Capítulo 2 - As Torres Demoníacas de Alicante
Não havia nenhuma quantidade de mágica, Clary pensou enquanto ela e Luke circulavam a quadra pela terceira vez, que pudesse criar novos espaços de estacionamento na cidade de Nova York. Não havia nenhum lugar para uma caminhonete se colocar, e metade da rua estava com estacionamento dos dois lados. Finalmente Luke parou em um hidrante e moveu a picape em ponto morto com um suspiro.
— Vá em frente. Deixe eles saber que você está aqui. Vou levar a sua mala.
Clary acenou, mas hesitou antes de alcançar a maçaneta da porta. Seu estômago estava apertado com a ansiedade e ela desejou, não pela primeira vez, que Luke fosse com ela.
— Sempre pensei que a primeira vez que eu fosse para o exterior, eu teria um passaporte comigo, pelo menos.
Luke não sorriu.
— Sei que você está nervosa — ele disse — mas vai ficar tudo bem. Os Lightwood vão cuidar bem de você.
Eu só disse a você isso um milhão de vezes. Clary pensou. Ela deu um tapinha nos ombros de Luke antes de pular da caminhonete.
— Te vejo daqui a pouco.
Fez o seu caminho através da trilha de pedra rachada, o som do tráfego esmaecendo enquanto Clary se aproximava das portas da igreja. Tomou vários instantes para descascar o encantamento do Instituto dessa vez. Sentia como se outra camada de disfarce tivesse sido adicionada à velha catedral, como uma nova camada de pintura. Raspá-la de sua mente parecia difícil, mesmo doloroso.
Finalmente o encantamento e ela pôde ver a igreja como era. As altas paredes resplandeciam como se tivessem sido polidas. Havia um estranho cheiro no ar, como ozônio e incêndio. Com uma careta, ela pôs sua mão na maçaneta. Eu sou Clary Morgenstern, uma dos Nephilim, e peço entrada para o Instituto...
A porta balançou aberta. Clary caminhou para dentro. Ela olhou ao redor, piscando, tentando identificar o que havia de diferente no interior da catedral. Ela percebeu enquanto a porta se fechava atrás dela, deixando-a em uma escuridão iluminada apenas por um fraco brilho que subia da janela lá em cima.
Nunca tinha estado dentro do Instituto sem as dezenas chamas acesas nos elaborados castiçais alinhados no corredor entre os bancos. Pegou sua pedra enfeitiçada do bolso e a ergueu. A pedra queimou em sua mão, enviando brilhantes toques de iluminação por entre seus dedos. Ela iluminou os cantos empoeirados do interior da catedral enquanto fazia seu caminho para o elevador próximo ao altar nu e golpeou impacientemente o botão de chamar.
Nada aconteceu. Depois meio minuto, pressionou o botão de novo – e de novo. Ela descansou seu ouvido contra a porta do elevador e escutou. Nenhum som. O Instituto estava escuro e silencioso, como uma boneca mecânica cujo mecanismo principal havia enfraquecido.
Com coração martelando agora, Clary se apressou de volta pelo corredor e empurrou as portas pesadas. Ficou nos degraus da frente da igreja, observando freneticamente. O céu estava escurecendo para o cobalto, o ar cheirava mais fortemente a queimado. Havia sido um incêndio? Os Caçadores de Sombras tinham evacuado? Mas o lugar parecia intocado...
— Não foi um incêndio.
A voz era suave, aveludada e familiar. Uma figura alta se materializou para fora das sombras, o cabelo espetado em uma coroa de espinhos desordenados. Ele usava um terno de seda preto sobre uma cintilante camisa verde esmeralda, e brilhantes anéis enquadrados nos seus dedos estreitos. Havia botas exageradas envolvidas também, e uma boa quantidade de purpurina.
— Magnus? — Clary sussurrou.
— Eu sei o que você está pensando — Magnus disse — mas não houve nenhum incêndio. O cheiro é hellmist - é um tipo de fumaça encantada demoníaca. Ela obscurece os efeitos de certos tipos de magia.
— Névoa demoníaca? Então houve...
— Um ataque ao Instituto. Sim. Hoje mais cedo esta tarde. Esquecidos – provavelmente algumas dezenas deles.
— Jace — Clary sussurrou — os Lightwood...
— A névoa demoníaca obscureceu minha habilidade para lutar efetivamente contra os Esquecidos. A deles também. Tive que enviá-los através do Portal para Idris.
— Mas nenhum deles foi machucado?
— Madeleine. Madeleine foi morta. Eu sinto muito, Clary.
Clary afundou nos degraus. Não tinha conhecido bem a mulher mais velha, mas Madeleine tinha sido uma tênue conexão para sua mãe – sua mãe de verdade, a agressiva, lutadora Caçadora de Sombra que Clary nunca tinha conhecido.
— Clary? — Luke subiu o caminho para a reunião sombria. Ele tinha a mala de Clary em uma mão. — O que está acontecendo?
Clary sentou abraçando seus joelhos enquanto Magnus explicava. Debaixo da dor por Madeleine ela estava cheia de um alívio culpado. Jace estava bem. Os Lightwood estavam bem. Ela repetiu silenciosamente para si mesma. Jace está bem.
— Os Esquecidos — Luke lembrou — foram todos mortos?
— Nem todos — Magnus balançou a cabeça — depois que enviei os Lightwood pelo Portal, os Esquecidos se dispersaram; não pareciam interessados em mim. Até a hora de eu fechar o Portal, todos eles desapareceram.
Clary levantou sua cabeça.
— O Portal está fechado? Mas... você ainda pode me enviar para Idris, certo? — ela perguntou. — Quero dizer, eu posso ir pelo Portal e me juntar aos Lightwood lá, não posso?
Luke e Magnus trocaram um olhar. Luke colocou a mala no chão.
— Magnus? — A voz de Clary se elevou, estridente em seus próprios ouvidos. — Eu tenho que ir.
— O Portal está fechado, Clary...
— Então abra outro!
— Não é tão fácil — o bruxo respondeu — a Clave protege qualquer magia de entrada em Alicante com muito cuidado. Sua capital é um local sagrado para eles... ela é como seu Vaticano, sua Cidade Proibida. Nenhum Ser do Submundo pode entrar lá sem permissão, e nenhum mundano.
— Mas eu sou uma Caçadora de Sombras!
— Só de certo ponto de vista — Magnus respondeu — além do mais, as torres impedem entradas diretas para a cidade. Para abrir um Portal que vai para Alicante, eu teria que ter gente aguardando do outro lado por você. Seu eu tentasse te enviar por minha própria conta, seria uma violação direta da Lei, e não estou disposto a arriscar isso por você, docinho, não importa o quanto eu pessoalmente possa gostar de você.
Clary olhou para o rosto pesaroso de Magnus para o cauteloso de Luke.
— Mas eu preciso chegar a Idris. Preciso ajudar minha mãe. Deve haver outro modo de chegar lá, algum modo que não envolva um Portal.
