Capítulo 21 - Erguendo o Inferno
A irmã de Luke olhou para cima, seus olhos azuis tão parecidos com os de Luke fixos em Clary. Ela parecia tonta, chocada, sua expressão um pouco fora de foco como se tivesse sido drogada. Tentou ficar de pé, mas Cartwright a empurrou de volta para baixo. Sebastian começou a ir na direção deles com o Cálice na mão.
Clary tentou avançar, mas Jace a segurou pelo braço, puxando-a de volta. Ela tentou chutá-lo, mas ele já a tinha girado pelos braços, colocando a mão sobre sua boca. Sebastian estava falando com Amatis em uma voz baixa e hipnótica. Ela balançou a cabeça violentamente, mas Cartwright agarrou seu longo cabelo e puxou sua cabeça para trás. Clary a ouviu gritar, um som agudo sobre o vento.
Clary pensou na noite em que ficara acordada observando o peito de Jace subir e descer, pensando em como poderia terminar tudo com um único golpe de faca. Mas a situação ainda não tinha um rosto, uma voz, um plano. Agora que via o rosto da irmã de Luke, agora que Clary conhecia o plano, era tarde demais.
Sebastian segurava a parte o cabelo de Amatis e pressionava o Cálice contra sua boca. Quando forçou o conteúdo em sua garganta, ela teve ânsia e tossiu, o líquido preto escorrendo pelo seu queixo.
Sebastian puxou o Cálice de volta, mas já tinha feito seu trabalho. Amatis fez um som horrível entrecortado, esticando seu corpo em posição vertical. Seus olhos se arregalaram, tornando-se escuros como os de Sebastian. Ela lançou as mãos sobre o rosto, gemendo, e Clary viu com espanto que a runa da Visão estava se apagando em sua mão – tornando-se pálida – e depois desapareceu.
Amatis baixou as mãos. Sua expressão havia suavizado e seus olhos estavam azuis novamente. Eles se fixaram em Sebastian.
— Solte-a — o irmão de Clary disse a Cartwright, olhando para Amatis — deixe-a vir até mim.
Cartwright quebrou a corrente que prendia Amatis e se afastou, uma curiosa mistura de apreensão e fascínio em seu rosto.
Amatis permaneceu imóvel por um momento, com as mãos pendendo ao lado do corpo. Em seguida, se levantou e caminhou até Sebastian. Ajoelhou-se diante dele, seu cabelo arrastando-se na sujeira.
— Mestre. Como posso servi-lo?
— Levante-se — Sebastian ordenou e Amatis levantou do chão graciosamente.
Ela parecia ter uma nova maneira de se mover. Todos os Caçadores de Sombras eram hábeis, mas ela se moveu agora com uma graça silenciosa que Clary achou estranhamente arrepiante. Ela parou na frente de Sebastian.
Pela primeira vez, Clary pôde ver que, o que pensara ser um vestido longo e branco, era uma camisola, como se Amatis tivesse sido despertada e arrancada da cama. E que pesadelo seria acordar aqui, entre essas figuras encapuzadas, neste lugar sombrio e abandonado.
— Venha até mim — Sebastian acenou e Amatis deu um passo em direção a ele.
Ela era, pelo menos, uma cabeça mais baixa que Sebastian, e olhou para cima quando ele sussurrou para ela. Um sorriso frio dividiu seu rosto.
Sebastian levantou a mão.
— Gostaria de lutar com Cartwright?
Cartwright soltou a corrente que estava segurando e sua mão foi para o cinto de armas através da abertura em sua capa. Ele era um homem jovem, de cabelos claros e rosto largo com um queixo quadrado.
— Mas eu...
— Certamente uma demonstração do poder dela é desejada — Sebastian observou — vamos, Cartwright, ela é uma mulher e mais velha que você. Está com medo?
Cartwright parecia confuso, mas tirou uma longa adaga de seu cinto.
— Jonathan...
Os olhos de Sebastian brilharam.
— Lute com ele, Amatis.
Os lábios dela se curvaram.
— Eu ficaria encantada — ela respondeu e atacou.
Sua velocidade era surpreendente. Amatis saltou no ar e chutou, derrubando a adaga da mão do oponente. Clary assistiu espantada quando ela se lançou contra ele, batendo o joelho em seu estômago. Cartwright cambaleou para trás. Ela bateu com a cabeça na dele e girou para agarrá-lo com força por trás de suas vestes, lançando-o ao chão. Ele caiu aos pés dela com um barulho chocante de algo rachando e gemeu de dor.
— E isso é por ter me arrancado da cama no meio da noite — Amatis falou e passou as costas da mão sobre seu lábio que estava sangrando um pouco.
Um leve murmúrio de risos tensos soou através da multidão.
— E aí está a prova — Sebastian falou — mesmo uma Caçadora de Sombras sem nenhuma habilidade especial ou força... com todo o respeito, Amatis... pode se tornar mais forte e mais rápida do que quando possuía apenas uma aliança seráfica — ele bateu um punho na palma oposta — poder. Poder real. Quem está pronto para isso?
Houve um momento de hesitação e depois Cartwright tropeçou em seus pés, uma mão curvada sobre o estômago.
— Eu estou — falou, lançando um olhar venenoso a Amatis, que apenas sorriu.
Sebastian levantou o Cálice Infernal.
— Então, venha a frente.
Cartwright se moveu para Sebastian e, assim como ele, os outros Caçadores de Sombras quebraram a formação, seguindo para o lugar onde estava Sebastian, formando uma linha irregular. Amatis estava serenamente de pé ao seu lado, as mãos cruzadas.
