Capítulo 16 - A Pedra do Coração
Clary apertou o botão para ligar para Simon de volta, mas o celular caía direto na caixa postal. Lágrimas quentes escorriam por suas bochechas e ela jogou seu telefone no painel.
— Droga, droga...
— Nós estamos quase lá — Luke disse.
Eles tinham pegado a via expressa e ela não tinha notado. Estacionaram em frente a casa de Simon. Uma familiar casa de madeira cuja frente era pintada em um alegre vermelho. Clary desceu do carro e correu na calçada da frente antes que Luke tivesse mesmo puxado o freio. Podia ouvi-lo gritar seu nome enquanto ela se lançava pelos degraus e batia freneticamente na porta.
— Simon! — ela gritou. — Simon!
— Clary, chega — Luke alcançou-a na varanda — os vizinhos...
— Danem-se os vizinhos.
Procurou pela chave em seu cinto. Achando a chave certa, deslizou-a na fechadura. Abriu a porta e caminhou cautelosamente pelo corredor, Luke bem atrás dela. Eles espreitaram a primeira porta à esquerda, a cozinha. Tudo estava exatamente como sempre esteve, do balcão meticulosamente limpo aos imãs de geladeira. Havia a pia onde tinha beijado Simon há apenas alguns dias. A luz do sol fluía através das janelas, enchendo a sala com a pálida luz amarela. Luz que era capaz de carbonizar Simon até as cinzas.
O quarto de Simon era o último no fim do corredor. A porta estava ligeiramente aberta, embora Clary só pudesse ver a escuridão através da fresta.
Deslizou sua estela para fora do bolso e agarrou-a fortemente. Sabia que não era realmente uma arma, mas a sensação dela em sua mão era calmante.
Dentro do quarto era escuro, cortinas negras puxadas nas janelas. A única luz vinha do relógio digital na mesinha de cabeceira. Luke estava esticando o braço para acender a luz quando alguma coisa – algo que sibilava e guinchava – lançou-se a sobre ele.
Clary gritou enquanto Luke prendia seus ombros e a empurrava duramente de lado. Ela tropeçou e quase caiu; quando se endireitou, se virou para ver um Luke atônito segurando um gato branco uivante e se debatendo, seus pelos todos eriçados... parecia como uma bola de algodão com garras.
— Yossarian! — Clary exclamou.
Luke largou o gato. Yossarian imediatamente caiu sobre suas pernas e desapareceu pelo corredor.
— Gato estúpido — Clary disse.
— Não é culpa dele. Gatos não gostam de mim — Luke alcançou o interruptor e o apertou.
Clary arfou. O quarto estava completamente em ordem, nada fora do lugar, nem mesmo o tapete transversal. Mesmo a colcha estava dobrada organizadamente sobre a cama.
— Isso é uma ilusão?
— Provavelmente não. Provavelmente apenas mágica — Luke se moveu para o centro do quarto, olhando ao redor pensativamente.
Enquanto ele se movia para empurrar uma das cortinas de lado, Clary viu alguma coisa brilhar no carpete a seus pés.
— Luke, espere.
Foi até onde ele estava e se ajoelhou para recuperar o objeto. Era o celular prata de Simon, entortado e amassado. Com o coração batendo, Clary abriu o telefone. Apesar da rachadura que corria através da tela de display, uma única mensagem ainda era visível: Agora eu tenho todos eles.
Clary afundou na cama em confusão. Distante, ela sentiu Luke arrancar o telefone de sua mão. Ouviu-o sugar a respiração enquanto lia a mensagem
— O que isso significa? Agora eu tenho todos eles? — Clary perguntou.
Luke colocou o celular de Simon na escrivaninha e passou uma mão sobre seu rosto.
— Temo que signifique que agora ele tem Simon, e podemos julgar que Maia também. Ele tem tudo o que precisa para o Ritual da Conversão.
Clary olhou para ele.
— Você quer dizer que isso não se trata de atingir a mim... e a você?
— Tenho certeza que Valentim considerou isso como um agradável efeito colateral. Mas esse não é seu principal objetivo. Seu objetivo principal é reverter as características da Espada da Alma. E pelo o que ele precisa...
— O sangue de crianças Seres do Submundo. Mas Maia e Simon não são crianças. Eles são adolescentes.
— Quando o feitiço para transformar a Espada da Alma em escuridão foi criado, a palavra adolescente não tinha sido inventada. Na sociedade dos Caçadores de Sombras, você é adulto quando tem dezoito anos. Antes disso, você é uma criança. Para os propósitos de Valentim, Maia e Simon são crianças. Ele já tem o sangue de uma criança fada e o de uma criança bruxa. Tudo o que precisava era de um lobisomem e um vampiro.
Clary sentiu como se o ar tivesse sido socado fora dela.