— O aeroporto mais próximo fica um país adiante — Luke disse — se nós pudéssemos atravessar a fronteira, e esse é um grande “se”... seria uma longa e perigosa jornada depois disso, através de todos os tipos de território de Seres do Submundo... poderia levar dias para chegar lá.
Os olhos de Clary estavam queimando. Eu não vou chorar, ela falou para si mesma. Não vou.
— Clary — a voz de Luke era gentil — vamos entrar em contato com os Lightwood. Vamos ter certeza de que eles tem toda a informação que precisam para conseguir o antídoto para Jocelyn. Eles podem contatar Fell...
Mas Clary estava de pé, balançando a cabeça.
— Tem que ser eu. Madeleine disse que Fell não falaria com mais ninguém.
— Fell? Ragnor Fell? — Magnus ecoou. — Eu posso tentar mandar uma mensagem para ele, avisar para esperar por Jace.
Alguma da preocupação deixou o rosto de Luke.
— Clary, você ouviu isso? Com a ajuda de Magnus...
Mas Clary não queria ouvir mais nada sobre a ajuda de Magnus. Ela não quis ouvir mais nada. Tinha pensado que ia salvar sua mãe, e agora não faria nada por ela exceto se sentar na cabeceira da cama, segurar sua mão fraca e esperar que alguém, em algum lugar, fosse capaz de fazer o que ela não podia.
Se afastou descendo pelos degraus, empurrando Luke quando ele tentou alcançá-la.
— Eu só preciso ficar sozinha por um segundo.
— Clary... — ouviu Luke chamar por ela, mas se empurrou para longe, arremessando-se em torno da lateral da catedral.
Se encontrou seguindo o caminho de pedra onde ele bifurcava, seguindo em direção do pequeno jardim no lado leste do Instituto, em direção ao cheiro de carvão e cinzas... e um espesso e acentuado cheiro debaixo daquilo.
O cheiro de magia demoníaca. Havia ainda uma névoa no jardim, espalhando pedaços daquilo como trilhas de nuvem aqui e ali, no canto de uma roseira ou escondida debaixo de uma pedra. Ela podia ver onde a terra tinha sido revirada mais cedo pela luta – e onde havia uma escura mancha vermelha, em um dos bancos de pedra, que ela não quis olhar por muito tempo.
Clary virou a cabeça para longe. E pausou. Havia, contra a parede da catedral, os resquícios de uma runa mágica, brilhando num quente e esmaecido azul contra a pedra cinza. Elas formavam um quadrado delineado, como a forma de uma porta meio aberta delineada em luz...
O Portal.
Algo dentro dela parecia girar. Ela se lembrou de outros símbolos, cintilando perigosamente contra o metal liso do casco do navio. Se lembrou do tremor do navio enquanto ele se desarticulava e separava, a água escura do Rio East vertendo dentro.
Elas são só runas, ela pensou. Símbolos. Eu posso desenhá-las. Se a minha mãe pode prender a essência do Cálice Mortal dentro de um pedaço de papel, então eu posso fazer um Portal.
Ela encontrou seus pés levando-a para a parede da catedral, sua mão alcançando a estela. Firmando a mão para não tremer, fixou a ponta da estela na pedra. Abaixou as pálpebras e contra a escuridão atrás delas, começou a desenhar com sua mente as linhas curvadas de luz. Linhas que falavam para ela de entradas, sobre ser carregada no ar girando, de viagens e lugares distantes. As linhas se reuniram em uma runa tão graciosa quanto um pássaro em voo. Ela não sabia se aquilo era uma runa que tinha existido antes ou era uma que tinha inventado, mas existia agora como se sempre tivesse existido.
Portal.
Ela começou a desenhar, as marcas saltando da ponta da estela em linhas negras de carvão. A pedra fritou, enchendo seu nariz com o ácido cheiro de queimado. Luz quente azul cresceu contra suas pálpebras fechadas; ela sentiu o calor no seu rosto como se estivesse parada em frente ao fogo. Com um arfar, Clary baixou sua mão, abrindo os olhos.
A runa que tinha desenhado era uma flor escura florescendo na parede de pedra. Enquanto observava, as linhas dela pareciam derreter e mudar, fluindo gentilmente abaixo, desenrolando, reformando a si mesmas. Dentro de momentos, a forma da runa tinha mudado.
Era agora o contorno de uma brilhante porta, vários metros mais alta que Clary. Ela não podia tirar seus olhos da entrada. Brilhava com a mesma luz escura do Portal atrás da cortina de Madame Dorothea. Ela se aproximou da porta... E recuou.
Para usar um Portal, ela se lembrou com um penetrante sentimento, você tinha que imaginar o lugar para onde queria ir, onde queria que o Portal te levasse. Mas ela nunca tinha estado em Idris. O lugar tinha sido descrito para ela, é claro. Um lugar de vales verdes, de árvores escuras e água brilhante, de lagos e montanhas, e Alicante, a cidade das torres de vidro. Ela podia imaginar como poderia parecer, mas imaginação não era o suficiente, não com esta magia. Se apenas...
Ela tomou um súbito fôlego. Tinha visto Idris. Tinha visto em um sonho, e ela sabia, sem saber como, que tinha sido um sonho real. Depois de tudo, o que Jace tinha dito para ela no sonho sobre Simon: que ele não podia ficar porque “este lugar é para os vivos”. E não muito depois disso, Simon havia morrido...
Ela jogou seus pensamentos de volta para o sonho. Estava dançando no salão de baile em Alicante. As paredes eram douradas e brancas, com um telhado claro como diamante acima. Lá havia uma fonte – um prato de prata com uma estátua de sereia no centro – as luzes presas nas árvores do lado de fora das janelas, e Clary havia usado veludo verde, tal como agora.
Como se ainda estivesse no sonho, ela alcançou o Portal. Uma luz brilhante estendeu-se sob o toque de seus dedos, uma porta abrindo para um iluminado lugar além. Ela encontrou-se olhando para um girante redemoinho dourado que lentamente começou a se unir em formas discerníveis – ela pensou que podia ver o contorno de montanhas, um pedaço de céu...
— Clary!
Era Luke, correndo pela trilha, seu rosto uma máscara de raiva e horror. Atrás dele caminhava Magnus, seus olhos de gato brilhando como metal na luz quente do Portal que banhava o jardim.
— Clary, pare! As barreiras são perigosas! Você vai se matar!
Mas não havia parada agora. Além do Portal, a luz dourada estava crescendo... Ela pensou nas paredes douradas do salão em seu sonho, a luz dourada quebrando-se no vidro em toda parte. Luke estava errado; ele não entendia seu dom, como ele funcionava... o que barreiras podiam importar quando você pode criar sua própria realidade apenas desenhando-a?
— Eu tenho que ir — ela gritou, movendo-se em direção ao Portal, suas pontas dos dedos estendidos — Luke, me desculpe...
