Capítulo 2 - O Caçador da Lua
Maia nunca tinha confiado em garotos bonitos, o que era o motivo de ela ter odiado Jace Wayland na primeira vez que pousou os olhos nele.
Seu irmão gêmeo, Daniel, tinha nascido com a pele cor de mel de sua mãe e grandes olhos escuros, e tinha se tornado o tipo de pessoa que colocava fogo nas asas das borboletas para olhá-las queimarem e morrerem. Ele tinha atormentado-a também, primeiro em pequenas e mesquinhas maneiras, beliscando-a onde não apareceriam os machucados, trocando o xampu de sua embalagem por água sanitária. Ela tinha ido a seus pais, mas eles não acreditavam nela. Ninguém acreditava, olhando para Daniel; eles eram confundidos pela sua beleza com inocência e pureza.
Quando ele quebrou seu braço na oitava série, ela fugiu de casa, mas seus pais a trouxeram de volta. No ensino médio, Daniel foi atropelado em uma rua por um motorista e foi morto instantaneamente. Em pé ao lado de seus pais na sepultura, Maia tinha ficado envergonhada pela sensação esmagadora de alívio. Deus, ela pensou, certamente a puniria por estar feliz que seu irmão estivesse morto.
No próximo ano, Ele o fez. Maia conheceu Jordan. Cabelos longos escuros, quadris delgados usando jeans, um garoto indie com camisas de bandas de rock e cílios como os de uma garota. Nunca imaginou que ele se interessaria por ela – o tipo dele geralmente preferia as garotas pálidas, pálidas com óculos alternativos – mas ele pareceu gostar de sua forma curvilínea. Disse que ela era bonita, entre beijos. Os primeiros meses foram como um sonho; os últimos meses como um pesadelo. Ele se tornou possessivo, controlador. Quando estava com raiva dela, rosnava e batia as costas de sua mão em sua bochecha, deixando uma marca como um blush muito forte. Quando tentou terminar com ele, ele a empurrou, jogando-a abaixo em seu próprio jardim, antes que ela pudesse correr para dentro e fechar a porta.
Depois, ela deixou-o ver beijando outro garoto, só para indicar que depois daquilo estava acabado. Ela sequer se lembrava mais do nome do garoto. O que lembrava era de caminhar para casa naquela noite, a chuva cobrindo seus cabelos em finas gotinhas, lama encharcando as pernas de sua calça enquanto ela tomava um atalho através do parque próximo a sua casa. Se lembrava da forma escura explodindo por trás dos balanços, o imenso corpo do lobo molhado golpeando-a para a lama, a dor selvagem enquanto suas mandíbulas fechavam abaixo em sua garganta.
Ela gritou e lutou, sentindo o gosto quente de seu próprio sangue na boca, seu cérebro gritava: Isso é impossível. Impossível. Não existem lobos em Nova Jersey, não em uma vizinhança urbana comum, não no século vinte um.
Seu choro trouxe as luzes nas casas mais próximas. Uma após a outra, as janelas se iluminaram como fósforos acesos. O lobo a deixou ir, sua mandíbula manchada com fios de sangue e carne rasgada.
Vinte e quatro horas mais tarde, ela estava de volta ao seu quarto rosa, sua mãe pairando ansiosamente. Na sala de emergência, o médico tinha dito que a mordida parecia como a de um cachorro grande, mas Maia sabia bem. Antes de o lobo ter se virado e corrido para longe, ela pôde ouvir uma quente voz familiar sussurrada em seu ouvido,
— Você é minha agora. Sempre será minha.
Ela nunca mais viu Jordan de novo - ele e seus pais arrumaram as malas e se mudaram do apartamento, e nenhum de seus amigos sabia para onde ele tinha ido, ou admitiam que soubessem.
Tinha ficado meio surpresa na próxima lua cheia quando as dores começaram: dores rompantes que rasgavam acima e abaixo de suas pernas, forçando-a para o chão, encurvando sua espinha do modo como um mágico poderia curvar uma colher. Quando seus dentes arrebentaram suas gengivas e chacoalharam no chão como chicletes cuspidos, ela desmaiou.
Ou pensou que tivesse.
Acordou a quilômetros de distância de sua casa, nua e coberta de sangue, a cicatriz em seu braço pulsando como uma batida de coração. Aquela noite ela saltou em um trem para Manhattan. Não foi uma decisão difícil. Era ruim o bastante ser biracial em uma vizinhança suburbana conservadora. Deus sabia o que eles fariam com um lobisomem.
Não tinha sido tão difícil encontrar uma matilha para se juntar. Havia vários deles em Manhattan. Ela entrou em um bando no centro da cidade, os que dormiam na antiga delegacia em Chinatown.
Líderes de matilha são mutáveis. O primeiro havia sido Kito, então Veronique, então Gabriel e agora Luke. Ela não gostava de Gabriel de jeito nenhum, mas Luke era melhor.
Tinha uma aparência confiável, gentis olhos azuis e não era tão bonito, então não antipatizou com ele imediatamente. Estava confortável o suficiente ali com a matilha, dormindo na velha delegacia, jogando cartas e comendo comida chinesa nas noites quando a lua não estava cheia, caçando no parque quando estava, e no dia seguinte experimentando a ressaca da mudança no Caçador da Lua, um dos melhores bares subterrâneos de lobisomens. Havia a cerveja do depósito, e ninguém nunca pedia a identidade para ver se você tinha menos de vinte um. Ser um licantropo te faz crescer rápido, tanto quanto brotavam seus cabelos e dentes uma vez por mês, mas ela era boa em beber da Lua, não importasse quão velho você é em anos mundanos.
