Capítulo 2 - Espinhos

Simon estava esperando por Clary, Alec e Isabelle do lado de fora do Instituto, sob uma saliência de pedra que apenas o protegia do pior da chuva. Ele se virou quando os três saíram pelas portas, e Clary viu que o cabelo escuro dele estava colado na testa e no pescoço. Ele o empurrou para trás e olhou pra ela, uma pergunta em seus olhos.
— Eu estou limpa — ela disse, e quando ele começou a sorrir, Clary balançou a cabeça — mas eles tiraram a priorização da procura por Jace. Eu... eu tenho certeza de que eles acham que está morto.
Simon olhou para sua calça jeans molhada e para a camiseta – uma camiseta cinza enrugada com detalhes na gola e nas mangas e uma estampa enorme que dizia: CLARAMENTE, EU FIZ ALGUMAS DECISÕES RUINS. Ele balançou a cabeça.
— Lamento.
— A Clave pode agir assim — Isabelle disse — acho que não devíamos ter esperado algo diferente.
— Basia coquum — Simon comentou — ou seja lá qual for o lema deles.
— É Facilis descensus Averno“É fácil a descida ao inferno” — Alec recitou — você apenas disse “Beije o cozinheiro”.
— Droga — disse Simon — eu sabia que Jace estava me enganando.
Seu cabelo castanho molhado caiu nos olhos; ele o jogou para longe com um gesto impaciente, o suficiente para Clary pegar um vislumbre da prateada Marca de Caim em sua testa.
— E agora?
— Agora nós vamos ver a Rainha Seelie — Clary respondeu.
Quando ela tocou o sino em sua garganta, explicou para Simon sobre a visita de Kaelie na recepção de Luke e Jocelyn, e sua promessa a Clary sobre a ajuda da Rainha Seelie.
Simon parecia duvidoso.
— A senhora de cabelos vermelhos com atitude ruim que fez você beijar Jace? Eu não gostei dela.
— É disso que você se lembra dela? Que ela fez Clary beijar Jace? — Isabelle soou aborrecida. — A Rainha Seelie é perigosa. Ela estava só brincando daquela vez. Normalmente, ela gosta de levar ao menos alguns mundanos à loucura, gritando todos os dias antes do café da manhã.
— Eu não sou mundano — Simon observou — não mais — ele olhou para Isabelle apenas brevemente, abaixou o olhar, e se virou para Clary — quer que eu vá com você?
— Acho que seria bom ter você lá. Diurno, Marca de Caim... certas coisas têm que impressionar até mesmo a Rainha.
— Eu não apostaria nisso — Alec comentou.
Clary olhou para ele e perguntou:
— Onde está Magnus?
— Ele disse que seria melhor se não viesse. Aparentemente, ele e a Rainha Seelie têm algum tipo de história.
Isabelle ergueu as sobrancelhas.
— Não esse tipo de história — Alec respondeu, irritado — algum tipo de briga. Embora — ele acrescentou, meio baixinho — o jeito que ele tinha antes de mim, eu não ficaria surpreso.
— Alec!
Isabelle se voltou para falar com o irmão, e Clary abriu seu guarda-chuva com um estalo. Era um que Simon tinha dado a ela, anos atrás, no Museu de História Natural e tinha uma estampa de dinossauros no topo. Ela viu a expressão dele mudar para divertimento quando o reconheceu.
— Vamos caminhar? — ele inquiriu, e ofereceu o braço.

***

A chuva estava caindo de forma constante, criando pequenos riachos a partir das calhas e respingos de água das rodas quando os táxis passavam. Era estranho, Simon pensou, que apesar de não sentir frio, a sensação de estar molhado e pegajoso ainda era irritante. Ele desviou um pouco o olhar, observando Alec e Isabelle por cima do ombro.
Isabelle não tinha realmente encontrado seus olhos desde que saíram do Instituto, e ele se perguntava no que ela estava pensando. Parecia querer conversar com seu irmão, e quando eles pausaram na esquina do Parque Avenue, ele a ouviu falar:
— Então, o que você acha? Sobre papai colocar o nome dele na posição para Inquisidor?
— Acho que soa como um trabalho chato.
Isabelle estava segurando um guarda-chuva. Era de plástico transparente, decorado com bordas de flores coloridas. Era uma das coisas mais femininas que Simon já tinha visto, e ele não culpava Alec por se esquivar para fora dele, e ter suas chances na chuva.
— Não sei por que ele iria querer isso.
— Eu não me importo se é chato — Isabelle assobiou — se ele conseguir, vai ficar em Idris o tempo inteiro. Tipo, o tempo todo. Ele não pode dirigir o Instituto e ser o Inquisidor. Ele não pode ter dois trabalhos ao mesmo tempo.