Clary olhou para ela, desejando que a mulher mais velha olhasse de volta. Era a irmã de Luke. Se as coisas tivessem saído como o planejado, ela seria agora a tia-postiça de Clary.
Amatis. Clary pensou em sua pequena casa em Idris, no jeito que ela fora tão amável, que amara tanto o pai de Jace. Por favor, olhe para mim, pensou. Por favor, me mostre que você ainda é a mesma.
Como se Amatis tivesse ouvido sua oração silenciosa, ela levantou a cabeça e olhou diretamente para Clary. E sorriu. Não um sorriso gentil ou tranquilizador. Seu sorriso era escuro, frio e silenciosamente divertido. Era o sorriso de alguém que assistiria você se afogar, Clary pensou, e não moveria um dedo para ajudar. Não era o sorriso de Amatis. Não era Amatis de jeito nenhum. Amatis se fora.
Jace tinha tirado a mão de sua boca, mas Clary não sentiu nenhuma vontade de gritar. Ninguém aqui iria ajudá-la e a pessoa que estava com os braços em volta dela, aprisionando-a com seu corpo, não era Jace. Da mesma maneira que uma roupa mantém a forma do seu proprietário, mesmo que não tenha sido usada há anos, ou um travesseiro mantém o contorno da cabeça da pessoa que dormira ali, mesmo que ela tenha morrido há muito tempo, assim era ele. Uma concha vazia que ela tinha preenchido com seu amor, seus desejos e sonhos.
E ao fazer o que fez, provocou um terrível mal ao verdadeiro Jace. Em sua tentativa de salvá-lo, quase esquecera quem estava salvando. E se lembrou do que ele havia dito durante aqueles poucos momentos em que era ele mesmo. Eu odeio o pensamento de ele estar com você. Ele. Aquele outro eu. Jace sabia que eles eram duas pessoas diferentes – que ele com sua alma controlada não era a mesma pessoa.
Jace tentara se entregar para a Clave e ela não permitiu. Não deu ouvidos ao que ele queria. Ela fez a escolha por ele – em um momento de aflição e pânico, mas foi o que fez – sem pensar que o seu Jace preferiria morrer a ficar assim e que ela não estava salvando sua vida, mas sim condenando-o a uma existência que desprezava.
Se apoiou contra Jace e ele, entendendo a súbita mudança como um indicador de que ela não estava mais lutando com ele, afrouxou o aperto. O último dos Caçadores de Sombras estava na frente de Sebastian, estendendo a mão ansiosamente para o Cálice Infernal.
— Clary — Jace começou.
Ela nunca descobriu o que ele teria dito. Houve um grito e o Caçador de Sombras que se aproximava do Cálice cambaleou para trás com uma flecha em sua garganta. Sem acreditar, Clary girou a cabeça e viu Alec de pé em cima do monumento de pedra, com seu traje de combate, segurando um arco. Ele sorriu de satisfação e esticou a mão por cima do ombro para pegar outra flecha.
E então, vindo de trás dele, os outros se espalharam sobre a planície. Um bando de lobisomens correndo, com suas pelagens rajadas brilhando à luz matizada. Ela imaginou que Maia e Jordan deveriam estar no meio. Atrás deles vinham caminhando os Caçadores de Sombras familiares em uma linha ininterrupta: Isabelle e Maryse Lightwood, Helen Blackthorn, Aline Penhallow e Jocelyn, com seu cabelo vermelho visível mesmo à distância. Simon estava entre eles, com o punho de uma espada de prata aparecendo sobre a curva de seu ombro, e Magnus, com um fogo azul crepitando nas mãos.
Seu coração saltou no peito.
— Estou aqui! — Ela gritou. — Estou aqui!
***
— Você pode vê-la? — Jocelyn perguntou. — Ela está lá?
Simon tentou se concentrar na escuridão à sua frente, seus sentidos de vampiro sentindo o cheiro distinto de sangue. Diferentes tipos de sangue, misturados – sangue de Caçadores de Sombras, sangue de demônio e o sangue amargo de Sebastian.
— Eu a vejo. Jace está segurando-a. Ele está mantendo-a atrás daquele alinhamento de Caçadores de Sombras.
— Se eles forem leais a Jonathan como o Círculo era a Valentim, vão formar uma parede viva para protegê-lo, e a Clary e Jace também — Jocelyn estava tomada por uma fria fúria maternal, com seus olhos verdes queimando — nós vamos ter que atravessá-la para chegar até eles.
— Faremos o que for preciso para chegar até Sebastian — Isabelle respondeu — Simon, vamos abrir caminho para você. Você vai alcançar Sebastian e atacá-lo com a Gloriosa. Uma vez que ele cair...
— Os outros provavelmente se dispersarão — Magnus completou — ou, dependendo de como estiverem ligados a Sebastian, podem morrer ou cair junto com ele. Só podemos torcer — ele gesticulou a cabeça para trás — falando em torcer, viram o tiro que Alec deu com seu arco? Esse é o meu namorado.
Ele sorriu e mexeu os dedos; brilhos azuis faiscaram neles. Ele brilhava completamente. Só Magnus, Simon pensou resignadamente, teria acesso a uma armadura de lantejoulas.
Isabelle desenrolou o chicote de seu pulso. Ele disparou na frente dela, como uma lambida de fogo dourado.
— Ok, Simon. Você está pronto?
Os ombros de Simon se retesaram. Eles ainda estavam a certa distância do alinhamento do exército oposto – ele não sabia de que outra forma chamá-los – que estava mantendo a formação, com seus trajes vermelhos e armas erguidas. Alguns estavam exclamando em voz alta, confusos. Ele não pôde conter um sorriso.