Nesses dias, dificilmente ela pensava na família, mas quando o garoto loiro em um casaco longo preto caminhou em direção ao bar, Maia se enrijeceu totalmente. Ele não se parecia com Daniel, não exatamente – Daniel tinha o cabelo escuro e enrolado perto da nuca e a pele cor de mel, e este garoto era todo branco e ouro. Mas eles tinham o mesmo corpo esguio, o mesmo jeito de caminhar, como uma pantera a procura de uma presa, a mesma total confiança de sua própria atração. Sua mão apertou convulsivamente ao redor da haste da taça e ela lembrou a si mesma: ele está morto. Daniel está morto.
Uma precipitação de murmúrios varreu o bar com a chegada do garoto, como uma onda espalhando na popa de um barco. O garoto agiu como se não tivesse notado nada, puxando uma cadeira do bar para si com o pé e sentando nela, colocando seus cotovelos no balcão. Maia ouviu-o pedir uma dose de cerveja preta no silêncio que se seguiu aos murmúrios. Ele tomou a metade da bebida com um perfeito movimento de seu pulso. O licor era da mesma cor dourada escura dos cabelos dele. Quando ele levantou a mão para colocar o copo de volta ao balcão, Maia viu as abundantes marcas pretas em seus pulsos e nas costas de suas mãos.
Bat, o cara sentado ao lado dela – ela tinha saído com ele uma vez, mas eles eram só amigos agora – murmurou algo debaixo de sua respiração que soava como “Nephilim”.
Então era isso.
O garoto não era um lobisomem. Ele era um Caçador de Sombras, um membro da secreta força policial do misterioso mundo. Eles defendiam a Lei, apoiados pelo Pacto, e você não podia se tornar um deles: tinha que nascer assim. Sangue fazia deles o que eles eram. Havia um monte de boatos sobre eles, a maioria não lisonjeiros: eles eram arrogantes, orgulhosos, cruéis; humilhavam e desprezavam os seres do Submundo. Havia poucas coisas que um licantropo gostasse menos do que um Caçador de Sombras – exceto talvez um vampiro.
As pessoas também diziam que os Caçadores de Sombras matavam demônios. Maia se lembrou da primeira vez que tinha ouvido que demônios existiam e o que eles podiam fazer. Aquilo deu a ela uma dor de cabeça. Vampiros e lobisomens eram apenas pessoas com uma doença, aquilo ela podia entender, mas esperar que acreditasse em tudo sobre céu e merda de inferno, demônios e anjos, e ainda ninguém podia dizer a ela com certeza se havia um Deus ou não, ou para onde você ia depois de morrer?
Isso não era justo.
Ela acreditava em demônios agora – tinha visto o suficiente d o que eles faziam e não era capaz de negar isso – mas desejava que não tivesse visto.
— Eu saquei — o garoto disse, inclinando seus cotovelos sobre o balcão — que vocês não servem Balas de Prata aqui. Pega muito mal?
Seus olhos cintilaram, estreitos e brilhantes como a lua no quarto crescente.
O barman, Freaky Pete, apenas olhou para o garoto e balançou a cabeça em desgosto. Se o garoto não fosse um Caçador de Sombras, Maia apostou, Pete teria atirado o garoto fora do Lua, mas em vez disso ele apenas andou até o fim do balcão e se ocupou em polir os copos.
— Na verdade — Bat respondeu, incapaz de fica de fora de qualquer coisa — nós não servimos isso porque é realmente um cocô de cerveja.
O garoto virou seu estreito e brilhante olhar para Bat, e sorriu deliciado. A maioria das pessoas não sorria agradavelmente para Bat: Bat tinha 1,98m, uma espessa cicatriz que desfigurava metade do seu rosto onde pó de prata tinha queimado sua pele. Bat não era um dos Overnighters, a matilha que vivia na delegacia, dormindo em velhas celas. Tinha seu próprio apartamento, e até um emprego. Tinha sido um ótimo namorado até que dispensou Maia por uma ruiva que se chamava Eve e vivia em Yonkers e que tinha um negócio de quiromancia na sua garagem.
— E o que é que você está bebendo? — O garoto perguntou, se inclinando tão próximo a Bat que aquilo era quase um insulto. — Um pouco de pelo de cachorro que morde... bem, todo mundo?
— Você realmente acha que é engraçadinho.
Nessa hora, o resto do pessoal se inclinou para ouvir, prontos para se afastar se Bat decidisse dar porrada neste moleque no meio da semana.
— Não é?
— Bat — Maia chsmou.
Ela se perguntou se era o único membro da matilha no bar que duvidava da habilidade de Bat em acertar o garoto. E não era porque ela duvidava de Bat.
Era alguma coisa nos olhos do garoto.
— Não.
Bat ignorou-a.
— Não é?
— Quem sou eu para negar o óbvio? — Os olhos do garoto deslizaram sobre Maia como se ela fosse invisível e voltaram para Bat. — Eu acho que você não me diria o que aconteceu com sua cara? Isso parece como...
E agora ele se inclinou à frente e disse algo para Bat tão baixo que Maia não escutou. A próxima coisa que ela sabia foi que Bat virou um golpe no garoto que deveria ter despedaçado a mandíbula dele, mas o garoto não estava mais lá. Estava parado em pé a um metro e meio, rindo, enquanto Bat abandonava seu copo e o enviava através do balcão para acertar a parede oposta em uma chuva de vidro estilhaçado.
Freaky Pete estava do outro lado do balcão, seu grande punho segurando a blusa de Bat, antes que Maia pudesse piscar um olho.
— Já chega — ele disse — Bat, por que você não dá uma caminhada e fica frio?