— Se você percebeu, Izzy, ele fica em Idris o tempo todo de qualquer jeito.
— Alec...
O resto do que ela disse foi perdido quando o semáforo mudou e o tráfego avançou, lançando água gelada para cima da calçada. Clary se esquivou de um gêiser e quase bateu em Simon. Ele pegou sua mão para firmá-la.
— Desculpe — a mão dela parecia pequena e fria na dele — eu não estava realmente prestando atenção.
— Eu sei.
Ele tentou manter a preocupação fora da sua voz. Clary realmente não esteve “prestando atenção” em qualquer coisa nas duas últimas semanas. No começo ela chorou, e então ficou furiosa – com raiva por não poder se juntar às patrulhas de busca por Jace, raiva pelo interrogatório interminável do Conselho, raiva por ela estar sendo praticamente mantida como prisioneira em casa porque estava sob suspeita pela Clave. Acima de tudo, ficou com raiva de si mesma por não ser capaz de chegar com uma runa que ajudasse. Ela sentou em sua mesa durante a noite por horas, a estela agarrada com tanta força nos dedos finos que Simon tinha medo que eles se partissem ao meio. Ela tentava forçar a mente a presenteá-la com uma imagem que contaria onde Jace estava. Mas noite após noite, nada acontecia.
Parecia mais velha, ele pensou enquanto entravam no parque por uma abertura na parede de pedra na Quinta Avenida. Não de uma forma ruim, mas estava diferente da garota que era quando entraram na boate Pandemônio naquela noite em que tudo mudou. Ela estava mais alta, mas era mais do que isso. Sua expressão era mais séria, havia mais graça e força no jeito que andava, seus olhos verdes eram menos dançantes, mais focados. Ela estava começando a parecer, ele percebeu com um choque de surpresa, com Jocelyn.
Clary pausou em um círculo de árvores encharcadas; os galhos bloqueavam maior parte da chuva ali, e Isabelle e Clary inclinaram o guarda-chuva delas contra os troncos de árvores próximas. Clary soltou a corrente do pescoço e deixou o sino deslizar em sua palma. Ela olhou para todos, sua expressão séria.
— Esse é um risco, e tenho certeza que se eu balançá-lo, não vou poder voltar atrás. Então, se algum de vocês não quiser vir comigo, está tudo bem. Eu vou entender.
Simon estendeu a mão e colocou sobre a dela. Não havia necessidade de pensar. Onde Clary fosse, ele iria também. Eles passaram por tanta coisa juntos para ser de outra forma. Isabelle fez o mesmo, e finalmente Alec; chuva pingava de seus longos cílios pretos, como lágrimas, mas sua expressão era decidida. Os quatro deram as mãos com força.
Clary balançou o sino.

***

Houve uma sensação como se o mundo estivesse girando – não a mesma sensação de ser atirado através de um Portal, Clary pensou, não era como estar no coração de um redemoinho, e sim como se ela estivesse sentada em um carrossel que tinha começado a girar mais e mais rápido. Ela estava tonta e ofegante quando a sensação parou repentinamente e ela ainda estava de pé novamente, sua mão apertada na de Isabelle, Alec e Simon.
Eles se soltaram um do outro, e Clary olhou em volta. Já esteve ali antes, nesse corredor marrom escuro que parecia ter sido esculpido em pedra preciosa, em olho-de-tigre. O chão era liso, desgastado pela passagem de milhares de anos dignos aos pés das fadas. Luz cintilava das lascas douradas nas paredes, e no final da passagem havia uma cortina multicolorida que balançava para frente e para trás como se movimentada pelo vento, embora não houvesse vento no subsolo.
Quando Clary se aproximou, ela viu que a cortina era formada de borboletas presas. Algumas delas ainda estavam vivas, e seu esforço fazia a cortina flutuar como se fosse um vento forte.
Ela engoliu de volta o gosto ácido em sua garganta.
— Olá? — ela chamou. — Tem alguém aí?
A cortina farfalhou de lado, e o cavaleiro elfo Meliorn saiu para o corredor. Ele vestia a armadura branca que Clary se lembrava, mas havia um símbolo sobre o seu peito esquerdo agora – os quatro Cs que também decoravam as vestes do Conselho de Luke, marcando-o como um membro. Havia também uma cicatriz no rosto de Meliorn que era nova, logo sob seus olhos de cor de folha. Ele a considerou friamente.
— Não se cumprimenta a Rainha da Corte Seelie com o bárbaro humano “olá”, como se estivesse chamando um criado. A fala apropriada é “prazer em encontrá-la”.
— Mas nós ainda não nos encontramos — Clary respondeu — eu nem ao menos sei se ela está aqui.
Meliorn olhou para ela com desdém.
