Capítulo 23 - O Beijo de Judas
As portas do Salão explodiram com uma chuva de farpas; cacos de mármore e madeira voando para dentro como osso estilhaçado.
Emma olhou entorpecida enquanto guerreiros vestidos de vermelho começavam a invadir o Salão, seguidos por fadas de verde, branco e prateado. Depois vieram os Nephilim: Caçadores de Sombras com roupas pretas de combate, desesperados para proteger suas crianças.
Uma onda de guardas correu para encontrar os Crepusculares na porta. Foram todos contidos. Emma os observou caindo no que parecia câmera lenta. Ela sabia que tinha se levantado, assim como Julian, colocando Tavvy nos braços de Livia; ambos correram para proteger os Blackthorn mais jovens, por mais inútil que Emma soubesse que o gesto fosse.
É assim que acaba, pensou ela. Tinham escapado dos guerreiros de Sebastian em Los Angeles, fugido para a casa dos Penhallow, e da casa destes para o Salão e agora se encontravam presos como ratos e iriam morrer ali; sendo assim, talvez eles nem precisassem ter fugido.
Ela alcançou Cortana, pensando no pai, no que ele diria caso ela desistisse. Carstairs. Carstairs não desistiam. Sofriam e sobreviviam, ou morriam de pé. Ao menos se morresse, pensou, veria os pais novamente. Ao menos teria isso.
Os Crepusculares invadiram o recinto, dividindo os Caçadores de Sombras que lutavam desesperadamente como lâminas cortando um campo de trigo, correndo para o centro do Salão. Pareciam um borrão sanguinário, no entanto a visão de Emma entrou em foco de repente quando um deles se desvencilhou da multidão e foi diretamente para onde os Blackthorn estavam.
Era o pai de Julian.
Seu período como servo de Sebastian não lhe fizera bem. A pele parecia desgastada e cinzenta, o rosto marcado por cortes sangrentos, no entanto avançava com determinação, os olhos nos filhos.
Emma congelou. Julian, ao seu lado, tinha visto o pai; parecia hipnotizado, como se seu pai fosse uma cobra. Ele havia testemunhado o pai sendo obrigado a beber do Cálice Infernal, Emma se deu conta, porém não o vira depois, não o vira erguer uma lâmina contra o próprio filho, ou rir com a ideia da morte do filho, ou obrigar Katerina a se ajoelhar, a ser torturada e Transformada...
— Jules — disse ela. — Jules, esse não é seu pai...
Julian arregalou os olhos.
— Emma, cuidado...
Ela girou e gritou. Um guerreiro fada se assomava diante dela, trajando uma armadura prateada; seus cabelos não eram cabelos, mas um emaranhado de galhos espinhosos. Metade do rosto estava queimado e borbulhante, onde ele provavelmente fora atacado com pó de ferro ou halita. Um de seus olhos revirava, branco e cego, mas o outro encontrava-se fixo em Emma, com intenções assassinas. Emma viu Diana Wrayburn, os cabelos escuros sacudindo enquanto ela girava em direção a eles, a boca aberta em um grito de alerta.
Diana foi para cima de Emma e do guerreiro fada, mas não tinha como chegar a tempo de jeito nenhum. O guerreiro fada ergueu sua espada de bronze com um rosnado selvagem...
Emma avançou, enterrando Cortana no peito dele.
O sangue do fada era como água verde. Esguichou na mão dela enquanto soltava a espada, em choque. Ele caiu como uma árvore, atingindo o chão de mármore do Salão com uma batida pesada. Emma pulou para a frente, alcançando o cabo de Cortana, e ouviu Julian gritar:
— Ty!
Ela girou. Em meio ao caos do Salão, Emma conseguiu ver o pequeno espaço onde estavam os Blackthorn. Andrew Blackthorn parou na frente dos filhos, com um sorriso estranho, e estendeu a mão.
E Ty – justamente Ty, dentre todos, o que menos confiava, o menos sentimental – estava avançando, com os olhos fixos no pai, a mãozinha esticada.
— Pai? — disse ele.
— Ty? — Livia tentou alcançar seu irmão gêmeo, mas segurou apenas ar. — Ty, não...
— Não dê ouvidos a ela — disse Andrew Blackthorn, e se havia dúvidas de que ele não era mais o homem que tinha sido pai de Julian, tal dúvida foi solucionada quando Emma ouviu a voz dele. Não havia qualquer bondade nela, apenas gelo, e um tom selvagem de satisfação cruel. — Venha aqui, meu menino, meu Tiberius...
