Capítulo 18 - Raziel
Clary?
Simon sentou-se nos degraus da varanda atrás da casa, olhando para o caminho que levava ao pomar de maçã e ao lago.
Isabelle e Magnus estavam parados no caminho. Magnus olhava em para o lago e depois para as montanhas baixas de cercavam a área. Ele estava fazendo anotações em um pequeno livro com uma caneta cuja extremidade emitia um brilho azul-esverdeado.
Alec ficou estava a certa distância, olhando para as árvores que circundavam as colinas e separavam a casa da estrada. Ele parecia estar tão longe de Magnus quanto possível, sem sair do alcance de sua voz. Parecia para Simon – o primeiro a admitir que não era tão atento a essas coisas – que, apesar da brincadeira no carro, havia uma distância perceptível entre Magnus e Alec recentemente, algo que não era palpável, mas ele sabia que estava lá.
Os dedos de Simon mexiam no anel de ouro em seu dedo.
Clary, por favor.
Ele estava tentando contatá-la a cada hora desde que recebeu a mensagem de Maia sobre Luke. E não conseguiu nada. Nenhum lampejo de resposta.
Clary, estou na casa de campo. Lembro de você aqui, comigo.
Foi um dia excepcionalmente quente, e um vento fraco sacudia as últimas folhas nos galhos das árvores. Depois de passar muito tempo se perguntando que tipo de roupa você deveria usar para encontrar um anjo – um terno parecia excessivo, mesmo que fosse aquele da festa de casamento de Jocelyn e Luke – ele estava de calça jeans e camiseta, com seus braços nus à luz do sol.
Tinha tantas memórias felizes relacionadas à luz do sol ligadas a este lugar, a esta casa. Ele e Clary iam ali com Jocelyn quase todos os verões desde que conseguia se lembrar. Eles nadavam no lago. Simon ficava bronzeado e a pele clara de Clary queimava. Ela ganhava um milhão de sardas novas nos ombros e braços. Eles jogavam “baseball de maçã” no pomar, o que era confuso e divertido, Scrabble e pôquer na casa de campo, que Luke sempre ganhava.
Clary, eu estou prestes a fazer algo estúpido, perigoso e talvez suicida. É tão ruim assim que eu queira falar com você uma última vez? Estou fazendo isso para mantê-la a salvo e não sei nem ao menos se você está viva para que eu possa ajudá-la. Mas se você estivesse morta eu saberia, não é? Eu sentiria.
— Tudo bem. Vamos — disse Magnus, aparecendo no pé da escada.
Ele olhou para o anel na mão de Simon, mas não fez nenhum comentário.
Simon se levantou, limpou a calça jeans e seguiu pelo caminho até o pomar. O lago brilhava a frente como uma fria moeda azul. Quando se aproximaram, Simon pôde ver o velho cais fincado na água, no qual uma vez eles amarraram caiaques antes de um grande pedaço do cais se quebrar e desaparecer. Ele pensou que podia quase ouvir o zumbido preguiçoso das abelhas e sentir o peso de verão em seus ombros.
Assim que chegaram à margem do lago, ele se virou e olhou para a casa de campo, com tábuas pintadas de branco, venezianas verdes e uma varanda velha coberta com móveis antigos de vime branco.
— Você realmente gostava daqui, não é? — Isabelle perguntou.
Seu cabelo negro ondulou como uma bandeira na brisa do lago.
— Como você sabe?
— Sua expressão. É como se você estivesse se lembrando de algo bom.
— Foi muito bom — Simon confirmou.
Estendeu a mão para empurrar os óculos no nariz, quando se lembrou que já não os usava mais e baixou-a.
— Eu tinha sorte.
Izzy olhou para o lago. Estava usando pequenos brincos de argola de ouro; um estava preso em uma mecha de seu cabelo e Simon quis chegar perto e soltá-lo, tocar o seu rosto com os dedos.
— E agora você não tem?
Ele deu de ombros. Estava olhando para Magnus, que segurava o que parecia ser uma haste longa e flexível e desenhava na areia molhada à beira do lago. Ele tinha o livro de feitiços aberto e estava entoando enquanto desenhava. Alec estava olhando para ele com a expressão de alguém que está assistindo a um estranho.
— Você está com medo? — Isabelle perguntou, aproximando-se um pouco mais de Simon.