— Então por que não fizemos alguma coisa? Por que não pensamos em protegê-los de alguma forma?
— Até agora, Valentim tem feito o que lhe é conveniente. Nenhuma de suas vitimas foi escolhida por alguma razão qualquer. O bruxo foi fácil de encontrar, tudo o que Valentim teve que fazer foi contratá-lo com o argumento de esperar que um demônio levantasse. É suficiente simples localizar fadas em um parque se souber onde procurar. E o Caçador da Lua é exatamente o lugar aonde você vai se quer encontrar um lobisomem. Se colocar neste perigo e problema só para nos atingir quando nada mudou...
— Jace — Clary falou.
— O que você quer dizer com “Jace”? O que tem ele?
— Acho que é Jace que ele está tentando recuperar. Jace deve ter feito alguma coisa na noite passada naquele barco, algo que realmente irritou Valentim. Irritou o suficiente para abandonar qualquer que fosse o plano que ele tinha antes e fazer um novo.
Luke pareceu confuso.
— O que te faz pensar que a mudança de planos de Valentim tenha a ver com seu irmão?
— Porque — Clary respondeu com uma certeza amarga — só Jace pode irritar alguém tanto assim.
***
— Isabelle! — Alec golpeou a porta de sua irmã. — Isabelle, abra a porta. Eu sei que você está aí dentro.
A porta abriu em uma fenda. Alec tentou sondar através dela, mas ninguém aparecia do outro lado.
— Ela não quer falar com você — disse uma voz bem conhecida.
Alec olhou para baixo e viu olhos cinzentos encarando-o por trás de um par de óculos tortos.
— Max. Vamos lá, irmãozinho, me deixe entrar.
— Eu não quero falar com você também — Max começou a empurrar a porta para fechar, mas Alec, rápido como o chicote de Isabelle, cravou seu pé na fresta.
— Não me faça bater mais, Max.
— Você não tem — Max empurrou para trás com tudo o que ele podia.
— Não, mas eu poderia ir aos nossos pais, e tenho a sensação que Isabelle não quer isso. Você quer Izzy? — ele perguntou, sua voz alta o suficiente para sua irmã ouvir dentro do quarto.
— Oh, pelo amor de Deus — Isabelle soou furiosa — tudo bem, Max. Deixe-o entrar.
Max se afastou e Alec empurrou seu caminho, deixando a porta balançar entreaberta atrás dele. Isabelle estava ajoelhada no batente da janela ao lado de sua cama, o chicote dourado enrolado em torno de seu braço esquerdo. Ela estava usando seu equipamento de caça: as rígidas calças pretas e a blusa apertada, suas runas prateadas, quase invisíveis. Suas botas afiveladas até os joelhos e o cabelo preto chicoteando na brisa da janela aberta.
Ela encarou-o, lembrando-lhe por um momento de Hugo, o corvo preto de Hodge.
— O que no inferno você está fazendo? Tentando se matar? — Ele exigiu, caminhando furiosamente através do quarto na direção de sua irmã.
O chicote contorceu-se como uma cobra, enrolando em torno de seus tornozelos. Alec paralisou, sabendo que com um simples movimento de seu pulso, Isabelle podia derrubá-lo e lança-lo como um saco de batatas no piso de madeira.
— Não chegue mais perto de mim, Alexander Lightwood — ela avisou em uma voz furiosa — eu não estou me sentindo muito bondosa com você no momento.
— Isabelle...
— Como você pôde virar as costas a Jace desse jeito? Depois de tudo o que ele tem passado? E você fez aquele juramento de cuidar um do outro...
— Não — ele a lembrou — se isso significar quebrar a Lei.
— A Lei! — Isabelle rebateu em desgosto. — Há uma Lei maior do que a Clave, Alec. A lei da família. Jace é sua família.
— A lei da família? Eu nunca tinha ouvido falar disso antes — Alec respondeu, implicando.
Ele sabia que deveria se defender, mas era difícil não ser distraído pelo longo hábito de corrigir os irmãos mais jovens quando eles estavam errados.
— Poderia ser por que você inventou isso? — Alec perguntou.
Isabelle sacudiu seu pulso. Alec sentiu seus pés saírem de debaixo dele e girou para absorver o impacto da queda com suas mãos e punhos. Ele aterrissou, rolando em suas costas, olhando acima para ver Isabelle agigantando-se acima dele. Max estava ao lado dela.
— O que nós devemos fazer com ele, Maxwell? — Isabelle perguntou. — Deixá-lo aqui amarrado para nossos pais o encontrarem?
Alec tinha tido o suficiente. Ele removeu a lâmina da bainha em seu pulso, girou e cortou o chicote em torno de seus tornozelos. O fio de electrum partiu com um estalo e esparramou a seus pés enquanto Isabelle puxava seu braço para trás, o fio sibilando em torno dela.
