passei pelo Portal do outro lado da cidade com Magnus Bane. Ontem ele veio até mim no hospital – ele trouxe o antídoto. Me contou tudo o que você fez por mim. Tudo o que eu queria desde que acordei era ver você... — sua voz falhou — Clary, tem algo de errado?
— Por que você nunca me disse que eu tinha um irmão?
Isso não era o que ela tinha esperado dizer, não era o que tinha planejado que viesse pela sua boca. Mas foi o que veio.
Jocelyn baixou suas mãos.
— Eu pensei que ele estava morto. Pensei que só machucaria você saber.
— Me deixe dizer uma coisa, mãe. Saber é melhor do que não saber. Todas as vezes.
— Me desculpe... — Jocelyn começou.
— Desculpe? — a voz de Clary se elevou, era como se algo dentro dela tivesse derramado, e tudo estava jorrando, toda sua amargura, todo sua raiva enclausurada. — Você quer me explicar porque nunca me disse que eu era uma Caçadora de Sombras? Ou que meu pai ainda estava vivo? Ah, e quanto sobre aquela parte onde você pagou para Magnus roubar minhas memórias?
— Eu estava tentando te proteger...
— Bem, você fez um péssimo trabalho! — A voz de Clary aumentou. — O que você esperava que acontecesse depois que desapareceu? Se não tivesse sido por Jace e os outros, eu estaria morta. Você nunca me mostrou como me proteger. Nunca me disse o quanto perigosas as coisas realmente eram. O que você pensava? Que se eu não pudesse ver as coisas ruins significaria que elas não podiam me ver? — Seus olhos queimaram. — Você sabia que Valentim não estava morto. Disse a Luke que você achava que ele ainda estava vivo.
— E é por isso que eu tinha que esconder você — Jocelyn disse — eu não podia arriscar deixar Valentim saber onde você estava. Eu não podia deixá-lo te tocar...
— Por que ele tornou seu primeiro filho um monstro — Clary continuou — e você não queria que ele fizesse o mesmo comigo.
Em choque e sem palavras, Jocelyn só podia fitá-la.
— Sim — ela disse finalmente.
— Sim, mas isso não foi tudo, Clary...
— Você roubou minhas memórias. Tirou-as de mim. Você roubou quem eu era.
— Esta não é quem você é! — Jocelyn gritou. — Eu nunca quis isso fosse quem você era...
— Não importa o que você queria! — Clary exclamou. — Isso é quem eu sou! Você tirou tudo isso para longe de mim e isso não pertencia a você!
Jocelyn ficou pálida. Lágrimas subiram aos olhos de Clary – ela não podia suportar ver sua mãe desse jeito, vê-la tão machucada, e era ela quem estava ferindo – e ela sabia que se abrisse a boca novamente, mais palavras terríveis sairiam, mais odiosas, coisas zangadas.
Ela lançou sua mão sobre sua boca e partiu para o corredor, empurrando sua mãe, passando pela mão estendida de Simon. Tudo o que queria era fugir. Cegamente empurrando a porta da frente, ela meio que se jogou na rua.
Atrás dela, alguém chamou seu nome, mas ela não se virou. Ela já estava correndo.

***

Jace estava um pouco surpreso ao descobrir que Sebastian tinha deixado o cavalo dos Verlac nos estábulos, em vez de sair galopando nele na noite em que fugiu. Talvez tivesse tido medo que Wayfare pudesse de alguma maneira ser seguido.
Deu a Jace certa satisfação selar o garanhão e cavalgar com ele para fora da cidade. A verdade é que se Sebastian tivesse realmente precisado de Wayfarer, ele não o teria deixado para trás – e por outro lado, o cavalo não tinha sido de Sebastian para começar. Mas o fato era que Jace gostava de cavalos. Tinha dez anos da última vez que cavalgou um, mas as memórias, ele ficou satisfeito de notar, voltaram rápidas.
Tinha tomado a ele e Clary seis horas para caminhar da mansão Wayland para Alicante. Demorou aproximadamente duas horas para voltar, cavalgando em um quase galope.
Naquele momento eles se ergueram sobre o cume avistando a casa e os jardins, ambos, cavalo e cavaleiro, cobertos com um leve brilho de suor.
As barreiras de desorientação que tinham escondido a mansão tinham sido destruídas junto com a base da mansão. O que foi deixado da elegante construção era uma pilha de pedras queimadas. Os jardins, tostados nas beiradas agora, ainda traziam antigas memórias do tempo que tinha vivido lá enquanto criança.
Havia roseiras, sem suas flores agora e enroscadas com ervas daninhas; o banco de pedra que assentava próximo à piscina vazia e o buraco no chão onde ele tinha deitado com Clary na noite em que a mansão desmoronou. Ele podia ver o brilho azul do lago próximo, através das árvores.
Uma onda de amargura o apanhou. Ele comprimiu sua mão no bolso e puxou primeiro uma estela – ele tinha pego ela “emprestado” do quarto de Alec antes de partir como uma substituta da que Clary tinha perdido, desde que Alec podia sempre conseguir outra – e então o fio que tinha pego da manga do casaco de Clary.
