Capítulo 22 - As cinzas de nossos pais

O som de uma sirene súbita e aguda cortou o ar, e Emma levou um susto, derrubando os papéis no chão. Seu coração estava acelerado.
Através das janelas abertas do quarto, ela conseguia enxergar as torres demoníacas, brilhando em dourado e vermelho. As cores da guerra.
Emma se levantou cambaleando, alcançando suas roupas de combate, que estavam em um cabide perto da cama. Tinha acabado de se vestir e estava se abaixando para amarrar as botas quando a porta de seu quarto se abriu violentamente. Era Julian. Ele derrapou até o meio do quarto antes de conseguir se aprumar. Olhou fixamente para os papéis no chão, e em seguida para Emma.
— Emma... não ouviu o anúncio?
— Eu estava cochilando — disse, enquanto prendia o arreio que mantinha Cortana às costas, enfiando a lâmina na bainha em seguida.
— A cidade está sofrendo um ataque — alertou ele. — Temos que nos dirigir ao Salão dos Acordos. Vão nos trancar lá dentro, todas as crianças, é o lugar mais seguro da cidade.
— Eu não vou — respondeu Emma.
Julian a encarou. Estava vestindo jeans, um casaco do uniforme de combate e tênis; tinha uma espada curta pendurada no cinto. Seus cachos castanho claros estavam desgrenhados.
— Como assim?
— Não quero me esconder no Salão dos Acordos. Quero lutar.
Julian passou as mãos pelos cabelos embaraçados.
— Se você lutar, eu luto — falou. — E isso quer dizer que ninguém levará Tavvy para o Salão dos Acordos, e ninguém protegerá Livvy, Ty ou Dru.
— E Helen e Aline? — perguntou Emma. — Os Penhallow...
— Helen está nos esperando. Todos os Penhallow estão no Garde, inclusive Aline. Não tem ninguém além de Helen e da gente aqui na casa — disse Julian, estendendo a mão para Emma. — Helen não pode proteger a todos nós sozinha e carregar o bebê; ela é uma só.
Ele a encarou, e Emma notou o medo nos olhos dele, o medo que Julian normalmente escondia dos mais novos.
— Emma. Você é a melhor, a melhor lutadora de todos nós. Não é só minha amiga, e eu não sou só o irmão mais velho deles. Sou o pai, ou o mais próximo disso, e eles precisam de mim, e eu de você.
A mão que estava estendida tremia. Os olhos da cor do mar estavam imensos no rosto pálido: ele não parecia pai de ninguém.
— Por favor, Emma.
Lentamente, ela esticou o braço e pegou a mão dele, entrelaçando os dedos aos dele. Emma o viu soltar uma respiração mínima de alívio, e sentiu o peito apertar. Atrás dele, pela porta aberta, podia vê-los: Tavvy e Dru, Livia e Tiberius. Responsabilidade dela.
— Vamos — disse Emma.

