Capítulo 17 - A Leste do Éden
— Como você fez isso? — Clary exclamou enquanto a caminhonete apressava-se para zona residencial.
Luke se acotovelava sobre o volante.
— Você quer dizer, como foi que cheguei ao telhado? — Jace estava inclinado atrás contra o banco, seus olhos meio fechados. Havia curativos brancos em torno de seus pulsos e manchas de sangue ressecado em sua linha do cabelo. — Primeiro eu escalei do lado de fora da janela de Isabelle e subi a parede. Há um número de gárgulas ornamentais que fazem um bom apoio. Também, queria notar para registro que minha moto já não estava onde eu a deixei. Aposto que a Inquisidora a pegou para dar uma voltinha.
— Eu quis dizer, como você pulou do telhado da catedral e não morreu?
— Eu não sei — seu braço tocou o dela enquanto ele levantava as mãos para esfregar seus olhos — como você criou aquela runa?
— Eu também não sei — ela sussurrou — a rainha Seelie estava certa, não estava? Valentim, ele... ele fez coisas com a gente — ela olhou para Luke, que estava fingindo estar absorvido em virar a esquerda — não é?
— Esta não é a hora para se falar sobre isso — Luke rebateu — Jace, você tem um destino em particular em mente ou apenas quer se afastar do Instituto?
— Valentim levou Maia e Simon para o barco para fazer o Ritual. Ele irá fazer isso tão breve quanto possível — Jace puxou uma das bandagens de seu pulso — eu tenho que ir até lá e pará-lo.
— Não — Luke disse afiadamente.
— Ok, nós temos que ir até lá e pará-lo.
— Jace, eu não vou àquele barco. É muito perigoso.
— Você viu o que eu fiz — Jace replicou, a incredulidade levantando em sua voz — e está preocupado comigo?
— Estou.
— Não há tempo para isso. Depois que meu pai matar seus amigos, ele irá invocar um exército de demônios que você não pode nem mesmo imaginar. Depois disso, ele será impossível de ser parado.
— Então a Clave...
— A Inquisidora não irá fazer nada — Jace disse — ela fechou o acesso dos Lightwood à Clave. Ela não irá chamar por reforços, mesmo quando eu disse a ela o que Valentim planejava. Está obcecada com o insano plano que tem.
— Que plano? — Clary indagou.
A voz de Jace era amarga.
— Ela queria me trocar com meu pai pelos Instrumentos Mortais. Eu disse que Valentim nunca faria isso, mas ela não acreditou em mim — ele deu uma risada aguda — Isabelle e Alec estão indo dizer a ela o que aconteceu a Simon e a Maia. Eu não estou tão otimista, apesar disso. Ela não acredita em mim sobre Valentim e não vai ficar modificar seu precioso plano só para salvar um par de Seres do Submundo.
— De qualquer modo, nós não podemos esperar para escutar algo deles — Clary disse — temos que chegar ao barco agora. Se você nos levar a ele...
— Eu te odeio interromper, mas nós precisamos de um barco para chegar a outro barco — Luke falou — não estou certo de que Jace possa caminhar sobre a água.
Naquele momento, o celular de Clary zuniu. Era uma mensagem de texto de Isabelle.
Clary franziu as sobrancelhas.
— É um endereço. Abaixo da área da praia.
Jace olhou por cima do ombro dela.
— É lá onde nós devemos ir para encontrar com Magnus.
Ele leu o endereço para Luke, que executou uma irritante curva em U e guiou para o sul.
— Magnus vai nós levar através da água — Jace explicou — o navio está muito bem protegido. Tenho que chegar dentro dele antes, porque meu pai queria que eu estivesse nele. Nós iremos precisar de Magnus para lidar com as proteções.
— Eu não gosto disso — Luke bateu seus dedos na direção — acho que eu deveria ir e vocês dois devem ficar com Magnus.
Os olhos de Jace piscaram.
— Não, tem que ser eu a ir.
— Por quê? — Clary perguntou.
— Por que Valentim está usando um demônio do medo — Jace explicou — assim ele foi capaz de matar os Irmãos do Silêncio. Assim massacrou aquele bruxo, o lobisomem no beco do Caçador da Lua, e provavelmente o que matou aquela criança fada no parque. E esta é a razão dos Irmãos terem aqueles olhares em seus rostos. Aqueles olhares aterrorizados. Eles literalmente morreram de medo.
— Mas o sangue...
— Ele drenou o sangue depois. E no beco foi interrompido por um dos licantropos. Esse é o motivo de ele não ter tido tempo suficiente para pegar o sangue que precisava. E por isso ainda precisa de Maia — Jace passou uma mão no cabelo — ninguém pode lutar contra um demônio do medo. Ele entra em sua cabeça e destrói sua mente.
— Agramon — Luke disse.
Ele tinha estado silencioso, olhando pelo para-brisa. Seu rosto estava sem cor e incomodado.
— Yeah, assim é o que Valentim o chamou.
— Ele não é um demônio do medo. Ele é o demônio do medo. O Demônio do Medo. Como Valentim conseguiu que Agramon cumprisse suas ordens? Mesmo um bruxo teria problemas em invocar um Grande Demônio, e do lado de fora do pentagrama... — Luke prendeu sua respiração. — Essa é a forma como a criança bruxa morreu, não é? Invocando Agramon?
Jace acenou positivamente, e explicou rapidamente o truque que Valentim usou com Elias.
— O Cálice Mortal — ele terminou — lhe permite controlar Agramon. Aparentemente, dá a ele algum poder sobre os demônios. Apesar disso, não como a espada faz.
— Agora estou menos inclinado a deixar você ir — Luke disse — esse é um Grande Demônio, Jace. Precisaria de muitos Caçadores de Sombras para lidar com ele.
— Eu sei que é um Grande Demônio. Mas sua arma é o medo. Se Clary colocar a runa destemor em mim, eu posso acabar com ele. Ou pelo menos tentar.
— Não! — Clary protestou. — Não quero sua segurança dependente da minha estúpida runa. E se ela não funcionar?