Ele podia sentir o calor do braço dela contra o seu.
— Eu não sei. A maior parte do medo é a sensação física que ele provoca. O coração acelerado, o suor, o pulso forte. Eu não sinto nada disso.
— É uma pena — Isabelle murmurou, olhando para a água — garotos suados são sensuais.
Ele lhe deu um meio sorriso; o que foi mais difícil do que pensou que seria. Talvez estivesse com medo.
— Acabe com a insolência verbal e volte ao assunto, senhorita.
Os lábios de Isabelle tremeram como se ela estivesse prestes a sorrir. Então ela suspirou.
— Você sabe o que nunca passou pela minha mente que eu pudesse querer? — ela perguntou. — Um cara que conseguisse me fazer rir.
Simon se virou para ela, segurando sua mão, sem se importar que o irmão dela estivesse assistindo.
— Izzy...
— Tudo bem — Magnus chamou — está feito. Simon, aqui.
Eles se viraram. Magnus estava de pé dentro do círculo, o qual estava brilhando com uma fraca luz branca. Na verdade eram dois círculos, um menor dentro de outro maior, e no espaço entre os círculos, dezenas de símbolos haviam sido rabiscados. Eles também brilhavam num azul-claro metálico, como um reflexo do lago.
Simon ouviu Isabelle prender a respiração e se afastou antes que pudesse olhar para ela. Somente tornaria tudo mais difícil.
Andou para frente, pela borda do círculo até o centro, ao lado de Magnus. Olhar para fora, estando no centro do círculo, era como olhar através da água. O resto do mundo parecia oscilante e indistinto.
— Aqui — Magnus empurrou o livro em suas mãos.
O papel era fino, coberto de runas rabiscadas, mas Magnus tinha colado as palavras impressas, soletradas foneticamente, sobre o encantamento em si.
— Apenas leia isto — ele murmurou — deve funcionar.
Segurando o livro contra o peito, Simon tirou o anel de ouro que o conectava a Clary e o entregou a Magnus.
— Se não funcionar — ele falou, perguntando-se de onde sua estranha calma estava vindo — alguém deve ficar com isto. É a nossa única ligação com Clary.
Magnus assentiu e deslizou o anel em seu dedo.
— Está pronto, Simon?
— Ei — disse Simon — você se lembrou do meu nome.
Magnus lançou-lhe um olhar ilegível com seus olhos verde-dourados e deu um passo para fora do círculo. Imediatamente ele estava embaçado e indistinto também. Alec se juntou a ele de um lado e Isabelle do outro; Izzy estava abraçando seus cotovelos, e mesmo através do ar oscilante, Simon pôde perceber como ela parecia infeliz.
Simon limpou a garganta.
— Acho que seria melhor vocês irem embora.
Mas eles não se moveram. Pareciam estar esperando ele dizer mais alguma coisa.
— Obrigado por terem vindo aqui comigo.
Por fim, depois de ter torturado seu cérebro em busca de algo significativo para dizer, descobriu o que falar. Eles pareciam estar esperando por isso. Ele não era do tipo que fazia grandes discursos de adeus ou despedidas dramáticas. Olhou para Alec primeiro.
— Hum, Alec. Eu sempre gostei de você mais do que gostava de Jace — se virou para Magnus — Magnus, eu gostaria de ter coragem de usar o tipo de calças que você usa.
E por último, Izzy. Ele podia vê-la olhando para ele através da névoa, seus olhos tão negros como obsidiana.
— Isabelle.
Virou-se para ela. Viu a pergunta em seus olhos, mas não parecia haver nada que pudesse dizer na frente de Alec e Magnus, nada que pudesse abranger o que ele sentia. Recuou em direção ao centro do círculo, inclinando a cabeça.
— Adeus, eu acho.
Pensou que tivessem falado de volta para ele, mas a neblina oscilando entre eles abafou as palavras. Observou enquanto os três se viravam, refazendo o caminho através do pomar, de volta para a casa, até que se tornaram apenas manchas escuras. Até que ele não pudesse mais vê-los de modo algum.
