Capítulo 19 - Dies Irae

— Você está errado — Clary disse, mas a voz dela não segurava nenhuma convicção — você não sabe nada sobre mim ou Jace... está apenas tentando...
— O quê? Eu estou tentando chegar até você, Clarissa. Para te fazer entender.
Não havia nenhum sentimento na voz de Valentim que Clary pudesse detectar além do apagado divertimento.
— Você está rindo de nós. Pensa que pode me usar para machucar Jace, assim poderá rir de nós. Não está nem mesmo com raiva — ela adicionou — um pai de verdade estaria com raiva.
— Eu sou um pai de verdade. O mesmo sangue que corre em minhas veias corre nas suas.
— Você não é meu pai. Luke é — Clary replicou, quase secamente — estamos acima disso.
— Você só olha Luke como seu pai por causa do relacionamento dele com sua mãe...
— Relacionamento? — Clary riu alto. — Luke e minha mãe eram amigos.
Por um momento, teve certeza que viu um olhar de surpresa passar pelo rosto dele, mas tudo o que ele disse foi:
— É isso então. Você realmente pensa que ele suportou tudo isso... Lucian, eu quero dizer... esta vida de silêncio, se escondendo e fugindo, esta devoção pela proteção de um segredo que ele mesmo não entendia completamente, apenas por amizade? Para sua idade você sabe muito pouco sobre as pessoas, Clary, e menos ainda sobre os homens.
— Você pode fazer todas as alusões sobre Luke que quiser. Não fará nenhuma diferença. Está errado sobre ele, do modo que está errado sobre Jace. Você dá a todos motivos horríveis para tudo o que fazem porque é só o que você entende.
— É isso o que seria se ele amasse sua mãe? Horrível? — Valentim perguntou. — O que há de tão horrível sobre o amor, Clarissa? Ou é isso o que você sente, no fundo, que seu precioso Lucian nem é verdadeiramente humano, nem verdadeiramente capaz de sentir como nós...
— Luke é tão humano quanto eu — Clary atirou para ele — você é só um invejoso.
— Ah, não. Eu não sou nada disso — ele se moveu para mais perto dela, e Clary andou para a Espada, bloqueando-a da visão dele — você pensa deste modo por que olha para mim e para o que eu faço através das lentes de seu entendimento do mundo mundano. Humanos mundanos criam distinções entre si mesmos, distinções que parecem ridículas para qualquer Caçador de Sombras. Suas distinções são baseadas na raça, religião, identidade nacional, qualquer dúzia de marcações menores e irrelevantes. Para os mundanos estas coisas parecem lógicas, já que não podem ver, entender ou reconhecer o mundo dos demônios, eles sabem que há aqueles que andam neste planeta que são outros. Aqueles que não pertencem, aqueles que significam apenas dano e destruição. Desde que a ameaça dos demônios é invisível para os mundanos, eles precisam atribuir a ameaça para outros de sua própria espécie. Colocam o rosto de seus inimigos no rosto de seus vizinhos, e dessa forma gerações de sofrimento é assegurada.
Ele deu outro passo na direção de Clary, e ela instintivamente se moveu para trás; estava pressionada contra a mesa agora.
— Eu não sou assim — ele continuou — posso ver a verdade disso. Mundanos veem através de um vidro escurecido, mas Caçadores de Sombras – nós vemos cara a cara. Sabemos a verdade do mal, e sabemos que mesmo caminhando entre nós, não é um de nós. O que não pertence ao nosso mundo não deveria se enraizar aqui, para crescer como uma flor venenosa e extinguir toda a vida.
Clary quis ir para espada e atingir Valentim, mas as palavras dele a chocaram. A voz dele era tão suave, tão persuasiva, e não era como se ela pensasse que os demônios deveriam ser autorizados a permanecer na Terra, para drená-la às cinzas como drenavam seus outros mundos... Isso quase fazia sentido.
— Luke não é um demônio.
— Me parece Clarissa — Valentim disse — que você teve pouca experiência do que um demônio é, e o que ele não é. Você conheceu uns poucos Seres do Submundo que pareceram a você serem gentis o suficiente, e é através da lente de sua bondade que você vê o mundo. Demônios, para vocês, são horríveis criaturas que saltam das sombras para rasgar e atacar. E existem tais criaturas. Mas há também demônios de profunda sutileza e descrição, demônios que caminham irreconhecíveis e desimpedidos entre humanos. Ainda tenho visto que eles fazem coisas terríveis que os seus mais bestiais colegas parecem gentis em comparação. Havia um demônio que conheci uma vez em Londres que posava como um poderoso empresário. Ele nunca estava sozinho, então era bem difícil para me aproximar o suficiente para matá-lo, apesar de eu saber o que ele era. Ele tinha seus servos para trazerem a ele animais e jovens crianças – qualquer coisa que fosse pequena e indefesa...
— Pare! — Clary ergueu as mãos num gesto de “pare”. — Já chega, chega!
— Demônios se alimentam de morte, dor e fúria — Valentim continuou — quando eu mato, é porque preciso. Você cresceu em um paraíso falsamente belo, cercado de frágeis paredes de vidro, minha filha. Sua mãe criou o mundo que ela precisava viver e trouxe você para dentro dele, mas nunca lhe disse que era uma ilusão. E todo o tempo os demônios esperaram com suas armas de sangue e terror para romper o vidro e te libertar da mentira.
— Você esmagou as paredes — Clary sussurrou — me arrastou para dentro disso tudo. Ninguém além de você.
— E o vidro que te corta, a dor que você sente, o sangue? Você me culpa por isso também? Não fui quem colocou você dentro da prisão.
— Pare com isso. Apenas pare de falar.
A cabeça de Clary estava latejando. Ela queria gritar: Você sequestrou minha mãe, você fez isso, é sua culpa! Mas ela tinha começado a entender o que Luke quis dizer quando falou que não podia argumentar com Valentim. De algum modo, ele tornou impossível discordar sem fazer Clary sentir como se estivesse defendendo os demônios que partiam crianças ao meio. Ela se perguntou como Jace tinha suportado todos esses anos viver à sombra da exigente e devastadora personalidade. Ela começou a ver de onde a arrogância de Jace tinha vindo, sua arrogância e suas emoções cuidadosamente controladas.
A ponta da mesa atrás dela estava pinicando suas pernas.
— O que você quer de mim? — Ela perguntou a Valentim.
— O que te leva a pensar que eu quero alguma coisa de você?
— Você não estaria falando comigo de outro modo. Tem bagunçado minha cabeça à espera de... de seja lá qual o próximo passo depois disso.
— O próximo passo — Valentim respondeu — é seus amigos Caçadores de Sombras irem atrás de nós, e se quiserem você de volta viva, terão que te trocar pela garota lobisomem. Ainda preciso do sangue dela.
— Eles nunca irão trocar Maia por mim!
— É onde você está errada. Eles sabem o valor de um Ser do Submundo em comparação ao de uma criança Caçadora de Sombras. Irão fazer a troca. A Clave exigirá isso.
— A Clave? Você quer dizer... isso é parte da Lei?
— Codificada para sua existência — disse Valentim — agora você vê? Nós não somos tão diferentes assim, a Clave e eu, ou Jonathan e eu, ou mesmo você e eu, Clarissa. Nós meramente temos uma pequena discordância quanto aos métodos.
Ele sorriu e caminhou para mais perto dela.
Movendo-se mais rapidamente do que teria pensado que podia, Clary alcançou atrás dela e sacou a Espada da Alma. Ela era tão pesada quanto tinha pensado que seria, tão pesada que Clary quase se desequilibrou. Colocando uma mão para se equilibrar, ela a levantou, apontando a lâmina diretamente para Valentim.

