Capítulo 19 - O Inferno está satisfeito
O brilho inimaginável impresso na parte interna das pálpebras de Clary se apagou na escuridão. Uma surpreendente longa escuridão que se transformou lentamente numa intermitente luz acinzentada com sombras.
Havia algo duro e frio pressionado em suas costas, e seu corpo inteiro doeu. Ouviu o murmúrio de vozes acima, que enviou uma punhalada de dor em sua cabeça. Alguém a tocou gentilmente na garganta, e a mão foi removida. Ela tomou fôlego.
Seu corpo inteiro estava latejando. Clary entreabriu os olhos, e examinou ao seu redor, tentando não se mover demais. Estava deitada nos azulejos duros do jardim na cobertura, uma das pedras espetando suas costas. Tinha caído no chão quando Lilith desapareceu, e estava coberta de cortes e contusões, seus sapatos desapareceram, seus joelhos estavam sangrando, e seu vestido estava rasgado onde Lilith a cortou com seu chicote mágico, sangue brotando através das rendas de seu vestido de seda.
Simon estava ajoelhado sobre ela, seu rosto ansioso. A Marca de Caim ainda brilhando embranquecida em sua testa.
— O pulso dela está firme — ele estava dizendo — mas vamos lá. Vocês tem todas aquelas runas de cura. Deve haver algo que você possa fazer por ela...
— Não sem uma estela. Lilith me fez jogar fora a estela de Clary, então ela não poderia pegá-la de mim quando acordasse — a voz de Jace, estava baixa e tensa com angústia suprimida. Ele se ajoelhou do outro lado de Simon, no outro lado dela, seu rosto na sombra — você pode carregá-la para baixo? Se nós pudermos levá-la ao Instituto...
— Você quer que eu a carregue? — Simon soou surpreso, e Clary não o culpava.
— Duvido que ela queira que eu a toque — Jace se levantou, como se não pudesse suportar permanecer no mesmo lugar — se você pudesse...
Sua voz falhou e ele se virou, olhando para o lugar onde Lilith esteve até um momento atrás, um trecho vazio de pedra agora pontilhada com partículas prateadas de sal. Clary escutou Simon suspirar – um som deliberado – e ele se inclinou sobre ela.
Clary abriu os seus olhos completamente, e seus olhares se encontraram. Embora soubesse que Simon notara que ela estava consciente, nenhum deles disse qualquer coisa. Era difícil para ela olhá-lo, o rosto familiar com a Marca que tinha-lhe dado ardendo como uma estrela branca acima de seus olhos.
Ela sabia que ao dar a Marca de Caim estava fazendo algo enorme, algo terrível e colossal cujo resultado era quase totalmente imprevisível. A teria dado de novo para salvar a vida dele. Mas ainda assim, enquanto ele esteve lá, a marca ardera como relâmpago branco enquanto Lilith – um Demônio Maior tão velho quanto a humanidade – reduziu-se a sal. O que eu fiz?
— Eu estou bem — Clary disse.
Ela se apoiou em seus cotovelos, que doeram horrivelmente. Em algum ponto ela aterrissou sobre eles e arranhou toda a pele.
— Eu posso caminhar muito bem.
Ao som da voz dela, Jace se virou. A visão dele a dilacerou. Ele estava chocantemente machucado e ensanguentado, um longo arranhão correndo no comprimento de sua bochecha, seu lábio inferior inchado, e uma dúzia de brechas ensanguentadas em suas roupas. Ela não estava acostumava a vê-lo tão machucado – mas, é claro, se ele não tinha uma estela para curá-la, não teria uma para curar a si mesmo também.
A expressão dele estava completamente vazia. Mesmo Clary, acostumada a ler seu rosto como se estivesse lendo as páginas de um livro, não podia ver nada nele.
O olhar dele caiu para a sua garganta, onde ela podia sentir a dor picando, o sangue incrustado onde a faca de Jace havia cortado. O vazio de sua expressão cedeu e ele olhou para longe antes que ela pudesse ver seu rosto mudar.
Afastando a oferta de Simon com uma mão, ela tentou levantar-se. Uma dor ardente atravessou seu tornozelo, e ela gritou, então mordeu seu lábio. Caçadores de Sombras não gritavam de dor. Eles a suportavam estoicamente, ela lembrou a si mesma. Nada de choramingar.
— É meu tornozelo. Acho que deve estar torcido, ou quebrado.
Jace olhou para Simon.
— Carregue-a. Como eu disse a você.
Dessa vez, Simon não esperou pela resposta de Clary; ele deslizou um braço debaixo de seus joelhos, o outro em suas costas e a levantou. Ela envolveu os braços em torno de seu pescoço e o segurou forte.
Jace foi na frente em direção a cúpula e as portas que davam para dentro. Simon seguiu, carregando Clary tão cuidadosamente como se fosse porcelana.
Clary quase tinha se esquecido do quão forte ele era, agora que era um vampiro. Não mais cheirava como ele mesmo, pensou, com um pouco de saudade – Simon cheirava a sabonete, loção após barba barata (o que ele realmente não precisava) e sua bala favorita de canela. Seu cabelo ainda cheirava como seu shampoo, mas além disso não parecia cheirar a nada, e sua pele onde a tocava era fria.
Clary apertou seus braços em torno do seu pescoço, desejando que ele tivesse um corpo um pouco quente. As pontas de seus dedos pareceram azuladas, e seus corpo parecia dormente.
Jace, a frente deles, empurrou as portas duplas de vidro. Então todos estavam dentro, onde era misericordiosamente um pouco mais quente. Era estranho, Clary pensou, ser segurada por alguém cujo peito não levantava e caía enquanto eles respiravam. Uma estranha eletricidade ainda parecia se agarrar a Simon, um remanescente da luz brutalmente brilhosa que tinha envolvido o terraço quando Lilith foi destruída. Ela queria perguntar como ele estava se sentindo, mas o silêncio de Jace era tão devastadoramente completo que ela sentiu medo de quebrá-lo.
Ele alcançou o botão do elevador, mas antes de seu dedo tocá-lo, as portas se abriram por conta própria, e Isabelle pareceu quase explodir diante deles, seu chicote dourado atrás dela como a cauda de um cometa. Alec a seguia, bem atrás de seus calcanhares.
Vendo Jace, Clary e Simon lá, Isabelle derrapou em uma parada, Alec quase tropeçando nela por trás. Sob outras circunstâncias, isso teria sido quase engraçado.
— Mas... — Isabelle arfou.
Ela estava cortada e ensanguentada, seu lindo vestido vermelho rasgado em torno dos joelhos. O cabelo preto corria sobre seus ombros para fora do penteado, fios emaranhados com sangue.
Alec parecia um pouco melhor; uma manga de sua jaqueta estava fatiada do lado, embora não parecesse como se a pele por baixo tivesse sido ferida.
— O que vocês estão fazendo aqui?
Jace, Clary e Simon olharam para ela sem expressão, muito chocados para responder. Finalmente Jace falou secamente:
— Nós poderíamos fazer a vocês a mesma pergunta.
— Eu não... nós pensávamos que você e Clary estivessem na festa — Isabelle disse — Clary raramente tinha visto Isabelle sem saber o que dizer. — Nós estávamos procurando por Simon.
Clary sentiu o peito de Simon descer, um tipo de arfar humano em reflexo pela surpresa.
— Você estava?
Isabelle corou.
— Eu...
— Jace? — Era Alec, seu tom de comando.
Ele tinha dado a Clary e a Simon um olhar atônito, mas então a atenção dele foi, como sempre, para Jace. Podia não estar mais apaixonado por Jace, isto é, se realmente esteve um dia, mas eles ainda eram parabatai, e Jace era sempre o primeiro em sua mente em qualquer luta.
— O que você está fazendo aqui? E pelo amor do Anjo, o que aconteceu a você?
Jace olhou para Alec quase como se não o conhecesse. Ele parecia com alguém em um pesadelo examinando uma nova paisagem, não por que ela fosse surpreendente ou dramática, mas para se preparar para qualquer horror que ela pudesse revelar.
— Estela — ele falou finalmente, em uma voz rouca — você tem a sua estela?
Alec alcançou seu cinto, parecendo perplexo.
— É claro — ele estendeu a estela para Jace — se você precisa de uma iratze...
— Não para mim — Jace respondeu, ainda na mesma estranha voz áspera — ela.