— Se a Rainha não estivesse presente e pronta para recebê-la, tocar o sino não te traria aqui. Agora venha, siga-me e traga seus companheiros com você.
Clary virou-se gesticulando para os outros, e depois seguiu Meliorn através da cortina de borboletas torturadas, curvando os ombros na esperança de que nenhuma parte das asas a tocassem.
Um por um, os quatro entraram na câmara da Rainha. Clary piscou em surpresa. Parecia totalmente diferente da última vez em que ela esteve aqui. A Rainha estava reclinada em um divã branco e dourado, e o chão ao seu redor alongava-se num padrão de quadrados preto e branco alternados, como um tabuleiro de xadrez gigante. Cordas espinhosas que pareciam perigosas pendiam do teto, e em cada espinho estava empalado um fogo-fátuo. Normalmente a sua luz cintilante ofuscava até a morte. A sala brilhava em sua irradiação.
Meliorn saiu para ficar ao lado da Rainha; além dele, a sala estava vazia de cortesões. Lentamente, a Rainha sentou-se ereta. Ela estava tão linda quanto sempre, seu vestido uma diáfana mistura de prata com ouro, seu cabelo como cobre rosado quando ela o arrumou suavemente sobre um ombro branco.
Clary se perguntou por que ela estava se importando. De todos ali, o único provável a ser movido por sua beleza era Simon, e ele a odiava.
— Prazer em encontrá-lo, Nephilim, Diurno — ela disse, inclinando a cabeça na direção deles — filha de Valentim, o que te traz a mim?
Clary abriu a mão. O sino brilhou ali em acusação.
— Você mandou sua serva me dizer para tocar se eu precisasse da sua ajuda.
— E você me respondeu que não queria nada de mim — replicou a Rainha — que tinha tudo o que desejava.
Clary pensou desesperadamente no que Jace tinha dito quando tiveram uma audiência com a Rainha antes, como ele havia lisonjeado e encantado-a. Foi como se de repente tivesse adquirido todo um novo vocabulário. Ela olhou por cima de seu ombro, para Isabelle e Alec, mas Isabelle só fez um gesto irritado para ela, indicando que ela devia continuar.
— As coisas mudam — Clary disse.
A Rainha esticou as pernas luxuosamente.
— Muito bem. O que é que você quer de mim?
— Eu quero encontrar Jace Lightwood.
No silêncio que se seguiu, o som do fogo-fátuo chorando em agonia era suavemente audível. No final, a Rainha respondeu:
— Você de fato deve nos achar poderosos, se acredita que o Povo das Fadas pode ter sucesso onde a Clave falhou.
— A Clave quer encontrar Sebastian. Eu não me importo com Sebastian. Eu quero Jace — Clary respondeu — além disso, já sei que você sabe mais do que está dizendo. Previu que isso ia acontecer. Ninguém mais sabia, mas não acredito que me enviou aquele sino – na mesma noite em que Jace desapareceu – sem saber que alguma coisa estava se formando.
— Talvez — a Rainha pensou em voz alta, admirando suas unhas brilhantes.
— Eu já notei que as fadas dizem “talvez” quando há uma verdade que querem esconder. Isso te impede de dar uma resposta direta.
— Talvez — a Rainha repetiu com um sorriso divertido.
— “Possivelmente” é uma boa palavra também — Alec sugeriu.
— “Por acaso” também — Izzy acrescentou.
— Não vejo nada de errado com “talvez” — Simon apontou — é um pouco moderno, mas a essência da ideia se encontra ali.
A Rainha ignorou as palavras como se fossem abelhas zumbindo irritantemente ao redor de sua cabeça.
— Eu não confio em você, filha de Valentim. Houve um tempo em que eu queria um favor de você, mas esse tempo acabou. Meliorn tem seu lugar no Conselho. Não tenho certeza de que haja algo para você me oferecer.
— Se achasse isso — Clary respondeu — nunca teria me enviado o sino.
Por um momento, os olhares delas se trancaram. A Rainha era linda, mas havia algo por trás de seu rosto, algo que fez Clary pensar nos ossos de um pequeno animal ressecando ao sol. Por fim, a Rainha falou:
— Muito bem. Eu posso ser capaz de ajudá-la. Mas vou querer uma recompensa.
— Comovente — Simon murmurou.
Ele tinha as mãos nos bolsos e estava olhando para a Rainha com desprezo.
Alec riu.
Os olhos da Rainha faiscaram. Um momento depois, Alec cambaleou para trás com um grito. Ele estava segurando as mãos, pasmado, como se a pele delas estivessem enrugadas e as mãos curvadas para dentro, dobrando, as articulações inchadas. Sua coluna arqueou, seu cabelo se tornou grisalho, seus olhos azuis desapareceram e afundaram em rugas profundas.
Clary engasgou. Alec era agora era um homem velho, curvado e de cabelos brancos, tremendo.