***

A queda de Jace terminou abruptamente quando ele acertou a dura superfície de metal com força suficiente para chacoalhar seus dentes. Ele tossiu, provando o sangue em sua boca, e ficou dolorosamente de pé.
Estava em uma passarela de metal vazia pintada num verde sombrio. O lado de dentro do navio era oco, um enorme cômodo ecoante de metal com escuras paredes externas curvadas. Olhando para cima, Jace podia ver um pequeno trecho de céu estrelado através do buraco.
A parte de dentro do navio era uma confusão de passarelas e escadas que pareciam levar a lugar nenhum, girando uma contra as outras como tripas de uma cobra gigante.
Estava um frio congelante. Jace podia ver sua respiração em nuvens brancas quando exalava. Havia pouca luz. Ele semicerrou os olhos para as sombras, então alcançou seu bolso para pegar a pedra enfeitiçada.
Seu brilho branco iluminou a escuridão. A passarela era comprida, com uma escada no final levando a um nível mais baixo. Enquanto Jace se movia em direção a ela, algo brilhou a seus pés.
Ele se inclinou. Era uma estela. Não pôde se impedir de olhar em torno dele, na meia expectativa de alguém se materializar fora das sombras. Como no Inferno uma estela de Caçador de Sombras chegado aqui embaixo? Jace a pegou cuidadosamente. Todas as estelas tinham uma espécie de aura nelas, uma impressão espiritual das personalidades de seus donos. Esta enviou um tiro de reconhecimento doloroso através dele. Clary.
Uma súbita e suave risada quebrou o silêncio. Jace girou ao redor, enfiando a estela em seu cinto. No clarão da pedra de runas, Jace podia ver uma figura escura no fim da passarela. O rosto estava escondido na sombra.
— Quem está aí? — Ele chamou.
Não houve resposta, apenas a sensação de que alguém estava rindo dele.
A mão de Jace foi automaticamente para seu cinto, mas ele tinha derrubado a lâmina serafim quando caiu. Estava sem armas.
Mas o que seu pai sempre tinha ensinado a ele? Usando corretamente, praticamente qualquer coisa poderia ser uma arma. Ele se moveu lentamente em direção a figura, seus olhos captando os vários detalhes em torno dele – o suporte onde poderia se segurar e balançar, chutando o oponente; um pedaço de metal quebrado que podia jogar contra um inimigo, apunhalando sua espinha. Todos esses pensamentos vieram em sua cabeça numa fração de segundos, a única fração de segundo antes da figura no fim da passarela se virar, o cabelo branco brilhando na luz da pedra enfeitiçada, e Jace o reconheceu.
Jace parou de andar.
— Pai? É você?

***

A primeira coisa que Alec percebeu foi o frio congelante. A segunda era que ele não podia respirar. Tentou sugar o ar e seu corpo espasmou. Sentou ereto, expelindo água suja do rio de seus pulmões em uma amarga correnteza que o fez engasgar e sufocar.
Finalmente pôde respirar, seus pulmões em fogo. Engasgando, ele olhou ao redor. Estava sentado em uma plataforma de metal amassada – não, ele estava em uma caminhonete. Uma caminhonete flutuando no meio do rio. Seus cabelos e roupas estavam jorrando água fria. E Magnus Bane estava sentado em sua frente, olhando-o firmemente com seus olhos âmbar de gato que brilhavam no escuro.
Seus dentes começaram a bater.
— O que... o que aconteceu?
— Você tentou beber do Rio East — Magnus respondeu.
Alec viu, pela primeira vez, que as roupas de Magnus estavam ensopadas, aderindo a seu corpo como uma escura segunda pele.
— Eu te puxei pra fora.
A cabeça de Alec estava latejando. Ele apalpou o cinto em busca de sua estela, mas ela tinha desaparecido. Tentou lembrar – o navio, inundado com demônios; Isabelle caindo e Jace segurando-a; sangue por toda parte embaixo de seus pés, o demônio atacando....
— Isabelle! Ela estava descendo quando eu caí...
— Ela está bem. Chegou em um barco. Eu a vi...
Magnus se aproximou para tocar a cabeça de Alec.
— Você, por outro lado, pode ter uma contusão.
— Eu preciso voltar para a batalha — Alec empurrou a mão dele para longe — você é um bruxo. Você pode, eu não sei, me fazer voar de volta ao barco ou algo assim? E curar minha concussão?
Magnus, suas mãos ainda estendidas, afundou de volta contra a lateral da caminhonete. Na luz das estrelas, os olhos dele eram lascas de verde e ouro, duras e planas como joias.
— Desculpe — Alec disse, notando como ele tinha soado, embora ainda sentisse que Magnus deveria ver que chegar ao navio era a coisa mais importante — eu sei que você não tem que nos ajudar... é um favor...
— Pare. Eu não faço favores a você, Alec. Faço coisas por você porque... bem, por que você acha que eu as faço?
Alguma coisa se elevou na garganta de Alec, interrompendo sua resposta. Era sempre assim quando ele estava com Magnus. Era como se houvesse uma bolha de dor ou pesar que vivia dentro do seu coração, e quando ele queria dizer alguma coisa, qualquer coisa, que parecia significante ou verdade, ela subia e sufocava suas palavras.
— Eu preciso voltar para o barco — ele disse, finalmente.
Magnus soou cansado demais para até mesmo estar com raiva.
— Eu queria te ajudar, mas não posso. Esvaziar as barreiras de proteção do navio foi ruim o suficiente – é um encantamento forte baseado em demônios – mas quando você caiu, tive que colocar um rápido feitiço na caminhonete para que ela não afundasse quando eu perder a consciência. E eu vou perder a consciência, Alec. É apenas uma questão de tempo — ele esfregou os olhos — eu não queria que você se afogasse. O encantamento deve segurar o suficiente para você levar a caminhonete de volta para a terra.
— Eu... não percebi.
Alec olhou para Magnus, que tinha trezentos anos, porém tinha sempre parecido sem idade, como se tivesse parado de envelhecer em torno dos dezenove. Agora havia acentuadas linhas em sua pele ao redor dos olhos e boca. Seu cabelo caía longamente sobre sua testa, e a depressão em seus ombros não era sua costumeira cuidadosa postura, mas a verdadeira exaustão.
Alec esticou as mãos. Elas estavam pálidas na luz da lua, enrugadas pela água e pontilhadas com dúzias de cicatrizes prateadas. Magnus olhou abaixo para elas, e então de volta para Alec, a confusão escurecendo seu olhar.
— Pegue minhas mãos — Alec falou — e pegue minha força também. Seja lá o que você utilize para se manter prosseguindo.
Magnus não se moveu.
— Eu pensei que você tivesse que voltar para o navio.
— Eu tenho que lutar — Alec confirmou — mas é isso o que você está fazendo, não é? Você é parte da luta tanto quanto os Caçadores de Sombras no navio – e sei que você pode pegar alguma da minha força. Ouvi dizer de bruxos fazendo isso – portanto estou me oferecendo. Pegue. É seu.

***

Valentim sorriu. Ele estava usando sua armadura negra e luvas protetoras que brilhavam como carapaças de insetos negros.
— Meu filho.
— Não me chame disso — Jace respondeu, e então, sentindo um tremor começar em suas mãos, perguntou — onde está Clary?
Valentim ainda estava sorrindo.
— Ela me desafiou. Tive que ensinar a ela uma lição.
— O que você fez?
— Nada — Valentim chegou mais perto de Jace, perto o suficiente para tocá-lo se estendesse sua mão. Ele não o fez. — Nada que ela não vá sarar.
Jace fechou sua mão em um punho para que seu pai não visse que ela estava tremendo.
