Capítulo 17 - E Caim se Ergueu

Clary nunca sentira tanto frio.
Mesmo quando se arrastou para fora do Lago Lyn, tossindo e cuspindo sua água envenenada na margem, ela não estava com tanto frio. Mesmo quando achara que Jace estava morto, ela não sentiu esta terrível paralisia gelada no coração. Naquela ocasião ferveu em raiva, raiva contra o seu pai. Agora ela apenas se sentia gelada, da cabeça às pontas dos dedos.
Voltara à consciência no saguão de mármore de um estranho prédio, sob a sombra de um candelabro apagado. Jace estava carregando-a, um braço debaixo dos seus joelhos dobrados, o outro apoiando sua cabeça ainda tonta e grogue. Ela escondeu sua cabeça no pescoço dele por um momento, tentando se lembrar de onde ela estava.
— O que aconteceu? — Ela sussurrou.
Eles chegaram ao elevador. Jace apertou o botão, e Clary ouviu o ruído que significava que a máquina estava descendo até eles. Mas onde eles estavam?
— Você esteve inconsciente — ele respondeu.
— Mas como...
Então se lembrou, e ficou em silêncio. As mãos dele nela, a ardência de sua estela na pele, a onda de escuridão que a tomara. Havia algo de errado com a runa que ele desenhara nela, em aparência e sensação. Ela ficou imóvel nos braços dele por um momento, então disse:
— Me desça.
Ele a abaixou, colocando-a de pé, e eles se olharam. Só um pequeno espaço separava os dois. Ela poderia estender a mão e tocá-lo, mas pela primeira vez desde que o conhecera, ela não queria. Tinha a horrível sensação que olhava para um estranho. Ele parecia com Jace, soava como o Jace quando falava, e o sentia como Jace quando ela o segurava. Mas seus olhos eram estranhos e distantes, como era o minúsculo sorriso abrindo na sua boca.
As portas do elevador se abriram atrás dele. Ela se lembrou de estar na ala central do Instituto, dizendo “Eu te amo” para uma porta fechada de elevador. A brecha se abria atrás dele agora, tão negra como a entrada de uma caverna. Procurou a estela no bolso; não estava ali.
— Você me nocauteou com uma runa. Você me trouxe aqui. Por quê?
Seu rosto belo estava completamente e cuidadosamente inexpressivo.
— Eu tive que fazer isso. Não tive escolha.
Ela virou e correu nessa hora, indo para as portas, mas ele era mais rápido. Sempre foi. Ele se empurrou à sua frente, bloqueando a passagem, e segurou firme as suas mãos.
— Clary, não fuja. Por favor. Por mim.
Ela o olhou incrédula. Sua voz era a mesma – soava como a de Jace, mas não como ele – como se fosse uma gravação, ela pensou, todos os tons e padrões de sua voz ali, mas a vida que a animava não existia mais. Como não percebera antes? Ela achou que ele parecia distante por causa do estresse e dor, mas não. Era que ele não existia mais. Seu estômago revirou, e ela correu de novo para a porta, só que ele a agarrou pela cintura e a virou de volta para ele.
Ela o empurrou, os dedos se prendendo no tecido da camisa, rasgando-a para o lado.
Ela congelou, olhando fixamente. Na pele do seu peito, logo acima do seu coração, estava uma runa.
Não era uma que já tenha visto antes. Não era preta, como eram as runas dos Caçadores de Sombras, mas vermelho-escura, a cor do sangue. E faltava a graça delicada das runas do Livro Branco. Era rabiscada, feia, suas linhas pontiagudas e cruéis, ao invés de curvilíneas e generosas.
Jace não parecia vê-la. Ele olhou fixo abaixo para si mesmo, como se perguntando o que ela estava encarando, então olhou para ela, confuso.
— Está tudo bem. Você não me feriu.
— Essa runa... — ela começou, mas se interrompeu abruptamente.
Talvez ele não soubesse que aquilo estava ali.
— Solte-me, Jace — ela disse ao invés disso, afastando-se dele — você não tem que fazer isso.
— Você está errada sobre isso — ele disse, e a agarrou de novo.
Dessa vez ela não lutou. O que aconteceria se ela escapasse? Não podia simplesmente deixá-lo ali. Jace ainda estava ali, ela pensou, preso em algum lugar atrás daqueles olhos vazios, quem sabe bramindo por ela. Ela tinha que ficar com ele. Tinha que descobrir o que estava acontecendo. Ela o deixou pegá-la e levá-la ao elevador.
— Os Irmãos do Silêncio vão notar que você partiu — ela disse, quando os botões do elevador se acendiam de andar a andar, enquanto o elevador subia — eles alertarão a Clave. Virão procurar...
— Não preciso temer os Irmãos do Silêncio. Eu não era um prisioneiro; eles não estavam esperando que eu quisesse partir. Não notarão que fugi até acordarem amanhã cedo.
— E se acordarem mais cedo que isso?
— Ah — ele disse, com uma fria certeza — eles não irão. É muito mais provável que os outros convidados na Ironworks notem que você sumiu. Mas o que eles podem fazer? Eles não têm ideia de onde você foi, e rastreamento está bloqueado nesse prédio — ele alisou o cabelo em volta do rosto dela, e Clary ficou imóvel — você só precisa confiar em mim. Ninguém vai vir por você.
Ele não desceu a faca até saírem do elevador, e então disse:
— Eu nunca iria te ferir. Sabe disso, não sabe?