***

No alto da escadaria Jace soltou a mão de Clary. Ela agarrou o corrimão, tentando não tossir, apesar de seus pulmões estivessem parecendo querer rasgar o peito para sair. Ele olhou para ela – O que houve? – mas daí enrijeceu. Logo atrás, o barulho de pés correndo. Os Crepusculares estavam no encalço deles.
— Vamos — disse Jace, e começou a correr de novo.
Clary se obrigou a segui-lo. Jace parecia saber para onde estava indo, sem hesitar; ela supunha que ele estivesse utilizando o mapa mental do Garde em Alicante, penetrando o centro da torre.
Dobraram em um longo corredor, onde Jace parou, diante de um par de portas metálicas. Estavam marcadas por símbolos desconhecidos. Clary esperava símbolos de morte, que falassem de Inferno e escuridão, mas aqueles eram símbolos de tristeza e luto por um mundo destruído. Quem os teria feito ali?, se perguntou ela, e em que tipo de luto? Ela já tinha visto símbolos de luto em outras ocasiões. Caçadores de Sombras os vestiam como medalhas quando alguém que amavam morria, apesar de não fazerem nada para diminuir o sofrimento. Mas existe uma diferença entre luto por uma pessoa e luto por um mundo.
Jace virou a cabeça e beijou Clary na boca, breve e intensamente.
— Está pronta?
Ela assentiu, e ele abriu a porta e entrou. Ela o seguiu.
A sala além era tão grande quanto a sala do Conselho no Garde de Alicante, talvez maior. O teto se erguia alto acima deles, e em vez de haver uma fileiras de assentos, um piso amplo de mármore se estendia até um palanque no fim da sala. Atrás dele havia duas janelas enormes separadas. A luz do pôr do sol as atravessava, embora um deles fosse um pôr do sol dourado, e o outro, cor de sangue.
Sebastian estava ajoelhado ao centro, sob a luz dourada sangrenta. Estava marcando símbolos no chão, o círculo de sigilos sóbrios que se conectavam. Ao perceber o que seu irmão estava fazendo, Clary avançou até ele – e em seguida se esquivou com um grito enquanto a forma cinzenta enorme se ergueu diante dela.
Parecia uma larva enorme, e o único buraco naquele corpo cinza e escorregadio era a boca cheia de dentes afiados. Clary reconheceu. Já tinha visto um daqueles em Alicante, rolando o corpo sobre uma pilha de sangue, vidro e glacê. Um demônio Behemoth.
Ela alcançou a adaga, mas Jace já estava saltando para o bicho, a espada empunhada. Ele voou e aterrissou nas costas do demônio, apunhalando-o na cabeça sem olhos. Clary recuou enquanto o Behemoth se debatia, esguichando um icor pungente, um grito alto e uivante saindo da garganta aberta. Jace continuou agarrado às costas da criatura, o icor esguichando nele enquanto golpeava sem parar até o demônio sucumbir ruidosamente ao chão, com um grito gorgolejante. Jace continuou firme, montado na criatura, até o último momento. Rolou de cima do monstro e caiu de pé no chão.
Por um instante, fez-se silêncio. Jace olhou em volta como se esperando a vinda de outro demônio das sombras e um novo ataque, mas nada aconteceu, apenas o movimento de Sebastian, que havia se levantado no centro de seu círculo de símbolos agora completo.
Ele começou a bater palmas lentamente.
— Belo trabalho — falou. — Excelente despacho de demônio. Aposto que papai lhe daria uma estrelinha dourada. Agora. Vamos pular as gentilezas? Você reconhece onde estamos, não reconhece?
Os olhos de Jace percorreram o recinto, e Clary seguiu o olhar dele. A luz externa havia diminuído um pouco e agora dava para ver o palanque com mais clareza. Nele, havia dois enormes... bem, a única palavra para eles era “tronos”. Eram de marfim e ouro, com degraus dourados ao redor. Cada um tinha um encosto curvo marcado por uma única chave.
— “Sou aquele que vive e estava morto” — disse Sebastian — “e veja, estou vivo para sempre, e detenho as chaves do inferno e da morte.”
Fez um gesto de varredura em direção aos tronos, e Clary percebeu com um susto repentino que havia alguém ajoelhado ao lado do trono da esquerda, uma Caçadora de Sombras maligna com uniforme vermelho. Uma mulher de joelhos, com as mãos fechadas diante de si.
— Estas são as chaves, feitas em formato de tronos e entregues a mim pelos demônios que controlam este mundo, Lilith e Asmodeus.
Seus olhos escuros se dirigiram a Clary, e ela sentiu aquele olhar como dedos frios subindo por sua espinha.
— Não sei por que está me mostrando isso — declarou ela. — O que espera? Admiração? Não vai ter. Pode me ameaçar se quiser; sabe que não ligo. Não pode ameaçar Jace, ele tem o fogo celestial nas veias; não pode feri-lo.
— Não posso? Quem sabe quanto fogo celestial ainda resta nas veias dele depois da exibição de fogos que ele fez naquela noite? Aquela mulher-demônio o pegou de jeito, não foi, maninho? Eu sabia que você jamais suportaria saber daquilo, que matou sua própria espécie.
— Você me forçou a cometer assassinato — rebateu Jace. — Não era minha mão empunhando a faca que matou Irmã Magdalena; era a sua.
— Se prefere que seja assim — o sorriso de Sebastian ficou frio. — Independentemente, existem outros que posso ameaçar. Amatis, levante-se, e traga Jocelyn aqui.
Clary sentiu pequenas adagas de gelo nas veias; tentou impedir que o rosto demonstrasse qualquer expressão enquanto a mulher ajoelhada perto do trono se levantava. Era Amatis, de fato, com seus olhos azuis desconcertantes como os de Luke. Ela sorriu.
— Com prazer — disse, e se retirou, a bainha do longo casaco vermelho se arrastando atrás.
Jace deu um passo para a frente com um rugido desarticulado – e parou no caminho, a muitos centímetros de Sebastian. Estendeu as mãos, mas elas pareceram atingir algo transparente, uma parede invisível.
Sebastian riu.
— Como se eu fosse deixá-lo chegar perto de mim... você, com o fogo que arde em você. Uma vez foi suficiente, muito obrigado.
— Então você sabe que posso matá-lo — respondeu Jace, olhando para ele, e Clary não conseguiu evitar pensar no quanto eram parecidos, e no quanto eram diferentes: como gelo e fogo, Sebastian todo preto e branco, e Jace ardendo em vermelho e dourado. — Não pode se esconder aí para sempre. Vai morrer de fome.
Sebastian fez um gesto breve com os dedos, de um jeito que Clary já tinha visto Magnus gesticular quando fazia algum feitiço – e Jace voou para cima e então para trás, e bateu na parede atrás deles. Ela arfou quando deu meia-volta para vê-lo caído no chão, com um corte sangrando na lateral da cabeça.
Sebastian cantarolou em deleite e abaixou a mão.
— Não se preocupe — disse em tom de conversa, e voltou o olhar para Clary.  Ele vai ficar bem. Em algum momento. Se eu não mudar de ideia quanto ao que fazer com ele. Tenho certeza de que você entende, agora que viu do que sou capaz.
Clary continuou parada. Sabia o quanto era importante manter o rosto inexpressivo, não olhar para Jace em pânico, não demonstrar a Sebastian sua raiva e seu medo. No fundo do coração, ela sabia o que ele queria, melhor que ninguém; sabia como ele era, e esta era sua melhor arma.
Bem, talvez a segunda melhor.
— Eu sempre soube que você possuía poder — falou, deliberadamente sem olhar para Jace, sem analisar sua imobilidade, o rastro espesso de sangue que escorria pela lateral do rosto. Isto sempre iria acontecer; sempre seria ela encarando Sebastian e mais ninguém, nem mesmo Jace, ao seu lado.
— Poder — ecoou ele, como se fosse uma ofensa. — É assim que você chama? Aqui eu tenho mais que poder, Clary. Aqui eu posso moldar o que é real. — Ele começou a caminhar pelo círculo que havia desenhado, as mãos entrelaçadas casualmente junto às costas, como um professor dando uma palestra. — Este mundo é ligado ao mundo onde nascemos apenas pelos fios mais tênues. A estrada por Faerie é um dos fios. Estas janelas são outro. Atravesse aquela ali. — Apontou para a janela da direita, pela qual Clary via o céu crepuscular azul-escuro, e as estrelas. — E voltará a Idris. Mas não é tão simples. — Ele olhou para as estrelas lá fora. — Vim para este mundo porque era um esconderijo. E então comecei a perceber. Tenho certeza de que nosso pai disse estas palavras para você muitas vezes — falou para Jace, como se Jace pudesse ouvi-lo — mas é melhor governar no Inferno do que servir no Céu. E estou aqui para governar. Tenho meus Malignos e meus demônios. Tenho minha torre e minha cidadela. E quando as fronteiras deste mundo forem seladas, tudo aqui será minha arma. Rochas, árvores mortas, o próprio chão virá às minhas mãos e entregará a mim seu poder. E os Grandes, os antigos demônios, vão olhar para minha obra e me recompensarão. Vão me elevar em glória, e eu governarei os abismos entre os mundos e os espaços entre todas as estrelas.
— “E ele os governará com um bastão de ferro” — disse Clary, lembrando-se das palavras de Alec no Salão dos Acordos — “e a ele darei a Estrela da Manhã.”
Sebastian se virou para ela, os olhos iluminados.
— Sim! — falou. — Sim, muito bem, agora você está entendendo. Eu pensei que eu quisesse o nosso mundo, que quisesse derrotá-lo em um banho de sangue, porém quero mais que isso. Quero o legado do nome Morgenstern.
— Quer ser o demônio? — questionou Clary, meio espantada, meio apavorada. — Quer governar o Inferno? — Ela abriu as mãos. — Vá em frente, então. Nenhum de nós vai impedi-lo. Deixe-nos ir para casa, prometa que deixará nosso mundo em paz, e pode ficar com o Inferno.
— Ai de mim — disse Sebastian. — Pois descobri outra coisa que talvez me destaque de Lúcifer. Não quero governar sozinho. — Estendeu o braço, um gesto elegante, e apontou para os dois grandes tronos no palanque. — Um deles é meu. E o outro... o outro é para você.