Ele apontou para Clary.
— Ela precisa disso mais do que eu — os olhos deles encontraram o de Alec, dourado e azul — por favor, Alec — ele disse, a aspereza se foi de sua voz tão subitamente quanto ela veio — ajude-a por mim.
Ele se virou e caminhou na direção da sala mais distante, onde haviam portas de vidro. Ele ficou lá, olhando através delas – para o jardim lá fora ou para seu próprio reflexo, Clary não podia dizer.
Alec olhou para Jace por um momento, então veio para Clary e Simon, estela na mão. Ele indicou que Simon deveria baixar Clary ao chão, o que ele fez gentilmente, deixando-a se apoiar contra a parede. Ele se afastou enquanto Alec se ajoelhava perto dela. Ela podia ver a confusão no rosto de Alec, e seu olhar de surpresa quando viu quão ruins os cortes em seu braço e abdômen eram.
— Quem fez isso a você?
— Eu...
Clary olhou desamparada para Jace, que ainda estava de costas. Ela podia ver o reflexo dele nas portas de vidro, seu rosto uma mancha branca, escurecida aqui e ali com hematomas. A frente de sua camisa estava escura com sangue.
— É difícil de explicar.
— Por que você não nos chamou? — Isabelle exigiu, sua voz aguda com a traição. — Por que você não nos disse que estava vindo para cá? Por que não mandou uma mensagem de fogo ou qualquer coisa? Você sabe que nós teríamos vindo se você precisasse de nós.
— Não havia tempo — Simon respondeu — e eu não sabia que Clary e Jace estavam vindo para cá. Pensei que fosse o único. Não parecia certo arrastar você para meus problemas.
— Arra... arrastar-me para seus problemas? — Isabelle balbuciou. — Você... — ela começou, e então para a surpresa de todos, claramente incluindo ela mesma, ela se jogou em Simon, envolvendo os braços ao redor de seu pescoço.
Ele tropeçou para trás, despreparado pelo ataque, mas recobrou-se rapidamente. Seus braços a rodearam, quase se atrapalhando no chicote pendendo, e ele a abraçou fortemente, a cabeça escura dela debaixo de seu queixo.
Clary não podia dizer com certeza – Isabelle estava falando bem baixinho – mas parecia que ela estivesse xingando Simon sob sua respiração.
As sobrancelhas de Alec se levantaram, mas ele não fez nenhum comentário enquanto se inclinava sobre Clary, bloqueando a sua visão de Isabelle e Simon. Ele tocou a estela em sua pele e ela pulou com a dor aguda.
— Eu sei que isso dói — ele falou em voz baixa — acho que você bateu a cabeça. Magnus deveria dar uma olhada em você. O que há com Jace? O quanto ele está machucado?
— Eu não sei — Clary sacudiu a cabeça — ele não me quer perto dele.
Alec colocou a mão embaixo do queixo dela, virando seu rosto de um lado para o outro, e rabiscou uma segunda iratze de leve em sua garganta, bem abaixo da linha da mandíbula.
— O que ele fez que pensa que foi tão terrível?
Clary lançou seu olhar para Alec.
— O que te faz pensar que ele fez alguma coisa?
Alec soltou seu queixo.
— Por que eu o conheço. E o modo que ele se pune. Não te deixar perto dele é uma punição para si mesmo, não para você.
— Ele não me quer perto dele — Clary disse incisivamente, ouvindo a rebelião em sua própria voz e se odiando por estar sendo mesquinha.
— Você é tudo o que ele quer — Alec replicou em um tom surpreendentemente gentil, e se sentou em seus calcanhares, empurrando seu longo cabelo preto para trás.
Havia algo diferente acerca dele ultimamente, Clary pensou, uma segurança sobre si que não tinha estado lá quando o conheceu, algo que lhe permitia ser generoso com os outros, quando nunca tinha sido generoso com ele mesmo antes.
— Aliás. como vocês dois acabaram aqui? Nós nem sequer notamos vocês saírem da festa com Simon...
— Eles não saíram — Simon respondeu. Ele e Isabelle estavam separados, mas ainda perto um do outro, lado a lado — eu vim aqui sozinho. Bem, não exatamente sozinho. Eu fui... convocado.
Clary acenou.
— É verdade. Nós não deixamos a festa com ele. Quando Jace me trouxe para cá, e eu não tinha ideia de que Simon ia estar aqui também.
— Jace trouxe você aqui? — Isabelle perguntou, atônita. — Jace, se você sabia sobre Lilith e a Igreja de Talto, deveria ter dito algo.
Jace ainda estava olhando através das portas.
— Acho que escapou da minha mente — ele falou sem emoção.
Clary sacudiu a cabeça enquanto Alec e Isabelle olhavam de seu irmão adotivo para ela, como se pedissem uma explicação pelo seu comportamento.
— Não era realmente Jace — ela explicou finalmente — ele estava... sendo controlado. Por Lilith.
— Possessão? — Os olhos de Isabelle se arregalaram em surpresa.
Sua mão apertou o cabo do chicote em reflexo.
Jace se virou das portas. Lentamente puxou sua camisa manchada para cima, de modo que eles pudessem ver a feia marca de possessão, e o talho sangrento que corria dele.
— Essa — ele mostrou, ainda na mesma voz sem emoção — é a marca de Lilith. É como ela me controlava.
Alec sacudiu a cabeça; ele parecia profundamente perturbado.
— Jace, geralmente o único modo de romper uma conexão demoníaca como essa é matar o demônio que está fazendo o controle. Lilith é um dos mais poderosos demônios que jamais...
— Ela está morta — Clary disse abruptamente — Simon a matou. Ou acho que você poderia dizer que a Marca de Caim a matou.
Todos eles olharam para Simon.
— E quanto a vocês dois? Como vocês acabaram aqui? — Ele perguntou, seu tom na defensiva.
— Procurando por você — Isabelle respondeu — nós descobrimos o cartão que Lilith deve ter dado a você. Em seu apartamento. Jordan nos deixou entrar. Ele está com Maia, lá embaixo — ela estremeceu — as coisas que Lilith estava fazendo... você não acreditaria... tão horríveis...
Alec levantou suas mãos.
— Devagar, todo mundo. Nós explicaremos o que aconteceu com a gente, e então Simon, Clary, vocês explicam o que aconteceu do seu lado.
A explicação levou menos tempo do que Clary pensou que iria demorar, com Isabelle fazendo na maior parte da conversa gestos extensos que ameaçaram, algumas vezes, cortar os membros desprotegidos de seus amigos com seu chicote.
Alec aproveitou a oportunidade para sair ao telhado para enviar uma mensagem de fogo para a Clave, dizendo onde estavam e pedindo por reforços. Jace se afastou sem palavras para deixá-lo passar enquanto ele saía, e de novo, quando voltou para dentro. Ele também não falou durante a explicação de Simon e Clary do que tinha ocorrido no telhado, mesmo quando eles chegaram na parte onde Raziel tinha trazido Jace de volta da morte em Idris. Foi Izzy quem finalmente interrompeu, quando Clary começou a explicar sobre Lilith sendo a “mãe” de Sebastian e manter o seu corpo encerrado em vidro.
— Sebastian? — Isabelle bateu seu chicote contra o chão com força o suficiente para abrir uma rachadura no mármore. — Sebastian está lá fora? E ele não está morto? — Ela se virou para olhar para Jace, que estava se inclinando contra as portas de vidro, braços cruzados, sem expressão. — Eu o vi morto. Eu vi Jace cortar a espinha pelo meio, e o vi cair no rio. E agora você está me dizendo que ele está vivo lá fora?
— Não — Simon se apressou em reassegurá-la — seu corpo está lá, mas ele não está realmente vivo. Lilith não conseguiu completar a cerimônia.
Simon colocou uma mão sobre o ombro dela, mas ela a afastou. Isabelle havia ficado mortalmente branca.
— Não realmente vivo, não é morto o suficiente para mim — ela apontou — vou lá fora cortá-lo em milhares de pedaços.
Ela se virou em direção as portas.
— Izzy! — Simon colocou a mão no ombro dela. — Izzy. Não.
— Não? — Ela olhou incrédula. — Me dê uma boa razão para que eu não deva picá-lo em inúteis confetes em tema bastardo.