Ty deu mais um passo, e Julian puxou a espada curta do cinto, então a atirou. A espada chiou pelo ar, reta e determinada, e Emma se lembrou com uma clareza bizarra daquele último dia no Instituto, de Katerina ensinando a atirar uma lâmina tão direta e graciosa quanto um verso de poesia. Ensinando a arremessar uma lâmina de modo que esta jamais errasse o alvo.
A faca passou por Tiberius e se enterrou no peito de Andrew Blackthorn. Os olhos dele se arregalaram em choque, a mão cinza tateando em busca do cabo ressaltado de suas costelas – e em seguida ele caiu, sucumbindo ao chão. Seu sangue manchava o chão de mármore quando Tiberius soltou um grito, girando para atacar o irmão, socando o peito de Julian.
— Não — arfou Ty. — Por que fez isso, Jules? Eu te odeio, eu te odeio...
Julian mal pareceu sentir. Estava olhando para o local onde seu pai havia caído; os outros Crepusculares já estavam avançando, pisoteando o corpo de seu camarada abatido. Diana Wrayburn estava um pouco distante dali: tinha começado a correr em direção às crianças, mas logo parou, os olhos cheios de tristeza.
Mãos se elevaram e agarraram as costas da camisa de Tiberius, puxando-o de cima de Julian. Era Livvy, com o rosto rígido.
— Ty. — Ela abraçou o irmão gêmeo, prendendo os punhos do menino junto às laterais do corpo dele. — Tiberius, pare agora.
Ty parou e desabou em cima da irmã; embora pequena, ela aguentou o peso.
— Ty — falou outra vez, suavemente. — Ele precisava fazer isso. Não entende? Ele precisava.
Julian deu um passo para trás, o rosto branco como papel, daí continuou recuando, até atingir um dos pilares de pedra e deslizar por ele, caindo, os ombros tremendo com soluços silenciosos.
***
Minha irmã. Minha rainha.
Clary sentou-se ereta no trono de ouro e marfim. Sentiu-se como uma criança em uma cadeira de adulto: aquilo tinha sido construído para alguém enorme, então seus pés ficavam pendurados, pairando sobre o degrau superior.
Suas mãos agarraram os braços do trono, os seus dedos estavam longe de alcançar os apoios entalhados – embora, como cada um era esculpido em forma de crânio, ela não tivesse o menor desejo de tocá-los.
Sebastian caminhava de maneira inquieta dentro de seu círculo de símbolos protetores; de vez em quando parava para olhar para ela e sorria, uma espécie de sorriso desinibido e alegre, o qual ela associava ao Sebastian de sua visão, o menino de olhos verdes inocentes. Ele sacou uma adaga longa e afiada do cinto enquanto Clary o assistia e passou a lâmina na palma. Sua cabeça caiu para trás, os olhos semicerrados enquanto ele esticava a mão; sangue escorreu pelos dedos e caiu sobre os símbolos.
Ao serem atingidos pelo sangue, eles começaram a brilhar com uma faísca do alvorecer. Clary pressionou o corpo contra o encosto sólido do trono. Os símbolos não eram símbolos do Livro Cinza; eram desconhecidos e estranhos.
A porta do cômodo se abriu, e Amatis entrou, seguida por duas filas de guerreiros Crepusculares. Os rostos eram vazios enquanto eles se postavam silenciosamente ao longo das paredes da sala, mas Amatis parecia preocupada. Seu olhar passou por Jace, imóvel no chão ao lado do corpo do demônio morto, para se concentrar em seu mestre.
— Lorde Sebastian — disse ela. — Sua mãe não está na cela.
Sebastian franziu o rosto e cerrou a mão sangrenta. À sua volta, os símbolos ardiam furiosamente agora, com uma chama fria e azul.
— Vergonhoso — falou. — Os outros devem tê-la soltado.
Clary sentiu uma onda de esperança misturada com pavor; forçou-se a permanecer em silêncio, mas viu os olhos de Amatis se voltarem para ela. Não pareceu surpresa em ver Clary no trono: pelo contrário, seus lábios se curvaram em um sorriso.
— Gostaria que eu enviasse o restante do exército para procurá-los? — perguntou a Sebastian.
— Não há necessidade. — Ele olhou para Clary e sorriu; de repente houve um ruído explosivo e a janela atrás dela, aquela com vista para Alicante, rachou em uma teia de aranha de linhas confusas. — As fronteiras estão se fechando — disse Sebastian. — Vou trazê-los a mim.
***
— As paredes estão se fechando — comentou Magnus.
Alec tentou levantar Magnus mais ainda; o feiticeiro pesava, a cabeça quase no ombro de Alec, que não fazia a menor ideia de para onde estavam indo. Tinha se perdido nos corredores curvos há o que parecia séculos, mas ele não estava com a menor vontade de comunicar isto a Magnus, que por sua vez já parecia mal o suficiente como estava – a respiração ofegante, o pulso acelerado. E agora isto.