— Ela funcionou antes — Jace disse enquanto eles viravam a ponte e seguiam de volta para o Brooklyn.
Eles estavam andando na estreita Rua Van Brunt, entre fábricas altas de tijolos cujas janelas bloqueadas e portas trancadas não davam nenhum indício do que havia lá dentro. À distância, a área da praia brilhava entre os prédios.
— E se eu estragar dessa vez?
Jace virou sua cabeça em direção a ela e, por um momento, os olhos deles se encontraram. Eram ouro com um cintilar da luz do sol.
— Você não vai — ele assegurou-a.
— Você tem certeza de que é este o endereço? — Luke perguntou, induzindo a caminhonete em uma parada lenta. — Magnus não está aqui.
Clary olhou ao redor. Eles tinham parado em frente a uma grande fábrica que parecia como se tivesse sido destruída em um terrível incêndio. Tijolos furados e paredes de argamassa ainda estavam em pé, mas suportes de metal sobressaiam delas, tortos e falhados. À distância, Clary podia ver o distrito financeiro da baixa Manhattan e a corcova preta da Ilha do Governador, mais a distância, para o mar.
— Ele virá — ela falou — se ele disse a Alec que estava vindo, fará isso.
Eles saíram da caminhonete. Embora a fábrica estivesse em uma rua alinhada com prédios similares, ela estava quieta, mesmo para um domingo. Não havia ninguém por ali e nenhum som de comércio – caminhões circulando, homens gritando – o que Clary associava com distritos de depósito. Em vez disso havia o silêncio, uma fria brisa vinda do rio e o grito das aves marinhas. Clary puxou seu capuz, passou o zíper em seu casaco, e estremeceu.
Luke bateu a porta da caminhonete fechada e abotoou seu casaco de flanela. Silenciosamente, ele ofereceu a Clary um par de suas grossas luvas de lã. Ela deslizou-as e maneou seus dedos. Eram tão grandes para ela que era como usar patas. Ela olhou ao redor.
— Espere... onde está Jace?
Luke apontou. Jace estava ajoelhado na praia, uma figura escura cujo cabelo brilhante era o único ponto de cor contra o céu azul acinzentado e o rio marrom.
— Você acha que ele precisa de privacidade? — Ela perguntou.
— Nesta situação, privacidade é um luxo que nenhum de nós pode ter. Vamos lá.
Luke caminhou abaixo, e Clary seguiu-o.
A fábrica por si mesma dava de costas para a linha da água, mas havia uma larga praia de cascalhos próxima a ela. Ondas superficiais removiam as plantas sufocadas nas rochas. Lenha tinha sido colocada em um rude quadrado em torno de um buraco negro, onde o fogo tinha sido queimado. Havia latas enferrujadas e garrafas espalhadas por todo lugar.
Jace estava em pé na beira da água, sem sua jaqueta. Enquanto Clary observava, ele atirou algo branco e pequeno em direção à água; ela bateu com um espirro e desapareceu.
— O que você está fazendo?
Jace virou o rosto para eles, o vento chicoteando seu cabelo loiro através de sua face.
— Enviando uma mensagem.
Por cima do ombro dele, Clary pensou ter visto um tentáculo brilhando – como um pedaço vivo de alga – emergindo da água cinza do rio, um ponto de branco apanhado em sua atenção. Um momento depois, ele desapareceu e ela estava piscando.
— Uma mensagem para quem?
Jace fez uma cara feia.
— Ninguém.
Ele se afastou da água e caminhou através da praia recoberta de pedrinhas onde tinha largado sua jaqueta. Havia três longas lâminas estendidas sobre ela. Enquanto se virava, Clary viu o formato de discos de metal passados através de seu cinto.
Jace alisou seus dedos ao longo das lâminas – elas eram planas e cinza pálido, esperando para serem chamadas.
— Eu não tive uma chance de chegar ao armamento, portanto estas são as armas que nós temos. Pensei que poderíamos também conseguir nos preparar tanto quanto pudéssemos antes de Magnus chegar aqui — ele levantou a primeira lâmina — Abrariel.
A lâmina serafim brilhou e mudou de cor enquanto era chamada. Jace a segurou para Luke.
— Eu estou bem — Luke disse, e puxou seu casaco de lado para mostrar a kindjal no cinto.
Jace entregou Abrariel para Clary, que pegou a arma silenciosamente. Ela estava quente em sua mão, como se uma vida secreta vibrasse dentro dela.
— Camael — Jace disse para a próxima lâmina, fazendo-a tremer e brilhar. — Telantes — disse para a terceira.
— Vocês usam o nome de Raziel? — Clary perguntou enquanto Jace deslizava as lâminas em seu cinto e recolhia sua jaqueta de volta, levantando.
— Nunca — Luke respondeu — isso não pode ser feito.
Seu olhar escaneou a estrada atrás de Clary, procurando por Magnus. Ela podia sentir a ansiedade dele, mas antes que pudesse dizer alguma coisa mais, seu telefone zumbiu. Ela o abriu e segurou sem palavras para Jace. Ele leu a mensagem de texto, suas sobrancelhas levantaram.
— Parece que a Inquisidora deu a Valentim até o pôr-do-sol para decidir se ele quer a mim ou os Instrumentos Mortais. Ela e Maryse estiveram brigando por horas, portanto ela ainda não notou que eu parti.
Ele deu a Clary o telefone de volta. Seus dedos se tocaram e Clary puxou a mão para trás, apesar da grossa lã da luva que cobria sua pele. Ela viu uma sombra passar nas feições dele, mas ele nada disse. Em vez disso, ele se virou para Luke e exigiu, com surpreendente brusquidão:
— O filho da Inquisidora morreu mesmo? É por isso que ela é assim?
Luke suspirou e colocou as mãos dentro dos bolsos de seu casaco.
— Como você percebeu isso?
— O modo que ela reage quando alguém diz o nome dele. É a única hora que já a vi mostrar algum sentimento humano.
Luke expeliu uma respiração. Ele tinha empurrado seus óculos para cima e seus olhos estavam entortados contra o duro vento do rio.
— A Inquisidora é da maneira que é por muitas razões. Stephen é apenas uma delas.