— Eu quero vê-la.
— Mesmo? Com tudo isso acontecendo? — Valentim olhou para cima como se pudesse ver através do casco do navio a carnificina no convés. — Eu teria pensado que você iria querer estar lutando com o resto de seus amigos Caçadores de Sombras. Pena que seus esforços são para nada.
— Você não sabe disso.
— Eu sei. Para cada um deles, eu posso invocar mil demônios. Mesmo o melhor Nephilim não pode manter-se contra estas desigualdades. Como no caso — Valentim adicionou — da pobre Imogen.
— Como você...
— Eu vejo tudo o que está acontecendo no meu navio — os olhos de Valentim estreitaram-se — você sabe que é por sua culpa que ela morreu, não é?
Jace sugou o ar em uma respiração. Ele podia sentir seu coração martelando como se precisasse rasgar para fora de seu peito.
— Se não fosse por você, nenhum deles teria vindo para o navio. Eles pensam que estavam te resgatando, sabe. Se tivesse sido sobre os dois Seres do Submundo, eles não teriam se incomodado.
Jace quase tinha se esquecido.
— Simon e Maia...
— Ah, eles estão mortos. Ambos — a voz de Valentim era casual, até mesmo suave — quantos mais tem que morrer, Jace, antes que você veja a verdade?
Jace sentia que sua cabeça estava cheia de redemoinhos de fumaça. Seu ombro queimava com dor.
— Nós já tivemos esta conversa. Você está errado, pai. Pode estar certo sobre os demônios, pode estar até mesmo certo sobre a Clave, mas este não é o modo...
— Eu quis dizer, quando você verá que é apenas como eu.
Apesar do frio, Jace começou a suar.
— O quê?
— Você e eu somos iguais — Valentim respondeu — como você disse para mim antes, você é o que eu fiz de você, e eu fiz de você uma cópia de mim mesmo. Você tem a minha arrogância. Tem a minha coragem. E tem aquela qualidade que faz os outros darem suas vidas por você sem questionar.
Alguma coisa martelou atrás da mente de Jace. Algo que ele deveria saber, e tinha se esquecido... seu ombro queimou...
— Eu não quero que as pessoas deem suas vidas por mim — ele gritou.
— Não. Você quer. Você gosta de saber que Alec e Isabelle morreriam por você. Que sua irmã morreria. A Inquisidora morreu por você, não morreu, Jonathan? E você ficou parado e deixou ela...
— Não!
— Você é como eu – isso não é surpreendente, é? Nós somos pai e filho, por que não seriamos iguais?
— Não!
Jace ergueu sua mão e agarrou a distorcida estaca de metal. Ela veio com um explosivo estalar, quebrou na ponta denteada e maldosamente afiada.
— Eu não sou como você! — ele gritou, e mergulhou a estaca diretamente no peito de seu pai.
A boca de Valentim se abriu. Ele balançou para trás, a estaca saindo de seu peito. Por um momento, Jace podia apenas olhar, pensando. Eu estava errado – esse é realmente ele – e então Valentim pareceu entrar em colapso, seu corpo se esfarelando para longe como areia. O ar estava cheio do cheiro de queimado enquanto o corpo de Valentim virava cinzas e soprava-se para longe no ar frio.
Jace colocou uma mão em seu ombro. A pele onde a runa do destemor tinha queimado parecia quente ao toque. Uma grande sensação de fraqueza o devastou.
— Agramon — ele sussurrou, e caiu de joelhos na passarela.
Foram apenas uns poucos momentos ajoelhados no piso, enquanto seu pulso martelando diminuía, mas para Jace parecia como eternidade. Quando ele finalmente se levantou, suas pernas estavam duras com o frio. As pontas dos dedos estavam azuis. O ar ainda fedia a algo queimado, apesar de não haver sinal de Agramon.
Ainda segurando o pedaço pontiagudo de metal, Jace seguiu para a escada no fim da passarela. O esforço de descer com uma mão limpou sua cabeça. Desceu do último degrau para se encontrar em uma segunda passarela que corria ao longo de um vasto cômodo de metal. Havia dezenas de outras passarelas seguindo as paredes e uma variedade de canos e máquinas. Sons de pancadas vinham de dentro dos tubos, e a cada momento um dos canos soltava uma rajada do que parecia ser vapor, apesar do ar manter-se amargamente frio.
Realmente um lugar que você tem aqui para si, pai, Jace pensou. O vazio interior industrial do navio não combinava com o Valentim que ele conhecia, que era detalhista sobre o tipo de corte de cristal de suas garrafas.
Jace olhou ao redor. Era um labirinto ali embaixo; não havia jeito de saber que direção devia tomar. Ele se virou para subir a escada mais próxima e notou uma mancha vermelha escura no piso de metal.
Sangue. Ele roçou a ponta de sua bota através nele. Ainda estava úmido, ligeiramente pegajoso. Seu pulsou acelerou. Na parte de baixo da passarela ele viu outro ponto de vermelho, e então outro mais a distância, como uma trilha de migalhas de pães em um conto de fadas.
Jace seguiu o sangue, suas botas ecoando na passarela de metal. O padrão de sangue espalhado era peculiar, não como se tivesse tido uma luta, era mais como se alguém tivesse sido carregado, sangrando, ao longo da passarela...
Ele alcançou uma porta. Era feita de metal preto, prateado aqui e ali com amassados e lascas. Lá estava uma sangrenta impressão de mão ao redor da maçaneta.
Agarrando a estaca denteada mais apertadamente, Jace empurrou a porta, abrindo-a.
Uma onda do mesmo ar frio o acertou e ele sugou uma respiração. A sala estava vazia exceto pelo cano de metal que corria ao longo de uma parede e o que parecia uma pilha de sacos no canto. Uma pequena luz vinha através da janela alta em uma parede. Enquanto Jace andava cautelosamente para dentro, a luz vinda da janela caiu na pilha no canto e ele notou que aquilo não era uma pilha de lixo depois de tudo, mas um corpo.
O coração de Jace começou a bater como uma porta destrancada em um vendaval. O piso de metal estava pegajoso com o sangue. Suas botas faziam um feio som de sucção a cada passo enquanto ele atravessava a sala e se abaixava ao lado da figura dobrada no canto. Um garoto, cabelo escuro, vestido em jeans e uma camiseta azul ensopada de sangue.
Jace pegou o corpo pelo ombro e levantou. Frouxo e desossado, olhos castanhos encarando cegamente o teto. A respiração de Jace prendeu em sua garganta. Era Simon.
Ele estava branco como papel. Havia um feio talho na base de sua garganta, e ambos os pulsos tinham sido cortados, deixando fendas, cantos irregulares das feridas.
Jace afundou em seus joelhos, ainda segurando os ombros de Simon. Ele pensou desesperadamente em Clary, a dor dela quando descobrisse, o modo como tinha apertado as mãos nas suas, tanta força naqueles pequenos dedos. Você vai encontrar Simon para mim. Eu sei que vai.
E ele tinha. Mas era tarde demais.
Quando Jace tinha dez anos, seu pai tinha explicado a ele todos os modos de matar vampiros. Perfure-os. Corte suas cabeças e coloque-as para queimar como as misteriosas lanternas de abóbora do Halloween. Deixe o sol queimá-los até as cinzas. Ou drene seu sangue. Eles precisam do sangue para viver, eles funcionam com isso, como carros funcionam com gasolina. Olhando para a ferida irregular na garganta de Simon, não era difícil de ver o que Valentim tinha feito.
Jace se aproximou para perto dos olhos esbugalhados de Simon. Se Clary tivesse de vê-lo morto, melhor que ela não o visse assim. Ele moveu sua mão para a gola da camisa de Simon, querendo dar um puxão nela para cima, para cobrir o talho.