Mesmo enquanto puxou o cabelo dela para trás e pressionou a ponta da lâmina na garganta dela. O ar gélido alcançou seus ombros e braços nus assim que saíram no telhado. As mãos de Jace estavam quentes quando a tocou, e ela podia sentir o calor dele através do fino vestido, mas não a esquentou, não do lado de dentro. Por dentro ela estava cheia de pontiagudas lascas de gelo.
Ela ficou com mais frio ainda quando viu Simon, olhando para ela com seus enormes olhos escuros. O rosto estava inexpressivo de choque, como um pedaço branco de papel. Ele estava olhando para ela, e Jace atrás dela, como se visse algo fundamentalmente errado, uma pessoa com o rosto virado do avesso, um mapa do mundo com todas as terras desaparecidas e nada a não ser oceano.
Clary mal olhou para a mulher ao lado dele, com seu cabelo escuro e seu rosto pequeno e cruel. O olhar de Clary foi imediatamente para o caixão transparente em seu pedestal de pedra. Parecia brilhar de dentro, como se fosse iluminado por uma leitosa luz interna. A água que Jonathan estava flutuando dentro, provavelmente não era água, mas algum outro líquido menos natural.
A habitual Clary, pensou calmamente, teria gritado ao ver o irmão, flutuando imóvel e parecendo morto, totalmente parado no que parecia o caixão de vidro da Branca de Neve. Mas a Clary congelada só fitou com um choque remoto e distante.
Os lábios vermelhos como sangue, a pele branca como neve, o cabelo preto como ébano. Bem, algo disso era verdade. Quando conhecera Sebastian, seu cabelo era preto, mas agora era quase prata, flutuando em volta da cabeça como algas marinhas albinas. A mesma cor do cabelo do seu pai. O cabelo do pai deles. Sua pele estava tão pálida que parecia que podia ser feita de cristais luminosos. Mas seus lábios também não tinham cor, como também estavam as pálpebras dos seus olhos.
— Obrigada, Jace — a mulher que Jace chamara de lady Lilith disse — muito bem feito, e bem rápido. Achei que teria dificuldades com você a princípio, mas parece que me preocupei por nada.
Clary olhou fixamente. Apesar de a mulher não ser familiar, a voz era familiar. Ouvira aquela voz antes. Mas onde? Ela tentou se afastar de Jace, mas seu aperto nela só aumentava. A borda da faca pressionou a sua garganta. Um acidente, falou pra si. Jace – até esse Jace – nunca iria feri-la.
— Você — ela disse para Lilith entre os dentes — o que você fez com Jace?
— A filha de Valentim fala — a mulher de cabelo escuro sorriu — Simon? Você gostaria de explicar?
Simon pareceu que iria vomitar.
— Eu não tenho ideia — ele soou como se estivesse se sufocando — acreditem em mim, vocês dois eram a última coisa que eu esperava ver.
— Os Irmãos do Silêncio disseram que um demônio era responsável pelo que está acontecendo com Jace — Clary lembrou, e viu Simon parecer mais perplexo que nunca. A mulher, contudo, só observou-a com os olhos como círculos obsidianos — aquele demônio era você, não era? Mas, por que Jace? O que você quer de nós?
— “Nós”? — Lilith ribombou em risos. — Como se você importasse com isso, minha garota. Por que vocês? Porque são uma forma de eu alcançar meu objetivo. Porque preciso desses dois garotos, e os dois amam você. Porque Jace Herondale é a pessoa em que você mais confia em todo o mundo. E você é alguém por quem o Diurno morreria para salvar. Talvez você não possa ferido — falou, virando para Simon — mas ela pode. Você é tão teimoso a ponto de se sentar no chão e observar Jace cortar a garganta dela ao invés de dar seu sangue?
Simon, parecendo morto, sacudiu a cabeça lentamente, mas antes que pudesse falar qualquer coisa, Clary exclamou:
— Simon, não! Não faça isso, o que quer que seja. Jace não iria me ferir.
Os olhos insondáveis da mulher viraram para Jace. Ela sorriu.
— Corte-a — falou — só um pouco.
Clary sentiu os ombros de Jace se tencionarem, da mesma forma que se tencionaram quando estivera mostrando a ela como lutar. Ela sentiu algo no pescoço, como um beijo pungente, frio e quente ao mesmo tempo, e sentiu um pingo de líquido quente derramar-se sobre a sua clavícula. Os olhos de Simon se arregalaram.
Ele a cortara. Fizera mesmo isso. Ela pensou em Jace agachado no chão do quarto do Instituto, sua dor notória em cada linha do corpo. Eu sonho em você entrando no meu quarto. E então te machuco. Corto, estrangulo ou apunhalo você, e você morre, olhando para mim com seus olhos verdes enquanto sua vida escorre entre minhas mãos.
Ela não acreditara nele. Não mesmo. Ele era Jace. Nunca iria feri-la. Abaixou o olhar e viu o sangue manchando o decote do vestido. Parecia tinta vermelha.
— Você está vendo agora — disse a mulher — ele faz o que eu lhe digo para fazer. Não o culpe por isso. Está completamente sob o meu controle. Por semanas me movi furtivamente por sua mente, vendo seus sonhos, aprendendo seus medos e vontades, suas culpas e desejos. Em um sonho, ele aceitou minha Marca, e essa Marca está queimando por ele desde então – por sua pele, descendo até a alma. Agora a alma dele está em minhas mãos, para manipular como bem entender. Ele fará o que eu ordenar.
Clary se lembrou do que os Irmãos do Silêncio disseram. Quando um Caçador de Sombras nasce, um ritual é realizado, vários feitiços protetores são postos sobre a criança pelos Irmãos do Silêncio e pelas Irmãs de Ferro. Quando Jace morreu e então ressuscitou, nasceu por uma segunda vez, com aquelas proteções e rituais eliminados. Isso o teria deixado aberto como uma porta destrancada – aberto a qualquer tipo de influência ou malevolência demoníaca.