— Em nome do Anjo, Simon — Izzy falou — o que há aqui para sorrir?
— As lâminas de serafim deles não funcionam mais. Eles estão tentando descobrir o motivo. Sebastian apenas gritou para usarem outras armas — Simon explicou.
Um grito veio do alinhamento quando outra flecha foi disparada do túmulo e enterrou-se nas costas de um corpulento Caçador de Sombras vestido de vermelho, que desabou para frente. O grupo recuou e abriu um pouco, como uma rachadura em uma parede. Simon, vendo sua chance, correu para frente e os outros correram com ele.
Era como mergulhar em um oceano negro à noite, em um mar cheio de tubarões e criaturas cheias de dente violentamente colidindo umas contra as outras. Não era a primeira batalha em que Simon havia estado, mas durante a Guerra Mortal, ele fora recém-marcado com a Marca de Caim. Ela ainda nem tinha começado a agir, mas muitos demônios recuaram depois de vê-la. Ele nunca pensou que sentiria sua falta, mas agora sentia, enquanto tentava abrir caminho através do bando de Caçadores de Sombras que o atacavam com suas lâminas.
Isabelle estava ao seu lado e Magnus de outro, protegendo-o – protegendo a Gloriosa. O chicote de Isabelle atacava forte e certeiro, e as mãos de Magnus cuspiam fogo, vermelho, verde e azul. Explosões de fogo colorido atingiam os Nephilins obscuros, queimando-os onde estavam. Outros Caçadores de Sombras gritaram quando os lobos de Luke os alcançaram, arranhando, mordendo e pulando em suas gargantas.
Uma adaga lançada com uma velocidade surpreendente cortou a lateral de Simon. Ele gritou, mas continuou avançando, sabendo que a ferida fecharia em segundos. Ele acelerou para frente...
E congelou. Um rosto familiar estava diante dele. A irmã de Luke, Amatis. Quando os olhos dela o fitaram, viu o reconhecimento neles. O que ela estava fazendo aqui? Ela tinha vindo lutar ao lado deles? Mas...
Ela avançou para ele, uma adaga escura brilhando em sua mão. Ela era rápida – mas não mais rápida que seus reflexos de vampiro, se ele não estivesse surpreso demais para se mover. Amatis era irmã de Luke; ele a conhecia; e este momento de descrença poderia ter sido o seu fim se Magnus não tivesse pulado em sua frente, empurrando-o para trás. As mãos de Magnus dispararam fogo azul, mas Amatis foi mais rápida que o bruxo, também. Ela se esquivou do fogo por baixo dos braços de Magnus, e Simon viu o brilho do luar refletido na lâmina de sua adaga. Os olhos Magnus se arregalaram em choque quando a lâmina escura desceu, atravessando sua armadura. Amatis a puxou de volta, a lâmina agora manchada de sangue; Isabelle gritou quando Magnus caiu de joelhos
Simon tentou voltar para ele, mas a onda e pressão da multidão lutando estava carregando-o para longe. Ele gritou o nome de Magnus quando Amatis inclinou-se sobre o bruxo caído e levantou o punhal pela segunda vez, apontando para o coração.
***
— Me larga! — Clary gritou, se contorcendo e chutando enquanto fazia o seu melhor para se soltar do aperto de Jace.
Ela não conseguia ver quase nada além da multidão de Caçadores de Sombras vestidos de vermelho que estavam à sua frente, e Jace e Sebastian que bloqueavam sua família e amigos. Os três estavam poucos metros atrás da linha de frente da batalha; Jace a segurava com força enquanto ela lutava e Sebastian, ao lado deles, assistia o desenrolar dos acontecimentos com um olhar de fúria no rosto. Seus lábios se moviam. Ela não sabia dizer se ele estava xingando, rezando, ou entoando as palavras de um feitiço.
— Me largue, seu...
Sebastian se virou com uma expressão assustadora no rosto, algo entre um sorriso e uma careta.
— Cale-a, Jace.
Jace, ainda segurando Clary, disse:
— Nós vamos simplesmente ficar aqui parados e deixá-los nos proteger? — Ele gesticulou com o queixo em direção ao alinhamento de Caçadores de Sombras.
— Sim. Nós somos importantes demais para arriscarmos ser machucados, você e eu.
Jace balançou a cabeça.
— Eu não gosto disso. Há muitos do outro lado — ele esticou o pescoço para olhar acima da multidão — e sobre Lilith? Você pode chamá-la de novo, para nos ajudar?
— O quê, aqui? — Havia desprezo no tom de Sebastian. — Não. Além disso, ela está muito fraca agora para ser de grande ajuda. Antes, ela poderia ter esmagado um exército, mas aquele pedaço de escória de Ser do Submundo com sua Marca de Caim dispersou sua essência através do vazio entre os mundos. Foi o máximo que ela pôde fazer, aparecer e dar-nos seu sangue.
— Covarde — Clary disparou para ele — você tornou todas essas pessoas seus escravos e não vai nem mesmo lutar para protegê-los...
Sebastian levantou a mão como se quisesse bater com as costas da mão no rosto dela. Clary queria que ele o fizesse, desejou que Jace estivesse lá para ver quando acontecesse, mas ao invés disso, um sorriso surgiu na boca de Sebastian. Ele baixou a mão.
— E se Jace deixasse você ir, suponho que lutaria?
— É claro que sim...
— De que lado? — Sebastian deu um passo rápido em direção a ela, levantando o Cálice Infernal.