Uma risada baixa quebrou a tensão.
— Tudo bem, tudo bem, você já o torturou o suficiente. Eu estou aqui.
Os olhos de Isabelle se arregalaram.
— Jace!
— Eu mesmo — Jace mergulhou no quarto de Isabelle, fechando a porta atrás de si — não tem necessidade de vocês dois brigarem... — Ele recuou enquanto Max se pulava sobre ele, gritando seu nome. — Cuidado aí — ele disse, gentilmente desembaraçando-se do menino — eu não estou em melhor forma no momento.
— Posso ver isso — Isabelle respondeu, seus olhos varrendo-o ansiosamente.
Os pulsos dele estavam ensanguentados, seu cabelo loiro estava emplastrado com suor e seu rosto e mãos estavam manchados com sujeira e sangue.
— A Inquisidora te machucou?
— Não tão gravemente — os olhos de Jace encontraram os de Alec — ela só me trancou na galeria de armas. Alec me ajudou a sair.
O chicote caiu da mão de Isabelle como uma flor.
— Alec, isso é verdade?
— Sim — Alec limpou a poeira do chão de suas roupas com deliberada ostentação. Ele não resistiu em adicionar: — portanto ai está.
— Bem, você deveria ter dito.
— E você deveria ter tido alguma fé em mim...
— Chega. Não há tempo para briguinhas — Jace interrompeu — Isabelle, que tipo de armas você tem aqui? E bandagens, tem alguma?
— Bandagens? — Isabelle tirou sua estela de uma gaveta. — Eu posso curar você com uma iratze...
Jace levantou seus pulsos.
— Uma iratze iria ser boa para minhas contusões, mas não vai adiantar com isso. São queimaduras de runa.
Elas pareciam piores na luz brilhante do quarto de Isabelle – as cicatrizes circulares estavam pretas e rachadas em alguns lugares, esvaindo sangue e um líquido claro. Ele baixou as mãos enquanto Isabelle empalidecia.
— E vou precisar de algumas armas também, antes que eu...
— Bandagens primeiro. Armas depois.
Ela colocou o chicote em cima da penteadeira e guiou Jace para o banheiro com uma cesta cheia de pomadas, chumaços de gaze e tiras de faixas. Alec os observou através da porta semiaberta, Jace inclinado contra a pia enquanto sua irmã adotiva limpava seus pulsos e envolvia eles em gaze branca.
— Ok, agora tire sua blusa.
— Sabia que você queria alguma coisa de mim.
Jace deslizou a jaqueta do corpo e puxou sua blusa sobre a cabeça, recuando. Sua pele era dourada pálida, em camadas de fortes músculos. Marcas de tinta preta retorciam seus braços delgados. Um mundano poderia ter o pensamento de que as cicatrizes brancas que salpicavam como neve a pele de Jace, remanescentes de velhas runas, o faziam menos perfeito, mas não para Alec. Todos eles tinham estas cicatrizes; elas eram emblemas de honra, e não falhas.
Jace viu Alec observá-lo através da porta semiaberta.
— Posso pegar seu celular? — Alec perguntou.
— Está na penteadeira — Isabelle respondeu sem olhar.
Ela e Jace estavam conversando em tom baixo; Alec não podia ouvi-los, mas suspeitou que fosse porque estavam tentando não assustar Max.
Alec olhou na penteadeira.
— Não está.
Isabelle, traçando uma iratze no ombro de Jace, xingou em aborrecimento.
— Ah, inferno. Deixei meu telefone na cozinha. Droga. Eu não queria ir procurar no caso da Inquisidora estar por aí.
— Eu pego — Max ofereceu — ela não se importa comigo. Sou muito jovem.
— Acho que sim — Isabelle soou relutante — pra que você quer o telefone, Alec?
— Nós apenas precisamos dele — Alec disse impacientemente — Izzy...
— Se você quer o celular para mandar um texto ao Magnus dizendo “Eu acho você legal,” vou te matar.
— Quem é Magnus? — Max perguntou.
— Ele é um bruxo — Alec respondeu.
— Um bruxo sexy — Isabelle disse a Max, ignorando o olhar de Alec de total fúria.
— Mas bruxos são maus — Max protestou, parecendo confuso.
— Exatamente — Isabelle concordou.
— Eu não entendo. Mas estou indo pegar o telefone. Já volto.
Ele deslizou pela porta enquanto Jace colocava sua camiseta e jaqueta e voltava para o quarto, onde iniciou uma busca por armas nas pilhas de pertences de Isabelle que estavam espalhadas em torno do piso. Isabelle o seguiu, balançando a cabeça.
— Qual é o plano agora? Nós vamos todos embora? A Inquisidora vai surtar quando perceber que você não está mais lá.