— Como a beleza mortal desvanece rapidamente — a Rainha se vangloriou — olhe para si mesmo, Alexander Lightwood. Eu te dou um vislumbre de si mesmo em meros sessenta anos. O que seu amante bruxo dirá então da sua beleza?
O peito de Alec estava arfando. Isabelle rapidamente foi para o seu lado e pegou sua mão.
— Alec, não é nada. É um encantamento — ela se virou para a Rainha — tire isso dele! Tire isso!
— Se você e seus companheiros falarem comigo com mais respeito, então eu posso considerar.
— Nós iremos — Clary falou rapidamente — pedimos desculpas por qualquer grosseria.
A Rainha fungou.
— Sinto falta de seu Jace. De todos vocês, ele era o mais bonito e mais educado.
— Nós também sentimos falta dele — Clary concordou em uma voz baixa — não queríamos ser mal-educados. Nós, humanos, podemos ter dificuldades com nossa dor.
— Humf — a Rainha resmungou, mas ela estalou os dedos e o encantamento saiu de Alec.
Ele era ele mesmo novamente, apesar do rosto pálido e aparência atordoada. A Rainha lhe lançou um olhar superior e mudou a atenção para Clary.
— Há um conjunto de anéis — a Rainha começou — que pertence a meu pai. Eu desejo o retorno dos objetos, pois eles foram feitos por fadas, e possuem grande poder. Eles nos permitem nos comunicar pela mente, como os Irmãos do Silêncio o fazem. No momento, eu sei por meio de uma fonte segura que eles estão em exibição no Instituto.
— Eu me lembro de ver algo do tipo — Izzy disse lentamente — dois anéis de fadas em uma caixa de vidro no segundo andar da biblioteca.
— Você quer que eu roube algo do Instituto? — Clary perguntou, surpresa.
De todos os favores que achou que a Rainha poderia pedir, esse não estava no topo da lista.
— Não é roubar — a Rainha corrigiu — é retornar um item para seus legítimos donos.
— E depois você vai encontrar Jace para nós? — indagou Clary. — E não diga “talvez”. O que você vai fazer exatamente?
— Eu vou ajudar a encontrá-lo. Lhe dou minha palavra de que minha ajuda seria inestimável. Posso lhe dizer, por exemplo, o motivo de todos os seus feitiços de rastreamento terem sido em vão. Posso lhe dizer em qual cidade é mais provável ele ser encontrado...
— Mas a Clave te questionou — interrompeu Simon — como você mentiu pra eles?
— Eles nunca perguntam a questão correta.
— Por que mente pra eles? — Isabelle exigiu. — Onde está a sua fidelidade nisso tudo?
— Não tenho nenhuma. Jonathan Morgenstern pode ser um poderoso aliado se eu não fizer dele, em primeiro lugar, um inimigo. Porque colocá-lo em perigo ou ganhar sua ira sem nenhum benefício para nós mesmos? As Fadas são um povo antigo; nós não tomamos decisões precipitadas, primeiro esperamos para ver em qual direção o vento sopra.
— Mas esses anéis significam o bastante para você? Se os pegarmos, você não correrá o risco de deixá-lo com raiva? — Alec perguntou.
A Rainha apenas sorriu, um sorriso preguiçoso, perfeito em promessa.
— Acho que isso é o bastante por hoje. Retornem a mim com os anéis e conversaremos de novo.
Clary hesitou, se virando para olhar Alec, e depois para Isabelle.
— Vocês estão de acordo com isso? Roubar do Instituto?
— Se isso significar encontrar Jace — Isabelle respondeu.
Alec assentiu.
— O que for preciso.
Clary se virou de volta para a Rainha, que estava observando-a com um olhar de expectativa.
— Então, eu acho que temos um acordo.
A Rainha se esticou e deu um sorriso satisfeito.
— Sucesso em sua jornada, pequenos Caçadores de Sombras. E uma palavra de aviso, apesar de não terem feito nada para merecê-la. Vocês podem muito bem considerar a sensatez dessa procura por seu amigo. Porque, muitas vezes em que algo precioso é perdido, quando você o encontra novamente, ele pode não estar exatamente como o deixou.

***

Eram quase onze horas quando Alec alcançou a porta da frente do apartamento de Magnus em Greenpoint. Isabelle o tinha persuadido a ir jantar no Taki com Clary e Simon, e embora ele tivesse protestado, ficou contente por ter ido. Havia precisado de algumas horas para estabelecer as emoções depois do que havia acontecido na Corte Seelie. Ele não queria que Magnus visse quanto o encantamento da Rainha o tinha abalado.