Ele deitou em sua palma, manchado de vermelho amarronzado na extremidade. Fechou seu punho em torno dele, apertado o suficiente para fazer os ossos sobressaírem por debaixo de sua pele, e com sua estela traçou uma runa nas costas de sua mão. A leve picada era mais familiar do que dolorosa. Ele observou a runa afundar dentro de sua pele como uma pedra afundando na água, e fechou seus olhos.
Por trás de seus olhos ele viu um vale. Estava sobre um cume abaixo dele, e como se estivesse olhando para um mapa que assinalava sua localização, Jace sabia exatamente onde estava. Ele se lembrou de como a Inquisidora tinha sabido exatamente onde o navio de Valentim estava no meio do Rio East e percebeu, isto foi o que ela fez.
Cada detalhe era claro – cada folhagem da grama, o esparramar das folhas escurecendo aos seus pés – mas lá não havia som. A cena era misteriosamente silenciosa.
O vale era uma ferradura com uma ponta mais estreita do que a outra. Uma enseada brilhante prata de água – um riacho ou um córrego corria no centro dele e desaparecia entre as rochas na ponta estreita. Ao lado do riacho assentava-se uma casa cinza de pedra, fumaça branca saía de sua chaminé quadrada.
Era uma estranha cena pastoral, tranquila debaixo do azul contemplativo do céu. Enquanto ele observava, uma figura magra colocou-se na vista. Sebastian.
Agora que ele não se incomodava em fingir, sua arrogância era evidente na maneira que caminhava, na projeção de seus ombros, no leve sorriso afetado em seu rosto. Sebastian se ajoelhou ao lado do córrego e mergulhou suas mãos nele, chapinhando água sobre seu rosto e cabelo.
Jace abriu seus olhos. Abaixo dele, Wayfare estava satisfeito comendo grama. Jace empurrou a estela e o fio dentro de seu bolso, e com um único último olhar para as ruínas da casa onde tinha crescido, recolheu as rédeas e fincou seus calcanhares nos flancos do cavalo.

***

Clary repousava na grama próxima à beira da Garde e olhou impertinentemente abaixo para Alicante. A vista dali era bastante espetacular, ela tinha que admitir. Podia ver acima dos telhados da cidade, com seus elegantes entalhes e runas, os pináculos do Salão de Acordos, e algo que brilhava à distância como uma borda de uma moeda de prata – o Lago Lyn?
As ruínas negras da Garde agigantavam-se atrás dela e as torres demoníacas brilhavam como cristal. Clary quase pensava que podia ver as barreiras, cintilando com uma tecida rede invisível ao redor das fronteiras da cidade.
Ela olhou abaixo para suas mãos. Tinha arrancado vários punhados de grama em seus últimos espasmos de raiva, e seus dedos estavam pegajosos com a sujeira e o sangue onde tinha quebrado metade de uma unha fora. Uma vez que a fúria tinha passado, um sentimento de total vazio o tinha substituído.
Ela não tinha percebido quão zangada tinha ficado com sua mãe, não até que ela passou pela porta e Clary colocou seu pânico sobre a vida de Jocelyn de lado e percebido o que estava sob ele. Agora que estava mais calma, se perguntou se uma parte dela tinha desejado punir sua mãe por aquilo que tinha acontecido a Jace. Se ele não tivesse sido enganado – se ambos não tivessem sido – então talvez o choque de descobrir o que Valentim tinha feito a ele quando era só um bebê não teria conduzido-o a um gesto que Clary não podia impedir de sentir que era próximo ao suicídio.
— Se importa de eu me juntar a você?
Ela pulou em surpresa e rolou para olhar acima. Simon estava de pé, as mãos em seus bolsos. Alguém – Isabelle provavelmente – tinha dado a ele uma jaqueta escura que os Caçadores de Sombras usavam de vestimenta. Um vampiro em uniforme, Clary pensou, imaginando se isso era a primeira vez.
— Você veio de fininho — ela disse — aposto que eu não sou muito uma Caçadora de Sombras, uh.
Simon deu de ombros.
— Bem, em sua defesa, eu posso me mover com a graça silenciosa de uma pantera.
Apesar de tudo, Clary sorriu. Ela se sentou, limpando a sujeira de suas mãos.
— Vá em frente e se junte a mim. Este festival está aberto a todos.
Sentando ao lado dela, Simon olhou acima da cidade e assobiou.
— Bela vista.
— É — Clary olhou-o de lado — como você me achou?
— Bem, me levou algumas horas — ele sorriu, um pouquinho torto — então eu me lembrei que quando nós costumávamos brigar, já no primeiro ano, você saía e se emburrava em meu telhado, e minha mãe tinha te que tirar de lá.
— E então?
— Eu te conheço. Quando você esta chateada, vai direto para um terreno alto.