— Está tudo bem — acalentou Alec, passando o braço em torno da cintura de Magnus. — Só temos que chegar a...
— Alec — repetiu Magnus, a voz surpreendentemente firme. — Não estou tendo alucinações. As paredes estão se mexendo.
Alec encarou – e sentiu uma onda de pânico. O corredor estava carregado com um ar pesado e empoeirado; as paredes pareciam brilhar e tremer. O chão se deformava à medida que as paredes se fechavam, o corredor se estreitando a partir de uma ponta como um compressor de lixo se fechando. Magnus deslizou e atingiu uma das paredes com um sibilo de dor. Em pânico, Alec o pegou pelo braço, puxando-o.
— Sebastian — arfou Magnus, enquanto Alec começava a arrastá-lo pelo corredor, para longe da pedra em queda. — Ele está fazendo isto.
Alec conseguiu fazer uma expressão incrédula.
— Como isso seria possível? Ele não controla tudo!
— Ele poderia... se selasse as fronteiras entre as dimensões — Magnus tomou fôlego asperamente quando começou a correr. — Poderia controlar este mundo todo.
***
Isabelle gritou quando o chão se abriu atrás dela; jogou-se para a frente, bem a tempo de evitar cair no abismo que dividia o corredor.
— Isabelle! — gritou Simon, e se esticou para pegá-la pelos ombros.
Ele às vezes se esquecia da força que seu sangue de vampiro fazia circular pelo corpo. Pegou Isabelle com tanta força que ambos caíram para trás, Izzy caindo bem em cima dele. Em outro contexto talvez ele tivesse gostado, mas não com a pedra que não parava de desmoronar ao redor deles.
Isabelle se levantou, puxando-o em seguida. Tinham se perdido de Luke e Jocelyn em um dos outros corredores enquanto a parede se dividia, derramando pedras de argamassa em sequência. Tudo que veio a seguir foi uma loucura, desvio de pedras e madeiras afiadas, e agora abismos se abrindo no chão. Simon lutava contra o desespero – não conseguia deixar de pensar que aquilo era o fim; a fortaleza iria sucumbir ao redor, e todos morreriam e seriam enterrados ali.
— Não — falou Isabelle, sem fôlego.
Seus cabelos escuros estavam cheios de terra, o rosto sangrando nos pontos onde tinha sido cortado por estilhaços de rocha.
— Não o quê?
O chão tremeu e Simon meio desviou, meio caiu para a frente em outro corredor. Não conseguia se livrar do pensamento de que, de algum jeito, a fortaleza os estava arrebanhando. Parecia haver um propósito naquela dissolução, como se de algum jeito os estivesse direcionando para...
— Não desista — arfou ela, lançando-se contra um par de portas enquanto o corredor atrás deles começava a ruir; as portas se abriram, e ela e Simon tropeçaram para a sala seguinte.
Isabelle engoliu em seco, engasgando, gesto rapidamente interrompido quando as portas se fecharam atrás deles, bloqueando o barulho explosivo da torre. Por um instante Simon apenas agradeceu a Deus pelo chão sob seus pés estar firme e as paredes não se moverem.
Então registrou onde estava, e o alívio desapareceu. Encontravam-se em uma sala enorme, com formato semicircular, com uma plataforma elevada na extremidade curva semi-imersa em sombra. As paredes estavam alinhadas por guerreiros Crepusculares trajando vermelho, como uma fileira de dentes escarlates.
A sala fedia a piche e fogo, enxofre e o veneno inconfundível de sangue de demônio. O corpo de um demônio inchado estava esticado contra uma parede e, ao lado deste, mais um corpo. Simon sentiu a boca secar. Jace.
Sebastian estava em um círculo de símbolos brilhantes desenhado no chão. Ele sorriu quando Isabelle soltou um grito, correu para Jace e agachou ao lado dele. Izzy colocou os dedos no pescoço dele, para sentir a pulsação; Simon notou os ombros dela relaxando de alívio.
— Ele está vivo — disse Sebastian, soando entediado. — Ordens da Rainha.
Isabelle levantou o olhar. Alguns chumaços do seu cabelo escuro estavam grudados no rosto com sangue. Ela estava feroz e linda.
— A Rainha Seelie? Desde quando ela se importa com Jace?
Sebastian riu. Parecia em um bom humor enorme.
— Não a Rainha Seelie — disse ele. — A Rainha deste reino. Talvez você a conheça.
Com um floreio ele gesticulou para a plataforma na extremidade oposta do salão, e Simon sentiu seu coração que não batia se contrair. Ele mal tinha olhado para o palanque quando entrara. Agora percebia que ali havia dois tronos de osso, marfim e ouro fundido, e no trono direito estava Clary.