Eu fiz isso, Clary pensou. Eu o trouxe de volta, e queria manter isso em segredo. Se ao menos tivéssemos contado a alguém o que aconteceu, talvez o ritual pudesse ter sido feito a tempo de manter Lilith fora de sua cabeça.
Ela sentiu enjoo por aversão a si mesma. Atrás dela, Jace estava em silêncio, imóvel como uma estátua, os braços em torno dela e a faca ainda no pescoço. Conseguia senti-la na pele quando tomou fôlego para falar, deixando a voz inalterada com um esforço.
— Eu entendo que você controla Jace. Não entendo o porquê. Certamente há maneiras mais fáceis de me ameaçar.
Lilith suspirou como se a coisa toda tivesse ficado tediosa.
— Preciso de você — ela disse, com paciência exagerada — para convencer Simon a fazer o que eu quero, que é me dar o sangue dele. E preciso de Jace não só porque precisava de uma forma de trazê-la aqui, mas como um contrapeso. Todas as coisas em magia devem ser equilibradas, Clarissa — ela apontou para o círculo preto irregular desenhado nos ladrilhos, e então para Jace — ele foi o primeiro. O primeiro a ser trazido de volta, a primeira alma devolvida a esse mundo em nome da Luz. Portanto, ele deve estar presente para eu, com sucesso, devolver a segunda, em nome da Escuridão. Entende agora, garota ingênua? Somos todos necessários aqui. Simon para morrer. Jace para viver. Jonathan para retornar. E você, filha de Valentim, para ser a catalisadora disso tudo.
A voz da mulher demônio diminuíra para um baixo entoar. Com um choque de surpresa, Clary percebeu que agora sabia onde ouvira a voz antes. Ela vira o seu pai, dentro de um pentagrama, uma mulher de cabelo preto com tentáculos no lugar dos olhos ajoelhada à sua frente. A mulher disse, A criança nascida com esse sangue irá exceder com o poder dos Grandes Demônios dos abismos entre os mundos. Mas irá queimar sua humanidade, como o veneno queima a vida do sangue.
— Eu sei — Clary disse entre lábios rígidos — eu sei quem você é. Vi você cortar o pulso e derramar sangue numa taça para o meu pai. O anjo Ithuriel me mostrou isso numa visão.
Os olhos de Simon iam de um lado ao outro entre Clary e a mulher, cujos olhos escuros tinham uma ponta de surpresa. Clary supôs que ela não se surpreendia facilmente.
— Eu vi meu pai te convocar. Sei como ele te chamou. A Dama de Édon. Você é um Demônio Maior. Deu seu sangue para fazer do meu irmão o que ele é. Você o transformou numa... numa coisa terrível. Se não fosse por você...
— Sim, tudo isso é verdade. Dei meu sangue para Valentim Morgenstern, e ele o deu para o garoto ainda bebê, e esse é o resultado — amulher colocou a mão gentilmente, quase com carinho, na superfície de vidro do caixão do Sebastian. Havia um sorriso estranho em seu rosto — você também pode dizer, de certa forma, que sou a mãe de Jonathan.

***

— Eu te disse que esse endereço não era nada — disse Alec.
Isabelle o ignorou. No momento em que passaram pelas portas da entrada do prédio, o pingente de rubi no seu pescoço pulsara, fracamente, como a batida de um coração distante. Aquilo significava presença demoníaca. Sob outras circunstâncias, ela iria só esperar que o irmão sentisse a esquisitice do lugar assim como ela, mas ele claramente estava muito empenhado em pensar em Magnus para se concentrar.
— Pegue sua pedra enfeitiçada — ela pediu a ele — deixei a minha em casa.
Ele atirou-lhe um olhar irritado. Estava escuro no saguão, tão escuro que um humano normal não seria capaz de ver. Maia e Jordan tinham a excelente visão noturna dos lobisomens. Eles estavam em lados opostos da sala, Jordan examinando a grande mesa de mármore do saguão e Maia encostada na parede mais longe, aparentemente examinando os seus anéis.
— Você devia trazê-la para todo lugar que vai — respondeu Alec.
— É? Você trouxe o seu sensor? — Ela disparou. — Eu achei que não. Pelo menos eu tenho isso — tocou de leve o pingente — posso te dizer que há algo aqui. Algo demoníaco.
Jordan virou a cabeça para eles.
— Tem demônios aqui?
— Eu não sei... talvez só um. Pulsou e parou — Isabelle admitiu — mas é uma coincidência muito grande para ser apenas um endereço errado. Nós temos que verificar.
Uma fraca luz ergueu-se em torno dela. Ela examinou e viu Alec segurando sua pedra enfeitiçada, o brilho contido pelos seus dedos. Ela lançava estranhas sombras em seu rosto, fazendo-o parecer mais velho do que realmente era, seus olhos com um azul mais escuro.
— Muito bem, vamos — ele falou — examinaremos um andar por vez.
Eles andaram até o elevador, Alec primeiro, depois Isabelle, Jordan e Maia entrando na fila atrás deles.
As botas de Isabelle tinham runas silenciosas nas solas, mas os saltos de Maia batiam no chão de mármore quando andava. Franzindo a testa, ela parou para descalçá-los, e foi descalça durante o resto do caminho. Quando Maia entrou no elevador, Isabelle notou que ela usava um anel de ouro no dedão do pé esquerdo, com uma pedra azul-esverdeada.