Ele não conseguia deixar de lamentar não ter falado com Clary uma última vez antes de morrer – não conseguia sequer lembrar as últimas palavras que haviam trocado. E, ainda assim, se fechasse os olhos podia ouvir sua risada ecoando sobre o pomar; podia se lembrar como tinha sido antes de eles crescerem e tudo mudar. Se morresse aqui, talvez fosse apropriado. Algumas de suas melhores lembranças estavam aqui, afinal. Se o Anjo o destruísse com fogo, suas cinzas se espalhariam pelo pomar e pelo lago. Algo na ideia pareceu tranquilizador.
Ele pensou em Isabelle. E em sua própria família – sua mãe, seu pai e Becky.
Clary, ele pensou por fim. Onde quer que você esteja, você é a minha melhor amiga. Sempre será a minha melhor amiga.
Ele levantou o livro de feitiços e começou a entoar.
***
— Não! — Clary se levantou, deixando cair a toalha molhada. — Jace, você não pode. Eles vão te matar.
Ele pegou uma camisa limpa e a vestiu, sem olhar para ela enquanto fechava os botões.
— Primeiro eles vão tentar me separar de Sebastian — ele falou, embora não parecesse muito convencido — se isso não funcionar, aí sim eles vão me matar.
— Não é bom o suficiente.
Ela se aproximou, mas Jace se afastou, enfiando os pés nas botas. Quando se virou, sua expressão era sombria.
— Eu não tenho escolha, Clary. Esta é a coisa certa a fazer.
— É loucura. Você está seguro aqui. Não pode jogar sua vida fora...
— Me salvar é uma traição. É colocar uma arma nas mãos do inimigo.
— Quem se importa com traição? Ou com a Lei? — Ela exigiu. — Eu me importo com você. Nós vamos resolver isso juntos...
— Nós não podemos resolver isso — Jace pegou a estela no criado-mudo e a colocou no bolso, então pegou o Cálice Mortal — porque eu só vou continuar sendo eu mesmo por curto tempo. Eu te amo, Clary — ele inclinou o rosto e a beijou demoradamente — faça isso por mim — ele sussurrou.
— Absolutamente não. Eu não vou ajudá-lo a se matar.
Mas ele já estava caminhando em direção à porta. Jace puxou Clary e ambos atravessaram o corredor, falando em sussurros.
— Isso é loucura — Clary sibilou — se colocar em perigo...
Ele soltou um suspiro exasperado.
— Como se você não tivesse feito o mesmo.
— Certo, e isso te deixou furioso — ela sussurrou enquanto corria atrás dele pela escada — lembre-se do que você te disse em Alicante...
Eles chegaram à cozinha. Jace colocou o Cálice sobre o balcão e pegou sua estela.
— Eu não tinha o direito de dizer aquilo. Clary, é isso o que nós somos. Somos Caçadores de Sombras. É o que fazemos. Há riscos que corremos que não são apenas os riscos que encontramos nas batalhas.
Clary balançou a cabeça, segurando os dois pulsos dele.
— Eu não vou deixar.
Um olhar de dor cruzou seu rosto.
— Clarissa...
Ela respirou fundo, quase sem poder acreditar no que estava prestes a fazer. Mas em sua mente estava a imagem do necrotério na Cidade do Silêncio, os corpos dos Caçadores de Sombras estendidos sobre as mesas de mármore e ela não podia suportar que Jace fosse um deles. Tudo o que tinha feito – vir até aqui, suportar tudo o que suportou, fora para salvar a vida dele, e não apenas por si mesma.
Pensou em Alec e Isabelle que a ajudaram, em Maryse que o amava, e quase sem perceber o que estava prestes a fazer, levantou a voz e gritou:
— Jonathan! — ela gritou. — Jonathan Christopher Morgenstern!
Os olhos de Jace se arregalaram.
— Clary... — ele começou, mas era tarde demais.
Ela o largou e se afastou. Sebastian já poderia estar chegando. Não havia nenhuma maneira de dizer a Jace que não era que confiasse em Sebastian, mas Sebastian era a única arma que possuía a disposição que poderia fazê-lo ficar.
Houve um flash de movimento e Sebastian estava lá. Ele não se preocupou em descer as escadas, apenas pulou de lado e caiu entre eles. Seu cabelo estava despenteado pelo sono; ele usava uma camiseta escura e calças pretas, e Clary se perguntou distraidamente se ele dormiu com essa roupa. Ele olhou de Clary para Jace, seus olhos negros considerando a situação.
— Briguinha de amantes? — ele perguntou.