Ela pôde ver o que havia dentro. Embora muitos tivessem bebido, o sangue tinha permanecido no mesmo nível.
— Levante a cabeça dela, Jace."
— Não! — Ela redobrou seus esforços para fugir.
A mão de Jace deslizou sob seu queixo, mas ela pensou ter sentido hesitação em seu toque.
— Sebastian — disse ele — não...
— Agora, não há necessidade de permanecermos aqui. Nós somos os mais importantes, não estes dispensáveis. Provamos que o Cálice Infernal funciona. Isso é o que importa — ele segurou a frente do vestido de Clary — mas vai ser muito mais fácil escaparmos, sem esta aqui chutando, gritando e socando a cada passo do caminho.
— Nós podemos fazê-la beber depois...
— Não — rosnou Sebastian — segure-a bem.
Ele levantou o Cálice e o pressionou contra os lábios de Clary, tentando forçá-la a abrir a boca. Ela lutou contra, rangendo os dentes.
— Beba — Sebastian disse em um sussurro vicioso, tão baixo que ela duvidou que Jace pudesse ouvi-lo — eu disse que até o final desta noite você faria o que eu quisesse. Beba.
Seus olhos negros escureceram e ele empurrou o Cálice, cortando seu lábio inferior.
Clary sentiu o gosto do sangue enquanto estendia as mãos para trás, agarrando os ombros de Jace, usando o corpo dele como apoio para levantar as pernas e chutar para frente. Sentiu a costura de seu vestido rasgar quando seus pés atingiram solidamente as costelas de Sebastian. Ele cambaleou para trás, sem fôlego, ao mesmo tempo em que Clary jogou a cabeça para trás e ouviu o sólido crac quando seu crânio acertou o rosto de Jace. Ele gritou e afrouxou o aperto sobre ela, o suficiente escapar. Ela pulou para longe dele e mergulhou na batalha sem olhar para trás.
***
Maia correu pelo terreno rochoso, a luz das estrelas lançando brilho em sua pelagem, os aromas fortes da batalha atacando seu nariz sensível – sangue, suor e o cheiro de borracha queimada da magia negra.
A matilha havia se dispersado amplamente sobre o campo, pulando e matando com dentes e garras mortais. Maia se manteve perto de Jordan, não porque precisava de sua proteção, mas porque descobriu que lado a lado eles eram mais eficazes e lutavam melhor. Ela estivera em apenas uma batalha antes, na Planície de Brocelind, onde havia sido um turbilhão caótico de demônios e Seres do Submundo. Havia muito menos combatentes aqui em Burren, mas os Caçadores de Sombras obscuros eram formidáveis, atacando com suas espadas e adagas com uma força rápida e assustadora. Maia tinha visto um homem esguio usar um punhal de lâmina curta para decepar a cabeça de um lobo em pleno voo; que caiu no chão como um corpo humano sem cabeça, ensanguentado e irreconhecível.
Mesmo enquanto pensava nisto, um dos Nephilim vestidos de escarlate apareceu na frente deles com uma espada de dois gumes nas mãos. A lâmina estava manchada de vermelho-escuro sob o luar. Jordan rosnou ao lado de Maia, mas foi ela quem se lançou para o homem.
Ele se esquivou e atacou com a espada. Maia sentiu uma forte dor no ombro e caiu no chão sobre as quatro patas, a dor se espalhando. Houve um baque e ela soube que tinha derrubado a espada do homem. Ela rosnou em satisfação e girou, mas Jordan já estava pulando para a garganta do Nephilim... E o homem o agarrou pelo pescoço, no ar, como se estivesse agarrando um filhote rebelde.
— Escória de Ser do Submundo — ele cuspiu e, embora não fosse a primeira vez que Maia ouvia tal insulto, algo sobre o ódio gelado em seu tom a fez estremecer — você deveria ser um casaco. Eu deveria estar vestindo você.
Maia afundou os dentes em sua perna. O sangue metálico explodiu em sua boca enquanto o homem gritava de dor e cambaleava para trás, chutando-a e afrouxando o aperto sobre Jordan. Agarrou-o com força enquanto Jordan atacava novamente e desta vez o grito de raiva do Caçador de Sombras foi encurtado quando as garras do lobisomem rasgaram sua garganta.
***
Amatis dirigiu a faca na direção do coração de Magnus no momento em que uma flecha assobiou pelo ar e acertou seu ombro, jogando-a de lado com tanta força que ela deu meia-volta e caiu de cara no chão rochoso.
Ela estava gritando, um barulho que foi rapidamente abafado pela colisão das armas ao seu redor. Isabelle se ajoelhou ao lado de Magnus; Simon olhou para cima viu Alec no túmulo de pedra, de pé, congelado, o arco em suas mãos. Ele provavelmente estava muito longe para ver Magnus claramente.
Isabelle estava com as mãos sobre o peito do bruxo, mas Magnus – Magnus, que sempre foi tão alegre, tão cheio de energia – estava completamente imóvel sob os cuidados de Isabelle. Ela olhou para cima e viu Simon olhando para eles, suas mãos estavam vermelhas de sangue, mas ela sacudiu a cabeça violentamente.
— Continue! — gritou. — Encontre Sebastian!
Com um impulso, Simon se virou e mergulhou de volta na batalha.
O firme alinhamento de Caçadores de Sombras vestidos de vermelho começou a se desfazer. Os lobos estavam atacando aqui e ali, pastoreando os Caçadores de Sombras para longe um do outro. Jocelyn estava em uma luta de espadas contra um homem cujo braço livre pingava sangue – e Simon percebeu algo bizarro enquanto cambaleava para frente, forçando caminho através do tumulto: nenhum dos Nephilins vestidos de vermelho tinha tatuagens. A pele deles estava sem nenhuma decoração.