O olhar de Simon se lançou em torno da sala, descansando por um momento em Jace, como se esperasse que ele interrompesse ou adicionasse um comentário. Ele não o fez, nem mesmo se moveu. Finalmente Simon respondeu:
— Olha, você entende o ritual, certo? Já que Jace foi trazido de volta da morte, isso deu a Lilith o poder de ressuscitar Sebastian. E para fazer isso, ela precisava de Jace lá e vivo, como... como foi que ela chamou...?
— Um contrapeso — Clary colocou.
— A marca que Jace tem em seu peito, a marca de Lilith — em um gesto aparentemente inconsciente, Simon tocou o próprio peito, sobre o coração — Sebastian também tem. Eu vi os dois brilharem ao mesmo tempo quando Jace entrou no círculo.
Isabelle, seu chicote girando ao seu lado, os dentes mordendo seu lábio inferior pintado de vermelho, disse impacientemente:
— E...?
— Eu acho que ela estava fazendo uma ligação entre eles — Simon explicou — se Jace morresse, Sebastian não poderia viver. Então se você cortar Sebastian em pedaços...
— Isso poderia ferir Jace — Clary completou, as palavras vertendo enquanto ela percebia — ah, meu Deus. Ah, Izzy, você não pode.
— Então nós vamos deixá-lo vivo? — Isabelle soou incrédula.
— Corte-o em pedaços se você quiser — Jace respondeu — você tem a minha permissão.
— Cala a boca — Alec rebateu — pare de agir como se sua vida não importasse. Izzy, você não estava escutando? Sebastian não está vivo.
— Ele não está morto, também. Não morto o suficiente.
— Nós precisamos da Clave — Alec disse — precisamos dá-lo aos Irmãos do Silêncio. Eles podem quebrar a conexão dele com Jace, e então obtenha todo o sangue que você quiser, Izzy. Ele é filho de Valentim. E é um assassino. Todos perderam alguém na batalha em Alicante, ou conhecem alguém que perdeu. Você acha que serão gentis com ele? Eles irão despedaçá-lo lentamente enquanto estiver vivo.
Isabelle olhou para seu irmão. Lágrimas lentamente brotavam em seus olhos, se derramando em suas bochechas, listrando a sujeira e sangue em sua pele.
— Eu odeio isso. Odeio quando você está certo.
Alec puxou sua irmã para mais perto e beijou o topo de sua cabeça.
— Eu sei que você odeia.
Ela apertou a mão do seu irmão brevemente, então a puxou.
— Ótimo. Eu não tocarei em Sebastian, mas não posso suportar estar a essa distância dele — ela olhou em direção as portas de vidro, onde Jace ainda estava — vamos lá para baixo. Podemos esperar pela Clave na entrada. E precisamos encontrar Maia e Jordan; eles estão provavelmente se perguntando onde nós fomos.
Simon limpou sua garganta.
— Alguém deveria ficar aqui para manter um olho... nas coisas. Eu farei isso.
— Não — era Jace — você vai para baixo. Eu ficarei. Tudo isso é minha culpa. Eu devia ter me assegurado que Sebastian estava morto quanto tive a chance. E o resto disso...
A voz dele falhou. Clary se lembrou dele tocando seu rosto na entrada escura no Instituto, lembrou-se dele sussurrando, Mea culpa, mea máxima culpa. Minha culpa, minha mais atroz culpa.
Ela se virou para olhar para os outros; Isabelle tinha apertado o botão de chamar o elevador, que estava aceso. Clary podia ouvir o distante zumbido do elevador subindo. A sobrancelha de Isabelle levantou.
— Alec, talvez você devesse ficar aqui com Jace.
— Eu não preciso de ajuda — Jace disse — não há nada para se lidar. Eu ficarei bem.
Isabelle jogou suas mãos para o alto enquanto o elevador chegava com um pulo.
— Ótimo. Você venceu. Fique emburrado aqui sozinho se quiser.
Ela entrou no elevador, Simon e Alec se apinhando atrás dela. Clary foi a última a seguir, virando-se para olhar para Jace enquanto ia.
Ele tinha voltado a olhar as portas de vidro, mas Clary podia ver o reflexo dele nelas. Sua boca estava comprimida em uma linha lívida, seus olhos escuros.
Jace, ela pensou enquanto as portas do elevador começavam a fechar. Ela desejou que ele se virasse para olhar. Ele não o fez, mas Clary sentiu mãos fortes em seus ombros, subitamente impelindo-a para frente. Ela escutou Isabelle dizer:
— Alec, pelo amor de Deus o que você...
Enquanto Clary tropeçava para fora das portas do elevador e se empertigava, virando-se para olhar. As portas estavam fechando atrás dela, embora através delas pudesse ver Alec. Ele deu a ela um lastimável meio sorriso e um dar de ombros, como se para dizer, o que mais eu posso fazer?
Clary deu um passo a frente, mas era tarde demais; as portas do elevador bateram fechadas.
Ela estava sozinha na sala com Jace.
***
A sala estava bagunçada com os corpos mortos – todas figuras caídas em agasalhos de capuz cinza, arremessadas, emborcadas ou inclinadas contra a parede. Maia estava na janela, arfando, olhando incrédula para a cena a sua frente. Ela tinha feito parte da batalha de Brocelind em Idris, e pensou que fosse a pior coisa que ela veria. Mas de algum modo, isso era pior. O sangue que corria dos membros do culto mortos não era a linfa de demônio, era sangue humano. E os bebês – silenciosos e mortos em seus berços, suas pequenas mãos em garras dobradas uma sobre a outra, como bonecas...
Ela afastou o olhar de suas próprias mãos. Suas garras ainda estavam para fora, completamente manchadas de sangue. Ela as retraiu, e o sangue correu para suas palmas, manchando seus pulsos. Seus pés estavam descalços e ensanguentados, e havia um longo arranhão em um ombro nu ainda gotejando em vermelho, embora ele já tivesse começado a curar. Apesar da veloz cura da licantropia, ela sabia que acordaria no dia seguinte coberta de hematomas.
Quando você é um lobisomem, contusões raramente duram mais que um dia.
Ela se lembrou de quando era humana, e seu irmão, Daniel, tinha se tornado um expert em beliscá-la em lugares onde os hematomas não apareceriam.
— Maia.
Jordan surgiu de uma das infinitas portas, mergulhando de um bando de fios pendurados. Ele se empertigou e se moveu em direção a ela, escolhendo seu caminho entre os corpos.
— Você está bem?
O olhar de preocupação em seu rosto deu um nó no estômago de Maia.
— Onde estão Isabelle e Alec?
Ele sacudiu a cabeça. Portava muito menos danos visíveis do que ela. Sua espessa jaqueta de couro o tinha protegido, tal como seus jeans e botas. Havia um longo arranhão em seu rosto, sangue seco em seu cabelo castanho claro e manchas na lâmina que ele segurava.
— Procurei no andar inteiro. Não os vi. Há mais alguns corpos em outras salas. Eles devem ter...
A noite foi iluminada como uma lâmina serafim. As janelas ficaram brancas, a luz brilhante ardeu através da sala. Por um momento, Maia pensou que o mundo tinha ardido num incêndio, e Jordan, se movendo para ela através da luz, pareceu quase desaparecer, branco sobre branco, em um campo cintilante de prata. Ela se escutou gritar, e se moveu cegamente para trás, batendo a cabeça na chapa de vidro da janela. Ela ergueu as mãos para cobrir os olhos...
E a luz se foi. Maia abaixou as mãos, o mundo girando em torno dela. Foi para frente às cegas, e Jordan estava lá. Colocou seus braços ao redor dele – os jogou ao seu redor, do jeito que costumava fazer quando ele vinha pegá-la em casa e a acalentava em seus braços, enrolando os cachos de seus cabelos em seus dedos.
Ele então tinha sido mais magro, ombros estreitos. Agora músculos distribuíam em seus ossos, e abraçá-lo era como abraçar algo completamente sólido, um pilar de granito no meio de uma tempestade soprando no deserto. Ela se agarrou a ele e ouviu a batida de seu coração debaixo de sua orelha enquanto as mãos dele alisavam seu cabelo, um toque rude e tranquilizador, confortante e... familiar.
— Maia... está tudo bem...