— Não tanto quanto vai surtar quando Valentim desprezá-la — resumidamente, Jace contou os planos da Inquisidora — o único problema é que ele nunca vai vir por isso.
— O-o único problema? — Isabelle estava tão furiosa que quase gaguejou, uma coisa que não fazia desde os seis anos. — Ela não pode fazer isso! Não pode te negociar para um psicopata! Você é um membro da Clave! Você é nosso irmão!
— A Inquisidora não pensa assim.
— Eu não me importo com o que ela pensa. Ela é uma vaca odiosa e tem de ser parada.
— Uma vez que ela descubra que seus planos são seriamente falhos, ela poderá ser capaz de ser condescendente — Jace observou — mas não vou ficar em torno para descobrir. Estou saindo daqui.
— Isso não vai ser fácil — Alec respondeu — a Inquisidora tem este lugar trancado mais forte do que um pentagrama. Você sabe que há guardas lá embaixo? Ela chamou a metade da Clave.
— Deve ter um alto conceito de mim — Jace observou, atirando de lado uma pilha de revistas.
— Talvez ela não esteja errada — Isabelle olhou para ele pensativamente — você realmente pulou nove metros para fora da Configuração Malachi? Foi, Alec?
— Ele fez — Alec confirmou — eu nunca tinha visto nada assim.
— Eu nunca tinha visto nada como isso.
Jace levantou uma adaga de vinte e cinco centímetros do piso. Uma dos sutiãs rosa de Isabelle estava cravado maldosamente sobre a ponta afiada.
Isabelle o arrebatou, fazendo careta.
— Esse não é o ponto. Como você fez isso? Você sabe?
— Eu pulei.
Jace puxou dois discos cortantes vindos debaixo da cama. Eles estavam cobertos com pelo cinza de gato. Soprou-os, espalhando os pelos.
— Chakhrams. Legal. Especialmente se eu encontrar alguns demônios com séria alergia a caspa animal.
Isabelle golpeou-o com o sutiã.
— Você não está me respondendo!
— Porque eu não sei, Izzy — Jace ficou de pé — talvez a Rainha Seelie estivesse certa. Talvez eu tenha poderes, não sei quais, nunca os testei. Clary com certeza tem.
Isabelle franziu sua testa.
— Ela tem?
Os olhos de Alec esbugalharam subitamente.
— Jace... a moto vampira ainda está no telhado?
— Possivelmente. Mas é dia, então ela não é muito útil.
— Além disso — Isabelle apontou — nós não podemos todos ir nela.
Jace deslizou os chakrams para seu cinto, junto com a adaga de vinte e cinco centímetros. Várias lâminas de anjo foram para os bolsos de sua jaqueta.
— Isso não importa. Vocês não vem comigo.
Isabelle se ergueu.
— O que você quer dizer, não... não... — ela se interrompeu quando Max retornou, sem fôlego e se agarrando ao velho celular rosa — Max, você é um herói — ela arrancou o telefone dele, lançando um olhar para Jace — volto em um minuto. Enquanto isso, pra quem estamos ligando? Clary?
— Eu ligo pra ela — Alec esticou o braço — ela gosta mais de mim.
Ela já estava ligando; Isabelle colocou sua língua para fora enquanto segurava o celular em sua orelha.
— Clary? É Isabelle. Eu... o quê? — A cor em seu rosto foi varrida como se tivesse sido apagada, deixando-a cinza e de olhos arregalados. — Como isso é possível? Mas por que...
— Como o que é possível? — Jace estava ao lado de Izzy em duas passadas. — Isabelle, o que aconteceu? Clary...
Isabelle puxou o telefone para longe de sua orelha. Ela estava pálida.
— É Valentim. Ele capturou Simon e Maia. Vai usá-los para fazer o Ritual.
Em um movimento silencioso, Jace estendeu a mão e pegou o telefone de Isabelle. O pôs no seu ouvido.
— Dirija para o Instituto — ele disse — não entre. Espere por mim. Eu te encontro do lado de fora — Jace fechou o celular e o deu para Alec — chame Magnus. Diga para ele nos encontrar na área da praia no Brooklyn. Ele pode escolher o lugar, mas deve ser deserto. Nós vamos precisar de sua ajuda para chegar ao barco de Valentim.
— Nós? — Isabelle se animou visivelmente.
— Magnus, Luke e eu — Jace esclareceu — vocês dois ficam aqui e lidam com a Inquisidora para mim. Quando Valentim não vier para cumprir sua parte no acordo, vocês são os que vão convencê-la a enviar toda a assistência da Clave atrás de Valentim.
— Eu não saquei — Alec disse — como você planeja sair daqui em primeiro lugar?
Jace sorriu.
— Observe — ele respondeu, e pulou para o peitoril da janela.