Ele percebeu – vendo pelo canto do olho, um dos Caçadores de Sombras inimigo investindo contra Aline com um bastão, apenas para ser destruído por Helen, que atacou pelo lado – que eles também eram muito mais rápidos do que qualquer Nephilim que vira antes, a não ser Jace e Sebastian. Se moviam com a rapidez dos vampiros, pensou, enquanto um deles esfaqueava um lobo que pulava, abrindo sua barriga com um golpe. O lobisomem morto caiu no chão, agora como o cadáver de um homem atarracado com cabelos claros encaracolados. Não era Maia ou Jordan. Alívio o inundou, e depois a culpa.
Avançou com dificuldade para frente, o cheiro de sangue se adensando ao seu redor, e novamente sentiu falta da Marca de Caim. Se ainda a carregasse, pensou, poderia ter destruído todos esses Nephilim inimigos ali mesmo...
Um dos Nephilim obscuros se ergueu a sua frente, balançando uma espada simples. Simon se esquivou, mas ele nem teria precisado. O homem estava no meio do movimento quando uma flecha o acertou no pescoço e ele caiu, gargarejando sangue.
A cabeça de Simon se ergueu e ele viu Alec, ainda em cima do túmulo; seu rosto era uma máscara de pedra e ele estava disparando flechas com precisão mecânica, sua mão voava para trás mecanicamente para agarrar uma flecha, a ajustava no arco e a deixar voar. Cada uma atingia um alvo, mas Alec mal parecia notar. No momento em que uma flecha estava voando, ele estendia a mão para outra. Simon ouviu outra passar assobiando por ele e acertar um corpo que se lançava para frente, fazendo com que uma seção do campo de batalha ficasse livre...
Ele congelou. Lá estava ela. Clary, uma pequena figura lutando para abrir caminho através da multidão de mãos nuas, chutando e empurrando para passar. Ela usava um vestido vermelho rasgado, seu cabelo estava emaranhado e quando o viu, um olhar de espanto incrédulo atravessou seu rosto. Seus lábios formaram o nome dele.
Logo atrás dela estava Jace. Seu rosto estava ensanguentado. A multidão se abriu quando ele atravessou, deixando-o passar. Atrás dele, na lacuna deixada pela sua passagem, Simon pôde ter um vislumbre de vermelho e prata – uma figura familiar, usando agora um cabelo branco-prateado como o de Valentim.
Sebastian. Ainda se escondendo atrás da última linha de defesa dos Caçadores de Sombras obscuros.
Ao vê-lo, Simon esticou a mão por cima do ombro e puxou Gloriosa de sua bainha. Um momento depois, uma onda no meio da multidão empurrou Clary em sua direção. Os olhos dela estavam quase pretos pela adrenalina, mas sua alegria ao vê-lo foi evidente. O alívio correu através de Simon, e ele percebeu que esteve se perguntando se ela ainda era a mesma ou se estava mudada, assim como Amatis.
— Me dê a espada — ela gritou, sua voz quase abafada pelo som estridente de metal colidindo contra metal.
Ela esticou o braço para pegá-la e nesse momento não era mais Clary sua amiga de infância, mas uma Caçadora de Sombras, um anjo vingador destinado a segurar aquela espada.
Ele a estendeu para ela, com o punho à frente.
***
A batalha parecia um redemoinho, Jocelyn pensou, cortando caminho através da multidão densa, atacando com a kindjal de Luke qualquer ponto vermelho que visse. As coisas vêm até você e se vão tão rapidamente que a única coisa que todos sentem é o senso de perigo incontrolável, a luta para se manter vivo e não se afogar.
Seus olhos se moviam freneticamente através da massa de combatentes em busca de sua filha, de um vislumbre de cabelo vermelho, ou mesmo um vislumbre de Jace, porque onde ele estivesse Clary também estaria.
Havia pedras espalhadas pela planície, como icebergs em um mar imóvel. Ela subiu com dificuldade até a borda áspera de uma, tentando obter uma visão melhor do campo de batalha, mas viu apenas corpos pressionados, o brilho das armas e as formas baixas e escuras dos lobos correndo entre os combatentes.
Ela se virou para descer da pedra... Apenas para encontrar alguém esperando por ela na parte inferior. Jocelyn se levantou abruptamente, olhando.
Ele usava vestes vermelhas e havia uma cicatriz lívida ao longo de uma de suas bochechas, uma relíquia de alguma batalha desconhecida para ela. Seu rosto estava contorcido e não era mais jovem, mas não havia como confundi-lo.
— Jeremy — ela falou devagar, com a voz quase inaudível sob o clamor da luta — Jeremy Pontmercy.
O homem que fora o membro mais jovem do Círculo olhou para ela com os olhos vermelhos.
— Jocelyn Morgenstern. Você veio para se juntar a nós?
— Juntar-me a vocês? Jeremy, não...
— Você esteve no Círculo uma vez — ele falou, dando um passo mais para perto dela. Uma adaga longa com uma ponta fina de navalha pendia de sua mão direita — você foi uma de nós. E agora nós seguimos seu filho.
— Eu me afastei de vocês quando seguiam meu marido. Por que acha que eu iria segui-los agora que meu filho os lidera?
— Ou você está conosco ou contra nós, Jocelyn — seu rosto endureceu — você não pode ficar contra seu próprio filho.