Simon se moveu. Suas sobrancelhas estremeceram e se abriram, seus olhos rolaram para trás, mostrando a parte branca. Ele gorfou, um fraco som, lábios curvados para trás, mostrando as pontas das presas de vampiro. A respiração agitou o corte em sua garganta.
Náusea subiu nas costas da garganta de Jace, sua mão apertando a gola de Simon. Ele não estava morto. Mas Deus, a dor, ela deveria ser horrível. Ele não podia se curar, não podia regenerar, não sem...
Não sem sangue. Jace soltou a camisa de Simon e puxou sua manga direita para cima com os dentes. Usando a ponta irregular da estaca quebrada, ele fez um profundo corte em seu pulso. Sangue brotou da superfície da pele. Ele largou a estaca; que bateu no piso de metal com um tinido. Podia sentir o cheiro de seu próprio sangue no ar, acentuado e cobreado.
Ele olhou abaixo para Simon, que não tinha se movido. O sangue estava correndo pelo braço de Jace agora, seu pulso ardendo. Segurou-o acima do rosto de Simon, deixando o sangue gotejar pelos seus dedos, derramando sobre a boca de Simon. Não houve reação. Simon não estava se movendo.
Jace moveu-se mais perto; estava ajoelhado sobre Simon agora, sua respiração fazendo nuvens brancas no ar gelado. Ele se inclinou abaixo, pressionando seu pulso sangrando contra a boca de Simon.
— Beba meu sangue, idiota — ele sussurrou — beba.
Por um momento, nada aconteceu. Então os olhos de Simon flutuaram abertos. Jace sentiu uma afiada picada em seu pulso, um tipo de puxão, uma dura pressão – e a mão direita de Simon voou e agarrou o braço de Jace logo abaixo do cotovelo. As costas de Simon arquearam do chão, a pressão no pulso de Jace aumentando enquanto as presas de Simon afundavam. Dor atingiu o braço de Jace.
— Ok — Jace disse — ok, chega.
Os olhos de Simon se abriram. O branco tinha desaparecido, as íris castanho-escuras se focaram em Jace. Havia cor em suas bochechas, um agitado rubor como febre. Os lábios dele estavam levemente partidos, as presas brancas manchadas com sangue.
— Simon? — Jace chamou.
Simon se levantou. Ele se moveu com inacreditável velocidade, acertando Jace de lado e rolando para cima dele. A cabeça de Jace bateu no piso de metal, seus ouvidos pulsando enquanto os dentes de Simon se afundavam em seu pescoço. Ele tentou girar para longe, mas os braços do outro garoto eram como barras de ferro, prendendo-o no chão, dedos escavando os seus ombros.
Mas Simon não estava machucando-o – não realmente – a dor que tinha começado aguda desapareceu com um tipo de queimação entorpecida, agradável da maneira que a queimadura da estela era às vezes. Uma pesada sensação de paz infiltrou-se através das veias de Jace e ele sentiu seus músculos relaxarem; as mãos que tinham tentado empurrar Simon para longe um momento atrás, agora o pressionavam para mais perto. Ele podia sentir a batida de seu próprio coração, sentir diminuindo, seus batimentos desaparecendo em um suave eco. Uma trêmula escuridão penetrou nos cantos de sua visão, bela e estranha. Jace fechou seus olhos...
Dor se lançou através de seu pescoço. Ele engasgou e seus olhos voaram abertos; Simon estava sentado acima dele, olhando com olhos largos, sua mão cobrindo a própria boca. As feridas de Simon tinham desaparecido, apesar do sangue fresco manchando a frente de sua camisa.
Jace podia sentir a dor de seus ombros contundidos novamente, o corte em seus pulsos, sua garganta perfurada. Ele já não podia ouvir seu coração batendo, mas sabia que ele estava golpeando dentro de seu peito.
Simon tirou a mão de sua boca. Suas presas tinham desaparecido.
— Eu poderia ter te matado você — ele disse.
Havia um tipo de tp, agradável em sua voz.
— Eu teria deixado — Jace respondeu.
Simon começou a se abaixar, então fez um barulho na parte de trás de sua garganta. Ele rolou de cima Jace e acertou o chão com seus joelhos, abraçando seus cotovelos.
Jace podia ver o tracejado escuro nas veias de Simon através da pele pálida em sua garganta, ramificando em azul e linhas roxas. Veias cheias de sangue. Meu sangue.
Jace se sentou. Ele tateou por sua estela. Arrastando-a através de seu braço, sentia-se arrastando um cano de chumbo através de um campo de futebol. Sua cabeça palpitou. Quando terminou a iratze, ele inclinou a cabeça contra a parede atrás dele, respirando duramente, a dor deixando-o enquanto a runa de cura tirava os efeitos. Meu sangue nas veias dele.
— Eu lamento — Simon disse — eu lamento muito.
A runa de cura estava tendo efeitos. A cabeça de Jace começou a clarear e o batimento em seu peito diminuiu. Ele ficou de pé cuidadosamente, esperando por uma onda de tontura, mas sentia apenas uma pequena fraqueza e cansaço.
Simon ainda estava ajoelhado, olhando para suas mãos. Jace abaixou e agarrou as costas da camisa dele, puxando-o de pé.
— Não se desculpe — ele replicou, soltando Simon — apenas se apresse. Valentim tem Clary e nós não temos muito tempo.

***

No segundo em que os dedos dela se fecharam em torno do cabo de Maellartach, um abrasador golpe frio subiu pelo braço de Clary. Valentim observou-a com uma expressão de leve interesse enquanto ela arfava com dor, seus dedos ficando dormentes. Agarrou desesperadamente a Espada, mas ela escorregou do seu aperto e bateu no chão aos seus pés.
Ela mal viu Valentim se mover. Um momento depois, ele estava de pé na sua frente segurando a Espada.
A mão de Clary estava picando. Ela olhou e viu uma mancha vermelha queimando crescendo ao longo de sua palma.
— Você realmente pensou — Valentim comentou, uma matiz de desgosto colorindo sua voz — que eu ia deixá-la perto de uma arma que pensasse que você pudesse usar? — Ele balançou sua cabeça. — Você não entendeu uma palavra do que eu disse, não é? Parece que das minhas duas crianças, só uma parece ser capaz de compreender a verdade.
Clary fechou sua mão machucada em um punho, quase saudando a dor.
— Se você quis dizer Jace, ele te odeia também.
Valentim balançou a Espada para cima, trazendo a ponta para o nível da clavícula de Clary.
— Já chega — ele disse — chega de você.
A ponta da espada era afiada; quando Clary respirou, ela perfurou sua garganta e uma gota de sangue traçou seu caminho abaixo no seu peito. O toque da espada parecia entornar frio através de suas veias, enviando ferventes partículas de gelo através de seus braços e pernas, adormecendo suas mãos.
— Arruinada por sua educação — Valentim observou — sua mãe foi sempre uma mulher obstinada. Essa era uma das coisas que eu amei nela no início. Pensei que ela iria manter seus ideais.
Era estranho, Clary pensou com um objetivo tipo de horror, que quando tinha visto seu pai antes no Rewicks, seu considerável carisma pessoal tinha sido exibido para o benefício de Jace. Agora ele não estava incomodado, e sem a superfície patinada de charme, ele parecia... vazio. Como uma estátua oca, olhos cortados para mostrar apenas escuridão por dentro.
— Diga-me Clarissa – sua mãe falou sobre mim?
— Ela me disse que meu pai estava morto.
Não diga nada mais, ela alertou a si mesma, mas ela estava certa de que ele podia ler o resto das palavras em seus olhos. E eu queria que ela tivesse dito a verdade.