Jordan deu uma olhada para baixo, em seus pés, e disse num tom surpreso:
— Eu me lembro desse anel. Eu o comprei para você na...
— Cale a boca — disse Maia, apertando com força o botão para fechar a porta.
As portas deslizaram, fechando-se, e Jordan seguiu em silêncio.
Pararam em todos os andares. A maioria ainda estava em construção – não havia lâmpadas, e fios estavam pendurados nos tetos como vinhas. As janelas tinham tábuas de madeira pregadas nelas. O forro protetor do piso golpeava com o fraco vento como fantasmas.
Isabelle manteve uma mão firme no pingente, mas nada aconteceu até eles alcançarem o décimo andar. Quando as portas se abriram, ela sentiu uma vibração no interior da mão fechada em forma de concha, como se ela estivesse segurando um passarinho ali e ele estivesse batendo as asas. Ela falou num sussurro:
— Tem alguma coisa aqui.
Alec apenas assentiu; Jordan abriu sua boca para falar algo, mas Maia o acotovelou forte. Isabelle passou pelo irmão, entrando no saguão. O rubi pulsava e vibrava na sua mão como um inseto irritado.
Atrás dela, Alec sussurrou:
— Sandalphon.
Uma luz acendeu em volta de Isabelle, iluminando o salão. Ao contrário de alguns dos outros andares que viram, esse parecia pelo menos parcialmente terminado. Paredes expostas de granito se erguiam ao seu redor, e o chão era de azulejos pretos. Um corredor levava a duas direções. Um terminava num monte de materiais de construção e fios enrolados. O outro terminava numa arcada. Além da arcada, um espaço escuro chamava.
Isabelle virou para olhar os seus companheiros. Alec guardou a pedra enfeitiçada e estava segurando uma brilhante lâmina serafim, iluminando o interior do elevador como uma lanterna. Jordan sacou uma grande faca brutal e a apertava na mão direita. Maia parecia estar no processo de colocar o cabelo para trás; quando abaixou as mãos, estava segurando um alfinete longo com uma ponta de navalha. Suas unhas também cresceram, e seus olhos tinham um brilho feroz e esverdeado.
— Sigam-me — disse Isabelle — calmamente.
O rubi fazia tap, tap no pescoço de Isabelle enquanto ela atravessava o corredor, como o pulsar constante de um dedo insistente.
Ela não ouvia os outros atrás dela, mas sabia que estavam ali por causa das longas sombras lançadas nas paredes escuras de granito. Sua garganta estava contraída, os nervos queimando, da forma que faziam antes de entrar em batalha.
Essa era a parte que menos gostava, a antecipação antes da onda de violência. Durante uma luta nada importava a não ser a briga em si; agora ela tinha que lutar para manter a concentração na tarefa à frente.
A arcada se ergueu sobre eles. Era de mármore entalhado, estranhamente antiquado para um prédio moderno como aquele, seus lados decorados com ornatos de arabescos. Isabelle ergueu o olhar brevemente enquanto passava, e quase se assustou. O rosto de uma gárgula sorridente estava esculpida na pedra, olhando com malícia para ela. Isabelle fez uma careta para ela e virou para examinar a sala em que entrara.
Era grande, de teto alto, claramente destinada a ser algum dia um apartamento completo. As paredes tinham janelas do chão ao teto, com uma vista do Rio East com o Queens à distância, o símbolo da Coca-Cola brilhando em vermelho sangue e azul marinho na água escura. As luzes de prédios em volta brilhavam no ar noturno como enfeites de uma árvore de Natal.
A sala em si era escura e cheia de sombras estranhas e curvadas, com espaços em intervalos regulares, baixo no chão.
Isabelle semicerrou seus olhos, confusa. Elas não eram dotadas de vida; pareciam ser móveis alinhados em quadrado, como um bloco, mas o que...
— Alec — ela chamou baixinho.
Seu pingente tremia como se fosse um ser vivo, seu coração de rubi dolorosamente quente na pele.
Em um instante, seu irmão estava ao seu lado. Ele levantou a sua lâmina, jorrando luz na sala. A mão de Isabelle voou à sua boca.
— Ah, Santo Deus — sussurrou ela — ah, pelo Anjo, não.

***

— Você não é a mãe dele — a voz de Simon morreu quando disse isso.
Lilith sequer virou para ele. Ela ainda estava com as mãos no caixão de vidro. Sebastian flutuava dentro dele, silencioso e inconsciente. Os pés estavam descalços, percebeu Simon.
— Ele tem uma mãe. A mãe da Clary. Clary é a irmã dele. Sebastian - Jonathan – não ficará muito satisfeito se você machucá-la.
Com isso, Lilith ergueu o olhar, rindo.
— Uma boa tentativa, Diurno. Mas eu sei a verdade. Vi meu filho crescer, sabe. Visitei-o muito na forma de uma coruja. Vi como a mulher que deu à luz a ele o odiou. Ele não morre de amores por ela, e nem devia, nem se importa com a irmã. É mais parecido comigo do que é com Jocelyn Morgenstern.
Seus olhos negros passaram de Simon para Jace e Clary. Eles não se moveram, não mesmo. Clary ainda estava envolta pelos braços de Jace, com a faca perto de sua garganta. Ele a segurava facilmente, sem cuidado, como se mal prestasse atenção. Mas Simon sabia como o aparente desinteresse de Jace rapidamente poderia explodir numa ação violenta.
— Jace — Lilith pediu — entre no círculo. Traga a garota com você.