— Jonathan é o maior pecado que Valentim já cometeu. Eu nunca poderia ficar ao lado dele. No final, eu não fiquei ao lado de Valentim. Então, que esperança você tem de me convencer agora?
Ele sacudiu a cabeça.
— Você não me entendeu. Eu quis dizer que você não pode ficar contra ele. Contra nós. A Clave não pode. Não está preparada. Não para o que podemos fazer. O que estamos dispostos a fazer. Sangue vai correr nas ruas de cada cidade. O mundo vai queimar. Tudo o que você conhece será destruído. E vamos renascer das cinzas de sua derrota, como uma fênix triunfante. Esta é a sua única chance. Duvido que seu filho vá lhe dar outra.
— Jeremy — ela falou — você era tão jovem quando Valentim o recrutou. Você poderia voltar, até mesmo para a Clave. Eles seriam clementes...
— Eu nunca poderia voltar para a Clave — ele interrompeu com uma áspera satisfação — você não entende? Aqueles de nós que estão com seu filho não são mais Nephilim.
Não são mais Nephilim. Jocelyn começou a responder, mas antes que pudesse falar, o sangue explodiu da boca dele. Ele se dobrou e quando o fez, Jocelyn viu que de pé atrás dele, segurando uma espada, estava Maryse.
As duas mulheres se entreolharam por um momento sobre o corpo de Jeremy. Então Maryse se virou e caminhou de volta para a batalha.
***
No momento em que os dedos de Clary se fecharam ao redor do punho, uma luz dourada explodiu na espada. O fogo ardeu na lâmina a partir da ponta, iluminando as palavras enegrecidas esculpidas na lateral – Quis ut Deus? – e fazendo com que o punho brilhasse como se abrigasse a luz do sol. Quase a deixou cair, pensando que estivesse pegando fogo, mas as chamas pareciam contidas dentro da espada e o metal estava frio na palma de suas mãos.
Tudo depois disso pareceu acontecer muito lentamente. Ela se virou, a espada brilhando em sua mão. Seus olhos procuraram desesperadamente por Sebastian na multidão. Não podia vê-lo, mas sabia que ele estava atrás do apertado nó de Caçadores de Sombras que ela atravessara para chegar até aqui. Segurando a espada ela se voltou para eles, apenas para encontrar seu caminho bloqueado.
Por Jace.
— Clary.
Parecia impossível que ela pudesse ouvi-lo, os sons ao seu redor eram ensurdecedores: gritos e grunhidos, o barulho de metal contra metal. Mas o mar de figuras lutando pareceu ter se afastado deles de ambos os lados, como o Mar Vermelho se partindo, deixando um espaço livre em volta dela e de Jace.
A espada em chamas estava escorregadia em sua mão.
— Jace. Saia do caminho.
Ela ouviu Simon gritar alguma coisa atrás dela; Jace estava sacudindo a cabeça. Seus olhos dourados estavam duros, ilegíveis. Seu rosto estava ensanguentado; ela tinha batido a cabeça contra a maçã de seu rosto e a pele estava inchando e escurecendo.
— Me dê a espada, Clary.
— Não.
Ela sacudiu a cabeça, recuando um passo. Gloriosa iluminou o espaço no qual eles estavam, iluminou a grama pisoteada e manchada de sangue ao seu redor e iluminou Jace enquanto ele se movia para mais perto dela.
— Jace, eu posso te separar de Sebastian. Posso matá-lo sem te ferir...
O rosto dele se contorceu. Seus olhos eram da mesma cor que o fogo da espada, ou estavam apenas refletindo, ela não tinha certeza, e quando olhou para ele, percebeu que não importava. Estava vendo Jace e o falso Jace: sua lembrança dele, do belo rapaz que conhecera no começo, imprudente consigo mesmo e com os outros, aprendendo a se importar e ser cuidadoso. Lembrou-se da noite que passaram juntos em Idris, de mãos dadas sobre a cama estreita, e do garoto ensanguentado que havia olhado para ela com os olhos assombrados e confessou ser um assassino em Paris.
— Matá-lo? — O Jace-que-não-era-Jace exigiu agora. — Você perdeu o juízo?
E ela se lembrou daquela noite no Lago Lyn, Valentim atravessando a espada nele, e da maneira como sua própria vida pareceu sangrar para fora como aconteceu com ele.
Tinha-o visto morrer naquela praia em Idris. E depois, quando o trouxe de volta, ele se arrastara até ela e olhara com aqueles olhos que ardiam como a Espada, como o sangue incandescente de um anjo.
Eu estava no escuro, havia dito. Não havia nada lá além de sombras, e eu era uma sombra. E então ouvi sua voz.
Mas aquela voz foi abafada por outra, mais recente: Jace encarando Sebastian na sala de estar do apartamento de Valentim, dizendo-lhe que preferia morrer a viver assim. Ela podia ouvi-lo agora, falando para lhe entregar a espada, e que se não fizesse, ele a tomaria. Sua voz era áspera, impaciente, a voz de alguém falando com uma criança. E ela soube naquele momento que, assim como ele não era Jace, a Clary que ele amava não era ela. Isto era uma memória dela, borrada e distorcida: a imagem de alguém dócil, obediente, alguém que não entendia que o amor dado sem livre-arbítrio ou veracidade não era amor.
— Me dê a espada — a mão dele estava estendida, seu queixo levantado, seu tom autoritário — me dê, Clary.
— Você quer?