Bat se virou no aperto de Pete.
— Dar uma caminhada? Você ouviu...?
— Eu ouvi.
A voz de Pete era baixa.
— Ele é um Caçador de Sombras. Lá fora, filhote.
Bat xingou e se afastou do barman. Ele caminhou em direção à saída, seus ombros rígidos com a fúria. A porta bateu fechada atrás dele.
O garoto tinha parado de sorrir e estava olhando para Freaky Pete com um tipo de ressentimento sombrio, como se o barman tivesse levado para longe um brinquedo que ele pretendia brincar.
— Isso não era necessário. Eu cuido de mim mesmo.
Pete olhou firme o Caçador de Sombras.
— É o meu bar, eu estou preocupado com ele — ele disse finalmente — você pode querer resolver seus problemas em outro lugar, Caçador de Sombras, se não quer nenhum problema.
— Eu não disse que queria problemas — o garoto sentou de volta em sua cadeira — além do mais eu não terminei o meu drink.
Maia olhou atrás dele, onde a parede do bar estava ensopada com álcool.
— Para mim, parece que você terminou — ela falou.
Por um segundo, o garoto apenas pareceu estupefato; então uma curiosa faísca de divertimento iluminou seus olhos dourados. Ele parecia tanto com Daniel naquele momento que Maia quis se afastar.
Pete deslizou para ele outro copo do líquido âmbar através do balcão antes que o garoto pudesse responder a ela.
— Aqui está.
Seus olhos viraram para Maia. Ela pensou ter visto algum alerta neles.
— Pete... — ela começou.
Ela não chegou a terminar. A porta do bar voou aberta. Bat estava em pé na entrada. Levou um momento para Maia perceber que a frente de sua camisa e suas mangas estavam ensopadas com sangue.
Ela deslizou de sua cadeira e correu para ele.
— Bat! Você está machucado?
Seu rosto estava cinza, sua prateada cicatriz acentuada na bochecha como um pedaço de fio trançado.
— Um ataque — ele revelou — há um corpo no beco. Uma criança morta. Sangue... por todo lugar — ele balançou sua cabeça, olhando abaixo para si mesmo — não é meu sangue. Eu estou bem.
— Um corpo? Mas quem...
A resposta de Bat foi abafada pela bagunça. Cadeiras eram abandonadas enquanto matilha corria para a porta. Pete saiu detrás do caixa e foi direto entre a multidão. Apenas o garoto Caçador de Sombras permaneceu onde estava, a cabeça curvada sobre sua bebida.
Através dos buracos no meio do pessoal ao redor da porta, Maia captou um vislumbre da calçada cinza do beco, salpicada de sangue. Ela ainda estava molhada e escorrendo entre os as rachaduras no pavimento como tentáculos vermelhos de uma planta.
— A garganta dele foi cortada? — Pete estava perguntando a Bat, cuja cor tinha voltado. — Como...
— Havia alguém no beco. Alguém ajoelhado sobre ele — Bat respondeu. Sua voz estava apertada — não como uma pessoa... como uma sombra. Ele correu quando me viu. Ainda estava vivo. Um pouco. Eu me curvei até ele, mas...
Bat estremeceu. Foi um movimento casual, mas as cordas em seu pescoço estavam tão rígidas como raízes grossas envolvendo um tronco de árvore.
— Ele morreu sem dizer nada.
— Vampiros — disse uma fêmea licantropo robusta – seu nome era Amabel, Maia pensou – a que estava parada na porta.
— As Crianças da Noite. Não pode ter sido outra coisa.
Bat olhou para ela, então se virou e caminhou pelo salão em direção ao balcão. Ele agarrou o Caçador de Sombras pelas costas de sua jaqueta - ou quase o alcançou como se fosse fazer isso, mas o garoto já estava em pé, virando-se fluidamente.
— Qual é o seu problema, lobisomem?
A mão de Bat ainda estava estendida.
— Você é surdo, Nephilim? — ele grunhiu. — Tem um garoto morto no beco. Um de vocês.
— Você quer dizer um licantropo ou algum outro tipo de Ser do Submundo? — O garoto arqueou suas sobrancelhas douradas. — Vocês todos se parecem para mim.
Houve um baixo rosnar vindo de Freaky Pete, Maia notou com alguma surpresa. Ele tinha voltado para o balcão e estava cercado pelo resto da matilha, seus olhos fixados no Caçador de Sombras.
— Ele era apenas um novato. Seu nome era Joseph.
O nome não lembrou ninguém para Maia, mas ela viu o aperto rígido no queixo de Pete e sentiu um revirar em seu estômago. A matilha estava em pé de guerra agora e se o Caçador de Sombras tivesse algum juízo, ele teria recuado rapidinho. Entretanto, ele não o fez, apenas ficou de pé ali, olhando para eles com aqueles olhos dourados e aquele sorriso divertido em seu rosto.
— Um garoto licantropo?
— Ele era um da matilha — Pete respondeu — tinha só quinze anos.
— E o que exatamente vocês esperam que eu faça a respeito disso? — O garoto perguntou.
Pete olhou para ele incredulamente.
— Você é um Nephilim — falou — a Clave nos deve proteção nestas circunstâncias.
O garoto olhou lentamente em torno do balcão, com um tipo de olhar de insolência que espalhou um rubor no rosto de Pete.
— Eu não vejo nada que você tenha que proteger aqui — disse o garoto — exceto uma decoração ruim e um possível problema com mofo. Mas você pode geralmente limpar isso com água sanitária.
— Tem um corpo morto lá fora na porta da frente desse bar — Bat lembrou, pronunciando cuidadosamente — você não acha...