Ele já não tinha mais que tocar a campainha para Magnus permitir a sua subida. Tinha uma chave, um fato do qual era secretamente orgulhoso. Destrancou a porta e dirigiu-se para cima, passando pelo vizinho do primeiro andar de Magnus enquanto subia.
Embora Alec nunca tivesse visto os moradores do primeiro andar, eles pareciam estar envolvidos em um tempestuoso romance. Uma vez houve um conjunto de pertences de alguém espalhados por toda parte pelas escadas, com um bilhete anexado a uma lapela de jaqueta, destinado a: “Um mentiroso que mente”. Agora havia um buquê de flores colado na porta com um cartão dobrado entre as pétalas que dizia: “Me desculpe”. Essa era a coisa sobre Nova York: você sempre sabia mais sobre os assuntos de seus vizinhos do que queria saber.
A porta de Magnus estava ligeiramente aberta, e as notas da música tocando flutuava suavemente para o corredor. Hoje era Tchaikovsky. Alec sentiu os ombros relaxarem quando a porta do apartamento bateu atrás dele. Ele nunca conseguia ter certeza de como o lugar ia parecer – agora estava minimalista, com sofás brancos, mesas empilháveis vermelhas e inflexíveis fotos em preto e branco de Paris nas paredes – mas tinha começado a parecer cada vez mais familiar, como estar em casa. Cheirava às coisas que ele associava com Magnus: tinta, perfume, chá de Lapsang Souchong, o cheiro adocicado de magia.
Ele recolheu Presidente Miau, que estava cochilando em uma janela, e fez seu caminho para o escritório.
Magnus olhou pra cima quando Alec entrou. Ele estava vestindo o que, para Magnus, era um conjunto sombrio – jeans e camiseta preta com rebites ao redor do colarinho e dos pulsos. Seu cabelo preto estava caído, bagunçado e embaraçado, como se tivesse passado as mãos por ele várias vezes em incômodo, e seus olhos de gato estavam pesados pelo cansaço. Ele largou a caneta quando Alec apareceu, e sorriu.
— Presidente Miau gosta de você.
— Ele gosta de qualquer um que o coce atrás das orelhas — Alec respondeu, mudando de posição o gato que cochilava, então seu ronronar parecia estrondar pelo peito de Alec.
Magnus se recostou na cadeira, os músculos em seus braços flexionando quando ele bocejou. A mesa estava repleta de pedaços de papel cobertos por uma escrita pequena e apertada e alguns desenhos – o mesmo padrão em todos, variando nos esboços que tinham sido espalhados pelo chão da cobertura de onde Jace tinha desaparecido.
— Como estava a Rainha Seelie?
— O mesmo de sempre.
— Totalmente megera, então?
— Bastante.
Alec deu a Magnus a versão resumida do que tinha acontecido na Corte das fadas. Ele era bom nisso – manter as coisas concisas, nem uma palavra desperdiçada. Ele nunca entendeu as pessoas que falavam incessantemente, ou até mesmo o amor de Jace pelo jogo de palavras complicadas.
— Eu me preocupo com Clary — disse Magnus — me preocupo que ela esteja sobrecarregando a pequena cabecinha vermelha dela.
Alec colocou Presidente Miau na mesa, onde ele prontamente se enrolou em uma bola e voltou a dormir.
— Ela quer encontrar Jace. Você pode culpá-la por isso?
Os olhos de Magnus se suavizaram. Ele enganchou um dedo na alça para cinto do jeans de Alec e o puxou para mais perto.
— Você está dizendo que faria o mesmo se acontecesse comigo?
Alec virou o rosto, olhando para o papel que Magnus tinha acabado de deixar de lado.
— Você os está observando de novo?
Parecendo um pouco desapontado, Magnus largou Alec.
— Tem que haver uma chave para destrancá-los. Alguma língua pela qual ainda não procurei. Algo antigo. Isso é magia negra antiga, muito sombria, não como qualquer coisa que eu tenha visto antes — ele olhou para o papel novamente, sua cabeça inclinada para o lado — você pode me passar aquela caixa de rapé ali? A prata, na borda da mesa.
Alec seguiu a linha para onde Magnus apontou e viu uma pequena caixa prata situada no lado oposto da grande mesa de madeira. Ele se esticou e a pegou. Era como uma miniatura de baú de metal fixa em pequenos pés, com uma parte superior curvada e as iniciais W.S. destacadas em diamantes na parte de cima.
W, ele pensou, Will?
Will, Magnus tinha dito quando Alec o questionou sobre o nome pelo qual Camille tinha insultado-o. Querido Deus, isso foi há tanto tempo.
Alec mordeu o lábio.
— O que é isso?
— É uma caixa de rapé — Magnus respondeu, sem tirar os olhos dos papéis — eu te falei.
— Rapé? Como para envenenar as pessoas? — Alec encarava o objeto.
Magnus olhou pra cima e riu.