Obediente, Jace avançou, empurrando Clary à sua frente. Quando cruzaram a barreira da linha pintada em preto, as runas dentro da linha lampejaram num súbito vermelho brilhante – e outra coisa também se iluminou. Uma runa no lado esquerdo do peito de Jace, logo acima do coração, brilhou de repente, com tanta claridade que Simon fechou os olhos. Mesmo com os olhos fechados, ainda podia ver a runa, um redemoinho vicioso de linhas agressivas, pintadas no interior de suas pálpebras.
— Abra os olhos, Diurno — vociferou Lilith — a hora chegou. Você dará seu sangue ou recusará? Você sabe o preço de sua escolha.
Simon olhou para o caixão, com Sebastian dentro – e olhou de novo. Uma runa que era gêmea à runa que brilhava no peito do Jace era visível no seu peito nu também, só começando a diminuir o brilho quando Simon olhou para ele.
Num momento havia sumido, e Sebastian estava quieto e pálido de novo. Imóvel. Sem respirar. Morto.
— Não posso trazê-lo de volta para você — Simon falou — ele está morto. Eu daria o meu sangue, mas ele não pode engolir.
A respiração dela silvou pelos dentes em exaspero, e por um momento os olhos brilharam com uma áspera luz ácida.
— Primeiro você deve mordê-lo. Você é um Diurno. O sangue do Anjo corre pelo seu corpo, pelo seu sangue e lágrimas, pelo fluído de suas presas. Seu sangue de Diurno irá revivê-lo o suficiente para que possa engolir e beber. Morda-o e lhe dê o seu sangue, e traga-o de volta para mim.
Simon fitou-a selvagemente.
— Mas o que você está dizendo... está me dizendo que tenho o poder de ressuscitar os mortos?
— Já que é um Diurno, você tem o poder — ela respondeu — mas não o direito de usá-lo.
— O direito?
Ela sorriu, traçando a ponta de uma unha longa pintada de vermelho no topo do caixão de Sebastian.
— A história é escrita pelos vencedores, dizem. Pode não haver tanta diferença entre o lado da Luz e o lado da Escuridão como você acha. Afinal, sem a Escuridão, não há nada para a Luz queimar.
Simon olhava para ela inexpressivamente.
— Equilíbrio — ela esclareceu — há leis mais antigas do que você pode imaginar. E uma delas é que você não pode ressuscitar o que está morto. Quando a alma deixa o corpo, esta pertence à morte. E não pode ser reavida sem um preço a pagar.
— E você está querendo pagar? Por ele? — Simon gesticulou em direção a Sebastian.
— Ele é o preço — ela jogou a cabeça para trás e riu. Soou quase como uma gargalhada humana — se a Luz traz de volta uma alma, então a Escuridão tem o direito de trazer uma de volta também. Esse é o meu direito. Ou talvez você devesse perguntar para a sua amiguinha Clary do que estou falando.
Simon olhou para Clary. Ela parecia estar prestes a desmaiar.
— Raziel — ela disse fracamente — quando Jace morreu...
— Jace morreu? — A voz de Simon subiu uma oitava.
Jace, apesar de ser o assunto sob discussão, permaneceu sereno e inexpressivo, sua mão com a faca parada.
— Valentim o apunhalou — Clary falou, quase num sussurro — e então o Anjo matou Valentim, e disse que eu poderia ter o que eu quisesse. E então eu pedi Jace de volta, eu o queria de volta, e o Anjo o trouxe... para mim — seus olhos estavam grandes no seu pequeno rosto pálido — ele ficou morto por só alguns minutos... mal durou alguma coisa...
— Foi o bastante — Lilith tomou fôlego — eu estava pairando perto do meu filho durante sua luta com Jace; eu o vi cair e morrer. Segui Jace até o lago, assisti Valentim matá-lo, e então como o Anjo o ressuscitou. Eu sabia que essa era a minha chance. Corri de volta ao rio e peguei o corpo do meu filho... o mantive preservado até esse momento — ela olhou carinhosamente para o caixão — tudo em equilíbrio. Um olho por olho. Um dente por dente. Uma vida por vida. Jace é o contrapeso. Se Jace vive, então Jonathan tem o mesmo direito.
Simon não pôde tirar os olhos da Clary.
— O que ela está dizendo... sobre o Anjo... é verdade? E você nunca contou a ninguém?
Para a sua surpresa, foi Jace quem respondeu. Roçando sua bochecha pelo cabelo de Clary, ele respondeu:
— Era o nosso segredo.
Os olhos verdes de Clary lampejaram, mas ela não se moveu.
— Então você entende, Diurno — disse Lilith — só estou pegando o que é meu por direito. A Lei diz que aquele que foi trazido de volta deve estar aqui no círculo quando o segundo retornar — ela indicou Jace com um estalido desdenhoso de seu dedo — ele está aqui. Você está aqui, tudo nos conformes.
— Então você não precisa de Clary — Simon apontou — deixe-a fora disso. Deixe-a ir.
— É lógico que preciso dela. Preciso dela para motivá-lo. Não posso feri-lo, portador da Marca, ameaçá-lo ou matá-lo. Mas posso partir seu coração quando partir a vida dela. E eu irei.
Ela olhou para Clary, e o olhar de Simon seguiu o seu.
Clary. Estava tão pálida que quase parecia azul, apesar de que talvez aquilo fosse o frio. Seus olhos verdes estavam enormes no rosto branco. Um pingo de sangue seco descia da clavícula até o decote do vestido, agora marcado de vermelho. Suas mãos pendiam soltas ao lado, mas tremiam.