Ela levantou sua cabeça e pressionou sua boca na dele. Ele tinha mudado em tantas formas, mas a sensação de beijá-lo era a mesma, sua boca tão suave como sempre. Ele ficou rígido por um segundo com surpresa, e então a puxou contra ele, suas mãos fazendo lentos círculos em suas costas nuas.
Maia se lembrou da primeira vez que tinham se beijado. Ela tinha dado a ele seus brincos para pô-los no porta-luvas de seu carro, e a mão dele tinha tremido tanto que os derrubou, então se desculpou várias vezes até que o beijou para calá-lo. Ela achou que ele era o garoto mais doce que tinha conhecido.
E então ele foi mordido, e tudo mudou.
Ela se afastou, tonta e sem fôlego. Jordan a soltou instantaneamente. Ele estava fitando-a, sua boca aberta, os olhos atordoados. Atrás dele, nas janelas, ela podia ver a cidade – meio que esperou vê-la achatada, um destruído deserto branco lá fora da janela – mas tudo estava exatamente o mesmo. Nada tinha mudado. Luzes piscavam intermitentes nos prédios do outro lado da rua; ela podia escutar a fraca precipitação do tráfego abaixo.
— Nós devemos ir — ela disse — devemos procurar pelos outros.
— Maia. Por que você acabou de me beijar?
— Eu não sei. Você acha que nós devemos tentar os elevadores?
— Maia...
— Eu não sei, Jordan — ela repetiu — não sei porque te beijei, e não sei se vou fazer isso de novo, mas sei que estou enlouquecendo, estou preocupada com meus amigos e quero sair daqui. Ok?
Ele concordou. Parecia ter um milhão de coisas que queria dizer, mas determinou-se a não dizê-las, pelo o que Maia ficou grata. Ele correu uma mão em seu cabelo despenteado, coberto com pó de gesso branco, e concordou.
— Ok.
***
Silêncio.
Jace ainda estava inclinado contra a porta, só que agora tinha sua testa pressionada contra ela, seus olhos fechados.
Clary se perguntou se ele sequer sabia que ela estava na sala. Ela deu um passo a frente, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Jace empurrou as portas e caminhou de volta ao jardim.
Ela ficou imóvel por um momento, olhando após ele. Podia chamar o elevador, é claro, descer nele, esperar pela Clave no saguão com todos os outros. Se Jace não quisesse conversar, ele não conversaria. Ela não podia forçá-lo. Se Alec estivesse certo e Jace estivesse se punindo, ela apenas teria que esperar até que ele se recuperasse.
Ela se virou em direção ao elevador – e parou. Uma pequena chama de fúria veio através dela, fazendo seus olhos queimarem. Não. Ela não tinha que deixá-lo se comportar desse jeito. Talvez ele pudesse ser desse jeito com todos os outros, mas não com ela. Ele devia mais a ela do que isso. Eles deviam um ao outro mais do que isso.
Ela girou e foi para as portas. Seu tornozelo ainda doía, mas as iratzes que Alec tinha posto nela estavam funcionando. A maior parte da dor em seu corpo tinha diminuído para uma entorpecida dor latejante. Alcançou as portas e as abriu, indo para o terraço com uma encolhida quando seus pés descalços tiveram contato com os azulejos congelando.
Viu Jace imediatamente; ele estava ajoelhado próximo aos degraus, nos azulejos manchados com sangue e linfa e brilhando com sal. Ele se levantou enquanto Clary se aproximava e se virou, algo cintilante pendendo de sua mão.
O anel de Morgenstern, em sua corrente.
O vento tinha surgido; soprava seu cabelo dourado escuro sobre seu rosto. Ele o empurrou impacientemente e disse:
— Eu lembrei que nós deixamos isso aqui.
Sua voz soou surpreendentemente normal.
— Este é o motivo por você querer ficar aqui em cima? — Clary perguntou. — Para pegá-lo de volta?
Ele virou a mão, então a corrente balançou para cima, seus dedos fechando-se sobre o anel.
— Eu estou ligado a ele. É estúpido, eu sei.
— Você poderia ter dito, ou Alec poderia ter ficado...
— Eu não pertenço ao resto de vocês — ele disse abruptamente — depois do que fiz, eu não mereço iratzes, cura, abraços e ser consolado ou o que quer que meus amigos vão pensar que eu preciso. Preferi ficar aqui com ele — ele empurrou seu queixo em direção ao lugar onde o corpo imóvel de Sebastian permanecia no caixão aberto, sobre seu pedestal de pedra — e certo como o inferno, eu não mereço você.
Clary cruzou os braços.
— Você alguma vez pensou sobre o que eu mereço? Que talvez eu mereça a chance de falar com você sobre o que aconteceu?
Ele fitou-a. Só estavam a alguns metros de distância, mas parecia que um inexprimível abismo colocava-se entre eles.
— Eu não sei porque você até mesmo olharia para mim, muito menos porque falaria comigo.
— Jace. Aquelas coisas que você fez... não era você.
Ele hesitou. O céu estava tão negro, as janelas iluminadas dos arranha-céus tão brilhantes, era como se eles estivessem no centro de uma rede de joias brilhantes.
— Se não era eu — ele respondeu — então por que posso me lembrar de tudo o que fiz? Quando as pessoas estão possuídas, e voltam depois, elas não se lembram do que fizeram quando o demônio as desabitou. Mas eu me lembro de tudo.
Ele se virou abruptamente e se afastou para o muro do jardim do telhado. Ela o seguiu, feliz pela distância posta entre eles e o corpo de Sebastian, agora escondido da visão pela fileira de cercas vivas.
— Jace! — ela chamou, e ele se virou, suas costas apoiadas na parede.
Atrás dele, uma equivalente cidade iluminada surgia como as torres demoníacas de Alicante.
— Você se lembra porque ela queria que você se lembrasse — Clary respondeu, alcançando-o, um pouco sem fôlego — ela fez isso para torturá-lo tanto quanto fez Simon fazer o que ela queria. Ela quis que você observasse a si mesmo machucar as pessoas que ama.
— Eu estava observando — ele disse em uma voz baixa — era como se parte de mim estivesse fora, à distância, observando e gritando para eu parar. Mas o resto de mim sentia-se completamente em paz, como se o que eu estivesse fazendo fosse certo. Como fosse a única coisa que eu poderia fazer. Eu me pergunto se era como Valentim se sentia sobre tudo que fazia. Como fosse tão fácil estar certo — ele olhou para longe dela — eu não posso suportar. Você não deveria estar aqui comigo. Você deveria ir.
Ao invés de sair, Clary se moveu para ficar ao lado dele contra a parede.
Seus braços já estavam envolvidos ao redor de si mesma; ela estava tremendo. Finalmente, relutantemente, ele virou a cabeça para encará-la de novo.
— Clary...
— Você não pode decidir aonde eu vou, e quando.
— Eu sei — a voz dele estava rouca — eu sempre soube disso. Não sei porque eu tinha que me apaixonar por alguém que é mais teimosa do que eu.
Clary ficou em silêncio por um momento. Seu coração tinha se contraído com aquelas duas palavras – “me apaixonar.”
— Todas aquelas coisas que você disse para mim — ela falou em um quase sussurro — no terraço na Ironworks... você as quis dizê-las?
Seus olhos dourados se apagaram.
— Que coisas?
Que você me amava, ela quase falou, mas pensou bem – ele não tinha dito aquilo, tinha? Não as palavras em si. A implicação esteve lá. E a verdade do fato, que eles se amavam, era algo que ela sabia tão claramente quanto sabia o seu próprio nome.
— Você me perguntou se eu te amaria se você fosse como Sebastian, como Valentim.
— E você respondeu que então não seria eu. Olhe quão errado isso acabou por ser — ele comentou, a amargura colorindo sua voz — o que eu fiz hoje a noite...
Clary se moveu para ele. Jace ficou rígido, mas não se afastou. Ela segurou a frente de sua camisa, inclinou-se para mais perto, e disse, pronunciando claramente cada palavra.
— Aquele não era você.
— Diga isso para sua mãe. Diga isso para Luke, quando eles perguntarem de onde veio isso.
Ele tocou sua clavícula gentilmente; a ferida estava curada agora, mas sua pele, e o tecido de seu vestido, ainda estavam manchados com sangue.
— Eu direi a eles que foi minha culpa.
Ele a fitou, os olhos dourados incrédulos.
— Você não pode mentir para eles.