— E ela nunca disse que você era diferente? Especial?
Clary engoliu, e a ponta da espada cortou um pouco mais fundo. Mais sangue escorreu abaixo em seu peito.
— Ela nunca me disse que eu era uma Caçadora de Sombras.
— Você sabe por que — Valentim disse, olhando abaixo do comprimento da espada para ela — sua mãe me deixou?
Lágrimas queimavam por trás da garganta de Clary. Ela fez um barulho sufocado.
— Você quer dizer que era apenas uma razão?
— Ela me disse — ele continuou, como se Clary não tivesse falado — que eu tinha transformado seu primeiro filho em um monstro. Me deixou antes que eu pudesse fazer o mesmo com o segundo. Você. Mas ela estava muito atrasada.
O frio em sua garganta, nos seus membros, era tão intenso que ela estava além dos tremores. Era com se a espada estivesse transformando-a em gelo.
— Ela nunca diria isso — Clary sussurrou — Jace não é um monstro. Nem eu.
— Eu não estava falando sobre...
O alçapão acima de suas cabeças abriu-se e duas figuras sombreadas caíram do buraco, pousando bem atrás de Valentim.
A primeira, Clary viu com um brilhante choque de alívio, era Jace, caindo no ar como uma seta atirada de um arco, certo de seu alvo. Ele bateu no chão com uma assegurada leveza. Estava agarrando uma estaca de aço manchada de sangue em uma mão, sua extremidade quebrada em uma horrível ponta.
A segunda figura pousou ao lado de Jace com a mesma leveza, se não a mesma graça. Clary viu o contorno de um garoto magro com cabelo escuro e pensou: Alec. Foi apenas quando ele se endireitou e ela reconheceu o rosto familiar que notou quem ele era.
Ela esqueceu a espada, o frio, a dor em sua garganta, esqueceu-se de tudo.
— Simon!
Simon olhou através da sala para ela. Seus olhos se encontraram por apenas um momento e Clary esperou que ele pudesse ler em seu rosto seu cheio e devastador alívio. As lágrimas que tinham ameaçado vieram, e se derramaram no seu rosto. Ela não se moveu para limpá-las para longe.
Valentim virou a cabeça e olhou para trás, e sua boca cedeu em uma primeira expressão de honesta surpresa que Clary nunca tinha visto em seu rosto. Ele girou para enfrentar Jace e Simon.
No momento em que a ponta da espada deixou a garganta de Clary, o gelo escorreu dela, tirando todas as suas forças com isso. Ela mergulhou em seus joelhos, tremendo incontrolavelmente. Quando levantou as mãos para limpar as lágrimas, viu que as pontas dos seus dedos estavam brancas com o início de congelamento.
Jace olhou para ela em horror, então para seu pai.
— O que você fez com ela?
— Nada — Valentim respondeu, recobrando o controle de si mesmo — ainda.
Para surpresa de Clary, Jace empalideceu, como se as palavras de seu pai o tivessem chocado.
— Eu sou o único que deve estar se perguntando o que você fez, Jonathan — Valentim continuou, falando para Jace, seus olhos em Simon — por que é que ele ainda está vivo? Mortos-vivos podem se regenerar, mas não com tão pouco sangue neles.
— Você quer dizer eu? — Simon demandou.
Clary olhou. Simon soava diferente. Ele não soava como um garoto espertinho para um adulto; soava como alguém que parecia sentir que podia enfrentar Valentim Morgenstern em pé de igualdade. Como alguém que merecesse enfrentá-lo em pé de igualdade.
— Oh, está certo, você me deixou para morrer. Bem, morto.
— Cale a boca — Jace atirou um olhar para Simon; seus olhos estavam muito escuros — me deixe responder isso — ele virou para seu pai — eu deixei Simon beber de meu sangue, logo ele não morreria.
O rosto já sério de Valentim se fixou em duras linhas, como se seus ossos estivessem se empurrado através da pele.
— Você por conta própria deixou um vampiro beber seu sangue?
Jace pareceu hesitar por um momento – ele olhou para Simon, que estava olhando fixamente para Valentim com um olhar de intenso ódio. Então ele respondeu, cuidadosamente:
— Sim.
— Você não tem ideia do que fez, Jonathan — Valentim disse, em uma voz terrível — não tem ideia.
— Eu salvei uma vida. Uma que você tentou tirar. Eu sei disso bem.
— Não uma vida humana — Valentim replicou — você ressuscitou um monstro que vai apenas matar para se alimentar novamente. A espécie dele está sempre faminta...
— Eu estou com fome agora — Simon observou, um sorriso revelando suas presas. Eles brilharam brancos e pontudos contra seu lábio inferior — eu não vou me importar com um pouco mais de sangue. É claro que seu sangue irá provavelmente me sufocar, seu venenoso pedaço de...
Valentim riu.
— Eu gostaria de ver você tentar, morto vivo. Quando a Espada da Alma te cortar, você irá queimar enquanto morre.
Clary viu os olhos de Jace irem para a espada, e então para ela. Havia uma não pergunta não verbalizada neles. Rapidamente, Clary falou:
— A espada não se transformou. Ele não conseguiu o sangue de Maia, então não terminou a cerimônia...
Valentim se virou em direção a ela, Espada na mão, e ela viu-o rir. A Espada parecia se agitar em seu aperto, e então alguma coisa a acertou... era como ser acertada por cima por uma onda, atirando abaixo e então levantando contra sua vontade e através do ar. Ela rolou contra o piso, incapaz de se parar, até que ela atingiu a antepara com força contundente. Ela amassou a base dela, ofegando com dor.
Simon começou a correr em direção a ela. Valentim balançou a Espada da Alma e uma listra de fogo chamejante se levantou, enviando-o aos tropeços para trás com seu agitado calor.
Clary lutou para se levantar em seus cotovelos. Sua boca estava cheia de sangue. O mundo oscilava em torno dela, e ela se perguntou quão duro tinha batido sua cabeça e se estava desmaiando. Ela desejou manter-se consciente.
O fogo tinha diminuído, mas Simon ainda estava encurvado no chão, parecendo confuso. Valentim olhou brevemente para ele, e então para Jace.
— Se você matar o morto vivo agora, pode desfazer o que fez.
— Não — Jace sussurrou.
— Apenas pegue a arma que está segurando em sua mão e a dirija para o coração dele — a voz de Valentim era suave — um simples movimento. Nada que você não fez antes.
Jace encontrou o olhar de seu pai com firmeza.
— Eu vi Agramon. Ele tinha seu rosto.
— Você viu Agramon? — A Espada da Alma brilhou enquanto ele se moveu em direção a seu filho. — E você sobreviveu?
— Eu matei ele.
— Você matou o Demônio do Medo. Mas não pode matar um simples vampiro, nem mesmo sob minha ordem?
Jace continuou a olhar Valentim sem expressão.
— Ele é um vampiro, é verdade — respondeu — mas seu nome é Simon.
Valentim parou em frente a Jace, a Espada da Alma na mão, queimando com uma pungente luz negra. Clary se perguntou por um aterrorizante momento se Valentim pretendia apunhalar Jace onde ele estava, e se Jace pretendia deixar.
— Eu entendi, então — Valentim disse — que você mudou de ideia? O que você me disse quando veio a mim antes, que era sua palavra final, se arrepende de ter me desobedecido?
Jace balançou sua cabeça lentamente. Uma mão ainda agarrada à estaca quebrada, sua outra mão – a direita – estava na cintura, puxando alguma coisa de seu cinto. Os olhos dele, entretanto, nunca deixavam os de Valentim, e Clary não tinha certeza se Valentim viu o que ele estava fazendo, Ela esperava que não.