— Como tabaco. Era muito popular por volta dos séculos dezessete e dezoito. Agora, eu uso a caixa para manter bugigangas dentro.
Ele estendeu a mão e Alec entregou a caixa.
— Você já se perguntou... — Alec começou, e depois iniciou novamente — te incomoda que Camille está lá fora em algum lugar? Que ela fugiu?
Que foi por minha culpa? Alec pensou, mas não falou. Não havia necessidade de Magnus saber.
— Ela sempre esteve lá fora em algum lugar — Magnus respondeu — eu sei que a Clave não está muito satisfeita, mas estou acostumado a imaginá-la vivendo a vida dela, sem me contatar. Se isso alguma vez me incomodou, não me incomoda mais por um bom tempo.
— Mas você a amou. Uma vez.
Magnus correu os dedos pelos diamantes inseridos na caixa de rapé.
— Eu pensei que amava.
— Ela ainda te ama?
— Eu acho que não — Magnus disse secamente — ela não estava muito contente da última vez em que a vi. É claro que pode ser porque eu tenho um namorado de dezoito anos com uma runa de energia e ela não.
Alec gaguejou.
— Como pessoa que está sendo objetivada, eu... sou passivo a essa descrição de mim.
— Ela sempre foi do tipo ciumenta — Magnus sorriu.
Ele era muito bom em mudar de assunto, Alec pensou. Magnus tinha deixado claro que não gostava de falar sobre seu passado amoroso, mas em algum momento da conversa deles, o senso de Alec de familiaridade e conforto, seu sentimento de estar em casa, tinha sumido. Não importa o quão jovem Magnus parecesse – e agora mesmo, descalço, com seu cabelo bagunçado, ele parecia ter por volta de dezoito anos – intransponíveis oceanos de tempo os dividiam.
Magnus abriu a caixa, pegou algumas tachinhas e as usou para fixar o papel que esteve examinando na mesa. Quando olhou pra cima e viu a expressão de Alec, observou-o melhor.
— Você está bem?
Ao invés de responder, Alec se abaixou e pegou as mãos de Magnus. Magnus deixou Alec o levantar, um olhar interrogativo em seus olhos. Antes que ele pudesse dizer algo, Alec se aproximou e o beijou. Magnus fez um som suave e satisfeito e agarrou a parte de trás da camisa de Alec, amassando-a, seus dedos frios contra a espinha de Alec. Alec se inclinou sobre ele, prendendo Magnus entre a mesa e seu próprio corpo. Não que Magnus parecesse se importar.
— Vamos — Alec disse contra o ouvido de Magnus — está tarde. Vamos para a cama.
Magnus mordeu o lábio e olhou por cima do ombro para os papéis sobre a mesa, o olhar fixo em sílabas antigas em línguas esquecidas.
— Por que você não vai na frente? Vou me juntar a você em cinco minutos.
— Claro — Alec endireitou-se, sabendo que quando Magnus estava imerso em seus estudos, cinco minutos podiam facilmente se tornar cinco horas — te vejo lá.

***

— Shh.
Clary colocou os dedos nos lábios antes de apontar para Simon ir antes dela pela porta da frente da casa de Luke. Todas as luzes estavam apagadas, e a sala de estar estava escura e silenciosa. Ela enxotou Simon para o quarto dela e se dirigiu para a cozinha para pegar um copo de água. No meio do caminho, ela congelou.
A voz de sua mãe era audível no corredor. Clary podia ouvir a tensão nela. Assim como perder Jace estava sendo o pior pesadelo de Clary, ela sabia que sua mãe estava vivendo o pior pesadelo dela também. Saber que o filho estava vivo e solto no mundo, capaz de qualquer coisa, estava a rasgando de dentro para fora.
— Mas eles a inocentaram, Jocelyn — Clary ouviu a resposta de Luke, sua voz entrando e saindo num sussurro — não haverá nenhuma punição.
— Tudo isso é culpa minha — Jocelyn soou abafada, como se tivesse enterrado a cabeça no ombro de Luke — se eu não tivesse trazido aquela... criatura para o mundo, Clary não estaria passando por isso agora.
— Você não poderia saber...
A voz de Luke desapareceu em um murmúrio, e embora Clary soubesse que ele estava certo, teve uma breve onde de raiva contra sua mãe. Jocelyn devia ter matado Sebastian no berço antes que ele tivesse a chance de crescer e estragar a vida deles, ela pensou, e ficou imediatamente horrorizada por pensar isso.
Ela se virou e foi em direção a outra extremidade da casa, saindo em disparada para seu quarto e fechando a porta atrás dela como se estivesse sendo seguida.
Simon, que estava sentado na cama jogando seu videogame portátil, olhou para ela em surpresa.
— Está tudo bem?