Ela levantou Gloriosa da maneira que Jace a ensinara, equilibrando seu peso, embora estivesse pesada em sua mão. A chama se tornou mais brilhante até que pareceu subir e alcançar as estrelas. Jace estava a uma distância apenas do comprimento da espada, seus olhos dourados incrédulos. Mesmo agora, ele não podia acreditar que ela pudesse machucá-lo, realmente machucá-lo. Mesmo agora.
Ela respirou profundamente.
— Pegue.
Ela viu os olhos dele brilharem do jeito que tinham feito naquele dia à beira do lago e então atravessou a espada nele, assim como Valentim o fizera. Ela entendeu agora que isto era o que deveria acontecer. Ele havia morrido desta forma e ela havia arrancado-o de volta da morte. E agora isto estava acontecendo novamente.
Você não pode enganar a morte. No final, ela terá o que lhe pertence.
Gloriosa afundou-se em seu peito e Clary sentiu a mão deslizar no punho quando a lâmina atravessou os ossos de sua caixa torácica, afundando-se nele até que a mão dela bateu contra seu corpo e ela congelou.
Jace não se moveu e ela estava pressionada contra ele agora, segurando Gloriosa enquanto o sangue começava a brotar do ferimento no peito.
Houve um grito – um som de raiva, dor e terror, o som de alguém sendo brutalmente dilacerado. Sebastian, Clary pensou. Sebastian, gritando enquanto seu vínculo com Jace é cortado.
Mas Jace... Jace não fez nenhum som. Apesar de tudo, o seu rosto estava calmo e tranquilo, o rosto de uma estátua. Ele olhou para Clary e seus olhos brilharam, como se estivesse se enchendo de luz.
E então ele começou a queimar.
***
Alec não se lembrava de ter descido do túmulo de pedra, ou forçado caminho através da planície rochosa entre a bagunça de corpos caídos: Caçadores de Sombras obscuros, lobisomens mortos e feridos. Seus olhos estavam buscando apenas uma pessoa. Ele tropeçou e quase caiu; quando olhou para cima seu olhar varreu o campo a frente e ele viu Isabelle ajoelhada ao lado de Magnus no chão de pedra.
Parecia não haver ar em seus pulmões. Ele nunca tinha visto Magnus tão pálido ou tão imóvel. Havia sangue em sua armadura de couro e no chão debaixo dele. Mas isso era impossível. Magnus tinha vivido tanto tempo. Ele era permanente. Imutável. Em nenhum mundo que a imaginação de Alec pudesse criar, Magnus morreria antes dele.
— Alec — era a voz de Izzy, nadando até ele, como se atravessasse a água — Alec, ele está respirando.
Alec deixou sua própria respiração sair em um suspiro trêmulo. Ele estendeu a mão para a irmã.
— Adaga.
Ela entregou-lhe uma em silêncio. Nunca prestara tanta atenção quanto o irmão nas aulas de primeiros socorros em campo; sempre dissera que as runas fariam o trabalho.
Alec cortou a frente da armadura de couro de Magnus e depois a camisa por baixo, os dentes cerrados. Talvez a armadura estivesse pressionando-o.
Ele removeu as laterais cautelosamente, surpreso com a firmeza de suas próprias mãos. Havia uma boa quantidade de sangue e uma larga ferida de faca no lado direito das costelas de Magnus. Mas pelo ritmo da respiração de Magnus ficou claro que seus pulmões não haviam sido perfurados. Alec arrancou seu casaco, o enrolou e pressionou contra a ferida que ainda estava sangrando.
Os olhos de Magnus se abriram.
— Ai — ele disse debilmente — pare de se debruçar em mim.
— Por Raziel — Alec respirou agradecido — você está bem — ele enfiou a mão livre por baixo da cabeça de Magnus e acariciou seu rosto ensanguentado com o polegar — pensei...
Ele olhou para cima, para sua irmã, antes de dizer qualquer coisa muito embaraçosa, mas ela tinha saído silenciosamente.
— Eu vi você cair — Alec contou calmamente. Ele se abaixou e beijou Magnus levemente na boca, não querendo machucá-lo — pensei que você estivesse morto.
Magnus deu um sorriso torto.
— O que, por causa deste arranhão? — Ele olhou para o casaco ensanguentado na mão de Alec. — Ok, um arranhão profundo. Como o de um gato muito, muito grande.
— Você está delirando?
— Não — as sobrancelhas de Magnus se juntaram — Amatis estava apontando para o meu coração, mas ela não acertou nada vital. O problema é que a perda de sangue está enfraquecendo a minha energia e minha capacidade de me curar — ele tomou uma respiração profunda, que terminou em uma tosse — aqui, me dê sua mão — ele levantou a mão e Alec entrelaçou seus dedos, com a palma de Magnus apertada contra a sua — você se lembra da noite da batalha no navio de Valentim, quando precisei de um pouco da sua força?
— Você precisa de novo agora? — Alec perguntou. — Porque pode pegá-la.
— Eu sempre preciso da sua força, Alec — Magnus respondeu e fechou os olhos enquanto seus dedos entrelaçados começaram a brilhar, como se contivessem a luz de uma estrela.
***
O fogo explodiu através do punho da espada do anjo e ao longo da lâmina. A chama percorreu o braço de Clary como um raio de eletricidade, derrubando-a no chão. O raio de calor chiou para cima e para baixo em suas veias e Clary se dobrou em agonia, abraçando a si mesma como se quisesse evitar que seu corpo explodisse em pedaços.