Algo brilhou em sua mão. Uma faca?
A voz de Clary tremeu.
— A runa dele está danificada. Aqui — ela colocou a mão sobre o próprio coração — ele está tentando voltar, se entregar para a Clave...
A mão de Sebastian disparou e agarrou o Cálice da mão de Jace, colocando-o no balcão da cozinha. Jace, ainda branco com o choque, o observava; ele não moveu nenhum músculo quando Sebastian se aproximou e o agarrou pela frente da camisa. Os botões de cima da camisa se abriram, desnudando a base de seu pescoço e Sebastian riscou o lugar com sua estela, fazendo uma iratze na pele. Jace mordeu o lábio com os olhos cheios de ódio quando Sebastian o soltou e deu um passo para trás, estela na mão.
— Honestamente, Jace, só de você pensar que poderia fugir deste jeito acaba comigo.
As mãos de Jace apertaram-se em punhos enquanto a iratze, preto como carvão, começava a afundar em sua pele. Suas palavras saíram com dificuldade, sem fôlego:
— Da próxima vez... que você quiser ficar acabado... eu ficaria feliz em ajudá-lo. Talvez com um tijolo.
Sebastian fez um barulho de tsc.
— Vai me agradecer depois. Mas até você tem que admitir que este seu desejo de morte é um pouco exagerado.
Clary esperava que Jace o atacasse novamente. Mas ele não o fez. Seu olhar percorreu lentamente o rosto de Sebastian. Naquele momento, havia apenas os dois no lugar, e quando Jace falou, suas palavras vieram frias e claras.
— Eu não vou me lembrar disso depois. Mas você vai. Aquela pessoa que age como seu amigo... — ele deu um passo para frente, fechando o espaço entre ele e Sebastian — aquela pessoa que age como se gostasse de você não é real. Isso é real. Este sou eu. E eu te odeio. Sempre vou te odiar. E não há mágica e nenhum feitiço neste mundo ou em qualquer outro que vá mudar isso.
Por um momento, o sorriso no rosto de Sebastian vacilou. Mas Jace não. Em vez disso, ele desviou o olhar de Sebastian e olhou para Clary.
— Preciso que você saiba a verdade... eu não lhe contei toda a verdade.
— A verdade é perigosa — disse Sebastian, segurando a estela a sua frente como uma faca — cuidado com o que você diz.
Jace estremeceu. Seu peito subia e descia rapidamente; ficou claro que a runa se curando em seu peito estava lhe causando dor física.
— O plano para evocar Lilith, fazer um novo Cálice, criar um exército obscuro... não foi um plano de Sebastian. Foi meu.
Clary congelou.
— O quê?
— Sebastian sabia o que queria — Jace explicou — mas eu descobri como ele poderia fazê-lo. Um novo Cálice Mortal... fui eu quem lhe deu essa ideia.
Ele tremeu de dor; ela podia imaginar o que estava acontecendo sob o pano de sua camisa: a pele se unindo, curando, a runa de Lilith inteira e brilhando mais uma vez.
— Ou, eu devo dizer, ele deu. Aquela coisa que se parece comigo, mas não é? Ele vai queimar o mundo se Sebastian quiser, e vai rir enquanto o faz. Isso é o que você está salvando, Clary. Isso. Você não entende? Eu preferia estar morto...
Sua voz foi sufocada quando ele se dobrou. Os músculos de seus ombros tencionaram quando as ondulações do que parecia ser dor passavam por ele. Clary se lembrou de segurá-lo na Cidade do Silêncio enquanto os Irmãos se enraizavam em sua mente buscando respostas – agora ele olhou para cima, com sua expressão perplexa.
Seus olhos se voltaram primeiramente não para ela, mas para Sebastian. Clary sentiu seu coração despencar, embora soubesse que ela mesma tinha causado isto.
— O que está acontecendo? — Jace perguntou.
Sebastian sorriu para ele.
— Bem-vindo de volta.
Jace piscou, parecendo momentaneamente confuso – e então seu olhar pareceu deslizar para dentro, do jeito que acontecia quando Clary tentava dizer algo que ele não podia processar, como o assassinato de Max, a guerra em Alicante, a dor que estava causando a sua família.
— Está na hora? — ele indagou.
Sebastian fez um floreio para olhar o relógio.