Ela tentou sorrir. Simon era uma visão familiar nesse quarto – eles dormiram várias vezes na casa de Luke enquanto cresciam. Ela tinha feito o que pôde para fazer desse quarto dela, em vez de um quarto de hóspedes. Fotos dela e de Simon, os Lightwood, ela com Jace e com a família, estavam casualmente presos na moldura do espelho sobre a cômoda. Luke tinha lhe dado uma prancheta de desenho e provisões para sua arte que estavam ordenados em uma pilha de pequenos compartimentos ao lado. Havia pregado cartazes de seus animes favoritos: Fullmetal Alchemist, Rurouni Kenshin, Bleach.
Evidências de sua vida como Caçadora de Sombras estavam espalhados também – uma cópia grande de O codex dos Caçadores de Sombras com suas notas e desenhos rabiscados nas margens, uma prateleira de livros sobre ocultismo e paranormal, a estela em cima da mesa e um novo globo, presente de Luke, que mostrava Idris, demarcada em ouro, no centro da Europa.
E Simon, sentado no meio da cama, de pernas cruzadas, era uma das poucas coisas que pertenciam tanto a sua antiga vida quanto a nova. Ele a fitava com seus olhos escuros em seu rosto pálido, o brilho da Marca de Caim pouco visível na testa.
— Minha mãe — ela disse, e inclinou-se contra a porta — ela realmente não está bem.
— Ela não está aliviada? Digo, por você estar inocentada?
— Ela não consegue parar de pensar em Sebastian. Não consegue parar de se culpar.
— Não foi culpa dela o jeito que ele se tornou. Foi culpa de Valentim.
Clary não disse nada. Ela estava recordando a coisa terrível que tinha pensado, que sua mãe devia ter matado Sebastian quando ele tinha nascido.
— Vocês duas se culpam por coisas que não é culpa de vocês. Você se culpa por ter deixado Jace na cobertura...
Ela virou a cabeça e olhou bruscamente para ele. Não estava ciente de que alguma vez se culpou por isso, mas ela tinha se culpado.
— Eu nunca...
— Você se culpa. Mas eu o deixei, Izzy o deixou, Alec o deixou – e Alec é o parabatai dele. Não tinha jeito de sabermos. E poderia ser pior se você ficasse.
— Talvez.
Clary não queria falar sobre isso. Evitando o olhar de Simon, ela entrou no banheiro para escovar os dentes e colocar seu pijama felpudo. Evitou se olhar no espelho. Ela odiava quão pálida parecia, as olheiras debaixo de seus olhos. Ela era forte; não ia desmoronar. Tinha um plano. Mesmo que fosse um pouco insano, e relacionado a roubar o Instituto.
Ela escovou os dentes e estava puxando seu cabelo ondulado para trás em um rabo de cavalo quando saiu do banheiro, só para pegar Simon deslizando de volta na mochila uma garrafa que era quase com certeza de sangue que ele comprou no Taki.
Clary veio para frente e despenteou o cabelo dele.
— Você pode manter as garrafas na geladeira, você sabe, se você não gostar de temperatura ambiente.
— Sangue gelado é pior que em temperatura ambiente, na verdade. Quente é melhor, mas acho que sua mãe se recusaria a aquecê-lo em panelas.
— Jordan se importa? — Clary perguntou, na verdade se perguntando se Jordan ao menos ainda lembrava que Simon morava com ele.
Simon esteve na casa dela todas noites durante a semana anterior. Nos primeiros dias depois de Jace ter desaparecido, ela não tinha conseguido dormir. Empilhou cinco cobertores sobre si mesma, mas foi incapaz de se aquecer. Tremendo, ela ficava acordada, imaginando suas veias vagarosas com sangue congelado, cristais de gelo tecendo uma rede de corais brilhando líquido pelo coração dela. Seus sonhos eram cheios de mares negros, blocos de gelos, lagos congelados e Jace, seu rosto sempre escondido pelas sombras, ou um vapor enevoado, ou seu próprio cabelo brilhante enquanto ele se afastava. Ela dormia por alguns minutos de cada vez, sempre acordando com uma sensação doentia de afogamento.
No primeiro dia em que o Conselho a interrogou, ela chegou em casa e deitou na cama.
Tinha ficado acordada até que houve uma batida na janela e Simon tinha rastejado para dentro, quase caindo no chão. Ele subiu na cama e se estendeu ao lado dela, sem dizer uma palavra. Sua pele estava gelada por ter estado do lado de fora, e ele cheirava como o ar da cidade e do inverno que se aproximava.
Ela tinha tocado seu ombro no dele, dissolvendo uma minúscula parte da tensão que prendia seu corpo como um punho cerrado. A mão dele era fria, mas familiar, como a textura de sua jaqueta de veludo contra o braço dela.