Os cabelos ruivos contrastavam contra o branco e o dourado, extremamente vívidos, como uma bandeira de fogo. Seu rosto estava pálido e parado, sem expressão.
Simon deu um passo involuntário para a frente – e foi imediatamente bloqueado por uma dúzia de guerreiros Crepusculares, com Amatis no centro. Ela segurava com uma lança enorme e ostentava uma expressão venenosa assustadora.
— Pare onde está, vampiro — ordenou. — Você não vai se aproximar da senhora deste reino.
Simon cambaleou para trás; havia notado Isabelle olhando, incrédula, de Clary para Sebastian, e para ele.
— Clary — gritou Simon.
Ela não vacilou nem se mexeu, mas o rosto de Sebastian escureceu como uma tempestade.
— Não dirás o nome da minha irmã — sibilou. — Você achava que ela pertencia a você; ela agora pertence a mim, e não vou dividir.
— Você é louco — disse Simon.
— E você está morto — respondeu Sebastian. — Isso faz diferença agora? — Seus olhos percorreram Simon. — Querida irmã — disse ele, elevando a voz o bastante para que toda a sala pudesse escutar. — Tem certeza de que quer manter este sujeitinho intacto?
Antes que ela pudesse responder, a porta de entrada da sala se abriu e Magnus e Alec chegaram, seguidos por Luke e Jocelyn. As portas bateram atrás deles, e Sebastian aplaudiu. Uma das mãos sangrava, e uma gota caiu aos pés dele, chiando ao atingir os símbolos, como água em uma chapa quente.
— Agora estão todos aqui — declarou, com a voz em deleite. — É uma festa!
***
Clary já tinha visto muitas coisas maravilhosas e lindas em sua vida, e muitas coisas terríveis também. Mas nenhuma tão terrível quanto o olhar de sua mãe quando a encarou, sentada no trono ao lado do assento de Sebastian.
— Mãe — arfou Clary, tão suavemente que ninguém conseguiu ouvi-la.
Todos a encaravam; Magnus e Alec, Luke e sua mãe, Simon e Isabelle, que agora tinha Jace em seu colo, os cabelos escuros caindo em cima dele como a franja de um xale. Era tão horrível quanto Clary imaginara que seria. Pior. Ela esperava choque e horror; não tinha pensado em dor e traição. Sua mãe cambaleou para trás; os braços de Luke a envolveram, para mantê-la de pé, mas ele estava com os olhos em Clary, e parecia olhar para uma estranha.
— Bem-vindos, cidadãos de Edom — disse Sebastian, os lábios se curvando para cima como um arco sendo sacado. — Bem-vindos ao seu novo mundo.
E saiu do círculo de fogo que o protegia. A mão de Luke foi para o cinto; Isabelle começou a se levantar, mas foi Alec quem se movimentou mais rápido: uma das mãos no arco e a outra na aljava nas costas, a flecha armada e voando antes que Clary pudesse gritar para que ele parasse.
A flecha voou diretamente para Sebastian e se enterrou em seu peito. Ele cambaleou com a força do impacto, e Clary ouviu um arfar coletivo na fila de Caçadores de Sombras malignos. Um instante depois, Sebastian recobrou o equilíbrio e, com um olhar de irritação, arrancou a flecha do peito. Estava manchada de sangue.
— Tolo — berrou. — Não pode me ferir; nada sob o Paraíso pode. — Jogou a flecha aos pés de Alec. — Achou que você fosse uma exceção?
Os olhos de Alec desviaram para Jace; foi uma coisa mínima, mas Sebastian captou o olhar e sorriu.
— Ah, sim — falou. — Seu herói com o fogo celestial. Mas acabou, não acabou? Gastou em um ataque de fúria no deserto contra um demônio enviado por mim.
Ele estalou os dedos, e uma faísca azul se lançou dele, se erguendo como uma bruma.
Por um instante, a visão de Clary de Jace e Isabelle foi obscurecida; um segundo mais tarde, ela ouviu uma tossida e um engasgo, e os braços de Isabelle estavam se afastando de Jace enquanto ele se sentava e, em seguida, levantava.
Atrás de Clary, a janela continuava rachando, lentamente; dava para ouvir a trituração do vidro. Através do vidro agora rachado penetrava uma camada de luz e sombra, o desenho semelhante a renda.
— Bem-vindo de volta, irmão — disse Sebastian, calmo, enquanto Jace olhava em volta com um rosto que empalidecia rapidamente à medida que ele absorvia a sala cheia de guerreiros, seus amigos horrorizados ao redor, e finalmente: Clary no trono. — Você gostaria de tentar me matar? Tem armas o suficiente aqui. Se quiser tentar me destruir com o fogo celestial, sua chance é agora.