Ele segurou algo para ela – seu casaco verde, ordenadamente dobrado. Ela o pegou e o jogou por cima – a pobre coisa já estava mostrando distintos sinais de uso. Havia até um pequeno buraco no cotovelo, grande o suficiente para menear um dedo através dele.
— Obrigada, Simon.
Ela apertou suas mãos ao redor de dos joelhos e olhou para a cidade.
O sol estava baixo no céu, e as torres tinham começado a brilhar num apagado rosa avermelhado.
— Minha mãe mandou você aqui em cima para me convencer?
Simon balançou a cabeça.
— Luke, na verdade. E ele só me pediu para dizer que você poderia querer voltar antes do pôr do sol. Algumas coisas bem importantes estão acontecendo.
— Que tipo de coisas?
— Luke deu à Clave até o pôr do sol para decidir se eles iriam concordar em dar aos Seres do Submundo os assentos no Conselho. Os Seres do Submundo estão todos vindo para o portão norte ao crepúsculo. Se a Clave concordar, eles podem entrar em Alicante. Se não...
— Eles serão enviados embora — Clary terminou — e a Clave se entregará a Valentim.
— Yeah.
— Eles irão concordar. Eles tem — ela abraçou seus joelhos — nunca escolheriam Valentim. Ninguém faria isso.
— Fico feliz em ver que seu idealismo não foi danificado — Simon comentou, e embora sua voz fosse suave, Clary ouviu outra voz através dela.
A de Jace, dizendo que ele não era um idealista, e estremeceu, apesar do casaco que estava usando.
— Simon? Eu tenho uma pergunta idiota.
— O que é?
— Você dormiu com Isabelle?
Simon fez um barulho engasgado. Clary girou lentamente ao redor para olhar para ele.
— Você está bem?
— Eu acho que sim — ele respondeu, recobrando seu equilíbrio com aparente esforço — você está falando sério?
— Bem, você esteve fora a noite toda.
Simon ficou em silêncio por um longo momento. Finalmente ele disse:
— Eu não tenho certeza de que isso é da sua conta, mas não.
— Bem — Clary falou, depois de uma pausa criteriosa — acho que você não teria tirado vantagem dela quando ela estava tão golpeada pelo sofrimento e tudo mais.
Simon bufou.
— Se você conhecer um homem que pode tirar vantagem de Isabelle, terá que me avisar. Eu gostaria de apertar a sua mão. Ou fugir dele bem rápido, não tenho certeza de qual.
— Então você não está ficando com Isabelle.
— Clary, por que você está me perguntando sobre Isabelle? Você não quer falar sobre sua mãe? Ou sobre Jace? Izzy me disse que ele partiu. Eu sei como você deve estar se sentindo.
— Não. Não, eu não acho que você saiba.
— Você não é a única pessoa que já se sentiu abandonada — havia uma ponta de impaciência na voz de Simon — eu acho que só pensei – quero dizer, eu nunca vi você tão zangada. E com sua mãe. Pensei que você sentia falta dela.
— É claro que eu senti falta dela! — Clary falou, percebendo enquanto dizia isso, como a cena na cozinha deve ter parecido. Especialmente para sua mãe. Ela empurrou o pensamento para longe — é só que eu tinha estado tão focada em resgatá-la – salvá-la de Valentim, imaginando um modo de curá-la, que nunca parei para pensar sobre o quanto zangada eu ficaria por ela ter mentido para mim todos esses anos. Que ela manteve tudo isso longe de mim, mantendo a verdade longe de mim. Nunca me deixou saber quem eu realmente era.
— Mas isso não foi o que você disse quando ela entrou na cozinha — Simon disse calmamente — você disse, “por que você não me disse que eu tinha um irmão?”
— Eu sei — Clary puxou um fiapo de grama da terra, considerando-o entre seus dedos — acho que não pude me impedir de pensar que se eu soubesse a verdade, eu nunca teria conhecido Jace do modo que conheci. Eu não teria me apaixonado por ele.
Simon ficou em silêncio por um momento.
— Não acho que eu tenha ouvido você dizer isso antes.
— Que eu o amo? — Ela riu, mas soou sombrio para seus ouvidos. — Parece inútil fingir que não, agora. Talvez isso não importe. E provavelmente não irei vê-lo de novo de qualquer maneira.
— Ele irá voltar.
— Talvez.
— Ele irá voltar — Simon disse novamente — para você.
— Eu não sei.
Clary agitou a cabeça. Estava ficando frio enquanto o sol afundava na borda do horizonte. Ela estreitou seus olhos, inclinando-se a frente, olhando.
— Simon. Olhe.
Ele seguiu seu olhar. Além das barreiras, no portão norte da cidade, centenas de figuras escuras estavam juntas, alguns aconchegados juntos, alguns permanecendo separados: os Seres do Submundo que Luke tinha chamado para ajudar a cidade, esperando pacientemente pela palavra da Clave para deixá-los entrar.
Um tremor chamuscou a espinha de Clary. Ela estava equilibrada não apenas sobre o cume desta colina, olhando sobre uma íngreme descida para a cidade abaixo, mas à beira de uma crise, um evento que mudaria o funcionamento de todo o mundo dos Caçadores de Sombras.