Isabelle gritou, mas Jace já estava mergulhando através da janela aberta. Ele balançou por um momento no peitoril do lado de fora – e então se foi.
Alec correu para a janela e fitou o lado de fora em horror, mas não havia nada para se ver: apenas o jardim do Instituto lá embaixo, marrom e vazio, e o estreito caminho que guiava para a porta da frente. Não havia nenhum pedestre gritando na Rua Noventa com a sexta, nenhum carro encostando no meio fio pela visão de um corpo caindo. Era como se Jace tivesse desaparecido no ar.
***
O som da água o acordou. Era um som pesado e repetitivo – água batendo contra alguma coisa sólida, de novo e de novo, como se ele estivesse deitado no fundo de uma piscina que estava rapidamente drenando e reenchendo.
Havia um gosto de metal em sua boca e o cheiro de metal ao redor. Ele estava consciente de uma dor irritante e persistente em sua mão esquerda. Com um gemido, Simon abriu seus olhos.
Estava deitado em um piso de metal duro e enviesado, pintado em um feio cinza esverdeado. As paredes eram do mesmo metal verde. Havia uma única janela redonda em uma parede, deixando entrar apenas um pequeno feixe luz solar, mas era o suficiente. Tinha estado deitado com a mão em um trecho daquilo e seus dedos estavam vermelhos e empolados. Com outro gemido, ele rolou para longe da luz e se sentou.
E notou que não estava sozinho no quarto. Apesar das sombras serem densas, ele podia ver muito bem na escuridão. Do outro lado, suas mãos presas juntas e acorrentadas em um largo cano de evaporação, estava Maia. Suas roupas estavam rasgadas e havia um sólido hematoma atravessando sua bochecha direita. Ele podia ver onde suas tranças tinham sido arrancadas do couro cabeludo de um lado, o cabelo emaranhado com sangue. No momento em que ele se sentou, ela o fitou e explodiu imediatamente em lágrimas.
— Pensei — ela soluçou entre o choro — que você... estivesse morto.
— Eu estou morto — Simon respondeu.
Ele estava olhando para sua mão. Enquanto observava, as bolhas se apagaram, a dor diminuiu, a pele retomando sua palidez normal.
— Eu sei, mas eu queria dizer realmente morto.
Ela limpou o rosto com as mãos atadas. Simon tentou se mover em direção a ela, mas alguma coisa o restringia. Uma algema de metal em torno de seu tornozelo estava anexada a uma corrente grossa de metal afundada ao chão.
Valentim não estava se arriscando.
— Não chore — ele disse, e imediatamente se lamentou. Não era como se a situação não merecesse lágrimas — eu estou bem.
— Por agora — Maia acrescentou, esfregando seu rosto contra sua manga — aquele homem – aquele com o cabelo branco – seu nome é Valentim?
— Você o viu? Eu não vi nada. A porta da frente apenas escancarou e então uma forma enorme veio a mim como um trem de carga.
— Ele é Valentim, certo? Aquele de quem todo mundo fala. Aquele que começou a Revolta.
— Ele é o pai de Jace e Clary. Isso é o que eu sei sobre ele.
— Pensei que sua voz parecia familiar. Ele soa como Jace — ela pareceu momentaneamente pesarosa — não é a toa que Jace é um saco.
Simon só podia concordar.
— Então você não... — A voz de Maia se interrompeu. Ela tentou de novo. — Olha, eu sei que isso parece estranho, mas quando Valentim foi até você, você viu alguém conhecido com ele, alguém que estava morto? Como um fantasma?
Simon balançou sua cabeça confusamente.
— Não. Por quê?
Maia hesitou.
— Eu vi meu irmão. O fantasma de meu irmão. Acho que Valentim me fez ter alucinações.
— Bem, ele não tentou nada como isso comigo. Eu estava no telefone com Clary. Lembro de derrubá-lo quando a forma veio até mim... — Ele deu de ombros. — É isso.
— Com Clary? — Maia pareceu quase esperançosa. — Então talvez eles descubram onde estamos. Talvez eles venham atrás de nós.
— Talvez. Afinal, onde nós estamos?
— Em um barco. Eu ainda estava consciente quando me trouxe para cá. É uma coisa grande e preta de metal. Não havia nenhuma luz e havia... coisas por todo lugar. Uma delas pulou em mim e eu comecei a gritar. Foi quando ele agarrou minha cabeça e a bateu na parede. Eu desmaiei por um tempo depois disso.
— Coisas? O que você quer dizer com coisas?
— Demônios — ela disse, e estremeceu — tem todo o tipo de demônios aqui. Os grandes, pequenos e os voadores. Fazem qualquer coisa que ele disser a eles.
— Mas Valentim é um Caçador de sombras. E de tudo o que eu tenho ouvido, ele odeia demônios.