— Sim — Jace respondeu — lamento ter te desobedecido.
Não!, Clary pensou, mas seu coração afundou. Estava ele desistindo, ele pensou que esse era o único modo de salvar ela e Simon?
O rosto de Valentim suavizou.
— Jonathan...
— Especialmente — Jace continuou — desde que eu planejo fazer isso novamente. Agora mesmo.
Sua mão se moveu, rápida como um flash de luz, e algo foi na direção de Clary pelo ar. Caiu a poucos centímetros dela, acertando o metal com um tinido e rolando. Os olhos dela se alargaram.
Era a estela de sua mãe.
Valentim começou a rir.
— Uma estela? Jace, isso é algum tipo de piada? Ou você finalmente...
Clary não ouviu o resto do que ele disse. Ela se puxou para cima, arfando enquanto a dor se lançava por sua cabeça. Os olhos dela lacrimejaram, sua visão borrou. Ela esticou uma mão tremendo para a estela – e enquanto seus dedos a tocavam, ouviu uma voz, tão clara dentro de sua cabeça como se sua mãe estivesse ao seu lado. Pegue a estela, Clary. Use-a, você sabe o que fazer.
Seus dedos se fecharam espasmodicamente em torno da estela. Ela se sentou, ignorando a onda de dor que veio por sua cabeça e abaixo de sua espinha. Ela era uma Caçadora de Sombras, e dor era algo com que você vivia. Turvamente, ela podia ouvir Valentim chamá-la, ouvir seus passos, se aproximando... e ela virou para a antepara, empurrando a estela a frente com tal força que quando sua ponta tocou o metal, Clary pensou ter ouvido um chiar de algo queimando.
Começou a desenhar. Como sempre acontecia quando desenhava, o mundo se afastou e havia apenas ela, a estela e o metal onde desenhava. Ela se lembrou de estar de pé do lado de fora da cela de Jace sussurrando para si mesma, Abra, abra, abra, e sabia que tinha desenhado com toda a sua força para criar a runa que tinha quebrado as algemas de Jace. E sabia que a força que tinha colocado naquela runa não era um décimo, nem um centésimo da força que estava colocando nesta. Suas mãos queimaram e ela gritou enquanto arrastava a estela abaixo na parede de metal, deixando uma espessa linha negra como carvão atrás dela. Abra.
Toda sua frustração, todo seu desapontamento, toda sua raiva passaram através de seus dedos e para dentro da runa. Abra.
Todo seu amor, todo seu alívio em ver Simon vivo, toda sua esperança que eles ainda poderiam sobreviver. Abra!
Sua mão, ainda segurando a estela, caiu em seu colo. Por um momento, houve um absoluto silêncio enquanto todos eles – Jace, Valentim, e mesmo Simon – olharam juntamente com ela para a runa que queimava na antepara do navio.
Foi Simon quem falou, virando-se para Jace.
— O que isso diz?
Mas foi Valentim quem respondeu, sem tirar os olhos da parede. Havia um olhar em seu rosto – não o olhar que Clary tinha esperado, um olhar que misturava triunfo e horror, desespero e deleite.
— Diz “Mene, mene, tekel, ufarsim.”
Clary balançou em seus pés.
— Não é isso o que ela diz — ela sussurrou — ela diz abrir.
Valentim encontrou os olhos dela com os seus próprios.
— Clary...
O grito do metal afogou suas palavras. A parede onde Clary tinha desenhado, uma parede feita de folhas de aço sólido, distorceu e estremeceu. Rebites estouraram livres de suas moradas e jatos de água espalharam-se pela sala.
Ela podia ouvir Valentim chamando, mas sua voz foi afogada pelo ensurdecedor som de metal sendo arrancado enquanto cada prego, cada parafuso, cada rebite que tinha mantido junto o enorme navio começaram a rasgar livres de seus ancoradouros.
Clary tentou correr em direção a Jace e a Simon, mas caiu de joelhos enquanto outra explosão de água veio do amplo buraco na parede. Dessa vez a onda jogou-a no chão, a água gelada puxando-a para baixo. Em algum lugar Jace estava chamando seu nome, sua voz alta e desesperada acima dos gritos no navio. Ela gritou o nome dele uma vez antes que fosse sugada pelo buraco recortado na antepara e para dentro do rio.
Girou e chutou a água preta. Terror dominava-a, terror na cega escuridão nas profundezas do rio, os milhões de toneladas de água ao redor dela, pressionando-a, sufocando o ar em seus pulmões. Ela não podia dizer que caminho era para cima ou em que direção nadar. Não podia mais prender sua respiração, seu peito queimando com a dor, estrelas explodindo por trás de seus olhos. Em seus ouvidos, o som de água correndo era substituído por um canto alto, doce e impossível.
Eu estou morrendo, ela pensou em espanto. Um par de pálidas mãos perfurou a água preta e puxou-a mais perto, longos cabelos levados pela correnteza em torno dela. Mãe, Clary pensou, mas antes que pudesse ver claramente o rosto de sua mãe, a escuridão fechou seus olhos.
Clary voltou à consciência com várias vozes em torno dela e luzes cintilando em seus olhos. Estava deitada de costas no aço enrugado da caçamba da caminhonete de Luke. O céu cinza enegrecido flutuava acima de sua cabeça. Ela podia cheirar a água do rio em torno dela, uma mistura de fumaça e sangue. Rostos brancos pairavam sobre ela como balões em cordas. Eles nadavam dentro do foco enquanto ela piscava seus olhos.
Luke. E Simon. Ambos olhavam para ela com expressões de preocupação ansiosa. Por um momento, ela pensou que o cabelo de Luke tinha ficado branco; então, piscando, notou que ele estava cheio de cinzas. Na verdade, era o ar – ele tinha gosto de cinzas – e suas roupas e pele estavam listradas com sujeira enegrecida.
Ela tossiu, sentindo o gosto de cinza em sua boca.
— Onde está Jace?
— Ele está... — os olhos de Simon foram para Luke, e Clary sentiu seu coração contrair.
— Ele está bem, não está? — ela exigiu. Ela tentou se sentar e uma dor dura atravessou de sua cabeça. — Onde ele está? Onde ele está?
— Estou aqui — seu rosto estava na sombra. Ele ajoelhou próximo a ela — me desculpe. Eu deveria estar aqui quando você acordou. É só...
A voz dele quebrou.
— É só o quê?
Ela o observou; iluminado por trás pelas luzes das estrelas, seu cabelo era mais prata do que ouro, seus olhos quase sem cor. Sua pele estava marcada com preto e cinza.
— Ele pensou que você estivesse morta também — Luke disse, e se levantou abruptamente.
Ele estava olhando o rio lá fora, algo que Clary não podia ver. O céu estava cheio de redemoinhos de fumaça preta e vermelha, como se estivesse incendiando.
— Morta também? Quem mais...
Ela se interrompeu enquanto uma nauseante dor a agarrava. Jace viu a expressão dela e colocou a mão em sua jaqueta, puxando a estela.
— Fique quieta, Clary.
Havia uma dor queimando em seu antebraço, e então sua cabeça começou a clarear. Ela sentou-se e viu que estava sentada em uma prancha molhada enfiada contra a traseira da caçamba. A caçamba estava com vários centímetros de água, misturada com redemoinhos de cinzas vindos do céu em uma fina chuva preta.
Ela olhou para o lugar onde Jace tinha desenhado uma marca que já estava retrocedendo, como se atirasse um golpe de força nas veias dela. Ele traçou a linha da iratze com seus dedos no braço dela antes de se afastar. A mão dele parecia tão fria e molhada quanto a própria pele dela. O resto dele estava molhado também; cabelo úmido e roupas ensopadas aderindo a seu corpo.