***

As ruas de Alicante serpenteavam e se curvavam entre elas como as correntes de um oceano; se Emma não estivesse seguindo Helen, que carregava uma pedra de luz enfeitiçada em uma das mãos e o arco na outra, estaria completamente perdida.
Os resquícios do sol desapareciam do céu, e as ruas estavam escuras. Julian carregava Tavvy, o bebê agarrado ao pescoço dele; Emma segurava Dru pela mão, e os gêmeos estavam juntos, em silêncio.
Dru não era rápida e ficava tropeçando; caiu diversas vezes, e Emma tinha que ficar colocando-a de pé. Jules gritou para que Emma tivesse cuidado, e ela estava tentando ter cuidado. Não conseguia imaginar como Julian fazia, segurando Tavvy com tanto cuidado, murmurando tão reconfortantemente que o menininho sequer chorava. Dru soluçava silenciosamente; Emma limpou as lágrimas das bochechas da menina enquanto a ajudava a se levantar pela quarta vez, murmurando palavras de conforto que não faziam o menor sentido do mesmo jeito que sua mãe outrora fazia quando ela tropeçava e caía.
Emma nunca havia sentido uma saudade tão agonizante dos pais quanto agora; era como ter uma faca sob as costelas.
— Dru — começou, e em seguida o céu se acendeu em vermelho.
As torres demoníacas brilharam puramente na cor escarlate, todo o ouro de alerta desaparecido.
— Os muros da cidade se romperam — disse Helen, olhando para o Garde.
Emma sabia que ela estava pensando em Aline. O brilho vermelho das torres deixava seus cabelos claros com a cor do sangue.
— Vamos... depressa.
Emma não tinha certeza se conseguiam ir mais depressa; segurou o pulso de Drusilla com mais força e puxou a garotinha, quase a arrancando do chão, murmurando pedidos de desculpas enquanto se apressava. Os gêmeos, de mãos dadas, aceleraram, mesmo enquanto corriam por uma escadaria em direção à Praça do Anjo, liderados por Helen.
Estavam quase no topo quando Julian engasgou:
— Helen, atrás da gente!
E Emma virou e flagrou um cavaleiro fada em armadura branca se aproximando da base da escadaria. Ele trazia um arco feito de um galho curvo, e tinha cabelos longos da cor de casca de árvore.
Por um instante, os olhos dele encontraram os de Helen. A expressão em seu rosto mudou, e Emma não conseguiu evitar imaginar se ele estaria reconhecendo o Povo das Fadas em seu sangue. E então Helen ergueu o braço direito e atirou nele com a besta.
Ele girou, se esquivando. A flecha atingiu a parede atrás dele. O elfo riu, e saltou o primeiro degrau, em seguida o segundo – então gritou. Emma ficou observando, em choque, enquanto as pernas dele se curvaram; ele caiu e uivou quando sua pele entrou em contato com a borda do degrau. Pela primeira vez, Emma notou que havia saca-rolhas, pregos e outros pedaços de ferro forjado frio afixados às bordas dos degraus. O guerreiro fada recuou e Helen atirou novamente. A flecha atravessou a armadura e o perfurou no peito. Ele caiu.
— Eles deixaram tudo à prova de fadas — disse Emma, lembrando-se de ter olhado pela janela com Ty e Helen na casa dos Penhallow. — Todo o metal, o ferro. — Apontou para um prédio próximo, onde havia uma longa fileira de tesouras penduradas por cordas na borda do telhado. — Era isso que os guardas estavam fazendo...
De repente Dru gritou. Outra figura corria pela rua. Uma segunda fada guerreira, uma mulher com armadura verde-clara, empunhando um escudo de folhas sobrepostas entalhadas.
Emma sacou uma faca do cinto e atirou. Instintivamente, a fada levantou o escudo para bloquear a lâmina, que voou por cima de sua cabeça e cortou a corda que prendia um par de tesouras do telhado acima. A tesoura caiu, a lâmina para baixo, e se alojou entre os ombros da fada. Ela caiu no chão com um grito, o corpo em espasmos.
— Bom trabalho, Emma — disse Helen com a voz firme. — Vamos, todos vocês...
Ela parou e deu um grito quando três Crepusculares surgiram de uma rua lateral. Trajavam a roupa vermelha de combate que tanto aparecia nos pesadelos de Emma, tingidas por um vermelho ainda mais forte pelas torres demoníacas.
As crianças estavam silenciosas como espectros. Helen ergueu a besta e atirou uma flecha. Atingiu um dos Crepusculares no ombro, e ele girou, cambaleando, mas não caiu. Ela procurou uma flecha para recarregar o arco; Julian se esforçava para segurar Tavvy enquanto alcançava a lâmina na lateral. Emma pôs a mão em Cortana...
Um círculo giratório de luz cortou o ar e se enterrou na garganta do primeiro Crepuscular, o sangue esguichando na parede atrás. Ele levou a mão à garganta e caiu. Mais dois círculos voaram, um após o outro, e cortaram os peitos dos outros Crepusculares. Eles sucumbiram silenciosamente, mais sangue se espalhando em uma piscina sobre os paralelepípedos.
Emma girou e olhou para cima. Havia alguém no topo da escadaria: um jovem Caçador de Sombras com cabelos escuros, um chakram brilhante na mão direita. Tinha vários outros presos ao cinto de armas. Ele parecia brilhar sob a luz vermelha das torres demoníacas – uma figura esguia com roupa de combate escura de encontro ao negrume da noite, o Salão dos Acordos se erguendo como uma lua clara atrás dele.
— Irmão Zacarias? — disse Helen, impressionada.