— É estranho — Jace disse — ela não parece como alguém que gosta de crianças.
— Não de outras pessoas, era diferente com ela mesma. Stephen era seu menino dourado. De fato, ele era de todos... todos que o conheciam. Ele era uma daquelas pessoas que eram boas em tudo, incessantemente agradável sem ser aborrecido, bonito sem que ninguém o odiasse. Bem, talvez nós o odiássemos um pouco.
— Ele foi para a escola com você? — Clary perguntou. — E minha mãe... e Valentim? É como vocês conheciam ele?
— Os Herondales estavam no dever de administrar o Instituto de Londres, e Stephen foi para a escola de lá. Eu o vi mais depois que todos nos graduamos, quando ele voltou para Alicante. E, de fato, houve um tempo em que o vi muito frequentemente.
Os olhos de Luke eram distantes, o mesmo azul acinzentado como o rio.
— Depois ele estava casado.
— Portanto, ele era do Círculo? — Clary perguntou.
— Não logo — Luke disse — ele se juntou ao Círculo depois que eu... bem, depois do que aconteceu comigo. Valentim precisava de um segundo no comando e ele queria Stephen. Imogen, que era totalmente leal a Clave, ficou histérica, implorou que Stephen reconsiderasse – mas ele rompeu com ela. Não falaria com ela, ou com seu pai. Ele estava absolutamente cativo a Valentim. Ia a todos os lugares rastejando atrás dele como uma sombra — Luke se interrompeu — a coisa é, Valentim não achava a esposa de Stephen adequada para ele. Não para alguém que ia ser seu segundo no comando do Círculo. Ela tinha conexões familiares indesejáveis.
A dor na voz de Luke surpreendeu Clary. Ele tinha se importado tanto com essas pessoas?
— Valentim forçou Stephen a se divorciar de Amatis e casar novamente – sua segunda esposa era uma garota muito jovem, apenas dezoito anos de idade, chamada Céline. Ela, também, estava totalmente sob a influência de Valentim, fazia qualquer coisa que ele mandasse, não importava o quão bizarro. Então Stephen foi morto em uma incursão do Círculo em um covil de vampiros. Céline se suicidou quando descobriu. Ela estava grávida de oito meses naquele tempo. E o pai de Stephen morreu também, de desgosto. Foi assim que toda a família de Imogen se foi. Eles não puderam sequer enterrar sua nora e as cinzas de seu neto na Cidade dos Ossos, por que Céline era uma suicida. Ela foi enterrada em um cemitério fora de Alicante. Imogen sobreviveu, mas... ela se tornou gelo. Quanto o Inquisidor foi morto na revolta, Imogen ofereceu seu trabalho. Ela retornou de Londres para Idris – nunca, até onde eu ouvi, falou sobre Stephen novamente. Mas isso explica o porquê de ela odiar Valentim tanto quanto ela odeia.
— Porque meu pai envenena tudo o que ele toca? — Jace disse amargamente.
— Porque seu pai, por todos os seus pecados, ainda tem um filho, e ela não. E porque ela o culpa pela morte de Stephen.
— E ela está certa — Jace concordou — isso foi culpa dele.
— Não inteiramente — Luke respondeu — ele ofereceu a Stephen uma escolha, e Stephen escolheu. Sejam quais fossem suas falhas, Valentim nunca chantageou ou ameaçou ninguém a fazer parte do Círculo. Ele queria somente seguidores dispostos. A responsabilidade pelas escolhas de Stephen descansava sobre ele.
— Livre arbítrio — Clary observou.
— Não há nada de livre nisso — Jace disse — Valentim...
— Ofereceu a você uma escolha, não é? — Luke interrompeu. — Quando você foi vê-lo. Ele queria que você ficasse, não? Ficar e se juntar a ele?
— Sim — Jace olhou pela água em direção à Ilha do Governador — ele o fez.
Clary podia ver o rio refletido nos olhos dele; eles pareciam de aço, como se a água cinza tivesse inundado todo o seu ouro.
— E você disse não — Luke adivinhou.
Jace o encarou.
— Eu quero que as pessoas parem de adivinhar isso. Está me fazendo sentir previsível.
Luke se afastou como se para esconder um sorriso, e pausou.
— Alguém está vindo.
Alguém realmente estava vindo, alguém muito alto com cabelo preto que esvoaçava ao vento.
— Magnus — Clary falou — mas ele parece... diferente.
Enquanto ele se aproximava, Clary viu que seu cabelo, normalmente espetado e brilhoso como uma bola de discoteca, pairava limpo atrás de suas orelhas como seda preta. As calças de arco íris tinham sido substituídas por um elegante e antiquado terno preto e um sobretudo negro com botões de prata cintilantes. Seus olhos de gato brilhavam em âmbar e verde.
— Você parece surpreso em me ver — ele disse.
Jace olhou para seu relógio.
— Nós estávamos nos perguntando se você viria.
— Eu disse que viria, então vim. Precisava de tempo para me preparar. Esse não é um truque de cartola, Caçador de Sombras. Vai levar mágica séria — ele se virou para Luke — como está o braço?
— Ótimo. Muito obrigado — Luke era sempre polido.
— Esta é a sua caminhonete estacionada na fábrica, não é? — Magnus apontou. — Ela é terrivelmente grosseira para um vendedor de livros.
— Oh, eu não sei — Luke respondeu — tudo isso de carregar caixas pesadas de livros, escalar pilhas, alfabetização severa...
Magnus riu.
— Você pode destrancar a caminhonete para mim? Quero dizer, eu poderia fazer isso por mim mesmo — ele estalou seus dedos — mas isso parece rude.
— Claro.
Luke deu de ombros e eles seguiram em direção à fábrica. Quando Clary fez menção de segui-los, Jace pegou seu braço.
— Espere. Eu quero falar com você por um segundo.
Clary observou enquanto Magnus e Luke seguiam para a caminhonete. Eles faziam um estranho par, o bruxo alto em um longo casaco preto e o homem mais baixo, troncudo em jeans e flanela. Ambos eram Seres do Submundo, ambos envolvidos no mesmo espaço entre mundanos e o mundo sobrenatural.