Jace ficou de pé, encarando Sebastian. Tinham a mesma altura, quase o mesmo biotipo, embora Sebastian fosse mais magro, mais rijo. Jace estava imundo e manchado de sangue, a roupa rasgada, os cabelos emaranhados. Sebastian estava elegante de vermelho; mesmo a mão que sangrava parecia intencional. Os pulsos de Sebastian estavam nus; ao redor do pulso esquerdo de Jace, um círculo de prata brilhava.
— Está usando minha pulseira — observou Sebastian. — “Se não posso alcançar o Céu, erguerei o Inferno”. Adequado, não acha?
— Jace — sibilou Isabelle. — Jace, vá em frente. Dê uma punhalada nele. Vá em frente...
Mas Jace balançava a cabeça. Estava com a mão no cinto de armas; lentamente, a abaixou para o lado. Isabelle soltou um grito de desespero; o olhar no rosto de Alec foi tão gélido quanto, muito embora ele tivesse ficado em silêncio.
Sebastian abaixou os braços para as laterais e estendeu a mão.
— Acho que é hora de devolver minha pulseira, irmão. Hora de dar a César o que é de César. Devolva o que é meu, inclusive minha irmã. Renuncia a ela em meu favor?
— Não!
Não foi Jace; foi Jocelyn. Ela se afastou de Luke e avançou, esticando as mãos para Sebastian.
— Você me odeia... então me mate. Torture. Faça o que quiser comigo, mas deixe Clary em paz!
Sebastian revirou os olhos.
— Eu estou lhe torturando.
— Ela é só uma menina — arfou Jocelyn. — Minha criança, minha filha...
Sebastian esticou a mão e agarrou o queixo de Jocelyn, meio levantando-a do chão.
— Eu era sua criança — falou. — Lilith me deu um reino; você me deu uma maldição. Você é uma péssima mãe e vai ficar longe da minha irmã. Você está viva pelo sofrimento dela. Todos vocês estão. Entenderam?
Ele soltou Jocelyn; ela cambaleou para trás, a impressão sangrenta da mão de Sebastian marcada em seu rosto. Luke a segurou.
— Estão todos vivos porque Clarissa os quer vivos. Por nenhum outro motivo.
— Você disse a ela que não nos mataria caso ela subisse ao trono — disse Jace, tirando a pulseira prateada do braço. Sem qualquer entonação na voz. Não tinha olhado nos olhos de Clary. — Não foi?
— Não exatamente — disse Sebastian. — Ofereci a ela algo muito mais... substancial que isso.
— O mundo — disse Magnus. Ele parecia de pé por pura força de vontade. Sua voz soava como cascalho rasgando a garganta. — Está selando as fronteiras entre o nosso mundo e este, não está? É para isso que fez esse círculo de símbolos, não apenas para proteção. Para poder executar seu feitiço. É isso que está fazendo. Se fechar a passagem, não estará mais dividindo seus poderes entre dois mundos. Toda sua força ficará concentrada aqui. Com todo o seu poder concentrado nesta dimensão, você será quase invencível aqui.
— Se fechar as fronteiras, como ele voltará para o nosso mundo? — perguntou Isabelle.
Ela estava de pé agora; seu chicote brilhava no pulso, mas ela não fez qualquer menção de utilizá-lo.
— Ele não vai voltar — disse Magnus. — Nenhum de nós vai. Os portões entre os mundos se fecharão para sempre, e ficaremos presos aqui.
— Presos — refletiu Sebastian. — Uma palavra tão feia. Serão... hóspedes — ele sorriu. — Hóspedes presos.
— Foi isso que você ofereceu a ela — falou Magnus, erguendo os olhos para Clary. — Disse que se ela concordasse em governar este mundo, você fecharia as fronteiras e deixaria nosso mundo em paz. Governe Edom, salve o mundo. Certo?
— Você é muito perceptivo — observou Sebastian após uma breve pausa. — Isso é irritante.
— Clary, não! — gritou Jocelyn; Luke a puxou de volta, mas ela não estava prestando atenção em nada além da filha. — Não faça isso...
— Tenho que fazer — respondeu Clary, falando pela primeira vez.
Com a voz embargada e arrastada, incrivelmente alta na sala de pedra. De repente todos estavam olhando para ela. Todos exceto Jace. Ele olhava para a pulseira presa entre seus dedos.
Ela se aprumou.
— Preciso fazer. Não entende? Se não fizer, ele vai matar todos no nosso mundo. Destruir tudo. Milhões, bilhões de pessoas. Vai transformar nosso mundo nisto — ela gesticulou para a janela com vista para as planícies queimadas de Edom. — Vale a pena. Tem que valer. Vou aprender a amá-lo. Ele não vai me machucar. Acredito nisso.