Havia um gosto ácido em sua boca, como se ela tivesse lambido o fundo de um cinzeiro.
— O que aconteceu? Houve um incêndio?
Jace olhou para Luke, que estava olhando lá fora o pesado rio preto acinzentado. A água era pontilhada aqui e ali com pequenos barcos, mas não havia sinal do navio de Valentim.
— Sim. O navio de Valentim incendiou até a linha da água. Nada ficou para trás.
— Onde está todo mundo? — Clary moveu seu olhar para Simon, que era o único deles que estava seco. Havia um fraco tom esverdeado preso em seu já pálido rosto, como se ele estivesse doente ou com febre. — Onde está Isabelle e Alec?
— Eles estão em um dos barcos dos outros Caçadores de Sombras. Estão bem.
— E Magnus? — Ela girou ao redor para olhar dentro da cabine, mas ela estava vazia.
— Ele foi necessário para atender alguns dos Caçadores de Sombras mais seriamente feridos — Luke respondeu.
— Mas todos estão bem? Alec, Isabelle, Maia... eles estão todos bem, não estão? — A voz de Clary soou pequena e fina aos seus próprios ouvidos.
— Isabelle foi ferida — Luke relatou — e Robert Lightwood. Ele irá precisar de uma boa quantidade de tempo para se curar. Muitos dos outros Caçadores de Sombras, incluindo Malik e Imogen, estão mortos. Foi uma dura batalha, Clary, e não foi boa para nós. Valentim se foi. E assim a Espada. A Clave está em farrapos. Eu não sei...
Ele se interrompeu. Clary olhou para ele. Havia algo em sua voz que a assustou.
— Me desculpe — ela falou — foi minha culpa. Se eu não tivesse...
— Se você não tivesse feito o que fez, Valentim teria matado todos no navio — Jace disse ferozmente — você é a única coisa que impediu isso de ser um massacre.
Clary olhou para ele.
— Você quer dizer o que eu fiz com a runa?
— Você rasgou aquele navio a fragmentos — Luke explicou — cada parafuso, cada rebite, qualquer coisa que pudesse segurá-lo junto. A coisa toda estremeceu em pedaços. Os tanques de óleo racharam-se também. A maior parte de nós mal teve tempo de pular na água antes que tudo começasse a queimar. O que você fez... ninguém nunca viu algo como isso.
— Oh — Clary sussurrou — alguém foi... eu machuquei alguém?
— Alguns poucos demônios se afogaram quando o navio afundou — Jace contou — mas nenhum dos Caçadores de sombras foi ferido, não.
— Por que eles podem nadar?
— Por que eles foram resgatados. Nixies empurraram todos nós para fora da água.
Clary pensou nas mãos na água, o impossível canto doce que a tinha cercado. Então aquilo não era sua mãe, depois de tudo.
— Você quer dizer fadas das águas?
— A Rainha da corte de Seelie veio, de seu próprio modo — Jace disse — ela nos prometeu que ajudaria com o que estava em seu poder.
— Mas como ela...
Como ela soube?, Clary ia dizer, mas pensou na sabedoria da rainha e nos olhos perspicazes, e de Jace jogando aquele pedaço de papel na água na praia de Red Hook, e decidiu não perguntar.
— Os barcos dos Caçadores de Sombras estão começando a se mover —Simon disse, olhando lá fora para o rio — acho que eles pegaram todos que puderam.
— Certo — Luke endireitou seus ombros — hora de ir embora.
Ele se moveu lentamente em direção à cabine – ele estava mancando, apesar de parecer bem no geral. Luke se jogou no assento do motorista, e em um momento o motor da caminhonete estava turbulento novamente. Eles foram embora, deslizando sobre a água, as gotas se espalhando nas rodas captando o cinza prateado do céu iluminado.
— Isso é tão estranho — Simon disse — fico esperando que a caminhonete comece a afundar.
— Não acredito que você passou por aquilo que nós passamos e pense que isso é estranho — Jace comentou, mas não havia nenhuma malícia em seu tom e nenhum aborrecimento. Ele soava apenas muito, muito cansado.
— O que vai acontecer aos Lightwood? — Clary perguntou. — Depois de tudo o que aconteceu... a Clave...
Jace deu de ombros.
— A Clave trabalha de modos misteriosos. Eu não sei o que eles farão. Estão muito interessados em você, entretanto. E no que você pode fazer.
Simon fez um ruído. Clary pensou primeiro que era um barulho de protesto, mas quando olhou mais de perto para ele, viu que ele estava mais esverdeado do que nunca.
— O que há de errado, Simon?
— É o rio — ele respondeu — correr pela água não é bom para vampiros. Ela é pura, e... nós não somos.
— O Rio East dificilmente é puro — Clary replicou, mas o alcançou e tocou o braço dele gentilmente de qualquer modo. Ele sorriu para ela. — Você caiu na água quando o navio começou a se partir?
— Não. Havia um pedaço de metal flutuando na água e Jace me atirou nele. Eu fiquei fora do rio.
Clary olhou acima de seu ombro para Jace. Ela podia vê-lo um pouco mais claramente agora; a escuridão estava desaparecendo.
— Obrigada — ela agradeceu — você acha que...
Ele levantou suas sobrancelhas.
— Eu acho o quê?
— Que Valentim pode ter afundado?
— Nunca acredite que um cara mau está morto até que você veja um corpo — Simon respondeu — isso só leva a infelicidade e armadilhas de surpresa.
— Você não está errado — Jace concordou — meu palpite é que ele não está morto. Senão teríamos encontrado os Instrumentos Mortais.
— A Clave pode continuar sem eles? Quer Valentim esteja vivo ou não? — Clary perguntou.
— A Clave sempre continua — Jace respondeu — isso é tudo o que ela sabe fazer — ele virou seu rosto em direção ao horizonte leste — o sol está nascendo.
Simon ficou rígido. Clary olhou para ele em surpresa por um momento, e então em horror chocado. Ela girou para seguir o olhar de Jace. Ele estava certo – o horizonte leste era uma mancha vermelha sangue se espalhando vindo de um disco dourado. Clary podia ver o primeiro ponto do sol colorindo a água em torno deles, misteriosos tons de verde, vermelho e ouro.
— Não! — ela sussurrou.
Jace olhou para ela em surpresa, e então para Simon, que sentava imóvel, fitando o sol nascendo como um rato encurralado olhando para um gato. Jace ficou rapidamente de pé e caminhou para a cabine. Ele falou em voz baixa. Clary viu Luke se virar para olhar para ela e Simon, e então de volta para Jace. Ele balançou a cabeça.
A caminhonete deu uma guinada para frente. Luke deve ter pressionado o pé no acelerador. Clary se agarrou na caçamba para se firmar. À frente, Jace estava gritando para Luke que devia ter algum modo de fazer a maldita coisa ir mais rápido, mas Clary sabia que eles nunca ultrapassariam o amanhecer.
— Deve haver algo — ela disse para Simon.
Não podia acreditar que em menos de cinco minutos ela foi do incrédulo alívio para o incrédulo horror.
— Nós podemos te cobrir, talvez, com nossas roupas...
Simon ainda estava olhando para o sol, o rosto branco.
— Uma pilha de trapos não funcionaria — ele respondeu — Raphael me explicou – é preciso paredes para nos proteger da luz do sol. Irá queimar através de tecido.
— Mas deve haver alguma coisa...
— Clary — ela podia vê-lo claramente agora, na predatória luz cinza, seus olhos enormes e escuros no rosto branco. Ele segurou as mãos dela — venha aqui.
Ela caiu contra ele, tentando cobri-lo tanto quanto podia com o seu próprio corpo. Ela sabia que era inútil. Quando o sol o tocasse, ele dissolveria em cinzas.