***

— O que está acontecendo? — perguntou Magnus, com a voz rouca. Não conseguia mais sentar, e por isso estava deitado, semiapoiado nos cotovelos, no chão da cela.
Luke estava aos seus pés, o rosto pressionado contra a janela estreita. Estava com os ombros tensos, e mal tinha se mexido desde que os primeiros berros e gritos começaram.
— Luz — respondeu Luke afinal. — Tem alguma espécie de luz jorrando da torre, está afastando a bruma. Dá para ver o planalto abaixo, e alguns dos Crepusculares correndo em volta. Só não sei o que provocou isso.
Magnus riu quase silenciosamente, e sentiu gosto de metal na boca.
— Ora — falou. — Quem você acha que causou?
Luke olhou para ele.
— A Clave?
— A Clave? — respondeu Magnus. — Detesto ter que dar essa notícia, mas eles não se importam o suficiente conosco para virem até aqui.
Ele inclinou a cabeça para trás. Não se lembrava de nenhum momento no qual se sentira pior... bem, talvez não. Houve um incidente com ratos e areia movediça na virada do século.
— Sua filha, no entanto — disse ele. — Ela se importa.
Luke pareceu horrorizado.
— Clary. Não. Ela não devia estar aqui.
— Ela não vive aparecendo onde não deve? — argumentou Magnus, com um tom moderado. Pelo menos, ele pensou ter soado moderado. Era difícil saber quando se sentia tão tonto. — E o restante deles. Os companheiros constantes. Meu...
A porta se abriu. Magnus tentou sentar, não conseguiu, e caiu novamente sobre os cotovelos. Sentiu um desgosto estúpido. Caso Sebastian tivesse vindo matá-los, ele preferia morrer de pé a estar apoiado sobre os cotovelos. Ouviu vozes: Luke, exclamando, e em seguida outras vozes, e então um rosto surgiu, pairando sobre o dele, olhos como estrelas em um céu claro.
Magnus exalou – por um instante parou de se sentir doente, temeroso, moribundo, ou sequer desgostoso ou amargo. Foi varrido por uma sensação de alívio, tão profunda quanto a tristeza, e esticou o braço para tocar a bochecha do menino que se inclinava para ele. Os olhos de Alec estavam enormes, azuis e cheios de angústia.
— Ah, meu Alec — disse. — Você tem estado tão triste. Eu não sabia.

***

Enquanto abriam caminho mais para o centro da cidade, a multidão crescia: mais Nephilim, mais Crepusculares, mais guerreiros fada – apesar de as fadas estarem se movimentando como lesmas, dolorosamente, muitas enfraquecidas pelo contato com o ferro, o aço, a madeira de sorveira e o sal que tinham sido espalhados pela cidade como proteção contra elas. A força dos soldados fada era lendária, mas Emma vira muitos deles – que do contrário poderiam ter saído vitoriosos – caírem sob as espadas dos Nephilim, o sangue correndo pelas pedras brancas da Praça do Anjo.
Os Crepusculares, no entanto, não se enfraqueceram. Pareciam despreocupados com os problemas dos companheiros fada, golpeando e abrindo caminho violentamente pela Praça do Anjo repleta de Nephilim. Julian estava com Tavvy preso dentro do zíper do casaco; agora o menininho se esgoelava, os berros perdidos entre os gritos de batalha.
— Temos que parar! — gritou Julian. — Vamos acabar nos separando! Helen!
Helen estava pálida e parecia doente. Quanto mais se aproximavam do Salão dos Acordos, agora se assomando sobre eles, mais fortes ficavam os feitiços de proteção contra fadas; mesmo Helen, com sua herança parcial, estava começando a sentir. Foi o Irmão Zacarias – só Zacarias agora, Emma lembrou a si, só um Caçador de Sombras, como eles – que tomou a iniciativa de organizá-los em uma fila, os Blackthorn e os Carstairs, todos de mãos dadas.
Emma segurou no cinto de Julian, considerando que a outra mão estava apoiando Tavvy. Mesmo Ty foi obrigado a segurar a mão de Drusilla, apesar de ter feito uma careta para ela no processo, fazendo-a chorar outra vez.
Foram até o Salão, juntos, Zacarias na frente; ele tinha ficado sem lâminas para arremesso e havia sacado uma lança de lâmina longa. Varreu a multidão com a arma enquanto atravessavam, abrindo caminho de forma fria e eficiente entre os Crepusculares.
Emma estava desesperada para pegar Cortana, correr e golpear os inimigos que tinham matado seus pais, que haviam torturado e Transformado o pai de Julian, que levaram Mark para longe deles. Mas isso significaria largar Julian e Livvy, e isso ela não faria. Devia muito aos Blackthorn, principalmente a Jules, que a mantivera viva, que lhe dera Cortana quando ela pensava que fosse morrer de dor.
Finalmente chegaram aos degraus da frente do Salão e subiram atrás de Helen e Zacarias, chegando às enormes portas duplas da entrada. Havia um guarda de cada lado, um empunhando uma enorme barra de madeira. Emma reconheceu um deles: a mulher da tatuagem de carpa que às vezes falava em reuniões: Diana Wrayburn.
— Estamos prestes a fechar as portas — disse o guarda que segurava a barra de madeira. — Vocês dois: vão ter que deixá-los aí; só crianças podem entrar...
— Helen — falou Dru, com a voz trêmula.
Então a fila se desfez, com as crianças Blackthorn correndo para Helen; Julian um pouco de lado, o rosto inexpressivo e pálido, a mão livre acariciando os cachos de Tavvy.
— Tudo bem — disse Helen, com a voz embargada. — Este é o lugar mais seguro de Alicante. Vejam, tem sal e terra de cemitério por todos os lados para manter as fadas longe.
— E ferro frio sob as pedras — acrescentou Diana. — As instruções do Labirinto Espiral foram seguidas à risca.
Ao ouvir a menção sobre o Labirinto Espiral, Zacarias respirou fundo e se ajoelhou, encarando os olhos de Emma.
— Emma Cordelia Carstairs — falou.
Parecia ao mesmo tempo muito jovem, e muito velho. Tinha sangue na garganta onde uma runa desbotada se destacava, mas não era dele. Zacarias parecia examinar o rosto de Emma, mas ela não sabia por quê.
— Fique com seu parabatai — falou ele afinal, tão baixinho que mais ninguém conseguiu escutar. — Às vezes é mais corajoso não lutar. Protegê-los, e guardar a vingança para outro dia.
Emma sentiu os olhos arregalarem.
— Mas eu não tenho um parabatai... e como você...
Um dos guardas deu um berro e caiu, uma flecha vermelha enfiada no peito.
— Entrem! — gritou Diana, pegando as crianças e praticamente jogando-as para dentro do Salão.
Emma sentiu alguém lhe agarrar e lhe jogar para dentro; ela girou para dar mais uma olhada em Zacarias e em Helen, porém era tarde demais. As portas duplas já tinham se fechado atrás dela, a enorme tranca de madeira caindo no lugar com um som derradeiro ecoante.