Ela caminhou a frente – e com um último salto ligeiro, Luke estava ao seu lado, segurando-a pelo pulso, justo quando o Portal pareceu explodir todo em torno deles. Como um tornado arrancando uma árvore das raízes, a força puxou ambos de seus pés. Clary pegou um último vislumbre dos carros e prédios de Manhattan girando para longe dela, desaparecendo como um açoite antes da dura corrente de vento a pegar, seu pulso ainda preso no aperto de ferro de Luke, enviando-a em um redemoinho de caos dourado.
***
Simon acordou com um ritmado bater de água. Ele se sentou, um súbito terror congelando seu peito – a última vez que ele tinha acordado ao som de água, era prisioneiro no barco de Valentim, e o suave barulho de líquido o trouxe de volta àquela terrível hora com um imediatismo que era um balde de água fria na cara.
Mas não – um rápido olhar ao redor lhe disse que estava em algum outro lugar. Em primeiro lugar, ele estava deixado embaixo de suaves cobertores em uma confortável cama de madeira em um pequeno quarto limpo cujas janelas estavam pintadas de azul pálido. Cortinas escuras estavam puxadas sobre a janela, mas a fraca luz em suas beiradas era o suficiente para seus olhos de vampiro ver claramente.
Havia um brilhante tapete no chão e um armário espelhado em uma parede. Uma poltrona estava puxada ao lado da cama.
Simon se sentou, os cobertores caindo para longe, e notou duas coisas: uma, que ele estava usando ainda o mesmo jeans e camiseta que vestia quando ele tinha ido para o Instituto se encontrar com Jace; e dois, que a pessoa na poltrona estava cochilando, a cabeça apoiada numa mão, seu longo cabelo preto se derramando abaixo como uma franja de xale.
— Isabelle? — Simon chamou.
A cabeça pulou como um assustado brinquedo, seus olhos flutuando abertos.
— Ooooh! Você está acordado! — Ela se sentou ereta, sacudindo o cabelo para trás. — Jace vai ficar tão aliviado. Nós estávamos quase totalmente certos que você iria morrer.
— Morrer? — Simon repetiu. Ele se sentiu tonto e um pouco doente. — De quê?
Ele olhou em torno do quarto piscando.
— Eu estou no Instituto? — ele perguntou, e percebeu no momento em que as palavras estavam fora de sua boca que, é claro, aquilo era impossível. — Quero dizer, onde nós estamos?
Um desconfortável lampejo cruzou o rosto de Isabelle.
— Bem... quer dizer que você não se lembra do que aconteceu no jardim? — ela puxou nervosamente o enfeite de crochê que delimitava o estofamento da poltrona. — Os Esquecidos nos atacaram. Havia um monte deles lá, e o hellmist tornou difícil lutar com eles. Magnus abriu o Portal, e nós fomos todos correndo para dentro dele quando vi você vindo em nossa direção. Você tropeçou sobre... sobre Madeleine. E lá estava um Esquecido bem atrás de você; você não deve tê-lo visto, mas Jace viu. Ele tentou te avisar, mas era tarde demais. O Esquecido enterrou a faca em você. Você sangrou... muito. E Jace matou o Esquecido e te pegou e o carregou através do Portal com ele — ela terminou, falando tão rapidamente que suas palavras misturaram-se juntas e Simon teve que pensar para entendê-las — e nós já estávamos do outro lado, e me deixe te contar, todo mundo ficou bastante surpreso quando Jace passou com você sangrando por cima dele. O Cônsul não estava nada satisfeito.
A boca de Simon estava seca.
— O Esquecido enterrou uma faca em mim?
Isso parecia impossível. Mas então, ele tinha sarado depois que Valentim tinha cortado sua garganta. Pelo menos ele deveria se lembrar. Balançando a cabeça, ele olhou abaixo para si mesmo.
— Onde?
— Vou te mostrar.
Para sua surpresa, um momento depois Isabelle se sentou na cama ao lado dele, as mãos frias sobre o estômago. Ela empurrou a camiseta de Simon para cima, expondo uma faixa pálida de sua barriga, cortado por uma fina linha vermelha. Era facilmente uma cicatriz.
— Aqui — ela apontou, seus dedos deslizando sobre a cicatriz — há alguma dor?
— N... não.
A primeira vez que Simon tinha visto Isabelle, tinha achado-a tão impressionante, tão cheia de vitalidade e energia, que tinha pensado ter finalmente encontrado uma garota que resplandecesse o suficiente para borrar a imagem de Clary que sempre parecia ser impressa por dentro de suas pálpebras. Naquela época, ela havia conseguido que Simon se tornasse em um rato na festa de Magnus Bane, e foi então que percebeu que talvez Isabelle resplandecesse um pouco demais para um cara comum como ele.
— Ela não doí.
— Mas meus olhos doem — disse uma friamente voz divertida vinda da entrada.
Jace. Ele tinha chegado tão silenciosamente que mesmo Simon não o tinha escutado. Fechando a porta atrás dele, ele sorriu enquanto Isabelle puxava a camisa de Simon para baixo.
— Molestando um vampiro enquanto ele está fraco demais para reagir, Izzy? — Ele perguntou. — Eu tenho bastante certeza de que viola pelo menos um dos Acordos.
— Eu só estava mostrando onde ele foi apunhalado — Isabelle protestou, mas ela sentou de volta para a poltrona com uma certa afobação — o que está acontecendo lá embaixo? Estão todos ainda em pânico?
O sorriso deixou o rosto de Jace.
— Maryse foi com Patrick para a Garde para a reunião da Clave. Malachi pensou que seria melhor se ela... explicasse... pessoalmente.
Malachi. Patrick. Garde. Os nomes desconhecidos giraram na cabeça de Simon.
— Explicar o quê?
Isabelle e Jace trocaram um olhar.
— Explicar você — Jace disse finalmente — explicar por que trouxemos um vampiro com a gente para Alicante, o que é, a propósito, expressivamente contra a Lei.
— Para Alicante? Nós estamos em Alicante?
Uma onda plana de pânico lavou Simon, rapidamente substituída por uma dor que atravessou seu interior. Ele se dobrou, arfando.
— Simon! — Isabelle aproximou sua mão, alarme em seus olhos escuros. — Você está bem?
— Vá embora, Isabelle — Simon falou, as mãos cerradas contra seu estômago, olhando para Jace, súplica em sua voz — faça ela ir.
Isabelle recuou, um olhar ferido em seu rosto.
— Ótimo. Eu vou. Você não tem que me dizer duas vezes.
Ela ficou de pé e saiu do quarto, batendo a porta atrás dela.
Jace se virou para Simon, seus olhos âmbar inexpressivos.
— O que está acontecendo? Pensei que você estivesse curado.
Simon levantou uma mão para evitar que o outro garoto terminasse. Um metálico gosto queimou a parte de trás de sua garganta.
— Não é Isabelle — ele rangeu — eu não estou machucado... só estou... fome — ele sentiu suas bochechas arderem — eu perdi sangue, então... preciso repô-lo.