— Eu não estou mentindo. Eu te trouxe de volta. Você estava morto, e eu o trouxe de volta. Eu atrapalhei o equilíbrio, não você. Abri a porta para Lilith e seu estúpido ritual. Eu poderia ter pedido por qualquer coisa, e eu pedi você.
Ela firmou o aperto em sua camiseta, seus dedos brancos com o frio e a pressão.
— E eu faria isso de novo. Eu te amo, Jace Wayland... Herondale... Lightwood... como você queira se chamar. Eu não me importo. Eu te amo e sempre amarei, e fingir que poderia ser de outro modo é apenas perda de tempo.
Um olhar de grande dor passou em seu rosto e Clary sentiu seu coração apertar. Então Jace tomou seu rosto entre as mãos. Suas palmas eram quentes contra suas bochechas.
— Lembra-se de quando eu te disse — ele falou, sua voz tão suave quanto ela se recordava — que não sabia se havia um Deus ou não, mas de qualquer forma, nós estávamos completamente por nossa conta? Eu ainda não sei a resposta, só sei que havia uma coisa como fé, e que eu não merecia tê-la. E então havia você. Você mudou tudo o que eu acreditava. Sabe aquele verso de Dante que eu citei para você no parque? “L’amor che move il sole e l’altre stelle”?
Seus lábios se curvaram um pouco nos lados enquanto ela o olhava.
— Eu ainda não sei falar italiano.
— É parte do último verso de Paradiso – o Paraíso de Dante. — “Minha vontade e meu desejo mudaram pelo amor, o amor que move o sol e outras estrelas”. Dante estava tentando explicar a fé, eu acho, como um amor dominante, e talvez seja blasfemo, mas assim é como eu acho que te amo. Você entrou em minha vida e de repente eu tinha uma verdade para me firmar – que eu te amava e você me amava.
Embora ele parecesse olhar para ela, seu olhar estava distante, como se fixado em algo distante.
— Então eu comecei a ter esses sonhos — ele continuou — e achei que talvez eu estivesse errado. Que não te merecia. Que eu não merecia estar perfeitamente feliz – quero dizer, Deus, quem merece isso? E depois desta noite...
— Pare — ela tinha agarrado sua camisa, afrouxou seu aperto agora, espalmando suas mãos contra o peito dele.
Seu coração estava acelerando sob as pontas dos dedos dela, as bochechas dele coraram; e não apenas pelo frio.
— Jace. Por tudo o que aconteceu hoje à noite, eu sabia de uma coisa: que não era você me machucando. Não era você fazendo aquelas coisas. Eu tenho uma absoluta certeza incontestável de que você é bom. E isso nunca mudará.
Jace tomou um fôlego estremecido profundo.
— Eu nem sei como tentar merecer isso.
— Você não tem. Eu tenho fé o suficiente em você. Para nós dois.
As mãos dele deslizaram em seu cabelo. A névoa da respiração exalada cresceu entre eles, uma nuvem branca.
— Eu senti tanto sua falta — ele falou e a beijou, sua boca gentil sobre a dela, não desesperada ou faminta do modo que tinha sido das últimas vezes que a tinha beijado, mas familiar, terna e suave.
Clary fechou seus olhos enquanto o mundo pareceu girar em torno deles como um cata-vento. Deslizando as mãos em seu peito, ela se esticou acima o máximo que ela podia, envolvendo os braços em torno do pescoço de Jace, levantando-se nas pontas dos dedos para encontrar sua boca com a dele.
Os dedos de Jace correram em seu corpo, sobre sua pele e seda, e ela estremeceu, inclinando-se, e tinha certeza que ambos tinham gosto de sangue, cinzas e sal, mas isso não importava; o mundo, a cidade, e todas as suas luzes e vida pareceram ter encolhido para isso, apenas ela e Jace, o coração ardendo de um mundo congelado.
Ele se afastou primeiro, relutantemente. Percebeu o porquê um momento depois. O som de buzinas de carro e pneus derrapando na rua abaixo era audível, mesmo aqui em cima.
— A Clave — ele disse resignado.
Ele limpou sua garganta para pôr as palavras para fora, Clary ficou satisfeita em perceber. Seu rosto estava ruborizado, como ela imaginou que o dela estava.
— Eles estão aqui.
Com as mãos nas dele Clary viu, por sobre a beira da parede do telhado, que uma quantidade de carros pretos tinha encostado na frente do andaime.
Pessoas se juntavam. Era difícil reconhecê-los a esta altura, mas Clary pensou ter visto Maryse e várias outros usando vestimentas de combate. Um momento depois a caminhonete de Luke rugiu no meio fio e Jocelyn saltou. Clary saberia que era ela só pelo modo como se movia, mesmo que a distância fosse muito maior do que desta.
Clary se virou para Jace.
— Minha mãe. É melhor eu descer. Não quero que ela venha aqui em cima e veja... e veja ele.
Ela empurrou seu queixo em direção ao caixão de Sebastian.
Jace retirou seu cabelo do rosto.
— Eu não quero deixar você longe das minhas vistas.
— Então venha comigo.
— Não. Alguém deve ficar aqui em cima.
Ele tomou a mão de Clary, virou-a e soltou o anel de Morgenstern nela, a corrente se unindo como metal líquido. O fecho tinha entortado quando ela a arrancou do pescoço, mas Jace tinha conseguido arrumá-lo à sua forma original.
— Por favor, pegue-o.
Seus olhos lançaram-se abaixo, e então, incertos, voltaram ao seu rosto.
— Eu queria entender o que ele significou para você.
Ele deu de ombros levemente.
— Eu o usei por uma década. Uma parte de mim está nele. Isso quer dizer que eu confio em você com meu passado e todos os segredos que o passado carrega. E além do mais... — ligeiramente, ele tocou uma das estrelas esculpidas em torno do anel — “o amor que move o sol e outras estrelas”. Parece que é isso que as estrelas simbolizam, e não Morgenstern.
Em resposta, ela soltou a corrente sobre sua cabeça, deixando o anel se assentar no seu lugar de costume, sob sua clavícula. Pareceu como uma peça de quebra-cabeças encaixando-se no lugar. Por um momento, os olhos deles se prenderam em uma comunicação muda, de algum modo mais intensa do que o contato físico que tinham tido. Ela segurou a imagem dele em sua mente nesse momento como se estivesse memorizando-a – o cabelo dourado emaranhado, as sombras lançadas pelos seus cílios, os anéis de dourado mais escuros dentro da luz âmbar de seus olhos.
— Eu voltarei logo — ela apertou sua mão — cinco minutos.
— Vá — ele respondeu, rouco e soltou sua mão.
Clary se virou e seguiu de volta para dentro do prédio. No momento em que se afastou dele, estava fria de novo, e no momento em que alcançou as portas do prédio, estava congelando. Ela parou enquanto abria a porta, e olhou de volta para Jace, mas ele era apenas uma sombra emoldurada pelo brilho do horizonte de Nova York.
O amor que move o sol e outras estrelas, ela pensou, e então, como se em resposta, ela ouviu o eco das palavras de Lilith. O tipo de amor que pode incinerar o mundo ou o erguê-lo a glória.
Um arrepio passou por ela, e não apenas vindo do frio. Olhou para Jace, mas ele tinha desaparecido nas sombras. Clary se virou e foi para dentro, a porta deslizando fechada atrás dela.
***
Alec foi escadas acima para procurar Jordan e Maia, deixando Simon e Isabelle sozinhos, sentados lado a lado na espreguiçadeira verde do saguão. Isabelle segurava a pedra enfeitiçada de Alec em sua mão, iluminando a sala com um brilho quase espectral, as partículas de poeira dançando no ar.
Ela tinha dito muito pouco desde que seu irmão os tinha deixado juntos. Sua cabeça estava curvada, o cabelo escuro caindo a frente, olhando suas mãos. Eram delicadas, dedos longos, mas com calos como os de seu irmão. Simon nunca tinha notado antes, mas ela usava um anel de prata em sua mão direita, com um padrão de chamas em torno e um L esculpido no centro. Lembrou a ele o anel que Clary usava ao redor de seu pescoço, com seus desenhos de estrelas.
— Ele é o anel da família Lightwood — ela explicou, percebendo onde seu olhar estava preso — todas as famílias tem um emblema. O nosso é o fogo.