***

— Não — disse Clary, olhando do trono apavorante para Sebastian, e novamente para o trono.
Esvazie a mente, dizia ela a si. Atenção em Sebastian, no que está acontecendo aqui, no que você pode fazer para contê-lo. Não pense em Jace.
— Você já deve saber que não vou ficar aqui. Talvez você prefira governar o Inferno a servir ao Céu, mas eu não quero nem uma coisa nem outra: só quero ir para casa e viver minha vida.
— Isso não é possível. Já fechei a entrada que a trouxe até aqui. Ninguém mais pode voltar por ela. Tudo que resta é isto, aqui — ele apontou para a janela. — E em pouco tempo isso também será fechado. Não vai ter volta para casa, não para você. Seu lugar é aqui, comigo.
— Por quê? — sussurrou ela. — Por que eu?
— Porque eu te amo — respondeu Sebastian. E pareceu... desconfortável. Tenso e esgotado, como se estivesse tentando alcançar algo intocável. — Não quero que você se machuque.
— Você não... você me machucou. Tentou...
— Não faz diferença se for eu a machucá-la — interrompeu ele. — Porque você me pertence. Eu posso fazer o que quiser com você. Mas não quero outras pessoas lhe tocando, lhe possuindo, ou machucando. Quero que você esteja por perto, para me admirar e ver o que fiz, o que conquistei. Isso é amor, não é?
— Não — respondeu Clary, com a voz suave, triste. — Não é.
Ela deu um passo em direção a ele e a bota bateu contra o campo de força invisível do círculo de símbolos. Ela não conseguia ir além.
— Se você ama alguém, quer que a pessoa o ame de volta.
Sebastian semicerrou os olhos.
— Não tente me amparar. Sei o que você pensa que é o amor, Clarissa; acho que está errada. Você vai ascender ao trono e reinar ao meu lado. Você tem um coração sombrio, e esta é uma escuridão que compartilhamos. Quando eu for tudo que existe em seu mundo, quando eu for tudo que restar, você vai me amar de volta.
— Não entendo...
— Não imagino que entenda — riu Sebastian. — Você ainda não dispõe de todas as informações necessárias. Deixe-me adivinhar, você não sabe nada sobre o que aconteceu em Alicante desde que partiu?
Uma sensação fria se espalhou pelo estômago de Clary.
— Estamos em outra dimensão — disse ela. — Não há como saber.
— Não exatamente — continuou Sebastian, com a voz cheia de satisfação, como se ela tivesse caído precisamente na armadilha que ele queria. — Veja a janela acima do trono leste. Olhe e veja Alicante agora.
Clary olhou. Quando entrou na sala, viu só o que parecia um céu noturno estrelado através da referida janela, mas agora, assim que ela se concentrou, a superfície do vidro brilhou e tremeu. De repente pensou na história da Branca de Neve, o espelho mágico, a superfície brilhando e se transformando para revelar o mundo lá fora...
Ela estava vendo o interior do Salão dos Acordos. Estava cheio de crianças. Crianças Caçadoras de Sombras sentadas e de pé, todas juntas. Lá estavam os Blackthorn, as crianças agrupadas, Julian sentado com o bebê no colo, o braço livre esticado, como se para englobar os outros e mantê-los próximos, para protegê-los. Emma estava ao lado dele, a expressão dura, a espada dourada brilhando atrás do ombro...
A cena passou para a Praça do Anjo. Ao redor do Salão dos Acordos havia uma massa de Nephilim, e lutando contra eles via-se os Crepusculares, com suas roupas vermelhas, brandindo armas – e não apenas Crepusculares, mas figuras que Clary reconhecera, com o coração apertado, como sendo guerreiros fada. Uma fada alta de cabelos com mechas azuis e verdes combatia Aline Penhallow, a qual estava na frente da mãe, a espada empunhada, pronta para lutar até a morte. Do outro lado da praça, Helen tentava abrir caminho pela multidão para chegar a Aline, porém havia gente demais. A luta a obrigava a permanecer ali bem como os corpos: corpos de guerreiros Nephilim, abatidos e morrendo, muito mais os vestidos de preto que os de vermelho. Estavam perdendo a batalha, perdendo...
Clary girou para Sebastian quando a cena começou a desbotar.
— O que está acontecendo?
— Acabou — disse ele. — Pedi que a Clave entregasse você para mim; não entregaram. É verdade que você havia fugido, mas todavia, eles deixaram de ser úteis para mim. Minhas forças invadiram a cidade. As crianças Nephilim estão escondidas no Salão dos Acordos, mas quando todos estiverem mortos, o Salão será tomado. Alicante será minha. Os Caçadores de Sombras perderam a guerra... não que tenha sido exatamente uma guerra. Achei que fossem resistir mais.
— Esses estão longe de ser todos os Caçadores de Sombras que existem — disse Clary. — São só os que estavam em Alicante. Ainda há muitos Nephilim espalhados pelo mundo...
— Todos os Caçadores de Sombras que você vê ali beberão do Cálice Infernal em breve. Aí serão meus serventes, e vou enviá-los pelo mundo, à procura de irmãos, e os que restarem serão mortos ou Transformados. Vou destruir as Irmãs de Ferro e os Irmãos do Silêncio em suas respectivas cidadelas de pedra e silêncio. Em um mês a raça de Jonathan Caçador de Sombras será varrida do mundo. E então... — Ele sorriu aquele sorriso horroroso e gesticulou para a janela a oeste, que tinha vista para o mundo destruído de Edom. — Você viu o que acontece com um mundo sem proteção — gabou-se. — Seu mundo vai morrer. Morte sobre morte, e sangue nas ruas.
Clary pensou em Magnus. Vi uma cidade toda de sangue, com torres feitas de ossos, e sangue correndo como água pelas ruas.
— Não pode achar que — disse ela, com uma voz morta — se seu plano funcionar, se isto que você está me dizendo realmente acontecer, haverá alguma chance de eu me sentar em um trono ao seu lado. Prefiro ser torturada até a morte.
— Ah, não acho — respondeu ele alegremente. — Por isso esperei, entende?! Para lhe dar uma escolha. Todos do Povo das Fadas que são meus aliados, todos os Crepusculares que você vê, aguardam pelos meus comandos. Se eu sinalizar, eles recuam. Seu mundo será salvo. Você nunca mais poderá voltar para lá, é claro... vou fechar as fronteiras entre este e aquele mundo, e nunca mais ninguém, demônio ou humano, irá viajar de um para o outro. Mas ficará seguro.
— Uma escolha — disse Clary. — Você disse que me daria uma escolha?
— Claro — respondeu ele. — Governe ao meu lado, e eu poupo seu mundo. Recuse, e ordenarei que o aniquilem. Escolha a mim e poderá salvar milhões, bilhões de vidas, minha irmã. Você poderia salvar um mundo inteiro condenando uma única alma. A sua. Então, diga-me, qual é a sua decisão?