Eles sentaram por um momento em perfeita imobilidade, braços envoltos em torno um do outro. Clary podia sentir o subir e descer habitual do peito dele, ela se lembrou, não necessário. Ele podia não respirar, mas ainda podia morrer.
— Eu não vou deixar você morrer — ela disse.
— Não acho que você tenha uma escolha — Clary sentiu-o sorrir. — Eu não achava que chegaria a ver o sol novamente. Acho que eu estava errado.
— Simon...
Jace gritou alguma coisa. Clary olhou para o céu, que estava inundado com uma colorida luz rosa, como corante derramando em água clara. Simon ficou tenso debaixo dela.
— Eu te amo — ele disse — nunca amei ninguém além de você.
Ouro passava através do céu rosa, como o ouro nas veias de um mármore caro. A água em torno deles inflamava com luz e Simon ficou rígido, sua cabeça caindo para trás, os olhos abertos preenchendo com ouro, como se líquido fundido aparecia em sua pele como rachaduras em uma estátua despedaçada.
— Simon! — Clary gritou.
Ela se aproximou dele, mas se sentiu subitamente atraída para trás; era Jace, as mãos agarrando os ombros dela. Ela tentou se distanciar, mas ele a segurava apertado; estava dizendo algo em seu ouvido, repetindo, e só depois de uns momentos começou a entendê-lo:
— Clary, olhe. Olhe.
— Não! — As mãos dela voaram para seu rosto.
Ela podia provar a água enegrecida do fundo da caçamba em suas palmas. Era salgada, como lágrimas.
— Eu não quero olhar. Eu não quero...
— Clary — as mãos de Jace estavam em seus pulsos, puxando as mãos dela para longe do rosto. A luz do amanhecer picou seus olhos. — Olhe.
Ela olhou. E ouviu sua própria respiração chiar asperamente em seus pulmões enquanto arfava. Simon estava sentado na parte de trás da caminhonete, em um trecho de luz do sol, a boca aberta e olhando para si mesmo. O sol dançava na água atrás dele e as pontas de seu cabelo brilhavam como ouro. Ele não tinha se queimado até as cinzas, mas se sentava na luz do sol, e a pálida pele de seu rosto e braços e mãos estavam totalmente sem marcas.

***

Do lado de fora do Instituto, a noite estava caindo. Um esmaecido vermelho do pôr-do-sol brilhava através das janelas no quarto de Jace enquanto ele olhava a pilha de seus pertences na cama. A pilha era muito melhor do que pensava que seria. Sete anos inteiros de sua vida neste lugar, e isso era tudo o que ele tinha para mostrar: metade de uma mala de roupas, uma pequena pilha de livros, e algumas armas.
Ele tinha debatido se deveria levar as poucas coisas que tinha guardado da mansão em Idris com ele quando a deixou à noite. Magnus tinha dado a ele de volta o anel de prata de seu pai, que ele não se sentia mais confortável usando. Tinha pendurado-o em um elo da corrente em torno de sua garganta. No final, ele tinha decidido levar tudo: não havia motivo em deixar algo dele mesmo para trás neste lugar.
Ele estava fazendo a mala com roupas quando uma batida soou na porta. Jace foi até ela, esperando por Alec ou Isabelle.
Era Maryse. Ela usava um rígido vestido preto e seu cabelo estava puxado para trás, acentuando seu rosto. Parecia mais velha do que ele se lembrava dela. Duas profundas linhas corriam dos cantos de sua boca para sua mandíbula. Apenas seus olhos tinha alguma cor.
— Jace. Posso entrar?
— Você pode fazer o que quiser — ele respondeu, retornando a cama — é sua casa.
Ele agarrou uma mão cheia de camisas e entulhou-as dentro da sacola com desnecessária força.
— Na verdade, é uma casa da Clave — Maryse disse — nós somos apenas seus guardiões.
Ele empurrou os livros dentro da mala.
— Tanto faz.
— O que você está fazendo?
Se Jace não a conhecesse, teria pensado que a voz dela oscilou ligeiramente.
— Estou fazendo as malas. É o que as pessoas geralmente fazem quando estão se mudando.
Ela empalideceu.
— Não saia. Se você quiser ficar...
— Eu não quero ficar. Eu não pertenço a aqui.
— Aonde você vai?
— Para o Luke — ele respondeu, e a viu hesitar — por um tempo. Depois disso, eu não sei. Talvez para Idris.
— É onde você acha que pertence?
Havia uma dolorosa tristeza em sua voz.
Jace parou de empacotar por um momento e olhou abaixo para sua mala.
— Eu não sei aonde eu pertenço.
— Com sua família — Maryse fez uma tentativa de passo a frente — conosco.
— Você me atirou para fora — Jace ouviu a dureza em sua própria voz e tentou suavizá-la — sinto muito — ele disse, virando-se para olhar para ela. — É sobre tudo o que aconteceu. Mas você não me queria antes, e não posso imaginar que me queira agora. Robert vai estar doente por algum tempo; você vai precisar cuidar dele. Eu só vou estar no caminho.
— No caminho? — Ela soava incrédula. — Robert quer ver você, Jace...
— Eu duvido disso.
— E que tal Alec? Isabelle, Max... eles precisam de você. Se você não acredita que eu te quero aqui... e não posso te culpar se eu não... você deve saber que eles o querem. Nós estamos passando por um momento ruim, Jace. Não os machuque mais do que já foram machucados.
— Isso não é justo.
— Eu não te culpo se você me odiar — sua voz estava oscilando. Jace girou em torno para olhar para ela em surpresa. — Mas o que eu fiz... mesmo jogar você para fora – te tratar como eu tratei, foi para te proteger. E porque eu estava com medo.
— Medo de mim?
Ela acenou.
— Bem, isso faz eu me sentir muito melhor.
Maryse deu uma respirada profunda.
— Eu pensei que você ia quebrar meu coração como Valentim. Você foi a primeira coisa que eu amei, veja, depois dele, que não era do meu próprio sangue. A primeira criatura viva. E você era só uma criança...
— Você pensou que eu era alguém mais.
— Não. Eu sempre soube quem você era. Desde a primeira vez que te vi descendo do navio de Idris, quando tinha dez anos de idade – você caminhou para dentro do meu coração, como meus próprios filhos fizeram quando nasceram — ela balançou a cabeça — você não pode entender. Nunca foi um pai. Você nunca ama nada como ama seus filhos. E nada pode te fazer mais furioso.
— Eu percebi a parte da fúria — Jace disse, depois de uma pausa.
— Eu não espero que me perdoe. Mas se ficar por Isabelle, Alec ou Max, eu seria tão grata...
Era uma coisa errada para se dizer.
— Eu não quero sua gratidão — Jace disse, e se virou de volta para a mala.
Não havia nada para se colocar dentro. Ele fechou o zíper.
 Ala claire fontaine — Maryse disse — m'en allent promener.
Ele virou para olhar para ela.
— O quê?
 Il y a longtemps que je t'aime. Jamais je ne t'oublierai – é uma balada francesa antiga que eu costumava cantar para Alec e Isabelle. A que você me perguntou.
Havia muito pouca luz no quarto agora, e na obscuridade, Maryse parecia quase como tinha sido quando ele tinha dez anos, como se ela não tivesse mudado de modo algum nestes últimos sete anos. Ela parecia severa e preocupada, ansiosa... e esperançosa. Parecia como a única mãe que ele tinha conhecido.
— Você estava errado quando disse que eu nunca cantei ela para você — ela falou — é só que você nunca me ouviu.
Jace nada disse, apenas se abaixou e abriu o zíper da mala, deixando seus pertences se derramarem na cama.

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