— Quase. Por que você não vai na frente e nós iremos em seguida? Você pode começar a preparar as coisas.
Jace olhou ao redor.
— O Cálice... onde está?
Sebastian o pegou no balcão da cozinha.
— Bem aqui. Sentindo-se um pouco distraído?
A boca de Jace se curvou no canto e ele pegou o Cálice de volta. Bem-humorado. Não havia nenhum sinal do garoto que ficou na frente de Sebastian momentos atrás e disse que o odiava.
— Tudo bem. Eu te encontro lá — e se virou para Clary, que ainda estava congelada em choque e beijou sua bochecha — e você também.
Ele recuou e piscou para ela. Havia afeto em seus olhos, mas isso não importava. Este não era o seu Jace, muito claramente não era o seu Jace, e ela observou entorpecida enquanto ele atravessava a sala. Sua estela brilhou e uma porta se abriu na parede; Clary teve um vislumbre do céu e de uma planície rochosa, e então Jace saiu e foi embora.
Ela cravou as unhas em suas palmas.
Aquela coisa que se parece comigo, mas não é? Ele vai queimar o mundo se Sebastian quiser e vai rir enquanto o faz. Isto é o que você está salvando, Clary. Isto. Você não entende? Eu preferia estar morto...
As lágrimas queimaram no fundo de sua garganta, mas ela fez o máximo que podia para segurá-las enquanto seu irmão se virava para ela, seus olhos negros muito brilhantes.
— Você chamou por mim.
— Ele queria se entregar para a Clave — ela sussurrou, sem saber para quem estava se defendendo.
Fez o que foi preciso, usou a única arma disponível, mesmo que fosse uma que desprezava.
— Eles o teriam matado.
— Você chamou por mim — ele repetiu e deu um passo em sua direção.
Estendeu a mão e afastou uma mecha de seu cabelo ruivo do rosto, colocando-o atrás da orelha.
— Ele te contou, então? O plano? Todo?
Ela lutou contra um arrepio de repulsa.
— Não todo. Eu não sei o que está acontecendo hoje. O que Jace quis dizer com “está na hora”?
Ele se inclinou e beijou sua testa. Clary sentiu o beijo queimar como uma tatuagem entre os olhos.
— Você vai descobrir. Ganhou o direito de estar lá, Clarissa. Você pode assistir a tudo em seu lugar, ao meu lado, hoje à noite, no Sétimo Local Sagrado. Ambos os filhos de Valentim, juntos... no fim.
***
Simon manteve os olhos no papel, entoando as palavras que Magnus havia escrito. Elas tinham um ritmo que era como música, leve, penetrante e agradável. Ele se lembrou de ler em voz alta sua parte do haftará durante seu bar mitzvah, embora na época soubesse o que as palavras significavam, e agora não.
Quando o cântico começou, ele sentiu uma pressão ao seu redor, como se o ar estivesse se tornando mais denso e mais pesado, pressionando seu peito e ombros. Estava ficando mais quente também. Se ele fosse humano, o calor poderia ter sido insuportável. No momento, ele podia senti-lo queimando em sua pele, chamuscando seus cílios e sua camisa. Manteve os olhos fixos no papel a sua frente enquanto uma gota de sangue caía de sua testa e escorria pelo o papel.
E, então, ele terminou. A última palavra – Raziel – foi falada e Simon levantou a cabeça. Podia sentir o sangue escorrendo pelo rosto. A neblina em torno dele tinha diminuído e à sua frente ele viu a água do lago, azul e cintilante, tão imperturbável quanto vidro.
E então ela explodiu.
O centro do lago ficou dourado e depois preto. Água correu para longe, acumulando nas bordas do lago, voando no ar até que Simon estivesse olhando para um anel de água, como um círculo inquebrável de cachoeiras, brilhando e jorrando para cima e para baixo, com um efeito bizarro e estranhamente bonito. Gotículas de água estremeceram e desceram até ele, resfriando sua pele ardente. Ele inclinou a cabeça para trás no momento em que o céu ficou escuro – todo o azul se foi, devorado por um choque repentino de escuridão e tumultuadas nuvens cinzentas. A água espirrou de volta para dentro do lago, e de seu centro, de sua parte mais prateada, emergiu uma figura toda dourada.