— Acha que pode mudá-lo, moldá-lo, torná-lo melhor, porque você é a única coisa com a qual ele se importa — falou Jocelyn. — Eu conheço os homens Morgenstern. Não funciona. Você vai se arrepender...
— Você nunca teve a vida de um mundo inteiro nas mãos, mãe — disse Clary, com uma doçura e uma tristeza infinitas. — Existe um limite para os conselhos que você pode me dar. — Ela olhou para Sebastian. — Escolho o que ele escolhe. O presente que ele me deu. Aceito.
Ela viu Jace engolir em seco. Ele derrubou a pulseira na mão aberta de Sebastian.
— Clary é sua — disse, e deu um passo para trás.
Sebastian estalou os dedos.
— Vocês ouviram — falou. — Todos vocês. Ajoelhem-se diante da sua rainha.
Não!, pensou Clary, mas se obrigou a ficar parada, em silêncio. Assistiu enquanto os Crepusculares começavam a se ajoelhar, um por um, as cabeças abaixadas; a última a se ajoelhar foi Amatis, no entanto ela não baixou a cabeça.
Luke encarava a irmã, com o rosto destruído. Era a primeira vez que a via assim, percebeu Clary, apesar de ele já ter sido informado.
Amatis virou e olhou para os Caçadores de Sombras. O olhar dela capturou o do irmão por apenas um segundo; ela sorriu. Um olhar vil.
— Faça — disse ela. — Ajoelhe-se ou vou matá-los.
Magnus foi o primeiro a se ajoelhar. Se tivesse de palpitar, Clary jamais diria que ele seria o primeiro a fazê-lo. Magnus era tão orgulhoso, mas, pensando bem, era um orgulho que transcendia o vazio dos gestos. Ela duvidava que ele fosse se envergonhar de se ajoelhar quando para ele aquilo não significava nada.
Ele se ajoelhou graciosamente, e Alec seguiu o gesto; depois Isabelle, Simon, em seguida Luke, puxando a mãe de Clary ao seu lado. E por último, Jace, a cabeça loura abaixada; então Clary ouviu a janela atrás de si estilhaçar. Soou como seu coração se partindo.
Choveu vidro; por trás deste havia apenas pedra. Não mais uma janela com vista para Alicante.
— Está feito. Os caminhos entre os mundos estão fechados.
Sebastian não estava sorrindo, mas parecia... incandescente. Como se brilhasse. O círculo de símbolos no chão reluzia com fogo azul. Ele correu para a plataforma, subiu dois degraus de cada vez e esticou o braço para pegar as mãos de Clary; ela permitiu que ele a conduzisse, descendo do trono, até ficar diante dele.
Sebastian continuava segurando a mão dela. As mãos dele pareciam pulseiras de fogo ao redor dos pulsos de Clary.
— Você aceita — disse ele. — Você aceita sua escolha?
— Aceito — respondeu, se forçando a olhar diretamente para ele. — Aceito.
— Então me beije — falou ele. — Beije como se me amasse.
O estômago de Clary se contraiu. Esperava por isso, mas era como esperar um soco na cara: não tem jeito de se sentir preparado. O rosto dela investigou o dele; em outro mundo, outra época, outro irmão sorria pelo gramado para ela, com olhos tão verdes quanto a primavera. Ela tentou sorrir.
— Na frente de todo mundo? Não acho que...
— Temos que mostrar a eles — falou, e seu rosto estava tão impassível quanto o de um anjo pronunciando uma frase. — Que somos unidos. Prove a eles, Clarissa.
Ela se inclinou para ele; Sebastian estremeceu.
— Por favor — disse ela. — Ponha os braços em volta de mim.
Ela captou um lampejo de alguma coisa nos olhos dele – vulnerabilidade, surpresa pelo pedido – antes de Sebastian erguer os braços e envolvê-la. Ele a puxou para si; ela colocou a mão no ombro dele. A outra mão deslizou para a cintura, onde Heosphoros estava guardada na bainha, no cinto da roupa de combate. Seus dedos se curvaram na nuca do irmão. Sebastian estava com os olhos arregalados; dava para ver as batidas do coração dele, pulsando na garganta.
— Agora, Clary — disse ele, enquanto ela se arqueava, roçando os lábios no rosto dele.
Clary o sentiu estremecer enquanto ela sussurrava, os lábios acariciando a bochecha dele.
— Saudações, mestre — falou ela, e viu os olhos dele arregalarem exatamente quando sacou Heosphoros e a levantou em um arco brilhante, a lâmina tocando as costelas dele, a ponta posicionada para perfurar seu coração.