Simon a viu como ela era, mas como também era aos sete anos, braços magrelos, sardas e aqueles prendedores azuis de plástico que usava no cabelo até completar onze anos. Ele pensou na primeira vez que percebeu que ela tinha a forma de uma verdadeira garota sob a camiseta folgada que sempre vestia, e como não tivera certeza se devia olhar ou desviar o olhar. Ele pensou na sua risada e no seu ágil lápis movendo-se por uma página, deixando rascunhos meticulosamente desenhados para trás: castelos em espirais, cavalos correndo, personagens brilhantemente coloridos que inventava na cabeça. Você pode ir para a escola sozinha, a mãe dizia, mas só se Simon for com você. Ele pensou na sua mão na dele quando atravessavam a rua, e seu próprio senso da tarefa incrível que tomara: a responsabilidade por sua segurança.
Já se apaixonara por ela uma vez, e talvez alguma parte dele sempre estivesse apaixonada, porque ela havia sido a primeira. Mas isso não importava agora. Ela era Clary; era parte dele; sempre foi e sempre seria.
Enquanto a fitava, ela sacudiu a cabeça, bem de leve. Simon sabia o que dizia. Não faça isso. Não dê a ela o que ela quer. Deixe-a fazer o que quiser comigo.
Ele entrou no círculo; quando seus pés passaram pela linha pintada, ele sentiu um calafrio, como um choque elétrico, passar por ele.
— Muito bem. Vou fazer isso.
— Não! — gritou Clary, mas Simon não olhou para ela.
Ele observava Lilith, que abria um sorriso frio e satisfeito quando levantou a mão esquerda e passou-a pela superfície do caixão.
A sua tampa desapareceu, saindo de forma que fez Simon lembrar estranhamente de abrir uma lata de sardinhas. Quando o vidro desceu, derreteu e gotejou pelos lados do pedestal de granito, cristalizando-se em pequenos cacos de vidro quando as gotas atingiam o chão.
Agora o caixão estava aberto, como um tanque de peixes; o corpo de Sebastian flutuava dentro, e Simon pensou por um momento que viu o lampejo da runa no peito quando Lilith pegou no tanque. Conforme Simon assistia, ela pegou os braços dependurados de Sebastian e os cruzou sobre o peito com um gesto estranhamente cuidadoso, colocando o ferido sobre o que estava inteiro. Ela tirou um punhado do cabelo molhado da testa pálida e quieta e recuou, sacudindo a água leitosa das mãos.
— Ao trabalho, Diurno — ela incitou.
Simon avançou para o caixão. O rosto de Sebastian estava relaxado, suas pálpebras imóveis. No seu pescoço não era possível sentir pulsação. Simon se lembrou de como queria beber o sangue de Maureen. Como sentira a sensação de cravar os dentes na sua pele e libertar o sangue salgado abaixo. Mas isso – isso era se alimentar de um cadáver. O pensamento fez seu estômago revirar.
Mesmo sem olhar para ela, estava consciente do olhar de Clary sobre ele. Podia sentir sua respiração quando se inclinou sobre Sebastian. Também podia sentir Jace, observando-o com olhos indistintos.
Chegando ao caixão, ele fechou as mãos em volta dos ombros escorregadios e frios do Sebastian. Ignorando a sensação de enjoo, ele se curvou e afundou os dentes na garganta de Sebastian.
Sangue negro de demônio entrou por sua boca, amargo como veneno.

***

Isabelle caminhava em silêncio entre os pedestais de pedra. Alec estava com ela, Sandalphon na mão, lançando luz na sala. Maia estava num canto da sala, inclinada e tendo ânsia de vômito, sua mão apoiada na parede; Jordan estava perto dela, parecendo querer estender os braços e reconfortá-la, mas com medo de ser recusado.
Isabelle não culpava Maia por querer vomitar. Se ela não tivesse anos de treinamento, ela mesma estaria vomitando nesse momento.
Nunca vira nada como o que estava vendo agora. Havia dúzias, talvez meia centena de pedestais de pedra na sala. No topo de cada um havia uma cesta parecida com um miniberço. Dentro de cada cesta havia um bebê. E todos os bebês estavam mortos.
A princípio, ela tinha esperança, enquanto andava pelas filas de uma ponta à outra, que pudesse encontrar um vivo. Mas aquelas crianças estavam mortas fazia algum tempo. A pele delas estava cinza, seus rostinhos feridos e descorados. Estavam enroladas em finos cobertores, e apesar de estar frio na sala, Isabelle não achava que estava tão frio para morrerem congelados. Ela não tinha certeza de como haviam morrido; não podia suportar a ideia de investigar mais de perto. Isso era claramente um problema para a Clave.
Alec, atrás dela, tinha lágrimas correndo pelo rosto; ele praguejava em voz baixa quando alcançaram o último pedestal.
Maia se endireitou e se encostou à janela; Jordan deu a ela algum tipo de tecido, talvez um lenço, para limpar o rosto. As luzes brancas e frias da cidade queimavam atrás dela, atravessando o vidro escuro como brocas de diamante.
— Izzy — Alec chamou — quem poderia ter feito algo assim? Por que alguém iria... até mesmo um demônio...
Parou de falar. Isabelle sabia no que ele estava pensando: em Max, quando nasceu. Ela tinha sete, Alec nove. Eles ficavam do lado do berço do irmão mais novo, alegres e encantados por aquela fascinante nova criatura. Eles brincavam com seus dedinhos, riam com as caretas que ele fazia quando lhe faziam cócegas.
Seu coração se retorceu. Max. Enquanto ela se movia pelas fileiras dos pequenos berços, agora transformados em pequenos caixões, uma sensação de medo esmagador começava a lhe pressionar. Ela não podia ignorar o fato de que o pingente em seu pescoço brilhava com uma luz constante e berrante. O tipo de brilho que ela esperaria que aparecesse quando encarasse um Demônio Maior.