A boca de Simon ficou seca. Ele tinha visto inúmeras pinturas de anjos, acreditava neles, tinha ouvido o aviso de Magnus. E, ainda assim, sentiu como se tivesse sido atingido por uma lança quando, diante dele, um par de asas se desdobrou.
Elas pareciam alcançar o céu. Eram enormes, branca, dourada e prata, e suas penas pareciam olhos dourados ardentes. Os olhos o observavam com desprezo. Então as asas se levantaram, tocando as nuvens diante delas, e dobraram-se para trás, e um homem – ou a forma de um homem impossivelmente alto, se desdobrou e se levantou.
Os dentes de Simon começaram a bater. Ele não sabia por que. Mas as ondas de poder, de algo mais além do poder – da força elementar do universo – parecia emanar do Anjo enquanto ele levantava em toda a sua altura.
O primeiro pensamento bizarro de Simon foi que alguém tinha pegado Jace e o inflado até o tamanho de um outdoor. Só que o Anjo não se parecia em nada com Jace. Era todo dourado, desde as asas até sua pele e olhos, que não tinham nenhum branco, apenas um brilho de ouro, como uma membrana. Seu cabelo era de ouro e parecia feito de pedaços de metal cortados e enrolados, como ferro forjado.
Era estranho e assustador. O excesso de qualquer coisa pode destruir, pensou Simon. O excesso de escuridão poderia matar, mas o excesso de luz poderia cegar.
Quem ousa me evocar? O Anjo falou na mente de Simon, com uma voz que parecia com grandes sinos soando.
Pergunta complicada, pensou Simon. Se fosse Jace, ele poderia dizer “um dos Nephilim”, e se fosse Magnus, ele poderia responder que era um dos filhos de Lilith e um Alto Bruxo. Clary e o Anjo já haviam se conhecido, então supôs que teriam pulado essa parte. Mas ele era Simon, sem títulos em seu nome e sem grandes feitos em seu passado.
— Simon Lewis — ele falou, por fim, baixando o livro de feitiços e se endireitando — filho da Noite e... seu servo.
Meu servo? A voz de Raziel estava congelada com o frio da desaprovação. Você evoca a mim como um cão e se atreve a chamar a si próprio de meu servo? Deve ser expurgado deste mundo, para que seu destino possa servir como um aviso para que outros não façam o mesmo. É proibido para os meus próprios Nephilim me evocarem. Por que deveria ser diferente para você, Diurno?
Simon supôs que não deveria estar chocado pelo Anjo saber quem ele era, mas era surpreendente, no entanto, tão surpreendente quanto o tamanho do Anjo. De alguma, tinha pensado que Raziel seria mais humano.
— Eu...
Você acha que porque carrega o sangue de um dos meus descendentes, devo mostrar-lhe misericórdia? Se assim for, você apostou e perdeu. A misericórdia do Céu é para os merecedores. Não para aqueles que quebram as Leis do Acordo.
O Anjo levantou a mão, com o dedo apontado diretamente para Simon.
Simon se preparou. Desta vez ele não tentou dizer as palavras, só pensou nelas. Ouça, ó Israel! O Senhor é nosso Deus, o Senhor é um...
Que Marca é esta? A voz de Raziel estava confusa. Em sua testa, criança.
— Esta é a Marca — Simon gaguejou — a primeira Marca. A Marca de Caim.
O grande braço de Raziel abaixou lentamente.
Eu ia matá-lo, mas a Marca impediu. Esta Marca estava destinada a ser traçada entre suas sobrancelhas pelas mãos do Céu, porém, eu sei que não foi. Como isso aconteceu?
A perplexidade óbvia do Anjo encorajou Simon.
— Um de seus filhos, um Nephilim. Um especialmente dotado. A colocou para me proteger — ele deu um passo mais perto da borda do círculo — Raziel, vim lhe pedir um favor em nome dos Nephilim. Eles enfrentam um grave perigo. Um deles se... se voltou para a escuridão, e ameaça todo o resto. Eles precisam de sua ajuda.
Eu não intervenho.
— Mas você interveio — disse Simon — quando Jace estava morto, você o trouxe de volta. Não que nós não estejamos todos muito felizes por isso, mas se não o tivesse feito, nada disso estaria acontecendo. De forma que cabe a você consertar a situação.
Eu posso não ser capaz de matá-lo, Raziel refletiu. Mas não há nenhuma razão para que eu deva lhe dar o que quer.