— É claro — Jace concordou, em um tom de alguém que tinha entendido algum interessante fato científico, mas não particularmente necessário.
A fraca preocupação deixou sua expressão para ser substituída por algo que pareceu para Simon como desdém divertido. Isso golpeou uma corda de fúria dentro dele, e se ele não estivesse tão debilitado pela dor, teria voado da cama para cima do outro garoto, enfurecido. Logo, tudo o que ele podia fazer era suspirar.
— Dane-se, Wayland.
— Wayland, é?
O olhar divertido deixou o rosto de Jace, suas mãos foram para sua garganta e começaram a abrir sua jaqueta.
— Não! — Simon encolheu-se na cama. — Eu não me importo com quanta fome estou. Eu não vou... beber seu sangue... de novo.
A boca de Jace torceu.
— Como se eu fosse deixar.
Ele alcançou o bolso de sua jaqueta e puxou um frasco de vidro. Estava meio cheio de um fino líquido vermelho amarronzado.
— Pensei que você poderia precisar disso — ele disse — eu espremi o suco de alguns quilos de carne vermelha na cozinha. Foi o melhor que pude fazer.
Simon pegou o frasco de Jace com as mãos tremendo tão fortemente que o outro garoto teve que destampar para ele. O líquido dentro era feio – muito fino e salgado para ser um sangue adequado, e com o fraco sabor desagradável que Simon sabia significar que a carne era de uns dias atrás.
— Ugh — ele disse, depois de alguns goles — sangue morto.
As sobrancelhas de Jace levantaram-se.
— Não é tudo sangue morto?
— Quanto mais tempo o animal cujo o sangue eu estou bebendo tiver sido morto, pior o gosto — Simon explicou — fresco é melhor.
— Mas você nunca bebeu sangue fresco. Bebeu?
Simon levantou suas próprias sobrancelhas em resposta.
— Bem, fora eu, é claro — Jace acrescentou — tenho certeza que meu sangue é fan... tástico.
Simon colocou o frasco vazio no braço da poltrona.
— Há alguma coisa de errado com você — Simon falou — mentalmente, eu quero dizer.
Sua boca ainda estava com gosto de sangue estragado, mas a dor tinha ido embora. Ele se sentiu melhor, mais forte, como se o sangue fosse um remédio que trabalhou instantaneamente, um droga que ele tinha que ter para viver. Se perguntou se era assim com os viciados por heroína.
— Então eu estou em Idris.
— Alicante, para ser específico — Jace confirmou — a capital da cidade. A única cidade, na verdade — ele foi para a janela e puxou para trás as cortinas — os Penhallow realmente não acreditam em nós. Que o sol não te incomoda. Eles puseram estas cortinas escuras. Mas você pode olhar.
Levantando-se da cama, Simon se juntou a Jace na janela. E olhou.
Há alguns anos sua mãe tinha levado ele e a irmã em uma viagem para Tuscany – uma semana de pesados, desconhecidos pratos de massas, pão sem sal e campo, com sua mãe se apressando nas estreitas estradas retorcidas, mal conseguindo evitar de bater seu Fiat nos belos edifícios antigos. Ele se lembrava de pararem em uma vertente oposta a uma cidade chamada San Gimignano, uma coleção de prédios cor de ferrugem pontilhados aqui e ali com altas torres cujos topos subiam para alcançar o céu.
Se a paisagem que Simon olhasse agora o lembrasse de alguma coisa, seria daquilo; mas era também algo tão estranho e genuinamente diferente de qualquer coisa que tinha visto antes.
Ele estava olhando de uma janela que era claramente alta. Se olhasse para cima, podia ver as calhas de pedra e o céu além. Ao longo do caminho havia outra casa, não tão grande quanto esta, e entre elas corria um estreito e escuro canal, cruzado aqui e ali por pontes – a água que ele tinha ouvido ao despertar.
A moradia parecia estar construída no meio de um morro – abaixo dele casas de pedra cor de mel, agrupadas ao longo de ruas estreitas, desciam para a borda de um círculo verde: árvores, cercadas por montes que eram muito distantes. Daqui elas lembravam longas faixas verdes e marrons pontilhadas com brotos de cores do outono. Atrás dos montes elevavam-se montanhas irregulares congeladas com neve.
Mas nada daquilo era estranho; o que era estranho era que na cidade, colocadas aparentemente de modo aleatório, havia altivas torres coroadas com espirais de algum material espelhado de cor prata-esbranquiçado. Elas pareciam perfurar o céu como adagas brilhantes, e Simon notou onde tinha visto aquele material antes: nas rígidas armas parecidas com vidro que os Caçadores de Sombras carregavam, as que eles chamavam de lâminas serafim.
— Aquelas são as torres demoníacas — Jace apontou, em resposta a pergunta não dita de Simon — elas controlam as barreiras que protegem a cidade. Por causa delas, nenhum demônio pode entrar em Alicante.
O ar que vinha através da janela era frio e limpo, o tipo de ar que você nunca respirou na cidade de Nova York: não tinha gosto de nada, sem sujeira, fumaça, metal ou outras pessoas. Apenas ar. Simon tomou um profundo e desnecessário fôlego antes de se virar para olhar para Jace; alguns hábitos humanos eram difíceis de morrer.
— Diga-me que me trazer aqui foi um acidente. Me diga que não foi uma forma de impedir Clary de vir com você.
Jace não olhou para ele, mas seu peito subiu e desceu rapidamente em um tipo de suspiro reprimido.
— Está certo — Jace respondeu — eu criei um bando de guerreiros Esquecidos, eles iam atacar o Instituto, matar Madeleine e quase matar o resto de nós, assim eu poderia manter Clary em casa. E olha só, meu plano diabólico está funcionando.
— Bem, está funcionando — Simon murmurou — não está?
— Escute, vampiro, manter Clary longe de Idris era o plano. Te trazer aqui não. Eu te trouxe através do Portal por que se deixasse você para trás, sangrando e inconsciente, o Esquecido teria te matado.
— Você poderia ter ficado para trás comigo...
— Eles teriam matado nós dois. Eu não poderia nem mesmo dizer quantos deles lá estavam, não com o hellmist. Mesmo eu não posso lutar com cem Esquecidos.
— Aposto que dói em você admitir isso.
— Você é um saco — Jace replicou, sem mudança de tom — mesmo para um Ser do Submundo. Eu salvei sua vida e quebrei a Lei fazendo isso. Não pela primeira vez, eu poderia adicionar. Você podia mostrar um pouco de gratidão.
— Gratidão? — Simon sentiu suas unhas cravarem-se nas palmas. — Se você não tivesse me arrastado para o Instituto, eu não estaria aqui. Nunca concordei com isso.
— Você concordou quando disse que faria qualquer coisa por Clary. Isso é alguma coisa.
Antes que Simon pudesse improvisar de volta a resposta irritada, houve uma batida na porta.