Pensou no que Clary vira no necrotério do Beth Israel. Ele parecia uma criança normal. Exceto pelas mãos. Elas se torciam em garras...
Com grande cautela, ela estendeu a mão para um dos berços. Com cuidado para não tocar no bebê, ela puxou para o lado o fino cobertor que enrolava seu corpo.
Sentiu o ar sair dos pulmões com um ofego. Braços gordinhos de bebê normais, pulsos redondos de bebê. As mãos tinham uma aparência macia e nova. Mas os dedos – os dedos terminavam em garras, tão negras quanto osso queimado, com garras menores e mais afiadas nas pontas. Ela deu um passo involuntário para trás.
— O que foi? — Maia avançou até eles.
Ela ainda parecia enjoada, mas a sua voz era firme. Jordan a seguiu, as mãos em seus bolsos.
— Que é que vocês encontraram? — Perguntou ela.
— Pelo Anjo — Alec, ao lado de Isabelle, olhava no berço — é igual ao bebê que Clary estava falando? O bebê lá do Beth Israel?
Lentamente, Isabelle confirmou com a cabeça.
— Eu acho que não era só um bebê. Alguém está tentando fazer muito mais deles. Mais... Sebastians.
— Porque iriam querer mais dele? — A voz de Alec estava cheia de puro ódio.
— Ele era rápido e forte — Isabelle respondeu. Quase doía fisicamente elogiar o garoto que matou seu irmão e tentou matá-la. — Acho que estão tentando formar uma raça de superguerreiros.
— Não funcionou — os olhos de Maia estavam escuros de tristeza.
Um barulho, tão leve que quase era inaudível, chegou à Isabelle. Sua cabeça se ergueu, uma mão indo ao cinto, onde o chicote estava enrolado.
Algo nas espessas sombras na borda da sala, perto da porta, se moveu, apenas um tremeluzir de leve, mas Isabelle já saíra de perto dos outros e correra para a porta.
Ela irrompeu no corredor perto dos elevadores. Havia algo ali – uma sombra que saíra da escuridão maior e se movia, circundando pela parede. Isabelle velozmente se jogou para frente, derrubando a sombra no chão.
Não era um fantasma. Enquanto caíram juntos em um amontoado, Isabelle ficou surpresa ao ouvir um grunhido de surpresa bem humano vindo da figura sombria. Caíram no chão juntos e rolaram.
A figura era definitivamente humana – leve e mais baixa que Isabelle, vestindo um conjunto de moletom cinza e tênis. Cotovelos pontudos surgiram, lançando-se na clavícula de Isabelle. Um joelho se enterrou em seu estômago. Ela ofegou e rolou para o lado, tateando em busca do chicote. Quando o pegou, a figura já estava de pé. Isabelle rolou de barriga para baixo, açoitando o chicote à frente. A ponta dele se enrolou no tornozelo do estranho e se firmou. Ela puxou o chicote, derrubando a figura novamente.
Isabelle se levantou, pegando a estela com a sua mão livre, que estava enfiada na frente do vestido. Com um rápido golpe, terminou a Marca nyx no braço esquerdo. Sua visão se ajustou rapidamente, a sala toda parecendo se encher de luz conforme a runa de visão noturna fazia efeito. Ela podia ver quem lhe atacava mais claramente agora – uma figura magra em um agasalho de moletom e tênis cinza, recuando até bater de costas na parede. O capuz do agasalho caíra para trás, expondo o rosto.
A cabeça era meticulosamente raspada, mas o rosto era definitivamente feminino, com as maçãs do rosto salientes e grandes olhos escuros.
— Pare — disse Isabelle, e puxou forte o chicote. A mulher gritou de dor — pare de tentar fugir.
A mulher expôs os dentes.
— Verme. Cética. Eu não lhe contarei nada.
Isabelle enfiou a estela de volta no vestido.
— Se eu puxar esse chicote mais forte, ele vai cortar sua perna — ela moveu de novo o chicote, apertando-o, e avançou até estar em frente à mulher, olhando para ela — aqueles bebês. O que aconteceu com eles?
A mulher deu uma risada borbulhante.
— Não eram fortes o suficiente. Linhagem fraca, muito fraca.
— Muito fraca para quê? — Quando a mulher não respondeu, Isabelle vociferou: — Você pode me dizer ou perder a perna. Sua escolha. Não ache que não vou deixar você sangrar até morrer aqui no chão. Assassinos de crianças não merecem misericórdia.
A mulher sibilou, como uma cobra.
— Se você me ferir, ela te matará.
— Quem...
Isabelle parou de falar, lembrando-se do que Alec havia contado. Talto é outro nome de Lilith. Pode-se dizer que ela é a deusa demônio das crianças mortas.
— Lilith. Você adora Lilith. Você fez isso tudo... por ela?
— Isabelle — era Alec, trazendo a luz de Sandalphon com ele — o que está acontecendo? Maia e Jordan estão procurando por mais... crianças, mas parece que todas estavam naquela sala. O que está acontecendo aqui?
— Essa... pessoa — Isabelle disse com desgosto — é uma discípula da Igreja de Talto. Aparentemente, eles adoram Lilith. E assassinaram todos esses bebês por ela.
— Assassinato não! — A mulher lutou para se levantar. — Assassinato não. Sacrifício. Foram testados, mas eram fracos. Não é culpa nossa.
— Deixe-me ver — disse Isabelle — você tentou injetar sangue de demônio nas mulheres grávidas. Mas sangue de demônio é tóxico. Os bebês não sobreviveram. Nasceram deformados, e então morreram.