— Eu acho que é um pouco tarde demais para ele precisar de proteção — o garoto replicou — se ele está morto.
Pete ainda o encarava. Suas orelhas tinham levantado apontadas, e quando ele falou, sua voz estava baixa:
— Você precisa ter cuidado. Você precisa ter muito cuidado.
O garoto olhou para ele com os olhos opacos.
— Eu preciso?
— Então você não vai fazer nada? — Bat indagou. — É isso?
— Eu vou terminar minha bebida — o garoto respondeu, olhando para seu copo meio vazio, ainda no balcão — se você me deixar.
— Então esta é a atitude da Clave, uma semana depois do Pacto? — Pete perguntou com desgosto. — A morte de um Ser do Submundo não é nada para você?
O garoto sorriu, e a espinha de Maia se arrepiou. Ele parecia exatamente como Daniel quando tinha acabado de ter pegado e arrancado as asas de uma joaninha.
— Como os seres do Submundo — ele respondeu — esperam que a Clave limpe a bagunça de vocês? Como se pudéssemos ser incomodados só porque algum bastardo idiota decidiu salpicar uma pintura de si mesmo por todo o seu beco...
Antes que qualquer um pudesse se mover, Bat se lançou para o Caçador de Sombras... mas o garoto tinha sumido. Bat falhou e girou ao redor, olhando. A matilha arfou profundamente.
A boca de Maia escancarou. O garoto Caçador de Sombras estava sobre o balcão, pés plantados separados. Ele realmente parecia como um anjo vingador se preparando para enviar sua justiça divina vinda do alto, como é suposto que os Caçadores de Sombras façam.
Então ele estendeu uma mão e curvou seus dedos em direção a si mesmo rapidamente, um gesto familiar para ela de brincadeiras como pega-pega – e a matilha correu para ele.
Bat e Amabel pularam por cima do balcão. O garoto deu a volta tão rapidamente que seu reflexo no espelho atrás do balcão pareceu apenas um borrão. Maia o viu chutar, e então os dois foram jogados ao chão em uma rajada de vidros estilhaçados.
Podia ouvir o garoto rindo, mesmo quando alguém veio para cima e pulou nele. O Caçador mergulhou no meio da multidão com uma fácil disposição. Em seguida, ela não pode vê-lo em lugar algum, apenas um tumulto de braços e pernas se agitando. Ainda assim, pensou que podia ouvi-lo rindo, mesmo quando o metal relampejou – a ponta de uma faca – e ela ouviu a si mesma sugando a respiração.
— Já chega.
Era a voz de Luke, quieta, constante como a batida do coração. Era estranho como você sempre sabia que era a voz do líder da matilha. Maia se virou e o viu parado a entrada do bar, uma mão contra a parede. Ele parecia não apenas cansado, mas arrasado, como se alguma coisa estivesse rasgando-o por dentro. Ainda assim sua voz era calma enquanto ele dizia de novo:
— Já chega. Deixem o garoto em paz.
A matilha se dissolveu se afastando para longe do Caçador de Sombras, deixando apenas Bat ainda de pé ali, desafiando, uma mão ainda segurando a parte de trás da camisa do Caçador de Sombras, a outra segurando uma faca curta. O garoto estava sangrando – mas dificilmente parecia com alguém que precisava de ajuda; ele estava sorrindo um riso perigoso – como os vidros quebrados que descansavam no chão.
— Ele não é um garoto — Bat disse — ele é um Caçador de Sombras.
— Eles são bem-vindos o suficiente aqui — Luke respondeu, seu tom neutro — eles são os nossos aliados.
— Ele disse que não importava — Bat respondeu com raiva — por Joseph...
— Eu sei — Luke respondeu quietamente. Seus olhos moveram-se para o garoto loiro — você veio aqui só para arrumar uma briga, Jace Wayland?
O garoto – Jace – sorriu, esticando tanto a divisão de seu lábio que um fino fio de sangue correu abaixo de seu queixo.
— Luke.
Bat parou ao ouvir o primeiro nome do líder da matilha vindo da boca do Caçador de Sombras, largando a parte de trás da camisa de Jace.
— Eu não sabia...
— Não há nada para saber — Luke interrompeu, o cansaço em seus olhos entorpecendo dentro de sua voz.
Freaky Pete falou, sua voz ressonando grave.
— Ele disse que a Clave não liga para a morte de um simples licantropo, mesmo uma criança. E isso uma semana depois do Pacto, Luke.
— Jace não fala pela Clave — Luke respondeu — e não há nada que ele possa fazer mesmo se quisesse. Estou certo?
Ele olhou para Jace, que estava muito pálido.
— Como você...
— Eu sei o que aconteceu. Com Maryse.
Jace ficou tenso, e por um momento, Maia viu através dele o Daniel – como se divertia com aqueles, era sombrio e agonizante, lembrando-a mais dos seus próprios olhos do que seu irmão.
— Quem disse a você? Clary?
— Clary, não — Maia nunca tinha ouvido Luke falar aquele nome antes, mas o tom que usou implicava que esta era alguém especial para ele, e para o garoto Caçador de Sombras também — eu sou o líder da matilha, Jace. Eu ouço coisas. Agora venha. Vamos ao escritório de Pete para conversar.
Jace hesitou por um momento antes de dar os ombros.
— Tudo bem, mas você me deve pela cerveja que eu não bebi.
***
— Aquele era o meu último palpite — Clary disse com um suspiro frustrado, mergulhando abaixo nos degraus externos do Museu Metropolitano de Arte, olhando desconsolada a Quinta Avenida.