— Olá? — Isabelle chamou do outro lado. — Simon, o seu momento de mocinha acabou? Preciso falar com Jace.
— Entre, Izzy — Jace não tirou os olhos de Simon, e um tipo de desafio fez Simon desejar acertá-lo com alguma coisa pesada. Como uma caminhonete.
Isabelle entrou no quarto em um turbilhão de cabelo preto e saia prata volumosa. O espartilho cor de marfim que usava deixava nus seus braços e ombros pintados com runas. Simon supôs que aquilo era uma boa mudança de ritmo, ela ser capaz de mostrar suas marcas em um lugar onde ninguém poderia pensar que eram fora do comum.
— Alec está indo para a Garde — Isabelle disse sem preâmbulos — ele quer falar com você sobre Simon antes de sair. Você pode descer?
— Claro — Jace foi em direção à porta. Na metade do caminho para lá, notou que Simon estava seguindo-o e se virou com um olhar ameaçador. — Você fica aqui.
— Não — Simon respondeu — se vocês vão falar sobre mim, quero estar lá.
Por um momento, pareceu que a calma gelada de Jace ia quebrar. Ele enrubesceu e abriu a boca, seus olhos piscando. Mas a raiva rapidamente desapareceu, obstruída por óbvia força de vontade. Ele cerrou os dentes e sorriu.
— Tudo bem. Vamos lá embaixo, vampiro. Você pode encontrar toda a família feliz.
***
A primeira vez que Clary tinha viajado através de um Portal, havia sido como a sensação de voar, cair sem peso. Dessa vez era como ser impulsionada no coração de um tornado. Ventos poderosos a agitaram, soltando sua mão da mão de Luke e o puxando um grito de sua boca. Ela caiu girando através do coração de um redemoinho negro e dourado.
Algo plano, duro e prateado como a superfície de um espelho cresceu a sua frente. Ela caiu em direção a ele, gritando, e ergueu as mãos para cobrir o rosto. Ela atingiu a superfície e a quebrou, surgindo em um mundo de frio brutal e asfixiante. Estava afundando numa espessa escuridão azul, tentando respirar, mas não podia levar o ar a seus pulmões, apenas mais da frieza congelante...
Subitamente ela foi puxada pela parte de trás de seu casaco e rebocada para cima. Ela chutou, porém estava fraca demais para quebrar o aperto. Foi puxada para cima, a escuridão índigo em torno dela se tornou um pálido azul e então para ouro enquanto ela rompia a superfície da água – aquilo era água – e sugava por ar. Ou tentava sugar. Em vez disso ela sufocou e engasgou, manchas pretas pontilhando sua visão. Estava sendo arrastada pela água, rápido, algas segurando e puxando suas pernas e braços.
Girou ao redor no aperto que a segurava e pegou o terrível vislumbre de alguma coisa, nem exatamente lobo, nem humano, com orelhas pontudas como adagas e lábios puxados para trás sobre os afiados dentes brancos. Ela tentou gritar, mas apenas engasgou.
Um momento depois, estava fora da água, sendo lançada na úmida e compactada terra. Havia mãos em seus ombros, girando seu rosto contra o chão. As mãos forçaram suas costas mais e mais, até que seu peito espasmou e ela tossiu um amargo fluxo de água.
Ainda estava engasgando quando mãos a rolaram de costas. Ela estava olhando para Luke, uma sombra negra contra um alto céu azul tocado por nuvens brancas. A delicadeza que estava acostumada a ver em sua expressão se fora; ele não estava como um lobisomem, mas parecia furioso. Puxou-a em uma posição sentada, agitando-a duramente, cada vez mais, até que ela arfou e bateu nele fracamente.
— Luke! Pare! Você está me machucando...
As mãos dele deixaram seus ombros. Ele agarrou seu queixo com uma mão, forçando a cabeça dela para cima, seus olhos procurando em seu rosto.
— A água — ele disse — você cuspiu toda água?
— Eu acho que sim — ela sussurrou.
Sua voz veio fracamente da garganta inchada.
— Onde está sua estela? — ele exigiu, e quando ela hesitou, sua voz se afiou. — Clary. Sua estela. Encontre-a.
Ela se empurrou para longe do aperto dele e tateou em seus bolsos molhados, seu coração afundando enquanto seus dedos tocavam apenas o casaco molhado. Ela virou um rosto entristecido acima para Luke.
— Acho que eu devo tê-la soltado no lago — ela fungou — a... a estela da minha mãe...
— Jesus, Clary.
Luke se levantou, fechando suas mãos distraidamente atrás da cabeça. Ele estava encharcado também, água correndo de seus jeans e do pesado casaco de flanela em poças. Os óculos que ele geralmente usava na metade do caminho de seu nariz tinham desaparecido. Ele olhou para ela melancolicamente.
— Você está bem. — Luke falou. Não era realmente uma pergunta. — Quero dizer, agora mesmo. Você se sente bem?
Ela concordou.
— Luke, o que há de errado? Por que nós precisamos a minha estela?
Luke não disse nada. Ele estava olhando ao redor como se estivesse esperando colher alguma ajuda de seus arredores. Clary seguiu seu olhar. Eles estavam um largo banco de terra às margens de um lago razoavelmente grande. A água era azul pálido, faiscando aqui e ali com a luz do sol refletida. Clary se perguntou se era a fonte de luz dourada que tinha visto através do Portal meio aberto. Não havia nada sinistro sobre o lago agora que estava próxima dele ao invés de dentro dele. Era cercado por colinas verdes, salpicadas de marrom e dourado. Além das colinas cresciam altas montanhas, seus picos cobertos de neve.
Clary estremeceu.
— Luke, quando nós estávamos na água... você foi um lobo? Pensei ter visto...
— Meu eu lobo pode nadar melhor do que meu eu humano — Luke respondeu curtamente — e ele é mais forte. Tive que te arrastar pela água, e você não estava oferecendo muita ajuda.
— Eu sei. Lamento. Não era... não era para você ter vindo junto comigo.
— Se eu não tivesse vindo, você estaria morta agora — ele apontou — Magnus te disse, Clary. Você não pode utilizar um Portal para chegar à Cidade de Vidro a menos que alguém esteja te esperando do outro lado.
— Ele disse que era contra a Lei. Não disse que se eu tentasse chegar lá seria expulsa.
— Ele te disse que há barreiras em torno da cidade que impedem a passagem. Não é a culpa dele que você decidiu brincar com magia que mal entende. Só por que você tem o poder, não significa que sabe como utilizá-lo — ele fez uma carranca.
— Me desculpe — Clary falou baixinho — eu só estou... onde nós estamos agora?
— Lago Lyn. Acho que o Portal nos levou tão próximo da cidade quanto podia e então nos jogou. Nós estamos nos arredores de Alicante — ele olhou ao redor, balançando a cabeça meio que em espanto e meio em cansaço — você fez isso, Clary. Nós estamos em Idris.