***

— Magnus — falou Alec desesperadamente, esticando o braço para sentir as correntes de adamas enterradas no chão que se conectavam às algemas nos pulsos do feiticeiro. — Você está bem? Está machucado?
Isabelle e Simon estavam verificando Luke, para ver se estava ferido. Isabelle não parava de olhar para Alec, o rosto ansioso; Alec a ignorou propositalmente, não querendo que ela notasse o medo em seus olhos. Ele tocou o rosto de Magnus com as costas da mão.
Magnus estava magro e pálido, os lábios secos, olheiras acentuadas.
Meu Alec, dissera Magnus, você tem estado tão triste. Eu não sabia. E depois voltou para o chão, como se o esforço de falar o tivesse exaurido.
— Fique parado — falava Alec agora, sacando uma lâmina serafim do cinto.
Abriu a boca para lhe dar um nome, então sentiu um toque súbito no pulso. Magnus enrolara os dedos magros em torno do pulso de Alec.
— Chame de Raphael — disse Magnus, e quando Alec o fitou, confuso, Magnus olhou para a lâmina na mão de Alec.
Estava com os olhos semicerrados, e Alec se lembrou do que Sebastian tinha dito para Simon na entrada: Matei aquele que criou você. Magnus sorriu sutilmente.
— É um nome de anjo — falou.
Alec assentiu.
— Raphael — repetiu suavemente, e quando a lâmina se acendeu, ele golpeou com força a corrente de adamas, que partiu sob o toque da faca.
As correntes caíram, e Alec, jogando a lâmina no chão, segurou o ombro de Magnus e o ajudou a se levantar.
Magnus se esticou para Alec, mas em vez de se levantar, puxou Alec para si, a mão deslizando pelas costas do outro e se enredando em seus cabelos. Magnus o beijou, com força, estranheza e determinação, e Alec congelou por um instante, mas em seguida se entregou ao beijo, coisa que achou que jamais conseguiria fazer de novo. Alec deslizou as mãos pelos ombros de Magnus até chegar ao pescoço, onde parou, beijando até perder o fôlego.
Finalmente Magnus recuou, os olhos brilhando. Deixou a cabeça cair no ombro de Alec, os braços envolvendo-o, mantendo-os unidos.
— Alec... — começou suavemente.
— Sim? — perguntou Alec, desesperado para saber o que Magnus queria perguntar.
— Vocês estão sendo perseguidos?
— Eu... ah... alguns dos Crepusculares estão nos procurando — respondeu cautelosamente.
— Uma pena — disse Magnus, fechando os olhos novamente. — Seria bom se você pudesse simplesmente ficar aqui deitado um pouco comigo. Só... por um minutinho.
— Bem, não vai rolar — falou Isabelle, sem grosseria. — Temos que sair daqui. Os Crepusculares chegarão a qualquer instante, e já achamos o que viemos procurar...
— Jocelyn — Luke se afastou da parede, aprumando-se. — Estão se esquecendo de Jocelyn.
Isabelle abriu a boca, em seguida fechou novamente.
— Tem razão — disse.
A mão foi para o cinto de armas, e ela pegou uma espada; dando um passo pelo recinto, entregou-a a Luke, em seguida abaixou para pegar a lâmina ainda ardente de Alec.
Luke pegou a espada e a empunhou com a competência descuidada de alguém que manejara lâminas a vida inteira; às vezes era difícil para Alec recordar que Luke já tinha sido um Caçador de Sombras, mas agora ele se lembrava.
— Consegue ficar de pé? — perguntou Alec a Magnus gentilmente, e Magnus assentiu, permitindo que Alec o levantasse.
Durou quase dez segundos, até que os joelhos dele falharam e ele caiu para a frente, tossindo.
— Magnus! — exclamou Alec, e se jogou ao lado do feiticeiro, mas Magnus o descartou com um aceno e lutou para se ajoelhar.
— Vão sem mim — disse, com uma voz agravada pela rouquidão. — Vou acabar atrasando vocês.
— Não entendo — Alec sentia como se um torno estivesse comprimindo seu coração. — O que aconteceu? O que ele fez com você?
Magnus balançou a cabeça; foi Luke quem respondeu:
— Esta dimensão está matando Magnus — falou, a voz seca. — Alguma coisa nela... em relação ao pai dele... o está destruindo.
Alec olhou para Magnus, que apenas balançou a cabeça outra vez. Alec lutou contra uma explosão irracional de raiva – ainda guarda coisas, mesmo agora – e respirou fundo.
— Encontrem Jocelyn — falou. — Vou ficar com Magnus. Vamos para o centro da torre. Quando a encontrarem, procurem pela gente lá.
Isabelle não gostou.
— Alec...
— Por favor, Izzy — disse Alec, e viu Simon colocar a mão nas costas de Isabelle e sussurrar alguma coisa ao ouvido dela.
Izzy fez que sim com a cabeça, finalmente, e virou-se para a porta; Luke e Simon foram atrás, ambos pausando para olhar para Alec antes de seguirem, mas foi a imagem de Izzy que ficou na mente dele, carregando a lâmina serafim brilhante na frente do corpo, como uma estrela.
— Aqui — falou ele para Magnus o mais gentilmente possível, e esticou o braço para levantá-lo.
Magnus ficou de pé aos trancos, e Alec conseguiu colocar um dos braços longos do feiticeiro sobre seu ombro. Magnus estava mais magro que nunca; a camisa larga sobre as costelas, e as bochechas encovadas, mas mesmo assim ainda tinha muito feiticeiro para apoiar: muitos braços e pernas finas, e uma espinha longa e ossuda.
— Apoie-se em mim — disse Alec, e Magnus deu o tipo de sorriso que fez Alec sentir como se alguém tivesse lhe enfiado uma faca no coração e tentado escavar o centro.
— Sempre me apoio, Alexander — falou. — Sempre.