— Eu nem sequer disse o que quero — Simon falou.
Você quer uma arma. Algo que possa separar Jonathan Morgenstern de Jonathan Herondale. Você mataria um e preservaria o outro. Mais fácil seria, é claro, simplesmente matar os dois. Seu Jonathan estava morto, e talvez a morte ainda anseie por ele, e ele por ela. Isso já passou pela sua cabeça?
— Não. Sei que não somos muito se comparados a você, mas não matamos nossos amigos. Nós tentamos salvá-los. Se o Céu não quisesse que fosse assim, nunca deveria ter-nos dado a capacidade de amar — ele empurrou o cabelo para trás, expondo a marca mais plenamente — não, você não precisa me ajudar. Mas se não fizer, não há nada que me impeça de chamá-lo de novo e de novo, agora que sei que não pode me matar. Pense nisso, em mim tocando sua campainha Celestial... para sempre.
Raziel, incrivelmente, pareceu rir com o ponto.
Você é obstinado. Um verdadeiro guerreiro para seu povo, como ele, cujo nome você carrega, Simon Macabeu. E como ele deu tudo por seu irmão Jonathan, você também deve dar tudo pelo seu Jonathan. Ou você não está disposto?
— Não é só por ele — Simon falou, um pouco tonto — mas, sim, o que você quiser. Eu lhe darei.
Se eu lhe der o que quer, você também jurará nunca me incomodar de novo?
— Não acho que isso será um problema.
Muito bem, o Anjo respondeu. Vou lhe dizer o que desejo. Eu desejo esta Marca blasfema em sua testa. Gostaria de remover a Marca de Caim, já que nunca coube a você carregá-la.
— Eu... mas se você remover a Marca, então poderá me matar — Simon apontou — ela não é a única coisa entre mim e sua ira Celestial?
O Anjo parou para pensar por um momento.
Eu devo jurar não prejudicá-lo. Quer tenha a Marca ou não.
Simon hesitou. A expressão do Anjo se tornou ameaçadora.
A palavra de um Anjo do Céu é a mais sagrada que existe. Ousa desconfiar de mim, Ser do Submundo?
— Eu...
Simon fez uma pausa por um momento excruciante. Seus olhos estavam cheios com a memória de Clary na ponta dos pés, pressionando a estela em sua testa; a primeira vez que tinha visto a Marca funcionando, quando se sentiu como o condutor de um raio, pura energia passando por ele com uma força letal. Era uma maldição que o tinha aterrorizado e fez dele um objeto de desejo e medo. Ele a odiava. E mesmo assim, agora, prestes a se livrar dela, da única coisa que o tornava especial...
Ele engoliu em seco.
— Tudo bem. Sim. Eu concordo.
O Anjo sorriu, e seu sorriso era terrível, como olhar diretamente para o sol.
Então, eu juro não machucá-lo, Simon Macabeu.
— Lewis. Meu sobrenome é Lewis.
Mas você possui o sangue e a fé dos Macabeus. Alguns dizem que os Macabeus foram marcados pela mão de Deus. De qualquer forma, você é um guerreiro do Céu, Diurno, quer goste ou não.
O anjo se moveu. Os olhos de Simon lacrimejaram, Raziel parecia puxar o céu para ele como um pano, em redemoinhos de preto, prata e branco-nuvem. O ar em volta dele estremeceu. Algo brilhou acima de sua cabeça, como o brilho da luz sobre o metal, e um objeto atingiu a areia e as pedras ao lado de Simon com um ruído metálico.
Era uma espada – nada aparentemente especial, uma espada velha de ferro com aparência surrada e um punho enegrecido. As bordas eram irregulares, como se estivessem corroídas por ácido, embora a ponta fosse afiada. Parecia algo descoberto por uma escavação arqueológica e que ainda não havia sido devidamente limpo.
O Anjo falou.
Uma vez, quando Josué estava próximo de Jericó, olhou para cima e viu um homem de pé diante dele com uma espada desembainhada na mão. Josué foi até ele e disse: "Você é um de nós, ou um dos nossos adversários?" Ele respondeu: "Nenhum dos dois, mas como o comandante do exército do Senhor, estou aqui."
Simon olhou para o objeto pouco gracioso a seus pés.
— E esta é a espada?