— Idris? — Clary repetiu, e levantou olhando estupidamente ao redor do lago. Ele cintilou de volta para ela, azul e inalterado. — Mas... você disse que nós estávamos nos arredores de Alicante. Eu não vejo a cidade em lugar algum.
— Nós estamos a quilômetros de distância — Luke apontou — vê aquelas colinas à distância? Temos que atravessá-las; a cidade é do outro lado. Se tivéssemos um carro, poderíamos chegar lá em uma hora, mas temos que andar, o que vai levar provavelmente toda a tarde — ele olhou de soslaio para o céu — é melhor irmos.
Clary olhou para si mesma em desânimo. A perspectiva de um longo dia de caminhada em roupas ensopadas não era atraente.
— Não há mais nada...
— ... que possamos fazer? — Luke completou, e havia um ponta de raiva em sua voz — você tem alguma sugestão, Clary, uma vez que foi você que nos trouxe aqui? — ele apontou para longe do lago. — Aquele caminho leva às montanhas. Transitável a pé só no auge verão. Nós congelaremos até a morte nos picos — ele se virou, apontando o dedo em outra direção — aquele caminho leva a quilômetros de árvores. Elas correm por todo o caminho para a fronteira. São desabitadas, pelo menos de seres humanos. Após Alicante, há fazendas e casas de campo. Talvez pudéssemos sair de Idris, mas ainda teríamos que passar através da cidade. Uma cidade, eu posso acrescentar, onde Seres do Submundo como eu dificilmente são bem-vindos.
Clary olhou para ele com a boca aberta.
— Luke, eu não sabia...
— É claro que você não sabia. Você não sabia de nada sobre Idris. Nem mesmo se importa com Idris. Estava apenas chateada por ser deixada para trás, como uma criança, e teve uma explosão de raiva. Agora nós estamos aqui. Perdidos, congelando e... — ele se interrompeu, seu rosto apertado — vamos. Vamos começar a andar.
Clary seguiu Luke ao longo da margem do Lago Lyn em um silêncio triste. Enquanto caminhavam, o sol secou seu cabelo e pele, mas o veludo de seu casaco segurava a água como uma esponja. Grudava-se a ela como uma cortina de chumbo enquanto tropeçava apressadamente sobre as rochas e lama, tentando manter a caminhada de passos largos de Luke. Ainda fez algumas tentativas de conversa, mas Luke permanecia teimosamente em silêncio. Ela nunca tinha feito nada tão ruim antes que um pedido de desculpas não suavizasse a raiva de Luke. Dessa vez, parecia que era diferente.
Os penhascos se elevavam mais alto em torno do lago enquanto eles progrediam, tocados com pontos de escuridão, como respingos de tinta preta. Enquanto Clary olhava mais de perto, notou que as manchas eram cavernas na rocha. Pareciam ser muito profundas, girando para dentro das trevas. Ela imaginou morcegos e coisas arrepiantes rastejando escondidas na escuridão e estremeceu.
Enfim um caminho estreito cortando através dos penhascos os guiou para uma larga estrada alinhada com pedras comprimidas. O lago curvava para longe atrás deles, índigo no final da luz da tarde. A estrada seguia numa grama achatada que subia para as distantes colinas onduladas. O coração de Clary afundou; a cidade não estava à vista. Luke olhou em direção as colinas com um olhar de intenso desânimo em seu rosto.
— Nós estamos mais longe do que eu pensava. Faz um longo tempo...
— Talvez se nós encontrássemos uma estrada maior — Clary sugeriu — poderíamos pegar uma carona para a cidade ou...
— Clary. Não há carros em Idris — vendo a expressão chocada dela, Luke riu sem muita diversão — as barreiras obstruem mecanismos. A maioria das tecnologias não funciona aqui – celulares, computadores, por exemplo. Alicante por si é iluminada – e movida – por pedras encantadas.
— Ah — Clary falou baixinho — bem, o quão longe da cidade estamos?
— Longe o suficiente — sem olhar para ela, Luke varreu as mãos através de seu cabelo curto — há algo que é melhor eu dizer a você.
Clary ficou tensa. Tudo o que queria antes era que Luke falasse com ela; agora não queria mais.
— Está tudo bem...
— Você notou — Luke falou — que não há nenhum barco no Lago Lyn... nenhuma doca... nada que poderia sugerir que o lago é usado de alguma forma pelo povo de Idris?
— Só pensei que fosse por que ele era muito longe.
— Não que ele seja remoto. Umas poucas horas de Alicante a pé. A verdade é que o lago... — Luke se interrompeu e suspirou — alguma vez você notou o padrão do piso da biblioteca no Instituto em Nova York?
Clary piscou.
— Notei, mas eu não posso imaginar o que era.
— Aquilo era um anjo se elevando do lago, segurando o Cálice e a Espada. Era uma cena repetitiva nas decorações Nephilim. A lenda é que o anjo Raziel se elevou do Lago Lyn quando ele apareceu pela primeira vez para o Caçador de Sombras Jonathan, o primeiro dos Nephilim, e deu a ele os Instrumentos Mortais. Desde então o lago tem sido...
— Sagrado? — Clary sugeriu.
— Amaldiçoado — Luke respondeu — a água do lago é de alguma forma venenosa para os Caçadores de Sombras. Ela não machuca Seres do Submundo... o povo da fadas o chamam de Espelho dos Sonhos, e eles bebem sua água por que alegam que dá a eles certas visões. Mas para um Caçador de Sombras, beber da água é muito perigoso. Ela causa alucinações, febre... pode levar a pessoa à loucura.
Clary sentiu-se gelada.
— É por isso que você tentou me fazer cuspir a água fora.
Luke acenou.
— E o motivo de eu querer que você achasse sua estela. Com uma runa de cura, poderíamos evitar os efeitos da água. Sem ela, temos que te levar para Alicante tão rápido quanto possível. Lá há remédios, ervas, que vão ajudar, e conheço alguém que irá tê-las certamente.
— Os Lightwood?
— Não — a voz de Luke era firme — alguém mais. Alguém que eu conheço.
— Quem?
Ele balançou a cabeça.
— Vamos apenas rezar para que esta pessoa não tenha se mudado nos últimos quinze anos.
— Mas eu pensei que era contra a Lei os Seres do Submundo virem para Alicante sem permissão.
Seu sorriso de resposta era uma lembrança do Luke que a tinha pego quando ela tinha caído do brinquedo quando era criança, o Luke que tinha sempre protegido-a.
— Algumas leis são destinadas a serem quebradas.
***
A casa dos Penhallow lembrava a Simon o Instituto – tinha aquela mesma sensação de pertencer de algum modo a outra era. As paredes e escadas eram estreitas, feitas de pedra e madeira escura, e as janelas eram altas e finas, mostrando vistas da cidade. Havia uma distinta sensação asiática para a decoração: uma tela shoji enfeitava o primeiro andar, havia vasos chineses com flores nos peitoris das janelas.