Sebastian arfou e convulsionou nos braços dela; cambaleou, o cabo da lâmina ressaltando de seu peito. Estava com os olhos arregalados, e por um instante Clary viu o choque da traição neles, choque e dor, e de fato doeu; doeu em algum lugar profundo que ela pensara já estar enterrado há muito tempo, um lugar em luto pelo irmão que ele poderia ter sido.
— Clary — arfou ele, começando a se ajeitar, e agora o olhar de traição estava desvanecendo, e ela viu a faísca inicial de fúria.
Não funcionou, pensou ela, horrorizada; não funcionou, e mesmo que as fronteiras entre os mundos estivessem fechadas agora, ele descontaria nela, em seus amigos, em sua família, em Jace.
— Você é mais esperta que isso — falou ele, esticando o braço para segurar o cabo da espada. — Não posso ser ferido por nenhuma arma sob o Céu...
Ele engasgou e parou de falar. As mãos envolviam o cabo, logo acima do ferimento no peito. Não havia sangue, mas um lampejo vermelho, uma faísca – fogo. O ferimento estava começando a queimar.
— O que... é... isto? — perguntou entre dentes.
— “E a ele darei a Estrela da Manhã” — disse Clary. — Não é uma arma feita pelo Céu. É fogo celestial.
Com um grito, Sebastian puxou a espada. Deu uma olhada incrédula para o cabo com a estampa de estrelas antes de arder como uma lâmina serafim. Clary deu alguns passos vacilantes para trás, tropeçou na beira dos degraus para o trono e cobriu o rosto parcialmente com um braço. Ele estava ardendo, ardendo como o pilar de fogo diante dos israelitas. Ela ainda conseguia ver Sebastian dentro das chamas, mas elas estavam em volta dele, consumindo-o em sua luz branca, transformando-o em um contorno de carvão escuro dentro de uma chama tão brilhante que lhe feria os olhos.
Clary desviou o olhar, enterrando o rosto no braço. A mente acelerou para a noite em que foi ao encontro de Jace através das chamas, o beijou e pediu que ele confiasse nela. E ele confiou, mesmo quando ela se ajoelhou diante dele e enfiou a ponta de Heosphoros no chão. Clary tinha desenhado com a estela o mesmo símbolo repetidas vezes ao redor – o símbolo que vira uma vez, e que agora parecia ter sido há tanto tempo, em um telhado em Manhattan: o cabo alado da espada de um anjo.
Um presente de Ithuriel, supôs ela, o qual lhe dera tantos presentes. A imagem ficou guardada em sua mente até que precisasse dela. O símbolo para moldar o fogo celestial. Naquela noite, na planície demoníaca, a chama ao redor deles evaporou, absorvida pela lâmina de Heosphoros, até o metal queimar, brilhar e cantar ao toque dela, o som dos corais angelicais. O fogo deixou apenas um círculo largo de areia fundida em vidro, uma substância que brilhava como a superfície do lago com o qual ela sonhara tantas vezes, o lago congelado onde Jace e Sebastian lutavam até a morte em seus pesadelos.
Esta arma poderia matar Sebastian, dissera ela. Jace, por sua vez, fora mais cauteloso, mais desconfiado. Ele até tentara tirar a arma dela, no entanto a luz na lâmina morreu assim que ele a tocou. Reagia somente a ela, a criadora. Clary concordara que teriam que ser cautelosos caso não funcionasse. Parecia o ápice da húbris imaginar que ela havia prendido fogo sagrado na lâmina da Gloriosa...
Mas o anjo lhe deu este dom de criar, dissera Jace. E não temos seu sangue em nossas veias?
Qualquer que tivesse sido o cântico da lâmina, agora já havia passado, entrado no irmão. Clary ouviu Sebastian gritando e, acima deste, os gritos dos Crepusculares. Um vento ardente soprou por ela, carregando consigo o cheiro de desertos antigos, de um lugar onde milagres eram comuns e o divino se manifestava em fogo.
O ruído parou tão súbito quanto começou. O palanque balançou sob Clary enquanto um peso caía em cima dele. Clary levantou a cabeça e viu que o fogo havia se extinguido, e embora o chão estivesse marcado e ambos os tronos parecessem queimados, o ouro neles não era mais brilhante, e sim carbonizado, queimado e derretido.
Sebastian estava deitado a alguns centímetros de Clary, de costas. Havia um grande buraco enegrecido em seu peito. Ele virou a cabeça para ela, o rosto tenso e pálido de dor, e o coração de Clary contraiu.
Os olhos dele estavam verdes.
As pernas dela bambearam. Clary caiu de joelhos no palanque.