— Clary — Jace falou — Terra para Clary. Onde você está?
Ela olhou de volta para ele. O sol estava destacado na água agora, atrás dele, deixando seu rosto em sombra e tornando seu cabelo um halo de ouro.
— Desculpe.
— Está tudo bem — ele tocou o rosto dela, gentilmente, com as costas de suas mãos — você desaparece tão completamente dentro de sua cabeça algumas vezes. Eu queria poder te seguir.
Você pode, ela quis dizer. Você vive em minha cabeça o tempo todo. Ao invés disso, ela disse:
— O que você queria me dizer?
Ele largou sua mão.
— Eu quero que você ponha a runa destemor em mim. Antes que Luke volte.
— Por que antes dele voltar?
— Porque ele vai dizer que é uma ideia ruim, mas esta é a única chance de vencer Agramon. Luke não teve... um encontro com isso, ele não sabe como é. Mas eu sei.
Ela examinou o rosto dele.
— Como foi?
Seus olhos eram ilegíveis.
— Você vê o que mais teme no mundo.
— Eu nem mesmo sei o que é.
— Acredite-me. Você não quer ver — ele olhou para baixo — você tem sua estela?
— Sim, eu a tenho — ela puxou a luva de lã da mão direita e pescou sua estela. Sua mão estava tremendo um pouco enquanto ela a puxava — onde você quer a marca?
— Quanto mais perto do coração, mais eficaz.
Ele virou de costas e tirou a jaqueta, largando-a no chão. Puxou a camiseta, deixando suas costas nua.
— Na omoplata seria bom.
Clary colocou uma mão sobre o ombro dele para se apoiar. A pele dele era um dourado mais pálido que a pele de suas mãos e rosto, macia onde ela não estava cicatrizada. Clary traçou a ponta de sua estela ao longo da espátula do ombro dele e sentiu-o estremecer, seus músculos enrijecendo.
— Não pressione tão forte...
— Desculpe.
Ela diminuiu a força, deixando a runa fluir de sua mente, através de seu braço, para sua estela. A linha preta deixava para trás o que parecia uma linha de cinzas queimada.
— Aí está. Você está pronto.
Ele se virou, descendo a camisa de volta.
— Obrigado.
O sol estava queimando atrás do horizonte agora, inundando o céu com vermelho-sangue e rosa, transformando a extremidade do rio em outro líquido, suavizando a feiura do lixo urbano em torno deles.
— E quanto a você? — ele perguntou.
— E quanto a mim o quê?
Ele deu um passo mais perto.
— Empurre suas mangas. Eu vou marcar você.
— Oh. Certo.
Ela fez o que Jace pediu, empurrando suas mangas, segurando seus braços nus para ele.
A picada da estela na pele dela era como um leve toque de uma ponta de agulha, aranhando sem perfurar. Ela observou as linhas pretas aparecerem com um tipo de fascinação. A marca que ela ganhou em seu sonho ainda era visível, desbotada apenas um pouco em torno de seus cantos.
— “E o Senhor, porém, lhe disse: portanto qualquer um que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse.”
Clary virou-se, puxando suas mangas para baixo. Magnus estava em pé os olhando, seu casaco preto parecendo flutuar em torno dele no vento vindo do rio. Um pequeno sorriso brincava em sua boca.
— Você pode citar a Bíblia? — Jace perguntou, abaixando para recuperar sua jaqueta.
— Eu nasci em um século profundamente religioso, meu menino — Magnus respondeu — sempre achei que Caim poderia ter tido a primeira marca no corpo. Ela certamente protegeu.
— Mas dificilmente ele era um dos anjos — Clary disse — ele não matou seu irmão?
— Nós não estamos planejando matar nosso pai? — Jace observou.
— Isso é diferente — Clary disse, mas não teve a chance de elaborar como aquilo era diferente, por que naquele momento a caminhonete de Luke se arrastava na praia, espalhando cascalhos de seus pneus. Luke se inclinou para fora da janela.
— Ok — ele disse para Magnus — aqui vamos nós. Entrem.
— Nós vamos dirigir para o barco? — Clary perguntou, perplexa. — Eu pensei...
— Que barco? — Magnus gargalhou, enquanto ele se colocava a si mesmo na cabine ao lado de Luke. Ele balançou um polegar atrás dele. — Vocês dois, entrem na parte de trás.
Jace escalou para a traseira da caminhonete e se inclinou para ajudar Clary. Enquanto ela se sentava contra o pneu sobressalente, viu que um pentagrama preto dentro de um círculo tinha sido pintado sobre o piso de metal da caçamba da caminhonete. Os braços do pentagrama estavam decorados selvagemente com símbolos cacheados. Não eram as runas com que ela estava familiarizada... havia alguma coisa sobre a aparência delas que era como tentar entender uma pessoa falando uma língua parecida, mas não exatamente inglês.
Luke se inclinou para fora da janela e olhou atrás para eles.
— Você sabe eu não gosto disso — ele disse, o vento abafando sua voz — Clary, você vai ficar na caminhonete com Magnus. Jace e eu subiremos para o navio. Você entendeu?
Clary acenou e se aconchegou em um canto da caçamba. Jace sentou ao lado dela, juntando seus pés.
— Isso vai ser interessante.
— O que... — Clary começou, mas a caminhonete arrancou novamente, os pneus vibrando contra o cascalho, afundando suas palavras.
A picape se moveu em direção a água rasa na beira do rio. Clary foi lançada contra a janela da cabine enquanto a caminhonete se movia em direção ao rio – Luke estava planejando afundar todos eles? Girou ao redor e viu que a cabine estava cheia de estonteantes colunas azuis de luz, contorcendo-se e girando. A caminhonete parecia bater sobre alguma coisa volumosa, como se fosse dirigida sobre uma tora. Então eles estavam se movendo suavemente em frente, quase deslizando.
Clary se apoiou de joelhos e olhou pela lateral da caminhonete, já claramente segura do que iria ver.