Havia também certo número de gravuras nas paredes, mostrando o que deveria ter sido cenas da mitologia dos Caçadores de Sombras, mas com um toque oriental nelas – militares usando com destreza brilhantes lâminas serafim, ao lado de coloridas criaturas como dragões e demônios impressionantes.
— A Sra. Penhallow – Jia – vai para o Instituto de Beijing. Ela divide seu tempo entre aqui e a Cidade Proibida — Isabelle contou enquanto Simon parava para examinar a pintura — e os Penhallow são uma antiga família. Ricos.
— Posso perceber — Simon murmurou, olhando acima para os lustres, cristais de vidro cortados como lágrimas.
Jace, no degrau atrás deles, rosnou.
— Mexam-se. Nós não estamos tendo uma turnê histórica aqui.
Simon pensou numa resposta rude e decidiu que não valia a pena se incomodar. Ele desceu o resto dos degraus em um rápido passo; eles davam para a parte inferior para uma larga sala.
Era uma estranha mistura do velho com o novo: uma pintura de vidro na janela parecia dar para o canal, e havia uma música tocando em um estéreo que Simon nunca tinha visto. Mas não havia televisão, nem pilhas de DVDs ou CDs, o tipo de objeto que Simon associava com salas de estar modernas. Ao invés disso, havia sofás agrupados em torno de uma grande lareira, onde chamas estalavam.
Alec estava de pé perto da lareira em escuras roupas de Caçador de Sombras, acrescidas com um par de luvas. Ele viu enquanto Simon entrava na sala e olhava zangado em sua habitual carranca, mas nada disse.
Sentados nos sofás estavam dois adolescentes que Simon nunca tinha visto antes, um garoto e uma garota. A garota parecia ser parte asiática, com delicados e amendoados olhos puxados, cabelo escuro e brilhante puxado para trás de seu rosto, e uma expressão travessa. Seu delicado queixo estreitava como o de um gato. Ela não era exatamente bonita, mas era muito marcante.
O garoto de cabelo preto ao lado dela era mais do que marcante. Ele era provavelmente do peso de Jace, mas parecia mais alto, mesmo sentado; magro e musculoso, com um pálido, elegante e impaciente rosto, todo anguloso e de olhos escuros. Havia alguma coisa estranhamente familiar sobre ele, como se Simon o tivesse conhecido antes.
A garota falou primeiro.
— É esse o vampiro? — Ela olhou para Simon de cima a baixo como se estivesse tomando suas medidas. — Eu realmente nunca tinha visto um vampiro de perto antes... não um que eu não estivesse planejando matar, pelo menos — ela virou a cabeça de lado — ele é bonito, para um Ser do Submundo.
— Você tem que desculpá-la; ela tem o rosto de um anjo e as maneiras de um demônio Moloch — disse o garoto com um sorriso, ficando de pé. Ele segurou a mão de Simon — sou Sebastian. Sebastian Verlac. E esta é minha prima, Aline Penhallow. Aline...
— Eu não dou a mão para Seres do Submundo — Aline disse, se encolhendo contra as almofadas do sofá — eles não têm alma, você sabe. Vampiros.
O sorriso de Sebastian desapareceu.
— Aline...
— É verdade. É por isso que eles não podem se ver em espelhos, ou ir para o sol.
Muito deliberadamente, Simon andou para trás em um trecho de luz em frente à janela. Ele sentiu o sol quente em suas costas, seu cabelo. Sua sombra, longa e escura, quase alcançava os pés de Jace no piso.
Aline tomou um forte fôlego, mas nada disse. Foi Sebastian quem falou, olhando para Simon com curiosos olhos negros.
— Então é verdade. Os Lightwood disseram, mas eu não achava que...
— Que estávamos falando a verdade? — Jace sugeriu falando pela primeira vez desde que eles tinham chegado embaixo. — Nós não mentiríamos sobre algo como isso. Simon é....único.
— Eu beijei ele uma vez — Isabelle disse, para ninguém em particular.
As sobrancelhas de Aline se atiraram para cima.
— Eles realmente deixam você fazer o que quiser em Nova York, não é? — Ela perguntou, soando meio horrorizada e meio invejosa. — A última vez que te vi, Izzy, você nem sequer tinha considerado...
— A última vez que todos nós nos vimos, Izzy tinha oito anos — Alec apontou — as coisas mudam. Agora, mamãe teve que sair daqui depressa, então alguém tem que levar a ela as notas e os registros para a Garde. Eu sou o único que tem dezoito, então sou o único que pode ir durante a sessão na Clave.
— Nós sabemos — Isabelle respondeu, caindo pesadamente no sofá — você já nos disse isso, tipo, cinco vezes.
Alec, que estava parecendo importante, ignorou isso.
— Jace, você trouxe o vampiro aqui, então está encarregado dele. Não o deixe ir para fora.
O vampiro, Simon pensou. Não era como se Alec não conhecesse seu nome. Ele tinha salvado a vida de Alec uma vez. Agora ele era “o vampiro”. Mesmo para Alec, que era propenso a um ocasional ataque inexplicável de silêncio, isso foi lamentável. Talvez tivesse algo haver com estarem em Idris. Talvez Alec sentisse uma maior necessidade de assegurar sua qualidade de Caçador de Sombras aqui.
— É para isso que me trouxe aqui embaixo? Para falar sobre não deixar o vampiro sair lá fora? Eu não deixaria de qualquer maneira — Jace deslizou para o sofá ao lado de Aline, que parecia satisfeita — seria melhor você se apressar para a Garde e voltar. Deus sabe a que depravação nós poderíamos chegar aqui sem sua orientação.
Alec olhou para Jace com calma superioridade.
— Tente segurar as pontas. Estarei de volta em meia hora.
Ele desapareceu através do arco que dava para um longo corredor; em algum lugar uma porta foi clicada fechada.
— Você não deveria tê-lo importunado — Isabelle disse, atirando a Jace um olhar severo — deixaram ele no comando.
Aline, Simon não se impediu de notar, estava sentada tão perto de Jace que seus ombros se tocava, apesar de existir um grande espaço em torno deles no sofá.
— Você já pensou que em uma vida passada Alec foi uma idosa com noventa gatos, e que estava sempre gritando para as crianças da vizinhança saírem de seu gramado? Porque eu penso — ele disse, e Aline sorriu.
— Só por que ele é o único que pode ir para a Garde...
— O que é a Garde? — Simon perguntou, cansado de não ter nenhuma ideia do que todo mundo estava falando.
Jace olhou para ele. Sua expressão era fria, não amigável; sua mão estava sobre sua coxa, em cima da de Aline.
— Sente-se — ele disse, empurrando sua cabeça na direção de uma poltrona — ou você planeja pairar no canto como um morcego?
Ótimo. Piadas de morcego. Simon sentou-se desconfortavelmente em uma cadeira.
— A Garde é o local oficial de encontro da Clave — Sebastian explicou, aparentemente tendo pena de Simon — é onde a Lei é feita, onde o Cônsul e o Inquisidor residem. Apenas Caçadores de Sombras adultos são permitidos em seu terreno quando a Clave está em sessão.