A mulher choramingou. Era um som bem leve, mas Isabelle viu os olhos de Alec se estreitarem. Ele sempre foi melhor em ler pessoas.
— Um daqueles bebês. Um era seu. Como pôde injetar sangue de demônio em seu próprio filho?
A boca da mulher tremeu.
— Eu não injetei. Fomos nós que tomamos a injeção. As mães. Nos deixou mais fortes, mais rápidas. Nossos maridos também. Mas ficamos doentes. Cada vez mais. Nosso cabelo caiu. Nossas unhas... — Ela levantou as mãos, mostrando as unhas enegrecidas, os dedos com as pontas cortadas e ensanguentadas, onde algumas outras unhas tinham caído. Seus braços estavam pontilhados com ferimentos pretos. — Nós todas estamos morrendo — sua voz soava levemente satisfeita — estaremos mortas em dias.
— Ela lhe fez tomar veneno — Alec apontou — e mesmo assim você a adora?
— Você não entendeu — a voz da mulher ficou rouca, sonhadora — eu não tinha nada antes de ser encontrada por Ela. Nenhum de nós tinha. Eu morava nas ruas. Dormia nas grades do metrô para não congelar. Lilith me deu um lugar para viver, uma família para cuidar de mim. Só estar na Sua presença é estar seguro. Nunca me senti segura antes.
— Você viu Lilith — Isabelle notou, lutando para não parecer cética.
Ela era familiarizada com cultos de demônios; fizera um relatório sobre eles uma vez para Hodge. Ele lhe dera altas notas por causa disso. A maioria dos discípulos de adoradores de demônios imaginavam ou inventavam. Alguns conseguiam acordar demônios menores e fracos, que matava a todos quando eram libertados, ou se contentavam em serem servidos pelos discípulos, todas as necessidades atendidas, e poucos pediam algo em troca. Nunca ouvira falar de um culto que venerava um Demônio Maior no qual os discípulos já haviam visto o demônio em carne. Muito menos um Demônio Maior poderoso como Lilith, a mãe dos bruxos.
— Você esteve na presença dela?
Os olhos da mulher quase se fecharam.
— Sim. Com Seu sangue em mim, posso sentir quando Ela está por perto. Como agora.
Isabelle não pôde evitar que sua mão livre flutuasse até o pingente. Ele pulsava incansavelmente desde que entraram no prédio; ela assumira que fosse por causa do sangue demoníaco nas crianças mortas, mas a presença de um Demônio Maior nas proximidades até faria mais sentido.
— Ela está aqui? Onde?
A mulher parecia estar flutuando no sono.
— Lá em cima — ela respondeu vagamente — com o garoto vampiro. O que anda de dia. Ela nos mandou trazê-lo, mas ele era protegido. Não podíamos tocá-lo. Aqueles que foram encontrá-lo acabaram mortos. Então, quando o Irmão Adam retornou e nos contou que o garoto era protegido por fogo sagrado, lady Lilith ficou zangada. Ela o matou exatamente onde estava. Ele teve sorte, de morrer pelas mãos d’Ela, tanta sorte — sua respiração agitou — e Ela é inteligente, lady Lilith. Ela encontrou outra maneira de trazer o garoto...
O chicote caiu da mão subitamente mole de Isabelle.
— Simon? Ela trouxe Simon aqui? Por quê?
— Nada que vai até Ela — a mulher tomou fôlego — retorna novamente...
Isabelle caiu de joelhos, pegando o chicote.
— Pare — comandou numa voz abalada — pare de se lamentar e me diga onde ele está. Onde ela o levou? Onde está Simon? Me conte, ou eu irei...
— Isabelle — Alec falava pesadamente — Izzy, não precisa fazer isso. Ela está morta.
Isabelle fitou a mulher em incredulidade. Ela morrera, ao que parecia, entre uma respiração e outra, seus olhos arregalados, o rosto com linhas relaxadas. Era possível ver agora que, sob a inanição, calvície e os ferimentos, ela provavelmente era bem jovem, não mais que vinte anos de idade.
— Deus do céu.
— Eu não entendi. O que um Demônio Maior quer com Simon? Ele é um vampiro. Tudo bem, é um vampiro poderoso, mas...
— A Marca de Caim — Isabelle disse distraidamente — isso deve ter algo a ver com a Marca. Tem que ser — ela andou até o elevador e apertou o botão para chamá-lo — se Lilith era mesmo a primeira esposa de Adão, e Caim era filho de Adão, então a Marca de Caim é quase tão antiga quanto ela.
— Onde você está indo?
— Ela disse que eles estavam lá em cima. Vou procurar em cada andar até encontrá-lo.
— Ela não pode feri-lo, Izzy — Alec lembrou na voz racional que Isabelle detestava — eu sei que você está preocupada, mas ele tem a Marca de Caim; é intocável. Nem um Demônio Maior pode feri-lo. Ninguém pode.
Isabelle olhou zangada para o irmão.
— Então para que você acha que ela o quer? Para ter alguém para lavar suas roupas durante o dia? Realmente, Alec...
Um barulho ressoou, e a seta sobre o elevador mais longe se acendeu. Isabelle começou a andar em direção a ele, quando as portas se abriram. Luz saiu dali de dentro... e depois da luz, uma onda de homens e mulheres – carecas, magrelos e vestidos em agasalhos cinza e tênis – se lançaram para fora. Eles estavam brandindo suas armas brutas tiradas dos destroços da construção: cacos de vidro quebrado, barras de ferro cortadas, blocos de concreto. Nenhum deles falava. Em um silêncio tão enorme a ponto de ser sinistro, saíram do elevador como um só e avançaram na direção de Alec e Isabelle.

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