Combina com você, ele pensou. Izzy era como o fogo, em seu flamejante vestido escarlate, com seu humor tão inconstante como as chamas. No telhado quase pensou que ela o estrangularia, seus braços em torno de seu pescoço enquanto ela o xingava de cada nome que conhecia, enquanto o agarrava como se nunca o deixasse ir. Agora ela estava olhando a distância, tão intocável quanto uma estrela. Era tudo muito desconcertante.
Então você os ama, Camille tinha dito, seus amigos Caçadores de Sombras. Como o falcão ama o mestre que o prende e cega.
— O que você nos contou — ele disse, um pouco hesitante, observando Isabelle girar um fio de seu cabelo ao redor de seu indicador — lá em cima no telhado, que não sabia que Clary e Jace estavam fora, que veio aqui por mim... era verdade?
Isabelle olhou para cima, enfiando seu fio de cabelo atrás da orelha.
— É claro que é verdade — ela respondeu indignada — quando nós vimos que você se foi da festa... e você esteve em perigo por dias, Simon, e com a fuga de Camille... — ela se deteve um pouco — e a responsabilidade de Jordan por você. Ele estava surtando.
— Então foi ideia dele vir procurar por mim?
Isabelle virou-se para fitá-lo por um longo momento. Seus olhos eram insondáveis e escuros.
— Fui eu quem notou que você se foi. Eu que quis te encontrar.
Simon limpou a garganta. Ele se sentiu estranhamente tonto.
— Mas por quê? Pensei que agora você me odiasse.
Foi a coisa errada a se dizer. Isabelle sacudiu a cabeça, seu cabelo escuro voando, e se afastou um pouco dele na espreguiçadeira.
— Ah, Simon. Não seja obtuso.
— Izzy — ele se estendeu e tocou seu pulso, hesitantemente.
Ela não se afastou, apenas o observou.
— Camille disse algo para mim no Santuário. Ela falou que os Caçadores de Sombras não se importavam com Seres do Submundo, apenas os usava. Que os Nephilim nunca fariam nada por mim que eu fizesse por eles. Mas você fez. Você veio por mim. Veio por mim.
— É claro que eu vim — ela concordou em uma voz um pouco abafada — quando pensei que algo tinha acontecido a você...
Ele se inclinou para Isabelle. Seus rostos estavam a centímetros um do outro. Ele podia ver as faíscas refletidas do candelabro em seus olhos negros. Seus lábios estavam repartidos, e Simon podia sentir o calor de sua respiração.
Pela primeira vez desde que tinha se tornado um vampiro, ele podia sentir calor, como uma carga elétrica passando entre eles.
— Isabelle — ele disse. Não Izzy. Isabelle — eu posso...
O elevador sibilou e as portas se abriram. Alec, Maia e Jordan saíram.
Alec olhou com suspeita para Simon e Isabelle enquanto eles recuavam, mas antes que pudesse dizer alguma coisa, as portas duplas do saguão se abriram, e Caçadores de Sombras se derramaram no salão. Simon reconheceu Kadir e Maryse, que imediatamente atravessaram a sala até Isabelle e a pegaram pelos ombros exigindo saber o que havia acontecido.
Simon ficou de pé e se afastou, sentindo-se desconfortável e quase colidiu com Magnus, se apressando pela sala até Alec. Ele não pareceu ver Simon de modo algum.Afinal, em cem, duzentos anos, será só eu e você. Nós seremos tudo o que restará.Indizivelmente sozinho entre a multidão de Caçadores de Sombras, Simon se pressionou contra a parede na vã esperança de que não seria notado.
Alec olhou para cima quando Magnus o alcançou, segurou-o e puxou o Caçador para perto. Seus dedos traçaram o rosto de Alec como se checando por contusões e danos; sob sua respiração, ele estava murmurando:
— Como você pôde... sair desse jeito e nem mesmo me falar... eu poderia ter te ajudado.
— Pare — Alec se afastou, sentindo-se rebelde.
Magnus se conteve, sua voz solene.
— Me desculpe. Eu não deveria ter te deixado. Eu deveria ter ficado com você. Aliás, Camille se foi. Ninguém tem a menor ideia de onde ela foi, e já que vocês não podem rastrear vampiros... — Ele deu de ombros.
Alec afastou a imagem de Camille em sua mente, acorrentada à tubulação, olhando para ele com aqueles olhos verdes impetuosos.
— Não importa — Alec respondeu — ela não importa. Eu sei que você estava tentando me ajudar. Aliás, eu não estou zangado com você por ter deixado a festa.
— Mas você estava zangado — Magnus disse — eu sei que estava. Esse é o porquê de eu estar tão preocupado. Saindo e se pondo em perigo só por que está zangado comigo...
— Eu sou um Caçador de Sombras. Magnus, isso é o que eu faço. Não é sobre você. Da próxima vez se apaixone por um avaliador de seguros ou...
— Alexander. Não vai haver uma próxima vez.
Ele inclinou sua testa contra a de Alec, olhos verdes dourados olhando para o azul.
O coração de Alec acelerou.
— Por que não? Você vive para sempre. Nem todo mundo vive.
— Eu sei que eu disse isso — Magnus respondeu — mas, Alexander...
— Pare de me chamar assim. Alexander é como meus pais me chamam. E acho que é muito prematuro você ter aceitado minha mortalidade tão fatalisticamente – todo mundo morre, blá, blá – mas como você acha que me faz sentir? Casais comuns podem ter esperança – esperança de envelhecerem juntos, esperança de viverem longas vidas e morrerem ao mesmo tempo, mas não podemos esperar por isso. Eu nem mesmo sei o que é que você quer.
Alec não estava certo do que tinha esperado em resposta – raiva, defensiva ou até mesmo humor – mas a voz de Magnus apenas baixou, falhando ligeiramente quanto ele disse:
— Alexa... Alec. Se dei a você a impressão de que eu tinha aceitado a ideia de sua morte, posso apenas me desculpar. Eu tentei, pensei que eu tinha... e ainda imaginei ter você por cinquenta, sessenta anos mais. Pensei que poderia estar pronto então para deixá-lo ir. Mas é você, e eu percebi agora que não estarei nem um pouco mais preparado para perder você do que eu estou agora — ele pôs suas mãos gentilmente de cada lado do rosto de Alec — que é não de forma alguma.
— Então o que nós fazemos? — Alec sussurrou.
Magnus deu de ombros, e sorriu de repente, com seu cabelo preto bagunçado e o brilho em seus olhos verdes dourados, ele parecia como um adolescente levado.
— O que todo mundo faz — ele respondeu — como você disse. Esperança.
Alec e Magnus tinham começado a se beijar no canto da sala, e Simon não estava muito certo para onde olhar. Ele não queria que pensassem que estava olhando para eles no que era, claramente, um momento particular, mas para onde quer que ele olhasse, encontrava os olhos encaradores dos Caçadores de Sombras.
Apesar do fato de que ele tinha lutado com eles no banco contra Camille, nenhum deles olhava para ele com particular amabilidade. Uma coisa era Isabelle aceitá-lo e preocupar-se com ele, mas Caçadores de Sombras eram outra coisa inteiramente diferente. Ele podia dizer o que eles estavam pensando. “Vampiro, Ser do Submundo, inimigo” estava escrito em todos seus rostos.
Foi como alívio quando as portas se abriram e Jocelyn chegou voando, ainda usando seu vestido azul da festa. Luke estava apenas poucos passos atrás dela.
— Simon! — ela exclamou tão logo o avistou. Ela correu até ele, e para sua surpresa o abraçou impetuosamente antes de soltá-lo. — Simon, onde Clary está? Ela está...
Simon abriu a boca, mas nenhum som veio. Como ele poderia explicar para Jocelyn, de todas as pessoas, o que aconteceu esta noite? Jocelyn, que estaria horrorizada ao saber da grande maldade de Lilith, as crianças que ela tinha assassinado, o sangue que ela tinha derramado, tudo no propósito de fazer mais criaturas como o próprio filho falecido de Jocelyn, cujo corpo jazia agora no topo do telhado onde Clary estava com Jace?
Não posso dizer nada disso, ele pensou. Não posso. Ele olhou atrás dela, para Luke, cujos olhos azuis descansavam nele com expectativa. Atrás da família de Clary ele podia ver os Caçadores de Sombras se juntando em torno de Isabelle enquanto ela, provavelmente, recontava os eventos da noite.