— Bem, os demônios não parecem saber disso. O que eu não entendo é o que Valentim quer com eles. Sei que ele odeia os Seres do Submundo, mas parece um grande esforço só para matar dois deles.
Ela tinha começado a tremer, suas mandíbulas batendo juntas aqueles brinquedos de criança que você pode comprar em lojas de inovações.
— Ele deve querer alguma coisa dos Caçadores de Sombras. Ou de Luke.
Eu sei o que ele quer, Simon pensou, mas não havia nenhum ponto em dizê-lo para Maia, ela já estava aborrecida o suficiente. Ele retirou sua jaqueta.
— Aqui — ele ofereceu, e atirou-a através da sala para Maia.
Se contorcendo em torno de suas algemas, ela conseguiu jogar a jaqueta desajeitadamente sobre seus ombros. Ela ofertou a ele um fraco, mas grato sorriso.
— Obrigada. Mas você não está com frio?
Simon balançou a cabeça. A queimadura em sua mão tinha desaparecido inteiramente agora.
— Eu não sinto frio. Não mais.
Ela abriu a boca, e então fechou novamente. Uma luta estava tomando lugar atrás de seus olhos.
— Me desculpe. Sobre o modo como eu reagi com você ontem — ela pausou, quase segurando sua respiração — vampiros me assustam até a morte — ela sussurrou por fim — quando eu vim pela primeira vez na cidade, eu tinha um bando e costumava sair com – um idiota, e outros dois garotos, Steve e Gregg. Nós estávamos em um estacionamento uma vez e corremos para alguns vampiros que estavam sugando sacolas de sangue debaixo de uma ponte – houve uma luta e o que mais me lembro foi de um dos vampiros rasgar Gregg, apenas rasgá-lo, e cortá-lo ao meio — sua voz cresceu, e ela apertou uma mão sobre sua boca. Ela estava tremendo — ao meio — ela sussurrou — todas as suas entranhas caíram. E eles começaram a comer.
Simon sentiu uma estúpida pontada de náusea rolar sobre ele. Ele estava quase feliz por a história fazer mal a ele, ao contrário de outra coisa qualquer. Como fome.
— Eu não faria isso. Eu gosto de lobisomens. Eu gosto do Luke...
— Eu sei que você gosta. É só que quando eu te conheci, você parecia tão humano. Me fez lembrar de mim quando eu costumava ser assim, antes.
— Maia — Simon disse — você ainda é humana.
— Não, eu não sou.
— Do modo que conta, você é. Assim como eu.
Ela tentou sorrir. Podia dizer que Maia não acreditava nele, e dificilmente podia culpá-la. Ele não estava certo se acreditava.
***
O céu tinha se tornado bronze, sobrecarregado com nuvens pesadas. Em uma luz cinza, o Instituto se agigantava acima, imenso como a encosta de uma montanha. Os ângulos do teto de ardósia brilhavam como prata não polida. Clary pensou ter percebido o movimento de figuras encapuzadas nas sombras da porta da frente, mas não tinha certeza. Foi difícil perceber alguma coisa claramente quando estacionaram uma quadra acima, espreitando através das janelas manchadas da caminhonete de Luke.
— Quanto tempo faz? — Ela perguntou, pela quarta ou quinta vez, não tinha certeza.
— Cinco minutos a mais da última vez que você me perguntou — Luke respondeu.
Ele estava inclinado em seu assento, a cabeça para trás, parecendo completamente exausto. Os pelos cobrindo seu maxilar e bochechas eram cinza prateados e havia olheiras escuras em seus rosto. Todas aquelas noites no hospital, o ataque do demônio, e agora isso, Clary pensou, subitamente preocupada. Ela podia ver o que ele e sua mãe tinham escondido desta vida por tanto tempo.
— Você quer entrar?
— Não. Jace disse para esperar do lado de fora — Clary respondeu.
Ela espreitou pela janela de novo. Agora tinha certeza de que havia figuras na porta. Enquanto uma delas se virava, pensou ter pego um flash de cabelo prateado...
— Olhe — Luke estava se sentando reto, descendo sua janela apressadamente.
Clary olhou. Nada parecia ter mudado.
— Você quer dizer as pessoas na porta?
— Não. Os guardas estavam lá antes. Olhe para o telhado — ele apontou.
Clary pressionou seu rosto na janela da caminhonete. O telhado de ardósia da catedral era um amontoado de torres e espirais góticos, anjos esculpidos e brasões arqueados. Ela estava para dizer algo irritado, que ela não notou nada mais do que algumas gárgulas desmoronadas, quando um movimento captou seus olhos.
Alguém estava em cima do telhado. Uma figura esbelta e escura movendo-se rapidamente entre as torres, se lançando de uma e saltando para outra, agora desprendendo-se para uma ponta de um impossivelmente telhado íngreme – alguém com cabelo pálido que cintilava como a luz de bronze... Jace.