Eles estavam se movendo – não, dirigindo sobre a água escura, a base dos pneus da caminhonete apenas tocando a superfície do rio, espalhando finas ondas ao longe com o ocasional chuveiro de Magnus – criado de faíscas azuis. Tudo estava subitamente muito quieto, exceto pelo fraco rugido do motor e do soar das aves marinhas acima. Clary olhou através da caçamba para Jace, que estava sorrindo.
— Vai realmente impressionar Valentim.
— Não sei — Clary disse — outros grupos conseguem batmóveis e poderes de escalar paredes, nós temos aquapicape.
— Se você não gosta dele, Nephilim — a voz de Magnus veio, fracamente, da cabine — você é bem vinda para ver se consegue andar sobre a água.
***
— Eu acho que nós devemos ir — Isabelle opinou, sua orelha pressionada na porta da biblioteca.
Ela acenou para Alec se aproximar.
— Consegue ouvir alguma coisa?
Alec se inclinou ao lado de sua irmã, cuidadosamente para não derrubar o telefone que estava segurando. Magnus disse a ele que iria ligar se tivesse novidades ou se alguma coisa acontecesse. Até agora, ele não tinha.
— Não.
— Exatamente. Elas pararam de gritar uma com a outra — os olhos escuros de Isabelle cintilaram — estão esperando por Valentim agora.
Alec se afastou da porta e caminhou uma parte do corredor até a janela mais próxima. O céu lá fora era da cor de carvão com um pouco de rubi no horizonte.
— É o pôr-do-sol.
Isabelle se aproximou da maçaneta.
— Vamos lá.
— Isabelle, espere...
— Eu não quero que ela seja capaz de mentir para nós sobre o que Valentim disse. Ou o que acontece. Além do mais, eu quero vê-lo. O pai de Jace. Você não?
Alec se moveu de volta a porta da biblioteca.
— Sim, mais não é uma boa ideia porque...
Isabelle empurrou a maçaneta da porta da biblioteca. Ela se abriu.
Com um olhar meio divertido sobre seu ombro para ele, ela mergulhou adentro. Xingando debaixo de sua respiração, Alec a seguiu.
Sua mãe e a Inquisidora estavam em pontas opostas da imensa mesa, como boxeadores se encarando num ringue. As bochechas de Maryse estavam em um tom vermelho brilhante, seu cabelo afastado em torno de seu rosto. Isabelle lançou a Alec um olhar como se para dizer, talvez nós não devíamos ter entrado aqui.
Mamãe parece furiosa.
Por outro lado, se Maryse parecia nervosa, a Inquisidora parecia louca. Ela se virou para a porta da biblioteca que se abria, sua boca retorcida em um formato horrível.
— O que vocês dois estão fazendo aqui? — ela gritou.
— Imogen — Maryse disse.
— Maryse! — A voz da Inquisidora aumentou. — Eu já tive o suficiente de você e seus filhos delinquentes...
— Imogen... — Maryse repetiu.
Havia alguma coisa em sua voz – uma urgência – que fez a Inquisidora virar e olhar.
O ar sobre o globo de bronze estava tremulando como água. Uma forma começou a se unir nela, como uma pintura negra sendo golpeada sobre uma tela branca, evoluindo para a figura de um homem com uma larga espátula como ombros. A imagem estava ondulando demais para Alec poder ver mais que um homem que era alto e de perto, com um surpreendente cabelo grisalho cortado.
— Valentim.
A Inquisidora pareceu ser pega fora da guarda, Alec pensou, apesar de que claramente devesse estar esperando por ele.
O ar no globo estava tremulando mais violentamente agora, e Isabelle arfou enquanto um homem caminhava para fora do ar ondulante, como se estivesse vindo através de camadas de água.
O pai de Jace era um homem formidável, mais de um metro e oitenta com um peito largo e rígido, braços grossos atados com músculos definidos. Seu rosto era quase triangular, formando um duro queixo apontado. Ele poderia ser considerado bonito, Alec pensou, mas era surpreendentemente diferente de Jace, faltava alguma coisa da aparência da palidez dourada de seu filho. O cabo de uma espada era visível acima de seu ombro esquerdo – a Espada Mortal. Não como se ele precisasse estar armado, já que ele não estava corporalmente presente, então devia estar usando para aborrecer a Inquisidora.
— Imogen — Valentim cumprimentou, seus olhos escuros passeando pela Inquisidora com um olhar de satisfeito divertimento.
Este olhar é completamente Jace, Alec pensou.
— E Maryse, minha Maryse. Faz um longo tempo.
Maryse, engolindo duramente, respondeu com alguma dificuldade:
— Eu não sou sua Maryse, Valentim.
— E estas devem ser suas crianças — Valentim continuou como se ela não tivesse falado.
Seus olhos repousaram em Isabelle e Alec. Um fraco tremor passou através de Alec, como se alguma coisa tivesse puxado seu nervos. As palavras do pai de Jace eram perfeitamente comuns, até mesmo educadas, mas havia alguma coisa no vazio e predatório olhar que fez Alec querer dar um passo em frente a sua irmã e bloqueá-la da visão de Valentim.
— Eles se parecem com você.
— Deixe minhas crianças fora disso, Valentim — Maryse disse, claramente lutando para manter sua voz firme.
— Bem, isso dificilmente me parece justo — Valentim replicou — considerando que você não deixou meu filho fora disso — ele se virou para a Inquisidora — eu recebi sua mensagem. Com certeza esse não é o melhor que você pode fazer.
Ela não se moveu; agora piscava lentamente, como um lagarto.
— Espero que os termos de minha oferta estejam perfeitamente claros.
— Meu filho em troca dos Instrumentos Mortais. Era isso, certo? Caso contrário você irá matá-lo.
— Matá-lo? — Isabelle ecoou. — MÃE!
— Isabelle — Maryse disse firmemente — cale a boca.
A Inquisidora atirou um olhar venenoso para Isabelle e Alec por entre as fendas de suas pálpebras.
— Você tem os termos corretos, Morgenstern.
— Então, minha resposta é não.
— Não?