— Por quanto tempo você pode ficar? — ela tinha sussurrado na escuridão.
— O quanto você quiser
Ela se virou para encará-lo.
— Izzy não vai se importar?
— Ela que me falou que eu devia vir aqui. Disse que você não estava dormindo, e se eu ficar com você vai te fazer sentir melhor, eu posso ficar. Ou eu posso ficar apenas até você dormir.
Clary exalou em alívio.
— Fique a noite toda. Por favor.
Ele tinha ficado. Naquela noite, ela não teve sonhos ruins.
Enquanto Simon estava lá, seu sono era sem sonhos e vazio, um oceano escuro de nada. Um estado de esquecimento indolor.
— Jordan na verdade não se importa com sangue — Simon disse agora — a coisa toda é sobre eu estar confortável com o que eu sou. Entrar em contato com seu vampiro interior, blá, blá.
Clary deslizou para perto dele na cama e abraçou um travesseiro.
— Seu vampiro interior é diferente do seu... Vampiro exterior?
— Definitivamente. Ele quer que eu vista camisa acima do umbigo e um chapéu fedora. Estou lutando contra isso.
Clary sorriu levemente.
— Então seu vampiro interior é Magnus?
— Espere, isso me lembra...
Simon cavou em sua mochila e exibiu dois volumes de mangá. Ele os agitou triunfantemente antes de entregá-los a Clary.
— Magical love gentleman, volume quinze e dezesseis — ele disse —esgotados em todos os lugares, menos em Midtown Comics.
Ela os apanhou, olhando para a capa colorida de trás para frente. Em outra época, ela teria agitado seus braços em alegria de fã; agora, tudo o que podia fazer, era sorrir para Simon e agradecê-lo. Ele tinha feito aquilo por ela, lembrou a si mesma, o gesto de um bom amigo. Mesmo que ela não pudesse nem sequer se imaginar se distraindo com a leitura agora.
— Você é incrível — ela falou, batendo nele com o ombro.
Ela se deitou contra os travesseiros, os mangás equilibrados em seu colo.
— E obrigada por ter ido comigo a Corte Seelie. Sei que isso traz à tona memórias ruins pra você, mas... eu sempre fico melhor quando você está lá.
— Você fez bem. Lidou com a Rainha como um profissional.
Simon se deitou perto dela, os ombros deles se tocando, ambos olhando para o teto, as rachaduras familiares, o velho brilho no escuro parecido com estrelas que já não lançavam mais luz.
— Então você vai fazer aquilo? Roubar os anéis para a Rainha?
— Sim — ela soltou a respiração presa — amanhã. Há uma reunião local da Clave ao meio-dia. Todos vão estar lá. Então eu vou em seguida.
— Eu não gosto disso, Clary.
Ela sentiu seu corpo retesou.
— Não gosta do quê?
— Você tendo qualquer coisa com fadas. Fadas são mentirosas.
— Elas não podem mentir.
— Você sabe o que quis dizer. “Fadas são ludibriadoras”, mesmo que soe ridículo.
Ela virou a cabeça e olhou pra ele, seu queixo contra a clavícula dele. O braço de Simon surgiu automaticamente e circulou os ombros dela, a puxando contra ele. O corpo dele estava frio, a camisa ainda úmida da chuva. Seu cabelo normalmente liso tinha secado em cachos pelo vento.
— Acredite, eu não gosto de me misturar com a Corte. Mas eu faria isso por você. E você faria isso por mim, não faria?
— É claro que eu faria. Mas ainda é uma má ideia — ele virou a cabeça e olhou para ela — eu sei como você se sente. Quando meu pai morreu...
O corpo dela se retesou.
— Jace não está morto.
— Eu sei. Eu não estava falando isso. É só que... você não precisa dizer que fica melhor quando estou aqui. Eu sempre estou com você. A tristeza te faz se sentir sozinha, mas você não está. Sei que você não acredita em... em religião... do mesmo jeito que eu, mas você pode acreditar que está cercada por pessoas que te amam, não pode?
Seus olhos estavam arregalados, esperançosos. Era o mesmo castanho escuro, mas diferente agora, como se outra camada tivesse sido adicionada a sua cor, do mesmo jeito que sua pele parecia sem poros e translúcida ao mesmo tempo.
Eu acredito nisso, ela pensou, só não tenho certeza que isso importe. Ela bateu o ombro suavemente contra o dele novamente.
— Então, você se importa se eu te perguntar algo? É pessoal, mas importante.
Uma nota de cautela rastejou em sua voz.
— O que é?
— Com toda a coisa da Marca de Caim, significa que se eu te chutar acidentalmente durante a noite, eu vou ser chutada nas canelas sete vezes por uma força invisível?
Ela o sentiu rir.
— Vai dormir, Fray.

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