Clary estava fora da caminhonete antes que soubesse o que estava fazendo, correndo pela rua em direção à igreja, Luke gritando atrás dela. O imenso edifício parecia se inclinar por cima, há centenas de metros de altura, um enorme precipício de pedra.
Jace estava na ponta do telhado agora, olhando para baixo. Clary pensou, ele não faria isso, não faria, não faria isso, não Jace, e então ele caminhou para fora do telhado para dentro do ar vazio, tão calmamente como se estivesse andando em uma varanda.
Clary gritou alto enquanto ele caia como uma pedra...
E aterrissava suavemente em seus pés bem em frente a ela. Clary o fitou com sua boca aberta enquanto ele se levantava de um superficial agachar e sorria para ela.
— Se eu fizer uma piada sobre a queda, você me descreveria como um clichê?
— Como... como você fez... como você fez isso? — ela sussurrou, sentindo como se estivesse para vomitar.
Ela podia ver Luke fora da caminhonete, parado com as mãos presas na cabeça e olhando além dela. Ela girou ao redor para ver dois guardas vindos da porta da frente, correndo em direção a eles. Um era Malik; o outro era uma mulher com o cabelo prata.
— Droga — Jace agarrou a mão dela e a puxou.
Eles correram em direção a caminhonete e jogaram ao lado de Luke, que acelerou e saiu com a porta do passageiro ainda aberta. Jace a alcançou passando por Clary e a fechou. A caminhonete mudou de direção em torno dos dois Caçadores de Sombras – Malik, Clary viu, tinha o que parecia como uma faca de atirar em sua mão. Ele estava mirando em um dos pneus. Ouviu Jace xingar enquanto ele tateava sua jaqueta por uma arma – Malik puxou seu braço para trás, a lâmina brilhando – e a mulher de cabelo prateado o puxou para trás, agarrando seu braço. Ele tentou desvencilhar dela – Clary girou em torno de seu assento, arfando – e então a caminhonete virou a esquina e se perdeu no tráfico da Avenida York, o Instituto retrocedendo à distância atrás deles.
***
Maia tinha caído em um intermitente cochilo contra o cano de vapor, o casaco de Simon guarnecendo seus ombros. Simon observou a luz vinda da janela se mover através da sala e tentou em vão calcular as horas. Geralmente ele usava seu celular para dizer a ele que horas eram, mas ele tinha desaparecido – tinha procurado em seus bolsos em vão. Deve ter caído quando Valentim o carregou de seu quarto.
Apesar disso, ele tinha maiores preocupações. Sua boca estava seca e fina como papel, sua garganta doendo. Estava com sede de um jeito que era como a sede e a fome, que ele nunca tinha conhecido, misturadas juntas com um tipo de apurada tortura. E estava só piorando.
Sangue era o que ele precisava. Ele pensou no sangue da geladeira ao lado de sua cama em casa, e as veias queimaram como fios quentes de prata correndo debaixo de sua pele.
— Simon?
Era Maia, levantando sua cabeça, grogue. Sua bochecha estava impressa com marcas brancas onde ela tinha se encostado contra o cano grosso. Enquanto ele observava, o branco desapareceu em um rosa, enquanto o sangue retornava a seu rosto.
Sangue.
Ele correu sua língua seca em torno de seus lábios.
— Sim?
— Quanto tempo eu estive dormindo?
— Três horas. Talvez quatro. É provavelmente tarde agora.
— Oh. Obrigada por manter-se vigiando.
Ele não tinha vigiado. Ele se sentiu vagamente envergonhado enquanto dizia:
— É claro. Sem problema.
— Simon...
— Sim?
— Espero que você saiba o que quero dizer: lamento por você estar aqui, mas estou feliz que esteja comigo.
Ele sentiu seu rosto quebrar em um sorriso. Seu lábio seco inferior rachou e ele provou sangue em sua boca. Seu estômago roncou.
— Obrigado.
Ela se inclinou em direção a ele, o casaco deslizando de seus ombros. Os olhos dela eram de uma luz âmbar acinzentada que mudava enquanto ela se movia.
— Você pode me alcançar? — Ela perguntou, erguendo a mão.
Simon alcançou-a. A corrente que segurava seu tornozelo chacoalhou enquanto ele esticava sua mão tão longe quanto podia. Maia sorriu quando as pontas de seus dedos se tocaram...
— Que tocante.
Simon puxou sua mão de volta, fitando. A voz que tinha falado das sombras era fria, culta, vagamente estrangeira de um modo que ele não distinguia o lugar. Maia baixou sua mão e girou ao redor, a cor sendo drenada de seu rosto enquanto ela olhava o homem na porta. O homem tinha vindo tão silenciosamente que nenhum deles tinha escutado.