A Inquisidora parecia como se tivesse dado um passo em direção a um piso sólido e ele tivesse desmoronado sobre os pés.
— Você não pode blefar comigo, Valentim. Vou fazer exatamente o que ameacei.
— Oh, eu não duvido de você, Imogen. Você tem sempre sido obstinada e sem escrúpulos. Reconheço essas qualidades em você porque as possuo em mim.
— Eu não sou como você. Eu sigo a Lei...
— Mesmo quando ela te instrui a matar um menino ainda em sua adolescência só para punir seu pai? Isso não é sobre a Lei, Imogen, é que você me odeia e me culpa pela morte de seu filho e esta é sua maneira de me fazer pagar. Ela não fará qualquer diferença. Eu não vou desistir dos Instrumentos Mortais, nem mesmo por Jonathan.
A Inquisidora simplesmente olhou para ele.
— Mas ele é seu filho — ela disse — sua criança.
— Crianças fazem suas próprias escolhas — Valentim respondeu — esta é uma coisa que eu nunca entendi. Eu ofereci a Jonathan segurança se ficasse comigo, ele a menosprezou e retornou para vocês, e você irá exatamente se vingar nele, como eu disse a ele que você o faria. Você é um nada, Imogen — ele terminou — se não previsível.
A Inquisidora não pareceu notar o insulto.
— A Clave vai insistir em sua morte, se você não me entregar os Instrumentos Mortais — ela disse, com alguém pega em um pesadelo — eu não serei capaz de pará-los.
— Estou ciente disso. Mas não há nada que eu possa fazer. Ofereci a ele uma chance. Ele não a pegou.
— Bastardo! — Isabelle gritou de repente, e fez como se fosse correr a frente.
Alec agarrou seu braço e a arrastou para trás, segurando ela lá.
— Ele é um babaca — ela sibilou e, em então levantando sua voz, gritou para Valentim: — você é um...
— Isabelle!
Alec cobriu a boca de sua irmã com sua mão enquanto Valentim distribuía aos dois um único olhar divertido.
— Você... ofereceu a ele... — A Inquisidora estava começando a lembrar a Alec um robô cujos circuitos estavam em curto — e ele te desprezou? — Ela balançou a cabeça. — Mas ele é seu espião... sua arma...
— Isso é o que você pensou? — Valentim replicou, com uma aparentemente genuína surpresa. — Eu dificilmente estou interessado em espionar os segredos da Clave. Estou apenas interessado em sua destruição, e para atingir este fim, tenho armas muito mais poderosas do que um garoto.
— Mas...
— Acredite no que você quiser — Valentim disse com um encolher de ombros — você não é nada, Imogen Herondale. O fantoche de um regime cujo poder em breve será destruído, seu domínio acabado. Não há nada que você possa me oferecer que eu possa possivelmente aceitar.
— Valentim!
A Inquisidora se jogou a frente, como se pudesse pará-lo, agarrá-lo, mas suas mãos apenas passaram através dele como se através de água. Com um olhar de supremo desgosto, ele caminhou de volta e sumiu.
***
O céu estava fustigado com as últimas línguas de um fogo amortecido, a água tinha se tornado ferro. Clary puxou seu casaco mais apertadamente em torno de seu corpo e estremeceu.
— Você está com frio? — Jace tinha estado na parte de trás da caçamba, olhando abaixo a trilha que o carro deixava para trás dele; duas linhas brancas de espuma cortando a água. Agora ele veio e deslizou ao lado dela, suas costas contra a janela traseira da cabine. A janela por si era quase que inteiramente obscurecida com fumaça azulada.
— Você não está?
— Não.
Ele balançou a cabeça e deslizou sua jaqueta, entregando para ela. Clary a pôs por cima, se deleitando na suavidade do couro. Era grande demais de uma maneira confortante.
— Você vai ficar na caminhonete como Luke falou, certo?
— Eu tenho escolha?
— No sentido literal, não.
Ela retirou sua luva e alcançou a mão dele. Ele a tomou, agarrando-a fortemente. Clary olhou abaixo para seus dedos entrelaçados, os dela tão pequenos, quadrados nas pontas, os dele longos e finos.
— Você vai encontrar Simon para mim. Eu sei que vai.
— Clary — ela podia ver a água em torno ser espelhada nos olhos dele — ele pode estar... quero dizer, pode ser...
— Não — o tom dela não deixava margem para discussão — ele vai estar bem. Ele tem que estar.
Jace exalou. Suas íris ondularam com a água azul escura – como lágrimas, Clary pensou. Mas não eram lágrimas, eram só reflexos.
— Há algo que eu queria perguntar a você. Eu estava com medo de perguntar antes. Mas agora não tenho medo de nada — Jace falou.
Sua mão se moveu para o contorno da bochecha dela, a palma quente dele contra a pele fria dela, e Clary descobriu que seu próprio medo havia ido embora, como se Jace passasse o poder da runa destemor para ela através do seu toque. O queixo dela se levantou, seus lábios partindo-se em expectativa – a boca dele roçou a dela levemente, tão levemente quanto o roçar de uma pena, a memória de um beijo – e então ele se puxou para trás, seus olhos se alargando. Clary viu a parede preta elevando-se como um borrão no incrédulo ouro: a sombra de um navio.
Jace soltou-a com uma exclamação e lutou para ficar de pé. Clary se levantou desajeitadamente, a pesada jaqueta de Jace tirando-a de seu equilíbrio.
Faíscas azuis estavam voando das janelas da cabine, e com suas luzes Clary podia ver que a lateral do navio era feita de um enrugado metal preto, em que havia uma fina escada pendurada de um lado, e que tinha uma grade de ferro correndo ao redor do topo. Formas de pássaros grandes e desajeitadas estavam empoleiradas sobre as grades. Ondas de frio pareciam rolar do barco como ar congelante de um iceberg. Quando Jace a chamou, sua respiração veio em brancas baforadas, suas palavras perdidas no súbito rugir do motor do grande navio.
Ela franziu as sobrancelhas para ele.
— O quê? O que você disse?