— Eles estão aqui — Simon disse, meio para si mesmo — eu me pergunto se isso significa que a Clave decidiu.
— Eu espero que sim — o fiapo de grama que Clary esteve mexendo era uma mutilada bagunça verde; ela o jogou de lado e puxou outro — eu não sei o que vou fazer se eles decidirem ceder a Valentim. Talvez eu crie um Portal que leve todos nós para algum lugar onde Valentim nunca possa nos achar. Uma ilha deserta, ou algo assim.
— Ok, eu tenho uma pergunta estúpida. Você pode criar novas runas, certo? Por que você não pode criar uma para destruir todos os demônios no mundo? Ou matar Valentim?
— Isso não funciona assim. Só posso criar runas que eu visualizo. A imagem toda vem na minha mente, como uma foto. Quando eu tento visualizar “matar Valentim”, “governar o mundo” ou algo assim, eu não tenho nenhuma imagem. Só chiado.
— Mas de onde é que as imagens das runas vem, você já pensou?
— Eu não sei. Todas as runas dos Caçadores de Sombras que se sabem vieram do Livro Cinza. Este é o porquê de elas só poderem ser colocadas em Nephilim; que é o que eles são. Mas lá há outras, runas antigas. Magnus me disse. Como a Marca de Caim. Era uma marca de proteção, mas não uma do Livro Cinza. Então quando penso nestas runas, como a runa destemido, eu não sei se é algo que eu inventei ou algo que estou me lembrando – runas mais antigas do que os Caçadores de Sombras. Runas tão velhas quanto os anjos em si.
Ela pensou na runa que Ithuriel tinha mostrado a ela, uma tão simples quanto um nó. Ela tinha vindo de sua própria mente, ou do anjo? Era apenas algo que tinha sempre existido, como o mar ou o céu? O pensamento a fez estremecer.
— Você está com frio? — Simon perguntou.
— Sim... você não?
— Eu não tenho mais frio — ele colocou um braço ao redor dela, sua mão esfregando as costas dela em círculos lentos. Ele riu com tristeza — acho que provavelmente não ajuda muito que eu não tenha nenhum calor corporal e tudo.
— Não. Quero dizer – sim, isso ajuda. Fique assim.
Ela olhou para Simon. Ele estava fitando o portão norte, cercado com figuras escuras de Seres do Submundo ainda reunidos, quase imóveis. A luz vermelha das torres demoníacas refletia em seus olhos; ele parecia como alguém em uma fotografia tirada com flash. Ela podia ver as leves veias azuis serpenteando bem abaixo da superfície de sua pele onde ela era mais fina: suas têmporas, a base da sua clavícula. Sabia o suficiente sobre vampiros para saber que isso significava que devia ter sido há algum tempo que ele tinha se alimentado.
— Você está com fome?
Agora, ele baixou seu olhar para ela.
— Teme que eu morda você?
— Você sabe que é bem-vindo para tomar meu sangue, sempre que precisar.
Um tremor, não do frio, passou sobre ele, e ele a puxou mais fortemente contra si.
— Eu nunca faria isso — ela falou. E então, mais levemente — além do mais, eu já bebi sangue de Jace, me alimentei o suficiente de meus amigos.
Clary pensou na cicatriz pálida no pescoço de Jace. Lentamente, sua mente se encheu da imagem de Jace, ela disse:
— Você acha que é o porquê...
— Porquê do quê?
— Porque a luz do sol não te machuca? Quero dizer, ela machucava você antes disso, não é? Antes da noite no navio?
Ele acenou relutantemente.
— Então o que mais mudou? Ou isso é só porque você bebeu seu sangue?
— Você quer dizer por que ele é Nephilim? Não. Não, é algo mais. Você e Jace... vocês não são realmente normais, não é? Quero dizer, não um Caçador de Sombras normal. Há algo de especial em vocês dois. Como a Rainha Seelie disse. Vocês foram experiências — ele sorriu com o olhar assustado dela — não sou burro. Eu posso juntar as coisas. Você com seus poderes de runa, e Jace, bem... ninguém pode ser tão chato sem algum tipo de assistência sobrenatural.
— Você realmente não gosta dele tanto assim?
— Eu não o odeio — Simon protestou — quero dizer, primeiro eu o odiava, ele parecia tão arrogante e certo de si mesmo, e você agia como se ele suspende-se a lua...
— Eu não...
— Me deixe terminar, Clary.
Havia uma falta de fôlego oculta na voz de Simon, se alguém que não respirasse pudesse ter isso. Ele soou como se estivesse correndo em direção a algo.