— Esse foi um bom — Simon sentou ao lado dela, estendendo as pernas longas — quero dizer, ele é um cara que gosta de armas e de matar, então porque não a maior coleção de armas de toda a cidade? E, a propósito, eu estou sempre à disposição para uma visita a Armas e Armaduras. Me dá ideias para a minha campanha.
Ela olhou para ele com surpresa.
— Você ainda está jogando com Eric, Kirk e Matt?
— Claro. Porque eu não estaria?
— Eu pensei que os jogos perderiam alguma atração desde que você...
Desde que a nossa vida real começou a reproduzir uma de suas campanhas. Completa com mocinhos, vilões, mágica realmente asquerosa e importantes objetos encantados que você tinha que achar se quisesse vencer o jogo. Exceto que em um jogo, os mocinhos sempre venciam, derrotavam os vilões e voltavam para casa com o tesouro. Considerando que na vida real, eles perdem o tesouro, e às vezes, Clary não tinha certeza, na verdade, de quem eram os mocinhos e os vilões.
Ela olhou para Simon e sentiu uma onda de tristeza. Se ele desistisse de jogar, seria sua culpa, assim como tudo o que tinha acontecido na semana passada ter sido sua culpa. Ela lembrou da manhã, do seu rosto branco na pia, pouco antes de tê-la beijado.
— Simon... — ela começou.
— Agora mesmo eu sou um clérigo meio troll que busca vingança sobre os mineradores que mataram sua família — ele disse alegremente — é incrível.
Ela riu justo quando seu telefone tocou. Procurou dentro de seu bolso e o abriu; era Luke.
— Nós não encontramos ele — ela disse, antes que ele pudesse dizer alô.
— Não. Mas eu encontrei.
Ela sentou ereta.
— Você está brincando. Ele está aí? Eu posso falar com ele? — Ela captou um vislumbre de Simon olhando para ela severamente e então baixou a voz. — Ele está bem?
— A maior parte.
— O que você que dizer com a maior parte?
— Ele puxou briga com uma matilha de lobisomens. Ele teve alguns cortes e contusões.
Clary semicerrou os olhos. Porque, ah, porque, Jace tinha puxado briga com um bando de lobisomens? O que tinha possuído ele? Então de novo, foi Jace. Ele escolhia puxar uma briga com qualquer um quando estava descontrolado.
— Eu acho que você deveria vir aqui — Luke continuou — alguém tem que colocar juízo nele e eu não estou tendo muita sorte.
— Onde você está? — Clary perguntou.
Luke a respondeu. Um bar chamado Caçadores da Lua na Rua Hester. Ela se perguntou se aquilo era encantado. Fechando seu telefone, se virou para Simon, que estava encarando-a com as sobrancelhas levantadas.
— O pródigo retornou?
— Mais ou menos.
Clary se levantou e alongou suas pernas cansadas, mentalmente calculando quanto tempo levaria para ir de trem até Chinatown ou ir de táxi usando o dinheiro que Luke tinha dado a ela seria mais vantajoso?
Provavelmente não, ela decidiu – se eles ficassem presos no tráfego, levaria mais tempo do que indo de metrô.
— ... ir com você? — Simon terminou, em pé. Ele estava no degrau abaixo do dela, o que deixava eles quase da mesma altura. — O que você acha?
Ela abriu sua boca, então a fechou de novo rapidamente.
— É... é...
Ele soou resignado.
— Você não ouviu uma palavra do que eu disse nos últimos dois minutos, ouviu?
— Não — ela admitiu — eu estava pensando em Jace. Pareceu como se ele estivesse mal. Desculpe.
Seus olhos castanhos escureceram.
— Eu vou levar você correndo para curar as feridas dele?
— Luke me pediu para ir. Eu estava esperando que você viesse comigo.
Simon chutou o degrau abaixo com seu pé calçado.
— Eu vou, mas... por quê? Luke não pode levar Jace para o Instituto sem sua ajuda?
— Provavelmente. Mas ele acha que Jace estará disposto a falar comigo sobre o que aconteceu antes.
— Eu pensei que talvez nós pudéssemos fazer alguma coisa hoje À noite — Simon disse — algo divertido. Ver um filme. Ir jantar no centro.
Ela olhou para ele. À distância, podia ouvir a água caindo dentro de uma fonte do museu. Pensou na cozinha da casa dele, suas mãos úmidas em seu cabelo, mas aquilo tudo parecia muito distante, mesmo pensando que ela podia ver a cena – do jeito que você pode relembrar um acontecimento em uma fotografia, sem realmente se relembrar do acontecimento em si por mais tempo.
— Ele é meu irmão. Eu tenho que ir.
Simon pareceu como se estivesse muito cansado até mesmo para suspirar.
— Então eu vou com você.
***
O escritório interno do Caçador da Lua era embaixo de um estreito corredor cheio de serragem. Aqui e ali, o chão era marcado por pegadas e manchas de um líquido escuro que não se parecia com cerveja. O lugar todo cheirava a fumo e sordidez, e um pouco – Clary tinha que admitir isso, embora não tivesse dito a Luke – a cachorro molhado.
— Ele não está de muito bom humor — Luke avisou, parando em frente a porta fechada — eu o tranquei no escritório de Freaky Pete depois que ele tentou matar metade do meu bando com suas mãos. Não falou comigo desde então — Luke deu de ombros — eu pensei em você — ele olhou para as confusas caras de Clary e Simon — o quê?
— Eu não posso acreditar que ele veio aqui — Clary respondeu.
— Eu não acredito que você conhece alguém chamado Freaky Pete — Simon disse.