Jace caiu de joelhos. A espada ainda o atravessava, mas ele estava queimando agora com uma chama dourada-clara, e o fogo estava enchendo seu corpo como uma água colorida que enche um jarro de vidro transparente. A chama dourada passou por ele, deixando sua pele translúcida. Seu cabelo estava cor de bronze; seus ossos eram duros e brilhantes através de sua pele. Gloriosa estava queimando, dissolvendo-se em gotas como ouro derretido. A cabeça de Jace estava jogada para trás, seu corpo arqueado enquanto o incêndio queimava através dele.
Clary tentou se arrastar em direção a ele pelo terreno rochoso, mas o calor que irradiava de seu corpo era demais. As mãos dele agarraram seu peito e um rio de sangue dourado correu por entre os dedos. A pedra em que ele estava ajoelhado foi escurecendo, rachando, se transformando em cinzas. E então Gloriosa queimou pela última vez em uma chuva de faíscas e Jace caiu para frente, sobre as pedras.
Clary tentou se levantar, mas suas pernas fraquejaram. Ainda sentia o fogo percorrendo as veias e a dor ferroava a pele como o toque de agulhas ferventes. Ela se arrastou para frente, fazendo os dedos sangrarem e ouvindo seu vestido cerimonial rasgar, até chegar a Jace.
Ele estava deitado de lado com a cabeça apoiada em um braço e o outro braço esticado. Se curvou ao lado dele. O calor irradiava de seu corpo como se fosse uma cama de brasas morrendo, mas ela não se importava. Podia ver o rasgo na parte de trás de seu traje onde Gloriosa o atravessara. Havia cinzas das rochas queimadas misturadas com o ouro de seu cabelo, e sangue.
Movendo-se lentamente, cada movimento machucando como se ela fosse velha, como se tivesse envelhecido um ano para cada segundo em que Jace queimara, puxou-o para si até que ele ficasse com as costas apoiadas na pedra enegrecida e manchada de sangue. Olhou para seu rosto, não mais dourado, mas imóvel, e ainda assim bonito. Clary colocou a mão sobre o peito dele, onde o vermelho de seu sangue se destacava contra o vermelho mais escuro de seu traje. Ela sentira as bordas da lâmina rasparem os ossos das costelas dele. Vira o sangue escorrer por entre os seus dedos, tanto sangue que manchou o chão rochoso e as pontas douradas de seus cabelos.
Ainda não. Não, se ele possuir mais do Céu do que do Inferno.
— Jace — ela sussurrou.
Em volta deles havia o som pés correndo. O resquício do pequeno exército de Sebastian estava fugindo do Burren, soltando suas armas enquanto corriam. Ela os ignorou.
— Jace.
Ele não se moveu. Seu rosto ainda era tranquilo sob o luar. Seus cílios escureceram, lançando teias de sombras sobre o topo das maçãs do rosto.
— Por favor — ela pediu e sua voz pareceu sair arranhando de sua garganta. Quando ela respirou, seus pulmões queimaram — olhe para mim.
Clary fechou os olhos. Quando os abriu novamente, sua mãe estava ajoelhada ao seu lado, tocando seu ombro. Lágrimas escorriam pelo rosto de Jocelyn. Mas isso não estava certo – por que sua mãe estava chorando?
— Clary — sua mãe sussurrou — solte-o. Ele está morto.
À distância, Clary viu Alec ajoelhado ao lado de Magnus.
— Não — disse Clary — a espada... ela queima o que há de mal. Ele ainda pode viver.
Sua mãe passou a mão em suas costas, enroscando os dedos nos cachos sujos de Clary.
— Clary, não...
Jace, Clary pensou ferozmente, com as mãos em torno dos braços dele. Você é mais forte do que isso. Se este é você, você de verdade, vai abrir os olhos e olhar para mim.
De repente, Simon estava lá, ajoelhado do outro lado de Jace, com o rosto manchado de sangue e sujeira. Ele estendeu a mão até Clary. Ela levantou a cabeça para olhar para ele e para sua mãe, e viu Isabelle surgindo atrás deles com os olhos arregalados, movendo-se lentamente. A frente do seu traje estava manchada de sangue. Incapaz de encarar Izzy, Clary se virou, olhando para o dourado do cabelo de Jace.
— Sebastian — Clary disse, ou tentou dizer. Sua voz saiu como um grunhido — alguém deveria ir atrás dele.
E me deixar sozinha.
— Eles estão procurando por ele agora — sua mãe inclinou-se, ansiosa, com os olhos arregalados — Clary, solte-o. Clary, meu bem...
— Deixe-a — Clary ouviu Isabelle dizer bruscamente.
Ela ouviu o protesto de sua mãe, mas tudo o que eles faziam parecia estar acontecendo a uma grande distância, como se Clary estivesse assistindo a uma peça na última fila. Nada importava além de Jace. Jace em chamas. As lágrimas queimaram por trás de seus olhos.
— Jace, mas que droga — ela falou com a voz entrecortada — você não está morto.
— Clary — Simon disse gentilmente — havia apenas uma chance...
Afaste-se dele. Era isso o que Simon estava pedindo, mas ela não podia. Ela não faria isso.
— Jace — ela sussurrou. Era como um mantra, da mesma forma como ele fizera com ela em Renwick, chamando seu nome repetidamente — Jace Lightwood...
Ela congelou. Ali estava. Um movimento tão pequeno que quase não foi um movimento. A vibração de um cílio. Ela se inclinou para frente, quase se desequilibrando e pressionou a mão sobre o material escarlate rasgado sobre o peito dele, como se pudesse curar a ferida que fizera. Ao invés disso, ela sentiu – algo tão maravilhoso que por um momento não fez sentido, não podia ser – sob a ponta de seus dedos, o ritmo de seu coração.
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