É a espada do Arcanjo Miguel, comandante dos exércitos do Céu. Ela possui o poder do fogo do Céu. Ataque seu inimigo com isso e o mal será queimado para fora dele. Se ele possui mais mal do que bem, mais do Inferno do que do Céu, ela também queimará a vida dele. Ela certamente cortará a ligação dele com o seu amigo... e poderá atingir apenas um deles de cada vez.
Simon se abaixou e pegou a espada. Ela enviou um choque por sua mão, subindo por seu braço até seu coração imóvel. Instintivamente, ele a levantou, e as nuvens acima pareceram se partir por um momento, um raio de luz desceu para atingir o metal rígido da espada e fazê-lo tremer.
O Anjo olhou para ele com os olhos frios.
O nome da espada não pode ser falado pela sua pobre língua humana. Você deve chamá-la de Gloriosa.
— Eu... — Simon começou. — Obrigado.
Não me agradeça. Eu teria te matado, Diurno, mas a sua Marca, e agora o meu juramento, impediram. A Marca de Caim foi feita para ser colocada por Deus, e não foi. Ela deve ser apagada de sua testa, sua proteção removida. E se você me evocar novamente, eu não lhe ajudarei.
Instantaneamente, o feixe de luz que incidia a partir das nuvens se intensificou, atingindo a espada como um chicote de fogo, aprisionando Simon em uma gaiola de luz brilhante e calor.
A espada queimava; ele gritou e caiu no chão, com a dor pulsando em sua cabeça. Parecia que alguém estava espetando uma agulha vermelha e quente entre seus olhos. Ele cobriu o rosto, enterrando a cabeça em seus braços, deixando que a dor o varresse. Foi a pior agonia que sentiu desde a noite em que morreu.
Ela desapareceu lentamente, como uma maré vazante. Simon rolou de costas, olhando para cima, com a cabeça ainda doendo. As nuvens negras estavam começando a sumir, mostrando uma grande faixa de azul; o anjo fora embora, o lago ondulava sob a luz crescente como se a água estivesse fervendo.
Simon começou a sentar-se lentamente, com os olhos cerrados dolorosamente contra o sol. Ele podia ver alguém correndo pelo caminho da casa até o lago. Alguém com um cabelo preto longo e um casaco roxo que voava para trás como asas.
Chegou ao final do caminho e saltou para a beira do lago, as botas levantando nuvens de areia atrás dela. O alcançou e atirou-se para baixo, envolvendo os braços em volta dele.
— Simon — sussurrou.
Ele podia sentir a batida forte e estável do coração de Isabelle.
— Pensei que você estivesse morto — ela continuou — vi você cair, e... pensei que você estivesse morto.
Simon a deixou segurá-lo, apoiando-se com as mãos. Percebeu que estava torto, como um navio com um furo no casco, e tentou não se mexer. Estava com medo de que se o fizesse, cairia.
— Eu estou morto.
— Eu sei — Izzy rebateu — eu quis dizer mais morto do que de costume.
— Iz.
Ele levantou o rosto dela. Ela estava ajoelhada sobre ele, as pernas ao seu redor e os braços em torno de seu pescoço. Parecia desconfortável. Ele se deixou cair para trás na areia, levando-a com ele. Simon bateu com as costas na areia fria, com ela por cima, e fitou aqueles olhos negros. Eles pareciam conter o céu inteiro.
Ela tocou sua testa com espanto.
— Sua Marca sumiu.
— Raziel a removeu. Em troca da espada — ele fez um gesto em direção à lâmina.
Acima, na casa de campo, pôde ver duas manchas escuras de pé na frente da varanda, observando-os. Alec e Magnus.
— É a espada do Arcanjo Miguel. Chama-se Gloriosa.
— Simon... — ela beijou sua bochecha — você conseguiu. Falou com o Anjo. Pegou a espada.
Magnus e Alec começaram a descer o caminho para o lago. Simon fechou os olhos, exausto. Isabelle se inclinou sobre ele, o cabelo roçando os lados de seu rosto.
— Não tente falar — ela cheirava a lágrimas — você não está mais amaldiçoado — sussurrou — você não está amaldiçoado.
Simon entrelaçou os dedos com os dela. Sentia que estava flutuando em um rio escuro, com as sombras se fechando ao seu redor. Apenas a mão de Isabelle o mantinha na terra.
— Eu sei.
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