— Eu conheço um monte de pessoas — Luke replicou — não que Freaky Pete seja estritamente pessoa, mas eu dificilmente posso falar disso.
Luke abriu a porta do escritório. Era uma sala simples, sem janelas, as paredes com flâmulas de esportes penduradas. Havia papel espalhado na mesa baixa, um pequeno móvel virado para a TV, e atrás daquilo estava Jace.
No momento em que a porta se abriu, Jace agarrou um lápis amarelo deitado sobre a mesa e o jogou. O objeto flutuou pelo ar e atingiu a parede ao lado da cabeça de Luke, onde se prendeu, vibrando. Os olhos de Luke se esbugalharam.
Jace sorriu ligeiramente.
— Desculpe, eu não percebi que era você.
Clary sentiu seu coração contrair. Não tinha visto Jace por estes dias, e ele de alguma forma parecia diferente – não apenas o rosto ensanguentado e as contusões, que eram claramente novas, mas a pele em seu rosto parecia esticada, os ossos mais proeminentes.
Luke indicou Simon e Clary com um aceno de mão.
— Eu trouxe algumas pessoas para ver você.
Os olhos de Jace se moveram para eles. Eles estavam brancos.
— Infelizmente — ele disse — eu tinha só um lápis.
— Jace... — Luke começou.
— Eu não quero ele aqui — Jace moveu seu queixo em direção a Simon.
— Isso não é justo — Clary estava indignada.
Ele tinha esquecido que Simon foi quem salvou a vida de Alec, possivelmente todas as suas vidas?
— Fora, mundano — Jace comandou, apontando para a porta.
Simon acenou com a mão.
— Tudo bem. Eu vou esperar no corredor.
Ele saiu, deixando a porta bater atrás dele, embora Clary pudesse dizer que era o que ele queria.
Ela se virou para Jace.
— Você tem que ser tão... — ela começou, mas parou quando viu seu rosto.
Parecia desgastado, estranhamente vulnerável.
— Desagradável? — Terminou para ela. — Só nos dias quando minha mãe adotiva me atira fora de casa com instruções para nunca mais obscurecer sua porta novamente. Normalmente, eu sou notavelmente bondoso. Experimente-me em qualquer mês que não termine com O.
Luke fez uma carranca.
— Maryse e Robert Lightwood não são minhas pessoas preferidas, mas não acredito que Maryse faria isso.
Jace olhou surpreso.
— Você os conhece? Os Lightwood?
— Eles estavam no Círculo comigo — Luke respondeu — fiquei surpreso quando ouvi que eles lideravam o Instituto aqui. Parece que fizeram algum tipo de acordo com a Clave depois da Revolta para assegurar-lhes algum tipo de tratamento especial, enquanto Hodge – bem, nós sabemos o que aconteceu com ele — ficou em silêncio por um momento — Maryse disse o motivo de ela estar te exilando, por assim dizer?
— Ela não acredita que eu pensava ser filho de Michael Wayland. Me acusou de estar com Valentim todo esse tempo – dizendo que eu o ajudei a fugir com o Cálice Mortal.
— Então porque você ainda ficaria aqui? — Clary perguntou. — Por que você não fugiu com ele?
— Ela não disse, mas suspeita que fiquei para ser um espião. Uma víbora em seu coração. Não que ela usasse a palavra “coração”, mas o pensamento estava lá.
— Um espião para Valentim? — Luke pareceu consternado.
— Ela pensou que Valentim assumiria que por causa de seu afeto a mim, ela e Robert iriam acreditar em qualquer coisa que eu dissesse. Então Maryse decidiu que a solução daquilo era não ter nenhuma afeição por mim.
— Afeto não funciona desse jeito — Luke balançou a cabeça — você não pode desligá-lo, como uma torneira. Especialmente se você é um pai.
— Eles não são realmente meus pais.
— Há mais parentesco do que sangue. Eles foram seus pais por sete anos de todas as maneiras que importam. Maryse apenas está machucada.
— Machucada? — Jace pareceu incrédulo. — Ela está ferida?
— Ela amava Valentim, lembre-se. Como todos nós amávamos. Ele a machucou bastante. Não quer que seu filho faça o mesmo. Se preocupa se você mentiu para eles, se todos esses anos era um ardil, um truque. Você tem que tranquilizá-la.
A expressão de Jace era uma mistura perfeita de teimosia e espanto.
— Maryse é uma adulta! Ela não precisa que eu a tranquilize.
— Ah, vamos lá Jace — Clary interferiu — você não pode esperar um comportamento perfeito de todos. Adultos também vacilam. Volte para o Instituto e fale com ela racionalmente. Seja um homem.
— Eu não quero ser um homem — Jace replicou — quero ser um adolescente fugitivo frustrado que não pode confrontar seus próprios demônios internos em vez de botá-los para fora em palavras sobre as pessoas.
— Bem, você está fazendo um trabalho fantástico.
— Jace — Clary disse precipitadamente, antes que eles pudessem começar uma briga mais séria — você tem que voltar para o Instituto. Pense em Alec e Izzy, pense no que isso irá fazer com eles.
— Maryse vai fazer alguma coisa para acalmá-los. Talvez ela vá dizer que eu fugi.
— Isso não vai funcionar — Clary discordou — Isabelle parecia fora de si ao telefone.
— Isabelle sempre parece fora de si — Jace respondeu, mas pareceu satisfeito.
Ele se inclinou atrás na cadeira. As contusões ao longo de sua mandíbula e do osso molar se destacavam como marcas escuras e disformes contra sua pele.
— Eu não vou voltar para um lugar onde não sou digno de confiança. Não tenho mais 10 anos. Posso cuidar de mim mesmo.