— Em sessão? — Simon perguntou, lembrando-se do que Jace disse mais cedo lá em cima. — Você quer dizer... não por minha causa?
Sebastian riu.
— Não. Por causa de Valentim e os Instrumentos Mortais. Isso é o porquê de todos estarem lá. Para discutir o que Valentim fará da próxima vez.
Jace não falou nada, mas ao som do nome de Valentim, seu rosto se contraiu.
— Bem, ele irá atrás do Espelho — Simon falou — o terceiro Instrumento Mortal, certo? Ele está aqui em Idris? É o motivo de todos estarem aqui?
Houve um curto silêncio antes de Isabelle responder.
— O problema sobre o espelho é que ninguém sabe onde ele está. Na verdade, ninguém sabe o que ele é.
— É um espelho — Simon observou — você sabe... reflete, é de vidro. Eu só estou presumindo.
— O que Isabelle quer dizer — Sebastian falou gentilmente — é que ninguém sabe nada sobre o Espelho. Há várias menções dele nas histórias dos Caçadores de Sombras, mas nada específico sobre onde ele está, como se parece, ou o mais importante, o que ele faz.
— Nós presumimos que Valentim o quer — Isabelle acrescentou — mas não ajuda muito, uma vez que ninguém tem a menor ideia onde ele está. Os Irmãos do Silêncio poderiam ter uma ideia, mas Valentim matou todos eles.
— Todos eles? — Simon perguntou em surpresa — eu pensava que ele matou só os em Nova York.
— A Cidade dos Ossos não é realmente em Nova York — Isabelle respondeu — ela é como... lembra da entrada para a Corte de Seelie, no Central Park? Só porque a entrada estava lá não significa que a Corte por si mesma está debaixo do parque. É o mesmo com a Cidade dos Ossos. Há várias entradas, mas a Cidade por si...
Isabelle se interrompeu enquanto Aline a silenciava com um rápido gesto. Simon olhou para o seu rosto, para o de Jace e para o de Sebastian. Eles todos tinham a mesma expressão cautelosa, como se percebessem apenas agora o que estavam fazendo: contando segredos Nephilim para um Ser do Submundo. Um vampiro. Não o inimigo, precisamente, mas certamente alguém que não podia ser de confiança.
Aline foi a primeira a quebrar o silêncio. Fixando seu lindo e escuro olhar em Simon, ela perguntou:
— Então... como é isso, de ser um vampiro?
— Aline! — Isabelle pareceu horrorizada. — Você não pode sair por aí perguntando como é ser um vampiro.
— Eu não vejo o porquê — Aline respondeu — ele não é um vampiro há tanto tempo, é? Então deve se lembrar de como é ser uma pessoa — ela se virou de volta para Simon — o sangue ainda tem gosto de sangue para você? Ou ele tem gosto de outra coisa agora, como suco de laranja ou algo assim? Porque acho que o gosto de sangue seria...
— Tem gosto de galinha — Simon disse, só para ela calar a boca.
— Sério? — Aline parecia espantada.
— Ele está brincando com você, Aline — Sebastian observou — peço desculpas por minha prima novamente, Simon. Aqueles de nós que foram trazidos de fora de Idris tendem a ter um pouco mais de familiaridade com os Seres do Submundo.
— Mas você não foi trazido para Idris? — Isabelle perguntou. — Pensei que seus pais...
— Isabelle — Jace interrompeu, mas já era tarde demais; a expressão de Sebastian escureceu.
— Meus pais estão mortos. Um ninho de demônios próximo a Calais... está tudo bem, foi há muito tempo — ele acenou para longe o protesto de simpatia de Isabelle — minha tia... irmã do pai de Aline... me trouxe para o Instituto em Paris.
— Então, você fala francês? — Isabelle suspirou. — Eu queria falar outro idioma. Mas Hodge nunca pensou que nós precisaríamos aprender nada além do grego antigo e latim, e ninguém fala essas línguas.
— Eu também falo russo e italiano. E um pouco de romeno — Sebastian disse com um modesto sorriso — eu poderia ensinar para você algumas frases...
— Romeno? Que impressionante — Jace comentou — não é muita gente que fala isso.
— E você? — Sebastian perguntou com interesse.
— Não realmente — Jace disse com um sorriso tão desarmado que Simon sabia que ele estava mentindo — meu romeno é bastante limitado para ser útil em frases como, “Essas cobras são venenosas?” e “Mas você parece jovem demais para ser um policial!”
Sebastian não sorriu. Havia algo em sua expressão, Simon pensou. Ela era branda... tudo sobre ele era calmo.... Simon tinha a sensação de que aquela moderação escondia algo por baixo que camuflava sua tranquilidade externa.
— Eu gosto de viajar — ele disse, seus olhos em Jace — mas é bom estar de volta, não é?
Jace pausou com o ato de brincar com os dedos de Aline.
— O que você quer dizer?
— Só que não há nenhum lugar parecido com Idris, por mais que nós Nephilim possamos fazer lares para nós mesmos em outro lugar. Você não concorda?
— Por que está me perguntando isso? — O olhar de Jace era gelado.
Sebastian deu de ombros.
— Bem, você viveu aqui enquanto era criança, não é? E faz anos que você não volta. Ou eu entendi errado?
— Você não entendeu errado — Isabelle disse impacientemente — Jace gosta de fingir que todo mundo não está falando sobre ele, mesmo quando ele sabe que estão.
— Certamente estão.
Embora Jace estivesse encarando-o, Sebastian parecia imperturbável. Simon sentiu um tipo de meia relutância tendendo para o garoto Caçador de Sombras de cabelo escuro. Era raro encontrar alguém que não reagisse ao sarcasmo de Jace.
— Nestes dias, isso é tudo sobre o que todo mundo fala em Idris. Você, os Instrumentos Mortais, seu pai, sua irmã...
— Supunha-se que Clarissa viria com você, não? — Aline perguntou. — Eu estava ansiosa em conhecê-la. O que aconteceu?
Embora a expressão de Jace não tivesse mudado, ele puxou sua mão da de Aline, fechando-a em um punho.
— Ela não queria sair de Nova York. Sua mãe está doente no hospital.
Ele nunca diz nossa mãe, Simon pensou. É sempre a mãe dela.
— Isso é estranho — Isabelle notou — eu realmente pensava que ela queria vir.
— Ela queria — Simon disse — na verdade...
Jace estava em seus pés, tão rápido que Simon nem mesmo o viu se mover.
— Vamos pensar sobre isso, tenho algo que preciso discutir com Simon. Em particular.
Ele moveu sua cabeça em direção às portas duplas no final da sala, seus olhos brilhando em desafio.
— Vamos lá, vampiro — ele convidou, em um tom que deixou Simon com a distinta sensação que uma recusa terminaria provavelmente em algum tipo de violência. — Vamos conversar.
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