— Eu... — ele começou impotente, e então as portas do elevador se abriram de novo, e Clary saiu.
Seus sapatos se foram, seu adorável vestido de seda eram trapos ensanguentados, contusões já desapareciam em seus braços e pernas. Mas ela estava sorrindo – até mesmo radiante, mais feliz do que Simon a tinha visto parecer em semanas.
— Mãe! — ela exclamou, e então Jocelyn voou até ela e a estava abraçando.
Clary sorriu para Simon sobre o ombro de sua mãe. Simon olhou em torno da sala. Alec e Magnus ainda estavam envolvidos um com o outro, e Maia e Jordan tinham desaparecido. Isabelle ainda estava cercada de Caçadores de Sombras, e Simon podia ouvir os arfares de horror e surpresa aumentarem do grupo a cercando, enquanto ela recontava a história. Ele suspeitou que alguma parte dela estava se divertindo com isso. Isabelle adorava ser o centro das atenções, não importava qual a razão.
Ele sentiu uma mão descer sobre seu ombro. Era Luke.
— Você está bem, Simon?
Simon olhou para ele. Luke parecia como sempre: sólido, professoral, totalmente de confiança. Nem mesmo o fato que sua festa de noivado tivesse sido interrompida por uma dramática emergência súbita apagava seu jeito.
O pai de Simon tinha morrido tanto tempo atrás que ele mal se lembrava. Rebecca lembrava coisas – que ele tinha uma barba, e a ajudava a construir elaboradas torres de blocos – mas Simon não. Era uma das coisas que ele sempre pensou que tinha em comum com Clary, que os tinha ligado; ambos com pais falecidos, ambos criados por mães solteiras fortes.
Bem, pelo menos uma daquelas coisas tinha se tornado verdade, Simon pensou. Embora sua mãe namorasse, ele nunca teve uma presença paterna consistente em sua vida, além de Luke. Achava que, de certo modo, ele e Clary dividiam Luke. E a alcateia de lobisomens procurava Luke por orientação, também. Para um solteirão que nunca teve filhos, Simon pensou, Luke tem uma admirável quantidade de crianças para cuidar.
— Eu não sei — Simon respondeu, dando a Luke a resposta honesta que gostaria de ter dado a seu próprio pai — acho que não.
Luke virou Simon para encará-lo.
— Você está coberto de sangue. E aposto que não é seu, porque... — Ele gesticulou em direção a Marca na testa de Simon — mas ei — sua voz era gentil — mesmo coberto de sangue e com a Marca de Caim, você ainda é Simon. Pode me contar o que aconteceu?
— Não é meu sangue, você está certo — Simon respondeu, rouco — mas é meio que também uma longa história.
Ele inclinou sua cabeça para trás para olhar para Luke. Sempre se perguntou se ele teria outra espichada algum dia, crescer mais alguns centímetros além dos 1,75 metros que tinha agora, ser capaz de olhar para Luke – sem mencionar Jace – direto nos olhos. Mas agora isso nunca aconteceria.
— Luke, você acha que é possível fazer algo tão ruim, mesmo que você não quisesse fazê-lo, que nunca poderá voltar atrás? Que ninguém pode te perdoar?
Luke olhou para ele por um longo e silencioso momento. Então respondeu:
— Pense em alguém que você ame, Simon. Ame de verdade. Há alguma coisa que eles poderiam fazer que significasse que você pararia de amá-los?
Imagens saltaram através da mente de Simon, como páginas de uma sequência animada de quadros cinematográficos. Clary, virando para sorrir para ele, sua irmã beliscando-o quando ele era só um bebê; sua mãe, dormindo no sofá com a coberta puxada em seus ombros. Izzy...
Simon excluiu os pensamentos apressadamente. Clary não tinha feito nada de tão terrível que ele precisasse dispensar perdão para ela; nenhuma das pessoas que ele estava pensando tinha. Ele pensou em Clary, perdoando sua mãe por ter roubado suas memórias. Pensou em Jace, o que tinha feito no telhado, e como parecera depois. Ele fez o que fez sem sua própria escolha, mas Simon duvidava que Jace fosse capaz de perdoar a si mesmo, levando em conta. E então ele pensou em Jordan – sem perdoar a si pelo o que tinha feito a Maia, mas, de qualquer modo, seguindo em frente, se juntando ao Praetor Lupus, fazendo uma vida de ajudar aos outros.
— Eu mordi alguém.
As palavras saltaram de sua boca, e ele desejou que pudesse engoli-las de volta. Ele se preparou para o olhar de horror de Luke, mas ele não chegou.
— Sobreviveu? — Luke perguntou. — Essa pessoa que você mordeu. Ela sobreviveu?
— Eu... — Como explicar sobre Maureen? Lilith tinha ordenado algo a ela, mas Simon tinha certeza de que eles não tinham visto o fim dela. — Eu não a matei.
Luke concordou de pronto.
— Você sabe como lobisomens se tornam líderes de bando. Eles tem que matar o antigo líder da alcateia. Eu o fiz duas vezes. Tenho cicatrizes para provar — ele puxou ligeiramente a gola de sua blusa para o lado, e Simon viu a beirada de uma grosseira cicatriz branca que parecia imperfeita, como se o peito dele tivesse sido arranhado — a segunda vez foi intencional. Matar a sangue-frio. Eu quis me tornar o líder, e assim foi como eu fiz — ele deu de ombros — você é um vampiro. Está em sua natureza querer beber sangue. Você se segurou por um longo tempo sem o fazer. Sei que você pode andar sob o sol, Simon, e seu orgulho em ser um garoto humano normal, mas você ainda é o que é. Como eu. Quanto mais que você tenta subjugar sua verdadeira natureza, mais ela te controlará. Seja o que você é. Ninguém que realmente te ama irá impedi-lo.
Simon disse rouco.
— Minha mãe...
— Clary me contou o que aconteceu com sua mãe, e que você tem morado com Jordan Kyle — Luke disse — olha, sua mãe mudará de ideia, Simon. Como Amatis, comigo. Você ainda é o filho dela. Eu falarei com ela, se quiser.
Simon sacudiu a cabeça silenciosamente. Sua mãe sempre gostara de Luke. Lidar com o fato que Luke era um lobisomem provavelmente tornaria as coisas piores, não melhores.
Luke assentiu como se compreendesse.
— Se você não quiser voltar para a casa do Jordan, é mais do que bem-vindo para ficar no meu sofá hoje à noite. Tenho certeza que Clary ficará feliz em ter você por perto, e nós poderemos conversar sobre o que quer fazer sobre sua mãe amanhã.
Simon endireitou os ombros. Ele olhou para Isabelle do outro lado da sala, o lampejo de seu chicote, o brilho do pingente em sua garganta, o menear de suas mãos enquanto ela falava. Isabelle, que não tinha medo de nada.
Ele pensou em sua mãe, o modo que ela tinha se afastado, o medo em seus olhos. Esteve se escondendo dessa lembrança, fugindo dela, desde então. Mas era a hora de parar de fugir.
— Não. Obrigado, mas eu acho que não preciso de um lugar para passar hoje a noite. Acho... que vou voltar para casa.
***
Jace ficou sozinho no telhado, olhando a cidade, o Rio East como uma cobra negra prateada serpenteando entre Brooklyn e Manhattan. Suas mãos, seus lábios, ainda estavam quentes do toque de Clary, mas o vento no rio era gelado e o calor estava apagando rápido. Sem uma jaqueta, o ar cortava através do material fino de sua camisa tal qual a lâmina de uma faca.
Tomou um profundo fôlego, sugando o ar frio para seus pulmões, e o soltou lentamente. Seu corpo inteiro sentia-se tenso. Ele estava esperando pelo som do elevador, as portas se abrindo, os Caçadores de Sombras inundando o jardim. Eles seriam primeiro solidários, pensou, preocupados sobre ele. Então, quando entendessem o que tinha acontecido – viria o modo desconfiado, os olhares significativos trocados quando pensassem que ele não estava olhando. Ele tinha sido possuído – não só por um demônio, mas um Demônio Maior – tinha agido contra a Clave, tinha ameaçado e machucado outro Caçador de Sombras.