Luke o olhou como se não tivesse certeza sobre isso.
— Para onde você vai? Como vai viver?
Os olhos de Jace brilharam.
— Eu tenho dezessete. Praticamente um adulto. Qualquer Caçador de Sombras adulto tem o direito de...
— Qualquer adulto. Mas você não é um. Não pode receber um salário da Clave porque é jovem demais, e há o fato de que os Lightwood são obrigados pela Lei a cuidarem de você. Se eles não o fizerem, alguém será nomeado ou...
— Ou o quê? — Jace saltou da cadeira. — Eu irei para um orfanato em Idris? Ser despejado em alguma família que nunca conheci? Posso conseguir um emprego no mundo mundano por um ano, viver como um deles...
— Não, você não pode — Clary interrompeu — eu tenho que lembrar, Jace, eu fui um deles. Você é jovem demais para qualquer emprego que queira e, além disso, as habilidades que você tem – bem, a maioria dos assassinos profissionais são mais velhos que você. E eles são criminosos.
— Eu não sou um assassino.
— Se você vivesse no mundo mundano — Luke disse — isso era tudo o que você seria.
Jace enrijeceu, sua boca apertada, e Clary sabia que as palavras de Luke tinham acertado onde machucava.
— Você não entendeu — um súbito desespero em sua voz — eu não posso voltar. Maryse quer que eu diga que odeio Valentim. E não posso fazer isso.
Jace levantou seu queixo, a mandíbula apertada, seus olhos em Luke como se ele meio que esperasse que o homem mais velho respondesse com escárnio ou mesmo horror. Depois de tudo, Luke teria mais razões para odiar Valentim do que qualquer outra pessoa no mundo.
— Eu sei — Luke respondeu — eu amei-o uma vez também.
Jace exalou, quase um som de alívio, e Clary pensou de repente: Este é o motivo de ele vir aqui, para este lugar. Não apenas para começar uma briga, mas para encontrar Luke. Porque Luke iria entender. Não tudo o que Jace fazia era insano e suicida, ela lembrou a si mesma. Apenas parecida daquele jeito.
— Você não deveria exigir de si odiar a seu pai — Luke disse — nem mesmo para tranquilizar Maryse. Ela devia compreender.
Clary olhou fixamente para Jace, tentando ler sua face. Era como ler um livro em língua estrangeira que ela tinha estudado muito brevemente.
— Ela realmente te expulsou? — Clary perguntou. — Ou você apenas presumiu que foi isso que ela quis dizer, de modo que você saiu?
— Ela disse que provavelmente seria melhor se eu encontrasse outro lugar para ficar por enquanto. Ela não disse onde.
— Você vai dar uma chance a ela? — Luke perguntou. — Olha Jace, você é totalmente bem vindo para ficar comigo o quanto precisar. Quero que saiba disso.
O estômago de Clary revirou. A ideia de Jace na mesma casa em que ela vivia, sempre próximo, encheu-a com uma mistura de exultação e horror.
— Obrigado.
Sua voz era calma, mas seus olhos tinham ido instantaneamente, sem resposta, para Clary, e ela podia ver neles a mesma mistura de emoções que ela sentia. Luke, ela pensou. Às vezes eu queria que você não fosse tão generoso. Ou tão cego.
— Mas — Luke continuou — acho que você deveria pelo menos voltar ao Instituto por tempo suficiente para falar com Maryse e descobrir o que realmente está acontecendo. Parece que há mais do que ela está lhe dizendo. Mais, talvez, do que você esteja disposto a ouvir.
Jace afastou o olhar de Clary.
— Tudo bem — sua voz era rouca — mas com uma condição. Eu não quero ir sozinho.
— Eu vou com você — Clary disse rapidamente.
— Eu sei — a voz de Jace era baixa — eu quero que você vá. Mas quero que Luke venha também.
Luke pareceu assustado.
— Jace, eu tenho vivido aqui por quinze anos e nunca fui ao Instituto. Nem uma vez. Duvido que Maryse vá apreciar que eu...
— Por favor — Jace pediu, e embora sua voz fosse estável e ele falasse normalmente, Clary podia sentir, como uma coisa palpável, o orgulho que ele tinha esquecido para dizer cada palavra.
— Tudo bem — Luke acenou, o sinal que o líder da matilha utilizava para fazer o que era necessário — então eu vou com você.
***
Simon se inclinou contra a parede no corredor do lado de fora do escritório de Pete e tentou não sentir pena de si mesmo.
O dia tinha começado bem. Bastante bem, a propósito. Primeiro, tinha sido ruim por causa do filme Drácula na televisão, que o fez se sentir doente e fraco, trazendo todas as emoções, os anseios. Ele tentou afastá-los e esquecê-los. Então, de alguma maneira, o mal-estar tinha acertado a ponta de seus nervos e ele se encontrou beijando Clary da forma como queria há tantos anos. As pessoas diziam que as coisas nunca saiam da forma como você imaginava que seria. As pessoas estavam erradas. E ela o tinha beijado de volta...
Mas agora estava lá com Jace, e Simon tinha um sentimento golpeante girando em seu estômago, como se tivesse engolido uma tigela cheia de vermes. Não tinha sido daquele jeito em relação a Clary. Nunca pressionou-a, nunca empurrou seus sentimentos sobre ela. Sempre teve a certeza de que um dia ela iria acordar de seus sonhos de príncipes animados e heróis de kung fu e perceberia o que era óbvio em ambos: eles pertenciam um ao outro. E se ela não parecia que estivesse interessada em Simon, pelo menos ela não estava interessada em ninguém mais.