***

O bebê finalmente dormiu no colo de Julian. Ele segurava Tavvy com firmeza, com cuidado, e ambos apresentavam olheiras imensas. Livvy e Ty estavam abraçados um do lado do outro, Dru, encolhida contra ele do outro lado.
Emma estava sentada atrás dele, com as costas nas dele, oferecendo apoio para que ele pudesse equilibrar o peso do bebê. Não havia pilares livres nos quais se apoiar, nem paredes; havia dezenas, centenas de crianças aprisionadas no Salão.
Emma apoiou a cabeça na de Jules. Ele estava com o cheiro de sempre: sabão, suor e oceano, como se carregasse aquele odor nas veias. Era confortante e desconfortante em sua familiaridade.
— Estou ouvindo alguma coisa — disse ela. — E você?
O olhar de Julian se desviou imediatamente para os irmãos e irmãs. Livvy estava meio dormindo, o queixo apoiado na mão. Dru olhava em volta, os grandes olhos verde-azulados assimilando tudo. Ty batucava com o dedo no chão de mármore, contando obsessivamente de um a cem, e depois de cem a um. Tinha berrado e esperneado quando Julian tentara examinar um vergão no braço dele quando Ty levara um tombo. Jules deixou para lá e permitiu que Ty voltasse a contar e se balançar. Isso o acalmava ao ponto da quietude, e era o que importava.
— O que está ouvindo? — perguntou Jules, e a cabeça de Emma caiu para trás enquanto o som aumentava, um som como uma grande ventania ou os estalos de uma fogueira enorme.
As pessoas começaram a correr e a gritar, olhando para o teto de vidro no alto do Salão.
As nuvens estavam visíveis através do teto, movendo-se sobre a superfície da lua – e então, daquelas mesmas nuvens, uma variedade de cavaleiros eclodiu: cavaleiros de cavalos negros, cujos cascos eram de fogo, cavaleiros sobre enormes cachorros pretos com olhos de fogo alaranjado. Havia formas mais modernas de transporte misturadas também – carruagens pretas conduzidas por esqueletos de corcéis, e motos brilhando em cromo, osso e ônix.
— A Caçada Selvagem — sussurrou Jules.
O vento era uma coisa viva, chicoteando as nuvens em picos e vales que os cavaleiros subiam e desciam, os gritos audíveis mesmo com a ventania, as mãos cheias de armas: espadas, bastões, lanças e bestas. As portas da frente do Salão começaram a tremer e sacudir; a barra de madeira que tinha sido colocada sobre elas explodiu em farpas. Os Nephilim encararam as portas, com olhos apavorados. Emma ouviu a voz de uma das guardas em meio à multidão, falando em um sussurro severo:
— A Caçada Selvagem está afastando nossos guerreiros do Salão — disse ela. — Os Crepusculares estão limpando o ferro e a terra de cemitério. Vão arrombar as portas se os guardas não se livrarem deles!
— O Anfitrião Furioso chegou — disse Ty, interrompendo brevemente a contagem. — Os Coletores dos Mortos.
— Mas o Conselho protegeu a cidade contra as fadas — protestou Emma. — Por que...
— Não são fadas comuns — respondeu Ty. — O sal, a terra de cemitério, o ferro frio; não funcionarão contra a Caçada Selvagem.
Dru girou e olhou para cima.
— A Caçada Selvagem? — disse. — Isso quer dizer que Mark está aqui? Ele veio nos salvar?
— Não seja tola — falou Ty num tom murcho. — Mark está com os Caçadores agora, e a Caçada Selvagem quer que batalhas aconteçam. Eles vêm reunir os mortos, quando tudo acabar, e os mortos irão servir a eles.
Dru fez uma careta, confusa. As portas do Salão estavam tremendo violentamente agora, as dobradiças ameaçando arrebentar das paredes.
— Mas se Mark não vem nos salvar, quem vem?
— Ninguém — respondeu Ty, e somente o batuque nervoso dos dedos no mármore demonstrava que tal ideia o incomodava. — Ninguém virá nos salvar. Vamos morrer.

***

Jocelyn se lançou mais uma vez contra a porta. Seu ombro já estava machucado e sangrando, havia pedaços de unhas grudados no ponto onde tinha arranhado a tranca. Já estava ouvindo ruídos de batalha há 15 minutos, os sons inconfundíveis de correria, demônios gritando...
A maçaneta da porta começou a girar. Ela recuou e pegou o tijolo que tinha conseguido arrancar da parede. Não podia matar Sebastian, disso ela sabia, mas se pudesse feri-lo, atrasá-lo...
A porta se abriu, e o tijolo voou de sua mão. A figura na entrada desviou; o tijolo atingiu a parede, e Luke se aprumou e a olhou, curioso.
— Espero que quando nos casarmos você não me receba assim todos os dias quando eu voltar para casa — disse ele.
Jocelyn se jogou em cima dele. Luke estava sujo, sangrando e empoeirado, com a camisa rasgada, uma espada na mão direita, mas o braço esquerdo a envolveu e a puxou.
— Luke — disse ela grudada ao pescoço dele, e por um instante achou que pudesse sucumbir de alivio, delírio e medo, assim como sucumbira nos braços dele ao descobrir que ele tinha sido mordido.
Se ela tivesse percebido naquele momento, se tivesse entendido que a maneira como o amava era a maneira como se amava a alguém com quem se queria passar o resto da vida, tudo teria sido diferente.
Mas aí ela nunca teria tido Clary. Ela recuou, olhando no rosto dele, os olhos azuis firmes nos dela.
— Nossa filha? — perguntou Jocelyn.
— Ela está aqui — informou ele, e deu um passo para trás para que Jocelyn pudesse enxergar atrás dele, onde Isabelle e Simon aguardavam no corredor.
Ambos pareciam muito desconfortáveis, como se olhar dois adultos se abraçando fosse o pior flagra do mundo, mesmo nos reinos demoníacos.
— Venha conosco... vamos encontrá-la.