Ele pensou em como Jocelyn olharia para ele quando escutasse o que tinha feito a Clary. Luke poderia entender, perdoar. Mas não Jocelyn. Ele nunca tinha sido capaz de falar com ela honestamente, dizer as palavras que poderiam tranquilizá-la. Eu amo sua filha, mais do que eu mesmo pensei que fosse possível amar qualquer coisa. Nunca iria machucá-la. Ela apenas o fitaria, ele pensou, com aqueles olhos verdes que eram tão iguais ao de Clary. Ela iria querer mais do que isso. Iria querer ouvi-lo dizer que ele não tinha certeza de que falava a verdade.
Eu não sou como Valentim.
Não é? As palavras pareceram carregadas no ar frio, um sussurro apenas para seus ouvidos. Você nunca conheceu sua mãe. Nunca conheceu seu pai. Deu seu coração a Valentim quando era uma criança, como as crianças fazem, e fez a si mesmo uma parte dele. Não pode tirar isso de si com um corte limpo de uma lâmina.
Sua mão esquerda estava fria. Ele olhou abaixo e viu, para seu choque, que de algum modo ele tinha pegado o punhal – o punhal de prata gravada de seu verdadeiro pai – e o estava segurando em sua mão. A lâmina, embora corroída pelo sangue de Lilith, estava limpa agora, e brilhava como uma promessa.
Um frio, que não tinha nada a ver com o tempo, começou a se espalhar através do seu peito. Quantas vezes ele tinha acordado daquela maneira, arfando e suando, o punhal em sua mão? E Clary, sempre Clary, morta aos seus pés.
Mas Lilith estava morta. Acabou. Ele tentou deslizar o punhal em seu cinto, mas sua mão não parecia querer obedecer ao comando que sua mente estava dando. Ele sentiu uma sensação de ferroadas de calor em seu peito, uma dor ardente. Olhando abaixo, viu que a fina linha de sangue que tinha dividido a marca de Lilith ao meio, onde Clary tinha cortado com a faca, tinha se curado. A marca brilhava avermelhada contra seu peito.
Jace parou de tentar enfiar o punhal em seu cinto. Os nós de seus dedos tornaram-se brancos enquanto apertava o cabo com força. Seu pulso girou, desesperadamente tentando virar a lâmina sobre si mesmo. Seu coração estava martelando. Ele não tinha aceitado as iratzes. Como a marca tinha curado tão rápido? Se ele pudesse cortá-la de novo, desfigurá-la, mesmo temporariamente...
Mas sua mão não o obedeceria. Seu braço ficou imóvel a seu lado enquanto o seu corpo virou, contra a sua própria vontade, em direção ao pedestal onde o corpo de Sebastian repousava.
O caixão tinha começado a brilhar com uma nuvem de luz esverdeada – quase o brilho de uma luz encantada, mas havia algo de doloroso sobre esta luz, algo que parecia penetrar nos olhos. Jace tentou dar um passo para trás, mas suas pernas não se moviam. Suor gelado gotejou em suas costas. Uma voz sussurrou em sua mente.
Venha aqui.
Era a voz de Sebastian.
Você acha que está livre por que Lilith se foi? A mordida do vampiro me acordou; agora o sangue dela em minhas veias o impele. Venha aqui.
Jace tentou afundar seus calcanhares, mas seu corpo o traiu, carregando-o a frente, embora sua mente consciente esforçasse contra isso. Mesmo quando ele tentou vacilar, seus pés moveram-se a frente no caminho, para o caixão.
O círculo pintado brilhou verde enquanto Jace se movia através dele, e o caixão pareceu responder com um segundo flash de luz esmeralda. Então Sebastian estava de pé a frente dele, olhando abaixo.
Jace mordeu forte seu lábio, esperando que a dor pudesse tirá-lo do estado de sonho que estava. Não funcionou. Ele sentiu o gosto de seu próprio sangue enquanto olhava para Sebastian, que flutuava como um corpo afogado na água. Aquelas pérolas são seus olhos. Seus cabelos eram algas incolores, seus cílios fechados azuis. Sua boca tinha um conjunto frio e rígido da boca de seu pai. Era como olhar para um jovem Valentim.
Sem sua vontade, absolutamente contra a sua vontade, as mãos de Jace começaram a levantar. Sua mão esquerda segurou o punhal contra a palma direita, onde as linhas de vida e amor cruzavam uma na outra.
Palavras se derramaram de seus lábios. Ele as escutou como se vindas de uma distância imersa. Não eram em uma língua que ele conhecia ou entendia, mas ele sabia o que eram – um ritual de invocação. Sua mente estava gritando para seu corpo parar, mas pareceu não fazer diferença. Sua mão esquerda veio abaixo, a faca apertada nela. A lâmina fez um corte raso, limpo, certo através de sua palma direita. Quase instantaneamente ela começou a sangrar. Jace tentou puxá-la de volta, tentou empurrar seu braço para longe, mas era como se tivesse preso em cimento. Enquanto ele observava com horror, as primeiras gotas de sangue espalharam-se sobre o rosto de Sebastian.
Os olhos de Sebastian se abriram. Eles eram negros, mais negros do que os de Valentim, tão negros quanto os do demônio que tinha chamado a si mesma de sua mãe. Eles se fixaram sobre Jace, como grandes espelhos negros, refletindo a sua própria face, retorcida e irreconhecível, sua boca formando as palavras do ritual, derramando em seguida em um balbuciar sem sentido como um rio de água negra.
O sangue estava fluindo mais livremente agora, tornando o nebuloso líquido dentro do caixão um vermelho mais escuro.
Sebastian se moveu. A água ensanguentada deslocou e derramou enquanto ele se sentava, seus olhos negros fixos em Jace.
A segunda parte do ritual. A voz dele falou dentro da cabeça de Jace. Está quase completa.
Água escoou dele como lágrimas. Seu cabelo pálido, emplastrado em sua testa, parecia não ter cor. Ele levantou uma mão e a estendeu, e Jace, contra o grito dentro de sua mente, estendeu o punhal. Sebastian deslizou a mão ao longo do comprimento da fria e afiada lâmina. Sangue brotou em uma linha através de sua palma. Ele atirou a faca de lado e tomou a mão de Jace, a apertando com sua própria.
Ela era a última coisa que Jace tinha esperado. Ele não podia se mover para puxá-la. Sentiu cada dedo frio de Sebastian enquanto eles envolviam sua mão, pressionando seus cortes juntos. Era com ser apertado pelo metal frio. Gelo começou a se espalhar nas veias de sua mão. Um tremor passou sobre ele, e então outro, poderosos tremores físicos tão dolorosos, parecia como se seu corpo estivesse sendo virado ao avesso. Ele tentou gritar...
E o grito morreu em sua garganta. Ele olhou abaixo, para as mãos dele e de Sebastian, apertadas juntas. Sangue corria através de seus dedos e abaixo em seus pulsos, tão elegantes quanto renda vermelha. Ele brilhou na fria luz elétrica da cidade. Se movia não como líquido, mas como fios vermelhos em movimento. Envolviam suas mãos juntas em uma ligação escarlate.
Uma peculiar sensação de paz assaltou Jace. O mundo pareceu dissolver-se, e ele estava de pé sobre o pico de uma montanha, o mundo se esticando diante dele, tudo nele seu, para tomá-lo. As luzes da cidade em torno dele não eram mais elétricas, mas era a luz de milhares de diamantes – como estrelas. Elas pareciam brilhar sob ele com seu benevolente brilho que dizia, Isso é bom. Isso é certo. É o que seu pai teria desejado.
Ele viu Clary em sua mente, seu rosto pálido, o caimento de seu cabelo ruivo, sua boca enquanto se movia, formando as palavras: Eu voltarei. Cinco minutos.
E então a voz desapareceu enquanto outra voz a sobrepujava, afogando-a. A imagem dela em sua mente regrediu, varrida suplicantemente na escuridão, como Euridice tinha desaparecido quando Orfeu tinha se virado para olhar para ela pela última vez. Ele a viu, seus braços brancos estendendo-se a ele, e então as sombras se fecharam sobre ela e ela se foi.
Uma nova voz falou na mente de Jace agora, uma voz familiar, uma odiada, agora estranhamente bem-vinda. A voz de Sebastian. Ela pareceu vir através do sangue, através do sangue que passava pela mão de Sebastian para a dele, como uma corrente impetuosa.
Nós somos um agora, irmãozinho, você e eu, Sebastian disse. Nós somos um.
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)