Até Jace. Ele se lembrou de quando estava sentado nos degraus da varanda da casa de Luke, observando Clary enquanto ela explicava para ele quem Jace era, o que ele fazia, enquanto Jace examinava suas unhas, parecendo superior. Simon mal tinha escutado. Estava muito ocupado notando como ela olhava para o garoto loiro com as estranhas tatuagens e seu rosto angular e bonito. Bonito até demais, Simon tinha pensado, mas Clary claramente não pensava assim: olhava para ele como se fosse um dos seus heróis de animações vindo à vida. Simon nunca tinha visto a amiga olhar ninguém daquele jeito antes, e sempre tinha pensado que se o fizesse, seria para ele. Mas não foi, e aquilo doeu mais do que tinha imaginado que pudesse doer.
Descobrir que Jace era o irmão de Clary foi como estar marchando em frente a um pelotão de fuzilamento e então receber uma prorrogação no último minuto. De repente, o mundo parecia cheio de possibilidades novamente.
Agora ele não tinha certeza.
— Ei, você — alguém estava vindo pelo corredor, um alguém não muito alto que estava escolhendo seu caminho entre o sangue salpicado — você está esperando para ver Luke? Ele está aí dentro?
— Não exatamente — Simon se afastou da porta — quero dizer, mais ou menos. Ele está aí com uma pessoa.
A figura, que tinha acabado de alcançá-lo, parou e o olhou. Simon podia ver que era uma garota, cerca de dezesseis anos, com uma suave pele marrom. Seu cabelo castanho dourado era trançado próximo à cabeça em dezenas de pequenas tranças, e seu rosto era quase que exatamente do formato de um coração. Ela tinha um corpo compacto e curvilíneo, quadris grandes alargados por uma cintura fina.
— Aquele cara do bar? O Caçador de Sombras?
Simon encolheu os ombros.
— Bem, eu odeio te dizer isso, mas seu amigo é um imbecil.
— Ele não é meu amigo — Simon disse — e eu não posso concordar mais com você, na verdade.
— Mas pensei que você disse...
— Eu estou esperando pela irmã dele — Simon explicou — ela é minha melhor amiga.
— E ela está lá com ele agora mesmo?
A garota indicou seu dedo em direção a porta.
Ela usava anéis em cada um de seus dedos, parecendo primitivos, martelados em bronze e ouro. Os jeans dela eram surrados, mas limpos, e quando ela virou sua cabeça, Simon viu uma cicatriz que corria ao longo de seu pescoço, um pouco acima do colarinho da sua camiseta.
— Bem — ela falou com ressentimento — eu sei um pouco sobre irmãos idiotas. Aposto que não é culpa dela.
— Não é — Simon concordou — mas ela talvez seja a única pessoa que ele escuta.
— Não me parece que ele seja o tipo que escuta — a garota ponderou, notando o seu olhar de esguelha. Diversão flutuou sobre seu rosto — você está olhando a minha cicatriz. É onde eu fui mordida.
— Mordida? Quer dizer que você é uma...
— Um lobisomem. Como todo mundo aqui. Exceto você e o idiota. E a irmã do idiota.
— Mas você não foi sempre um lobisomem. Quero dizer, você não nasceu um.
— A maioria de nós não — a garota respondeu — isso é o que nos faz diferente do seu colega Caçador de Sombras.
— O quê?
Ela sorriu rapidamente.
— Nós fomos humanos uma vez.
Simon não disse nada para isso. Após um momento, a menina estendeu sua mão.
— Eu sou Maia.
— Simon.
Apertou a mão dela. Era seca e macia. Ela olhou acima para ele através de seus cílios castanhos dourados, a cor da manteiga derretida.
— Como você sabe que Jace é um idiota? — ele perguntou. — Ou talvez eu deva dizer, como você descobriu?
Ela retirou sua mão.
— Ele quebrou o bar. Esmurrou meu amigo Bat, e até deixou alguns da matilha inconscientes.
— Eles estão bem? — Simon estava alarmado.
Jace já não parecia perturbado, mas conhecendo-o, Simon não tinha dúvida de que ele poderia matar várias pessoas em uma única manhã e sair mais tarde para um café da manhã.
— Eles podem ir a um médico?
— Um bruxo — a garota corrigiu — nós, da nossa espécie, não temos muito a fazer com os médicos mundanos.
— Seres do Submundo.
Suas sobrancelhas se elevaram.
— Alguém ensinou a você todo o linguajar, não é?
Simon ficou irritado.
— Como você sabe que eu não sou deles? Ou de vocês? Um Caçador de Sombras, um Ser do Submundo, ou...
Ela balançou sua cabeça até suas tranças se agitarem.
— É só o brilho vindo de você — ela respondeu, um pouco amargamente — sua humanidade.
A intensidade em sua voz o fez quase estremecer.
— Eu poderia bater na porta — sugeriu, sentindo subitamente deslocado. — Se você quiser falar com Luke.
Ela encolheu os ombros.
— Basta lhe dizer que Magnus está aqui, checando a cena no beco — ele deve ter parecido assustado, porque ela continuou — Magnus Bane. Ele é um bruxo.
Eu sei, Simon quis dizer, mas não o fez. Toda a conversa havia sido estranha o suficiente por agora.
— Ok.
Maia se virou com se para se afastar, mas parou na metade do caminho no fundo do corredor, uma mão sobre a batente da porta.
— Você acha que ela será capaz de falar algo sensato para ele? A irmã dele?
— Se ele ouve alguém, seria ela.
— Isso é doce — Maia disse — que ele ame sua irmã desse jeito.
— Yeah — Simon concordou — é precioso.
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