— Eu podia dizer o quanto você gostava dele, e pensei que ele estava te usando, que você era apenas alguma garota mundana estúpida que ele podia impressionar com seus truques de Caçador de Sombras. Primeiro eu disse a mim mesmo que você nunca cairia nisso, e então mesmo que você o fizesse, ele ficaria cansado e eventualmente você voltaria para mim. Eu não estou orgulhoso disso, mas quando se está desesperado, acredita-se em qualquer coisa, eu acho. E então quando ele se tornou seu irmão, isso pareceu ser uma prorrogação de ultimo minuto – e eu fiquei feliz. Eu estava mesmo feliz em ver que ele parecia estar sofrendo, até aquela noite na Corte Seelie quando você o beijou. Eu pude ver...
— Ver o quê? — Clary perguntou, incapaz de suportar a pausa.
— O modo como ele olhou para você. Então eu entendi. Ele nunca esteve te usando. Ele te amava, e isso estava matando ele.
— Foi por isso que você foi ao Dumort? — Clary sussurrou.
Era algo que ela sempre quis saber, mas nunca tinha sido capaz de perguntar.
— Por causa de você e de Jace? Não de uma forma verdadeira, não. Desde aquela noite no Hotel eu esperava voltar. Eu sonhava com isso. E eu acordava fora da cama, me vestindo, ou já na rua, e sabia que eu queria voltar para o Hotel. Era pior à noite, e pior quando eu chegava nas proximidades do hotel. Nem mesmo me ocorreu que era algo sobrenatural – eu pensei que fosse estresse pós traumático ou algo assim. Aquela noite, eu estava tão cansado e zangado, e nós estávamos tão próximos do hotel, e era noite – eu mal me lembro do que aconteceu. Só me lembro de caminhar para longe do parque, e então – nada.
— Mas se você não tivesse estado zangado comigo... se nós não tivéssemos chateado você....
— Não é como se eu tivesse uma escolha — Simon falou — e não é como eu não soubesse. Você só pode empurrar a verdade para baixo durante algum tempo, e então ela vêm à tona. O meu erro foi não te dizer o que estava acontecendo comigo, não te contar sobre meus sonhos. Mas eu não me arrependo de ter namorado você. Estou feliz por tentarmos. E eu amo você por tentar, mesmo que isso nunca fosse funcionar.
— Eu queria tanto que funcionasse — Clary disse suavemente — eu nunca quis machucar você.
— Eu não mudaria isso. Eu não desistiria de te amar. Por nada. Você sabe o que Raphael me disse? Que eu não sabia como ser um vampiro bom, que os vampiros aceitavam que estavam mortos. Mas enquanto eu me lembrar como amar você, eu sempre sentirei que estou vivo.
— Simon...
— Olhe — ele a interrompeu com um gesto, seus olhos escuros se ampliando — lá embaixo.
O sol era uma fatia vermelha no horizonte. Enquanto Clary olhava, ele piscou e sumiu, desaparecendo na extremidade escura do mundo. As torres demoníacas de Alicante resplandeciam dentro da súbita incandescente vida. Em sua luz Clary podia ver a multidão escura enxameando impacientemente ao redor do portão norte.
— O que está acontecendo? — ela sussurrou. — O sol se pôs, por que os portões não estão se abrindo?
Simon ficou imóvel.
— A Clave. Ela deve ter dito não a Luke.
— Mas ela não pode! — A voz de Clary subiu afiadamente. — Isso significaria...
— Que eles vão se entregar a Valentim.
— Eles não podem! — Clary gritou de novo, mas enquanto ela olhava, viu grupos de figuras escuras em torno das barreiras se virando e se afastando da cidade, fluindo como formigas para fora de um formigueiro destruído.
O rosto de Simon estava aborrecido na luz desbotada.
— Eu acho que eles realmente nos odeiam muito. Eles realmente preferem escolher Valentim.
— Não é ódio — Clary disse — eles estão com medo. Valentim tinha medo — ela falou sem pensar, e notou enquanto dizia, que isso era verdade — medo e ciúme.
Simon lançou um olhar em direção a ela em surpresa.
— Ciúme?
Mas Clary tinha voltado ao sonho que Ithuriel tinha mostrado a ela, a voz de Valentim ecoando em seus ouvidos, sonhei que você me diria o porquê. Porque Raziel nos criou, sua raça de Caçadores de Sombras, todavia não nos deu os poderes que os Seres do Submundo tem – a velocidade dos lobos, a imortalidade do Povo das Fadas, a magia dos bruxos, até mesmo a resistência dos vampiros. Ele nos deixou indefesos perante os hospedeiros do inferno com exceção dessas linhas pintadas em nossa pele. Por que seus poderes são maiores do que os nossos? Porque nós não podemos compartilhar daquilo que eles têm?
Seus lábios se repartiram e ela fitou sem ver realmente a cidade abaixo. Ela estava vagamente consciente de que Simon estava dizendo seu nome, mas sua mente estava correndo. O anjo poderia ter mostrado a ela qualquer coisa, ela pensou, mas tinha escolhido mostrar a ela estas cenas, suas memórias, por uma razão. Ela pensou em Valentim gritando, Que nós deveríamos estar restringidos aos Seres do Submundo, ligados a essas criaturas...
E a runa. A que ela tinha sonhado. A runa tão simples quanto um nó.