Ele agarrou-a com força, deslizando uma mão debaixo do casaco dela, as pontas dos dedos dele arranhando sua pele. Ela gritou em surpresa. Jace sacou a lâmina serafim que havia dado a ela mais cedo do cinto dela e a pressionou em sua mão.
— Eu disse... — ele soltou-a — ... para pegar Abrariel, por que eles estão vindo.
— Quem está vindo?
— Os demônios — ele apontou acima.
Primeiro Clary não viu nada. Então ela notou os imensos pássaros desajeitados que tinha visto antes. Eles estavam jogando-se da grade um a um, caindo como pedra na lateral do barco – então nivelando e dirigindo-se direto para a caminhonete, onde flutuavam acima das ondas. Enquanto se aproximavam, viu que não eram pássaros de modo algum, mas coisas feias voadoras como pterodátilos, com largas asas de couro e ossudas cabeças triangulares. Suas bocas eram cheias de dentes serrilhados de tubarão, fileiras e fileiras deles, com garras brilhavam como canivetes.
Jace se arrastou para cima do teto da cabine, Telantes flamejando em sua mão.
Quando a primeira das coisas voadoras os alcançou, ele lançou a lâmina. Ela acertou o demônio, cortando a parte de cima de seu crânio do jeito que você pode cortar a ponta de um ovo cozido. Com um alto e tempestuoso chio, a coisa tombou dos lados, asas contraindo. Quando atingiu o oceano, a água ferveu.
O segundo demônio acertou o capô da caminhonete, suas garras arranhando furiosamente o metal. Ela se jogou contra o para-brisas, rachando o vidro. Clary gritou por Luke, mas outras criaturas mergulharam sobre ela, lançando-se velozes do céu de aço como setas. Ela puxou a manga da jaqueta de Jace para cima, arremessando seu braço para fora para mostrar a runa de defesa. O demônio chiou planando com as asas para trás – mas ele já havia chegado muito perto, dentro do alcance dela. Clary viu que ele não tinha olhos, apenas covas em cada lado de seu crânio, enquanto jogava Abrariel dentro de seu peito. A criatura arrebentou-se em dois, deixando uma baforada de fumaça preta para trás.
— Muito bem — Jace observou.
Ele tinha pulado da cabine da caminhonete para despachar outra das chiantes coisas voadoras. Ele tinha uma adaga agora, seu cabo manchado com sangue negro.
— O que são estas coisas? — Clary ofegou, balançando Abrariel em um largo arco que cortou atravessando o peito de um demônio voador.
Aquilo grasnou e golpeou-a com uma asa. Mais de perto, ela pôde ver que as asas terminavam em uma lâmina – afiados sulcos de osso. Esta tinha acertado a manga da jaqueta de Jace e a rasgou de ponta a ponta.
— Minha jaqueta! — Jace exclamou em fúria, e apunhalou abaixo a coisa enquanto ela se levantava, penetrando as costas.
Ela gritou e desapareceu.
— Eu amava essa jaqueta.
Clary o fitou, então girou em torno enquanto o guincho de metal assolava suas orelhas. Dois dos demônios voadores tinham suas garras no capô da cabine, rasgando-a de sua estrutura. O ar foi preenchido com o guincho do metal rasgando. Luke estava fora do capô da caminhonete, derrubando as criaturas com sua kindjal. Uma caiu do lado da caminhonete, desaparecendo antes de acertar a água. A outra zuniu no ar, o teto da cabine agarrado em suas garras, guinchando triunfantemente e voando de volta em direção ao barco.
Por um momento, o céu ficou claro. Clary correu e espreitou dentro da cabine. Magnus tinha desmoronado em seu assento, seu rosto cinza. Estava escuro demais para poder ver se ele estava ferido.
— Magnus! — ela gritou. — Você está machucado?
— Não — ele lutou para se sentar ereto, então caiu de volta contra o assento — só estou exausto. Os feitiços de proteção no navio são fortes. Retirá-los, mantê-los fora, é... difícil — sua voz sumiu — mas se eu não fizer isso, quem colocar o pé sobre este navio, exceto Valentim, vai morrer.
— Talvez você devesse ir com a gente — Luke sugeriu.
— Não posso trabalhar nas proteções se eu estiver no navio. Tenho que fazer daqui. Este é o jeito que ela funciona — o riso de Magnus parecia doloroso — por outro lado, eu não sou bom em uma luta. Meus talentos repousam em outro lugar.
Clary, ainda inclinada para dentro da cabine, falou:
— Mas e se nós...
— Clary! — Luke gritou, mas era tarde demais.
Nenhum deles tinha visto a criatura voadora agarrada imóvel na lateral da caminhonete. Ela se lançou para o alto, levantando voo lateralmente, as garras segurando profundamente as costas da jaqueta de Clary, um borrão de asas sombrias e fedidos dentes irregulares. Com um gemido de triunfo, ela decolou para o ar, Clary pendurada indefesa em suas garras.
— Clary! — Luke gritou novamente, e correu para o canto do capô da caminhonete e parou lá, olhando desesperadamente acima a forma alada diminuindo com sua carga frouxamente pendurada.
— Ele não vai matá-la — Jace disse, se juntando a ele no capô — ele está capturando-a para Valentim.
Havia alguma coisa no tom dele que enviou um calafrio através do sangue de Luke.
Ele se virou para encarar o garoto próximo a ele.
— Mas...
Ele não terminou, Jace já tinha mergulhado da caminhonete, em um único movimento suave. Ele se lançou abaixo na imunda água do rio e fez seu caminho em direção ao barco, seus fortes chutes agitando a água, formando espuma.
Luke voltou-se para Magnus, cujo rosto pálido era uma mancha branca contra a escuridão através do para-brisas rachado. Luke levantou uma mão e pensou ter visto Magnus acenar em resposta.
Embainhando sua kindjal na cintura, ele mergulhou no rio após Jace.
***
Alec libertou Isabelle de seu aperto, meio esperando que ela começasse a gritar no momento em que ele tirasse a mão de sua boca. Ela não o fez. Se manteve ao lado dele, observando enquanto a Inquisidora se mantinha ligeiramente balançando, seu rosto um giz branco acinzentado,
— Imogen — Maryse chamou.