— A criança da lua e da noite, relacionando-se finalmente.
— Valentim — Maia sussurrou.
Simon nada disse. Ele não podia parar de olhar. Então este era o pai de Clary e Jace. Com sua coroa de cabelo branco prateado e ardentes olhos negros, ele não parecia muito com nenhum deles, apesar de haver lá alguma coisa de Clary no formato da estrutura óssea e a forma de seus olhos, e alguma coisa de Jace na ociosa insolência com que ele se movia. Era um homem grande, ombros largos com um compacto esqueleto que não lembrava nenhuma das suas crianças.
Ele caminhou na sala de metal verde como um gato, a despeito de estar sobrecarregado com o que parecia com o armamento suficiente para abastecer um pelotão. Espessas tiras de couro preto com fivelas prateadas cruzavam seu peito, segurando um largo punho prata de uma espada através de suas costas. Outra tira espessa circulava sua cintura, e através dela estava disposta uma série assassina de facas, adagas e estreitas lâminas brilhantes como enormes agulhas.
— Levante-se — ele ordenou a Simon — mantenha suas costas contra a parede.
Simon empinou seu queixo. Ele podia ver Maia observando-o, o rosto branco e assustado, e sentiu um ímpeto feroz de defesa. Ele manteria Valentim longe de machucá-la se fosse seu último ato.
— Então você é o pai de Clary — ele disse. — Sem ofensa, mas posso ver porque ela te odeia.
O rosto de Valentim estava impassível, quase sem emoção. Seus lábios mal se moveram quando ele perguntou:
— E por quê?
— Porque você é obviamente um psicótico.
Agora Valentim sorriu. Era um sorriso que não moveu nenhuma parte de seu rosto além dos lábios, que se torceram apenas ligeiramente. Então ele trouxe seu punho. Ele estava fechado; Simon pensou por um momento que Valentim ia acertá-lo e se afastou reflexivamente. Mas Valentim não arremessou o soco. Em vez disso, ele abriu seus dedos, revelando uma pilha púrpura cintilante no centro de sua palma larga.
Virando em direção a Maia, ele curvou sua cabeça e soprou o pó na direção dela em uma grotesca paródia de um beijo soprado. O pó assentou sobre ela como um enxame de tremulantes abelhas.
Maia gritou. Arfando e sacudindo selvagemente, ela se rebateu de um lado para o outro como se pudesse desviar-se do pó, sua voz aumentando em um grito gemido.
— O que você fez a ela? — Simon gritou, pulando em seus pés.
Ele correu para Valentim, mas a corrente na perna jogou-o de volta.
— O que você fez?
O fino sorriso de Valentim alargou.
— Prata em pó — ele disse — ele queima licantropos.
Maia tinha parado de se retorcer e estava se curvando em uma posição fetal no piso, chorando quietamente. Sangue corria em violentas quantidades vermelhas ao longo de suas mãos e braços. O estômago de Simon revirou novamente e ele caiu de costas contra a parede, nauseado por si mesmo, por tudo aquilo.
— Seu bastardo — ele disse enquanto Valentim limpava vagarosamente o restante do pó de seus dedos — ela é só uma garota, não ia machucá-lo, está acorrentada, pelo...
Ele sufocou, sua garganta queimando.
Valentim riu.
— Pelo amor de Deus? Era isso o que você ia dizer?
Simon não respondeu. Valentim colocou a mão por trás do ombro e puxou a pesada espada prata de sua bainha. Luz brincou ao longo da lâmina como água escorrendo em uma fina parede prata, como a própria luz solar refratada. Os olhos de Simon picaram e ele virou seu rosto para longe.
— A lâmina do Anjo te queima, como o nome de Deus te sufoca — Valentim disse, sua voz fria afiada como cristal — dizem que os que morrem sob sua ponta alcançam os portões do céu. Nesse caso, estou fazendo um favor a você.
Ele baixou a espada para que a ponta tocasse a garganta de Simon. Os olhos de Valentim estavam da cor de água negra e lá nada havia neles: nenhuma fúria, nenhuma compaixão, nem mesmo algum ódio. Eles estavam vazios como um túmulo escavado.
— Algumas últimas palavras?
Simon sabia o que ele tinha que supostamente dizer. Sh'ma Yisrael, adonai elohanu, adonai echod. “Ouve ó Israel, o Senhor vosso Deus, o Senhor é Único”. Ele tentou dizer as palavras, mas uma abrasadora dor queimou sua garganta.
— Clary — ele sussurrou em vez disso.
Um olhar de aborrecimento passou através do rosto de Valentim, como se o som do nome de sua filha na boca de um vampiro o irritasse. Com uma forte pancada de seu pulso, ele ergueu a Espada e cortou com um simples gesto suave a garganta de Simon.
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