Porque nós não podemos compartilhar daquilo que eles têm?
— Ligação — ela disse em voz alta — é uma runa de vínculo. Ela une o semelhante com o diferente.
— O quê? — Simon olhou para ela em confusão.
Ela lutou para ficar de pé, limpando a sujeira.
— Eu tenho que descer lá. Onde está?
— Onde quem está? Clary...
— A Clave. Onde eles estão reunidos? Onde Luke está?
Mas ela já estava correndo em direção ao sinuoso caminho que levava à cidade. Xingando sob sua respiração, Simon a seguiu.
Eles dizem que todos os caminhos levam para o Salão. As palavras de Sebastian golpeavam a mente de Clary e ela correu à toda velocidade nas ruas estreitas de Alicante. Esperava que isso fosse verdade, por que senão ficaria definitivamente perdida. As ruas giravam em estranhos ângulos, não como as adoráveis e retas, ruas entrelaçadas de Manhattan. Em Manhattan você sempre sabia onde estava. Tudo era claramente numerado e atribuído. Isto aqui era um labirinto.
Ela se lançou através de um pequeno pátio e abaixo de um dos caminhos estreitos do canal, sabendo que se seguisse a água, iria eventualmente ir à Praça do Anjo. Para sua surpresa, o caminho a levou para a casa de Amatis, e então ela estava correndo, arfando, em uma larga curva familiar. Ela abria para uma praça, o Salão dos Acordos se elevando amplo e branco perante ela, a estátua do Anjo brilhando no centro da praça. Em pé, ao lado da estátua, estava Simon, seus braços cruzados, observando-a sombriamente.
— Você podia ter esperado — ele disse.
Ela se inclinou a frente, suas mãos em seus joelhos, tomando fôlego.
— Você não pode... realmente dizer isso... já que chegou aqui antes de mim.
— Velocidade vampira — Simon respondeu com alguma satisfação — quando nós voltarmos para casa, eu deveria ir para as pistas de corrida.
— Isso seria... trapaça — com uma última e profunda respiração, Clary se endireitou e empurrou seu cabelo suado fora dos olhos — vamos lá. Nós vamos entrar.
O Salão estava cheio de Caçadores de Sombras, mais Caçadores do que Clary já tinha visto antes em um lugar, mesmo na noite do ataque de Valentim. Suas vozes aumentavam em um rugir como um estrondo de avalanche; a maioria deles reunidos em grupos contenciosos e barulhentos – a plataforma estava deserta, o mapa de Idris pendurado desamparadamente atrás dele.
Ela procurou ao redor por Luke. Levou um instante para encontrá-lo, inclinado contra um pilar com seus olhos semicerrados. Ela parecia terrivelmente meio morto, seus ombros caídos. Amatis estava em pé atrás dele, batendo em seus ombros com preocupação.
Clary olhou ao redor, mas Jocelyn não estava em lugar algum para ser vista na multidão. Por um momento, ela hesitou. Então pensou em Jace, indo atrás de Valentim, fazendo isso sozinho, sabendo que poderia muito bem ser morto. Sabia que ele era parte disso, uma parte de tudo isso, e ela também era – sempre tinha sido, mesmo quando não sabia.
A adrenalina ainda estava correndo através dela em picos, acentuando sua percepção, fazendo tudo parecer claro. Quase claro demais. Ela apertou a mão de Simon.
— Deseje-me sorte — ela disse, e então seus pés estavam levando-a em direção aos degraus da plataforma, quase contra sua vontade, e então ela estava de pé sobre a plataforma e se virando para enfrentar a multidão.
Ela não tinha certeza do que tinha esperado. Arfares de surpresa? Um mar de rostos silenciosos e em expectativa? Eles mal a notaram. Só Luke olhou para cima, como se a sentisse lá, e congelou com um olhar de espanto em seu rosto.
E lá estava alguém vindo na direção dela através da multidão – um homem alto com ossos proeminentes, como a proa de uma embarcação. O Cônsul Malachi. Ele estava gesticulando para ela descer da plataforma, agitando sua cabeça e gritando alguma coisa que ela não podia ouvir. Mais Caçadores de Sombras se viraram em direção a ela, enquanto ele fazia seu caminho através da multidão. Clary tinha o que queria agora, todos os olhos pregados nela. Ela ouviu os sussurros correndo através da multidão: É ela. A filha de Valentim.
— Vocês estão certos — ela disse, lançando sua voz tão longe e tão alto quanto podia — eu sou a filha de Valentim. Eu nunca soube que ele era meu pai até algumas semanas atrás. Sei que muitos de vocês acreditam que isso não é verdade, e tudo bem. Acreditem no que quiserem. Apenas contanto que vocês também acreditem que eu sei coisas sobre Valentim que vocês não sabem, coisas que podem ajudá-los a vencer esta batalha contra ele – se apenas vocês me deixarem falar.
— Ridículo — Malachi ficou aos pés dos degraus da plataforma — isto é ridículo. Você é só uma garotinha...