Não havia sentimento em sua voz, nem mesmo raiva.
A Inquisidora pareceu não tê-la ouvido. Sua expressão não mudou enquanto ela afundava na velha poltrona de Hodge.
— Meu Deus — ela disse, olhando para a mesa — o que foi que eu fiz?
Maryse olhou acima para Isabelle.
— Chame seu pai.
Isabelle, parecendo tão assustada quanto Alec jamais tinha visto, acenou e deslizou para fora da sala.
Maryse atravessou a sala até a Inquisidora e olhou abaixo para ela.
— O que você fez, Imogen? — ela disse. — Você deu a vitória a Valentim. Foi isso que você fez.
— Não — a Inquisidora exalou.
— Você sabia exatamente o que Valentim estava planejando quando prendeu Jace lá em cima. Recusou permitir que a Clave viesse e se envolvesse porque eles iriam interferir em seus planos. Você queria que Valentim sofresse como te fez sofrer; para mostrar a ele que você tinha o poder de matar seu filho do modo como ele matou o seu. Você queria humilhá-lo.
— Sim...
— Mas Valentim não será humilhado — Maryse continuou — eu poderia ter dito isso a você. Você jamais o teria detido. Ele apenas aparentou considerar sua oferta para dar absoluta certeza de que nós não teríamos tempo para chamar reforços de Idris. E agora, é tarde demais.
A Inquisidora olhou acima selvagemente. Seu cabelo tinha se soltado de seu coque e pendurava-se em frouxas tiras em torno de seu rosto. Estava mais humana do que Alec já tinha visto ela parecer, mas não teve nenhuma satisfação nisso. As palavras de sua mãe o fizeram estremecer: tarde demais.
— Não, Maryse — ela disse — nós ainda podemos...
— Ainda podemos o quê? — A voz de Maryse quebrou-se. — Chamar a Clave? Nós não temos os dias, as horas, que eles levariam para chegar aqui. Se vamos enfrentar Valentim... e Deus sabe que não temos escolha...
— Nós vamos ter que fazer isso agora — uma voz profunda interrompeu.
Atrás de Alec, olhando sombriamente, estava Robert Lightwood.
Alec olhou para seu pai. Havia anos desde que viu-o em trajes de caça; o tempo dele tinha sido preenchido com tarefas administrativas, com a administração da Clave e lidando com questões dos Seres do Submundo. Algo em ver seu pai em pesadas roupas escuras blindadas, sua espada atada nas costas, lembrou Alec de ser uma criança novamente, quando seu pai tinha sido o maior, o mais forte e o mais terrível homem que ele podia imaginar. E ele ainda era assustador. Ele não tinha visto seu pai desde que ficou envergonhado na casa de Luke. Ele tentou alcançar os olhos dele agora, mas Robert estava olhando para Maryse.
— A Clave está pronta — Robert disse — os barcos estão esperando no cais.
As mãos da Inquisidora flutuaram em torno de seu rosto.
— Isso não é bom. Não há o suficiente de nós... nós não podemos de forma alguma...
Robert ignorou-a. Em vez disso, olhou para Maryse.
— Nós devemos ir em breve — ele falou, e em seu tom havia o respeito que tinha faltado quando se dirigiu a Inquisidora.
— Mas a Clave — a Inquisidora começou — eles devem ser informados.
Maryse empurrou o telefone na mesa em direção a Inquisidora, duramente.
— Você conta a eles. Conte a eles o que fez. É o seu trabalho, depois de tudo.
A Inquisidora nada disse, apenas olhou para o telefone, uma mão sobre a boca. Antes que Alec começasse a sentir pena por ela, a porta se abriu novamente e Isabelle entrou, em seu equipamento de Caçadora de Sombras, com seu longo chicote dourado em uma mão e uma lança de madeira naginata na outra. Ela franziu o cenho para seu irmão.
— Vá se aprontar — ela mandou — nós estaremos indo navegar para o barco de Valentim imediatamente.
Alec não pôde impedir; o canto de sua boca torceu para cima. Isabelle era sempre tão determinada.
— Isso é para mim? — ele perguntou, indicando a naginata.
Isabelle sacudiu-a para longe dele.
— Pegue a sua própria!
Alec caminhou em direção a porta, mas foi parado por uma mão em seu ombro. Ele olhou para cima em surpresa. Era seu pai. Ele estava olhando abaixo para Alec, e apesar de não estar sorrindo, havia um olhar de orgulho em seu envelhecido e cansado rosto.
— Se você tiver necessidade de uma espada, Alexander, minha guisarme está na entrada. Se você quiser utilizá-la.
Alec engoliu e acenou, mas antes que pudesse agradecer a seu pai, Isabelle falou atrás dele:
— Aqui está, mãe.
Alec se virou e viu sua irmã no processo de entrega da naginata para sua mãe, que a pegou e a girou com habilidade em suas mãos.
— Obrigada, Isabelle — Maryse respondeu, e com um movimento tão rápido quanto o de sua filha, ela abaixou a arma para que apontasse diretamente para o coração da Inquisidora.
Imogen Herondale olhou acima para Maryse com olhos vazios e dispersos de uma estátua arruinada.
— Você vai me matar, Maryse?
Maryse sibilou através de seus dentes:
— Nem de perto. Nós precisamos de cada Caçador de Sombras na cidade, agora mesmo, e isso inclui você. Levante-se, Imogen, e apronte-se para a batalha. De agora em diante, as ordens por aqui vão vir de mim — ela sorriu amargamente — e a primeira coisa que você vai fazer é libertar meu filho da amaldiçoada Configuração Malachi.
Ela pareceu agigantar-se enquanto falava, Alec pensou com orgulho, uma verdadeira guerreira Caçadora de Sombras, cada linha dela ardendo com uma honrada fúria.
Ele odiou estragar o momento – mas eles iam descobrir que Jace tinha partido por sua própria conta mais cedo. Era melhor que alguém suavizasse o choque.
Ele limpou sua garganta.
— Na verdade — Alec observou — há algo que provavelmente vocês devem saber...
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