***

— Não há certeza nisso — respondeu Clary desesperadamente. — Os Caçadores de Sombras podem não perder. Podem resistir.
Sebastian sorriu.
— É um risco que você pode assumir — falou ele. — Mas ouça. Eles já foram para Alicante, aqueles que cavalgam os ventos entre os mundos. São atraídos por lugares onde há carnificina. Compreende?
Ele apontou para a janela que dava vista para Alicante. Ali Clary via o Salão dos Acordos sob o luar; ao fundo, nuvens se movendo inquietas de um lado a outro – e então as nuvens ganharam forma e se transformaram em outra coisa. Algo que ela já tinha visto uma vez, com Jace, deitada no fundo de um barco em Veneza. A Caçada Selvagem, correndo pelo céu: guerreiros usando roupas escuras e rasgadas, brandindo armas, uivando enquanto seus corcéis fantasmagóricos cavalgavam pelo céu.
— A Caçada Selvagem — disse ela, entorpecida, e de repente se lembrou de Mark Blackthorn, das marcas de chicote no corpo dele, dos olhos quebrados.
— Os Coletores dos Mortos — declarou Sebastian. — Os corvos carniceiros da magia, vão para onde está o massacre. Um massacre que só você pode evitar.
Clary fechou os olhos. Teve a sensação de estar boiando, flutuando em água escura, vendo as luzes da costa retrocederem e retrocederem ao longe. Logo estaria sozinha no oceano, o céu gelado acima e 13 quilômetros de escuridão vazia abaixo.
— Vá e assuma o trono — disse ele. — Se o fizer, pode salvar a todos.
Ela olhou para ele.
— Como sei que você vai cumprir com a palavra?
Ele deu de ombros.
— Eu seria um tolo se não cumprisse. Você saberia imediatamente que menti, e aí lutaria contra mim, coisa que não quero. E não é só. Para obter plenamente meu poder aqui, preciso selar as fronteiras entre este mundo e o nosso. Uma vez que as fronteiras forem fechadas, os Crepusculares do seu mundo serão enfraquecidos, isolados de mim, a fonte de força deles. Os Nephilim poderão derrotá-los — ele sorriu, um sorriso branco gélido que cegava. — Será um milagre. Um milagre executado para eles, por nós, por mim. Irônico, não acha? Que eu seja o anjo salvador?
— E todos que estão aqui? Jace? Minha mãe? Meus amigos?
— Todos poderão viver. Não faz diferença para mim. Não podem me ferir, nem agora, e muito menos depois, quando as fronteiras estiverem fechadas.
— E tudo que tenho que fazer é ascender ao trono — confirmou Clary.
— E prometer ficar ao meu lado enquanto eu viver. Que, vale dizer, será muito tempo. Quando este mundo for isolado, não me tornarei apenas invulnerável; vou viver para sempre. “E veja, estou vivo para sempre, e detenho as chaves do inferno e da morte.”
— Está disposto a fazer isso? Abrir mão do mundo inteiro, dos seus Caçadores de Sombras malignos, da sua vingança?
— Estava começando a me entediar — disse Sebastian. — Isto é mais interessante. Para ser sincero, você também está começando a me entediar um pouco. Decida se vai subir ao trono ou não, sim? Ou precisa de persuasão?
Clary conhecia os métodos de persuasão de Sebastian. Facas sob unhas, mão na garganta. Parte dela queria que ele a matasse, tirasse dela o peso da decisão. Ninguém podia ajudá-la. Nesse caso, estava completamente sozinha.
— Não serei o único a viver eternamente — falou Sebastian, e, para a surpresa de Clary, com a voz quase gentil. — Desde que descobriu o Mundo das Sombras, você não desejou secretamente ser uma heroína? Ser a mais especial dentre os especiais? De certa forma, nós queremos ser os heróis da nossa espécie.
— Heróis salvam mundos — disse Clary. — Não os destroem.
— E eu estou lhe oferecendo esta chance — argumentou Sebastian. — Quando subir ao trono, você salvará o mundo. Salvará seus amigos. Terá poder ilimitado. Estou lhe dando um presente incrível, porque te amo. Você pode abraçar a própria escuridão e ao mesmo tempo sempre repetir a si que fez a coisa certa. Isso não é tudo que você deseja?
Clary fechou os olhos durante um segundo, e depois mais um. Apenas o bastante para ver os rostos piscando sob suas pálpebras: Jace, Jocelyn, Luke, Simon, Isabelle, Alec. E tantos outros: Maia e Raphael e os Blackthorn, a pequena Emma Cartairs, as fadas da Corte Seelie, os rostos da Clave, até mesmo a lembrança fantasmagórica de seu pai.
Ela abriu os olhos e caminhou em direção ao trono. Ouviu Sebastian, atrás de si, e respirou fundo. Então, apesar de toda a certeza na voz, ele teve dúvida, não teve? Não confiava plenamente na decisão dela. Atrás dos tronos, as duas janelas piscavam como telas de TV: uma mostrando a destruição, a outra mostrando Alicante sendo atacada. Clary viu lampejos do interior do Salão dos Acordos ao alcançar os degraus e subi-los. Seguiu com firmeza. Tinha tomado sua decisão; não podia hesitar agora. O trono era enorme; era como subir em uma plataforma. O ouro era gelado ao tato. Ela subiu o último degrau e sentou-se.
Parecia estar olhando para baixo, a quilômetros do topo de um pico de uma montanha. Viu o Salão do Conselho se espalhar diante de si; Jace, deitado imóvel perto da parede. Sebastian, olhando para ela com um sorriso que se abria.
— Muito bem — falou ele. — Minha irmã, minha rainha.

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