— Ela é a filha de Jocelyn Fairchild — era Patrick Penhallow. Empurrando seu caminho em frente a multidão, ele levantou uma mão — deixe a garota dar seu conselho, Malachi.
A multidão estava murmurando.
— Você — Clary disse para o Cônsul — você e o Inquisidor jogaram meu amigo Simon na prisão...
Malachi desdenhou.
— Seu amigo vampiro?
— Ele me contou que você lhe perguntou o que aconteceu no navio de Valentim aquela noite no Rio East. Você pensou que Valentim fez algo, algo como magia negra. Bem, ele não fez. Se você quer saber o que destruiu aquele navio, a resposta sou eu. Eu fiz isso.
A risada de descrença de Malachi foi ecoada por vários outros no grupo. Luke estava olhando para ela, balançando a cabeça, mas Clary relevou.
— Eu fiz isso com uma runa. Ela era uma runa tão forte que fez o navio se fragmentar em pedaços. Eu posso criar novas runas. Não só as do Livro Cinza. Runas que ninguém tenha visto antes – mais poderosas...
— Já chega — Malachi rugiu — isto é ridículo. Ninguém pode criar novas runas. Isso é uma completa impossibilidade — ele se virou para a multidão — como seu pai, esta garota é nada mais que uma mentirosa.
— Ela não está mentindo.
A voz veio de de trás do grupo. Ela era clara, forte e decidida. A multidão se virou, e Clary viu quem tinha falado: era Alec. Ele estava com Isabelle de um lado dele e Magnus no outro. Simon estava com eles, e também Maryse Lightwood.
Eles formavam um pequeno e determinado grupo nas portas da frente.
— Eu a vi criar uma runa. Ela a testou em mim. Funcionou.
— Você está mentindo — o Cônsul disse, mas a dúvida tinha penetrado em seus olhos — para proteger sua amiga...
— Realmente, Malachi — Maryse disse secamente — por que meu filho iria mentir sobre algo como isso, quando a verdade pode ser tão facilmente descoberta? Dê a garota uma estela e a deixe criar uma runa.
Um murmúrio de consentimento correu ao redor do Salão. Patrick Penhallow veio a frente e entregou uma estela para Clary. Ela a pegou, grata, e se virou de volta a multidão.
Sua boca ficou seca. Sua adrenalina ainda continuava alta, mas isso não era o suficiente para afundar completamente seu terror de palco. O que era para ela supostamente fazer? Que tipo de runa ela poderia criar que convencesse aquele grupo que ela estava dizendo a verdade? O que mostraria a eles a verdade?
Ela olhou para a multidão e viu Simon com os Lightwood, olhando para ela através do espaço vazio que os separava. Era do mesmo modo que Jace tinha olhado para ela na mansão. Era um vinculo que ligava estes dois garotos que ela amava tanto, ela pensou, sua associação: ambos acreditavam nela, mesmo quando ela não acreditava em si mesma.
Olhando para Simon, e pensando em Jace, ela trouxe sua estela abaixo e encostou a ponta contra a parte de dentro de seu pulso, onde sua pulsação batia. Ela não olhou enquanto a estava fazendo, a desenhou cegamente, confiando em si mesma e na estela para criar a runa que ela precisava.
Desenhou-a fracamente, levemente – ela precisava dela só por um momento – mas sem um segundo de hesitação. E quando terminou, levantou sua cabeça e abriu seus olhos.
A primeira coisa que ela viu foi Malachi. Seu rosto tinha ficado branco, ele estava se afastando dela com um olhar de terror. Ele disse algo – uma palavra em um linguagem que ela não reconheceu – e então Clary viu Luke atrás dele, olhando para ela, sua boca ligeiramente aberta.
— Jocelyn? — Luke perguntou.
Ela agitou a cabeça para ele, apenas ligeiramente, e olhou para a multidão. Ela era um borrão de rostos, aparecendo e desaparecendo enquanto olhava. Alguns estavam sorrindo, alguns olhando ao redor da multidão em surpresa, alguns virando para a pessoa que estava próxima a ela. Algumas poucas usavam expressões de horror ou de espanto, mãos apertadas sobre suas bocas. Ela viu Alec olhar rapidamente para Magnus, e então para ela, em descrença, e Simon olhando em perplexidade, e então Amatis veio a frente, empurrando seu caminho passando a largura de Patrick Penhallow, e correu para a beira do estrado.
— Stephen! — ela disse, olhando acima para Clary com uma espécie de espanto deslumbrado. — Stephen!
— Ah — Clary falou — ah, Amatis, não.
E então ela sentiu a magia da runa escorregar dela, como se tivesse deslizado um fino e invisível tecido. A expressão ansiosa de Amatis caiu e ela se afastou do estrado, sua expressão meio desapontada e meio maravilhada.
Clary olhou através da multidão. Eles estavam completamente silenciosos, todos os rostos virados para ela.
— Eu sei o que todos vocês acabaram de ver. E sei que você sabem que esse tipo de magia está além de qualquer encantamento ou ilusão. E eu fiz isso com uma runa, uma única runa, uma runa que eu criei. Há razões por eu ter esta habilidade, e sei que vocês poderiam não gostar dela ou mesmo acreditar nela, mas isso não importa. O que importa é que eu posso ajudar vocês a vencerem esta batalha contra Valentim, se me deixarem.
— Não haverá uma batalha contra Valentim — Malachi disse. Ele não encontrou os olhos dela enquanto falava — a Clave decidiu. Nós iremos concordar com os termos de Valentim e largar a nossas armas amanhã de manhã.
— Vocês não podem fazer isso — ela falou, uma matiz de desespero entrando em sua voz — você acha que tudo ficará bem se desistirem? Acha que Valentim vai lhes deixar continuar vivendo como tem vivido? Acha que ele limitará sua matança para os demônios e os Seres do Submundo? — Ela varreu seu olhar através da sala. — A maioria de vocês não viu Valentim em quinze anos. Talvez tenham se esquecido de como ele realmente é. Mas eu sei. Eu o ouvi falar sobre seus planos. Pensam que podem continuar a viver suas vidas debaixo das regras de Valentim, mas não serão capazes. Ele irá controlá-los completamente, por que sempre será capaz de ameaçar e destruí-los com os Instrumentos Mortais. Ele irá começar com os Seres do Submundo, é claro. Mas então irá para a Clave. Os matará primeiro porque acha que eles são fracos e corruptos. E então ele começará com qualquer um que tenha um Ser do Submundo na família. Talvez um irmão lobisomem — seus olhos passaram sobre Amatis... — ou uma filha adolescente rebelde que ocasionalmente se encontre com elfos — seus olhos foram para os Lightwoods — ou qualquer um que proteja um Ser do Submundo. E então ele irá atrás de qualquer um que empregue os serviços de um bruxo. Quantos de vocês seriam?
— Isso é tolice — Malachi disse secamente — Valentim não está interessado em destruir os Nephilim.
— Mas ele não acha que alguém que se associe com Seres do Submundo é digno de ser chamado de Nephilim — Clary insistiu — olhe, sua guerra não é contra Valentim. É contra os demônios. Manter os demônios longe deste mundo é seu dever, um dever do Céu. E um dever do Céu não é algo que vocês podem simplesmente ignorar. Seres do Submundo odeiam demônios também. Eles os destroem também. Se Valentim tiver o que quer, ele irá gastar muito de seu tempo tentando assassinar cada Ser do Submundo, e cada Caçador de Sombras que esteja associado com eles, e vai esquecer tudo sobre os demônios, e vocês também, por que estarão muito ocupados tendo medo de Valentim. E eles irão invadir o mundo, e será assim.
— Eu vejo onde isto está indo — Malachi falou através de dentes apertados — nós não iremos lutar ao lado de Seres do Submundo uma luta que nós talvez não possamos ganhar...
— Mas vocês podem vencê-la — Clary respondeu — vocês podem.
Sua garganta estava seca, a cabeça latejando, e os rostos na multidão perante ela pareciam fundir em um borrão inexpressivo, pontuado aqui e ali por suaves explosões brancas de luz. Mas você não pode parar agora. Você tem que continuar. Você tem que tentar.
— Meu pai odiava Seres do Submundo porque tinha ciúmes deles — ela continuou, suas palavras tropeçando uma sobre a outra — ciúme e medo de todas as coisas que eles podiam fazer e que ele não podia. Ele odiava que de alguns modos, eles são mais poderosos do que os Nephilim, e aposto que ele não está sozinho nisto. É fácil ter medo do que você não compartilha — ela tomou um fôlego — mas e se vocês pudessem compartilhar isso? E se eu pudesse fazer uma runa que pudesse ligar cada um de vocês, cada Caçador de Sombras, com um Ser do Submundo que estivesse lutando ao seu lado, e vocês pudessem compartilhar seus poderes – pudessem se curar tão rápido quanto um vampiro, serem tão fortes quanto um lobisomem ou tão veloz quanto uma fada? E eles, em troca, poderiam compartilhar de sua formação, suas habilidades de combate. Vocês poderiam ser uma força imbatível – se me deixarem marcar vocês, e se lutarem junto com os Seres do Submundo. Por que se vocês não lutarem ao lado deles, as runas não irão funcionar — ela pausou — por favor — ela terminou, mas as palavras eram quase inaudíveis em sua garganta seca — por favor, me deixem marcar vocês.
Suas palavras caíram em um silêncio envolvente. O mundo se moveu em um borrão, e ela percebeu que tinha dado a última metade de seu discurso olhando para o teto do Salão, que tinha as suaves explosões brancas que ela tinha visto como sendo as estrelas saindo no céu noturno, uma por uma.
O silêncio continuou e continuou enquanto suas mãos, ao seu lado, se curvaram lentamente em punhos. E então lentamente, muito lentamente, abaixou seu olhar e encontrou os olhos da multidão encarando-a de volta.

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