— Você — sussurrou ele, e ela o encarou com um fascínio horrorizado, incapaz de desviar o olhar do que havia forjado.
O rosto dele estava completamente sem cor, como papel esticado sobre osso. Ela não ousou olhar para o peito dele, onde o casaco havia caído; dava para ver a mancha negra na camisa, como uma queimadura de ácido.
— Você colocou... o fogo celestial... na lâmina da espada — falou. — Foi... inteligente.
— Foi uma runa, só isso — respondeu ela, ajoelhando perto dele, os olhos investigando os de Sebastian. Ele parecia diferente, não só os olhos, mas todo o formato do rosto, a mandíbula mais suave, a boca sem o sorriso cruel. — Sebastian...
— Não. Não sou ele. Sou... Jonathan — sussurrou. — Sou Jonathan.
— Vão até Sebastian! — Amatis gritou se levantando, com todos os Crepusculares em seu encalço. Havia dor no rosto dela, e raiva. — Matem a garota!
Jonathan se esforçava para sentar.
— Não! — gritou, rouco. — Para trás!
Os Caçadores de Sombras malignos, que tinham começado a avançar, congelaram, confusos. Em seguida, passando por eles, veio Jocelyn; passou por Amatis, empurrando-a, sem sequer olhá-la, e subiu as escadas até o palanque. Foi em direção a Sebastian – Jonathan – e em seguida parou, de pé perto dele, encarando-o com um olhar de assombro, misturado a um pavor horroroso.
— Mãe? — disse Jonathan.
Ele estava olhando fixamente, quase como se não conseguisse focar o olhar nela. Começou a tossir. O sangue lhe escorria da boca. A respiração ruidosa nos pulmões.
Às vezes sonho com um menino de olhos verdes, um menino que jamais foi envenenado com sangue demoníaco, um menino capaz de rir, de amar e de ser humano, e foi por esse menino que chorei, mas esse menino nunca existiu.
O rosto de Jocelyn enrijeceu, como se ela estivesse se preparando para fazer alguma coisa. Ajoelhou-se ao lado da cabeça de Jonathan e o puxou para seu colo. Clary ficou olhando; não acreditava que ela fosse capaz daquilo. De tocá-lo daquele jeito. Mas, pensando bem, sua mãe sempre se culpara pela existência de Jonathan. Havia algo em sua expressão determinada que dizia que ela o tinha trazido ao mundo, e ela o mandaria embora.
Assim que Jonathan foi levantado, a respiração dele se acalmou. Havia uma espuma cheia de sangue em seus lábios.
— Sinto muito — disse ele, com um engasgo. — Sinto tanto... — Desviou os olhos para Clary. — Sei que não há nada que eu possa fazer ou falar que me permita morrer com qualquer resquício de graça — continuou. — E eu não a culparia se cortasse minha garganta. Mas eu... Eu me arrependo. Eu... sinto muito.
Clary perdeu a fala. O que poderia dizer? Tudo bem? Mas não estava tudo bem. Nada do que ele havia feito estava bem, nem com o mundo nem com ela. Algumas coisas eram impossíveis de se perdoar.
No entanto ele não havia feito tais coisas, não exatamente. Aquela pessoa, o menino que sua mãe segurava como se ele fosse seu castigo, não era Sebastian, o sujeito que havia torturado, assassinado e causado destruição. Clary se lembrou do que Luke lhe dissera, que parecia ter sido há anos: a Amatis que serve a Sebastian é tão minha irmã quanto o Jace que servia a Sebastian era o menino que você amava. Tão minha irmã quanto Sebastian era o filho que sua mãe deveria ter gerado.
— Não — disse ele, e semicerrou os olhos. — Vejo que você está tentando entender, minha irmã. Se devo ser perdoado como Luke perdoaria a irmã caso o Cálice Infernal a libertasse agora. Mas veja, ela foi irmã dele um dia. Foi humana. Eu... — E tossiu, mais sangue surgindo nos lábios. — Nunca existi. O fogo celestial queima o que é mau. Jace sobreviveu à Gloriosa porque ele é bom. Restava um bem suficiente nele para que conseguisse viver. Mas eu nasci para ser inteiramente corrompido. Não resta de mim o bastante para que eu sobreviva. Você está vendo apenas o espectro de alguém que poderia ter sido, só isso.
Jocelyn estava chorando, lágrimas caindo silenciosamente pelo rosto enquanto ela continuava sentava, parada. Estava com a coluna ereta.
— Preciso lhes dizer — sussurrou ele. — Quando eu morrer, os Crepusculares vão correr para cima de vocês. Não conseguirei contê-los. — Ele desviou o olhar para Clary. — Onde está Jace?
— Aqui — falou Jace.
E já estava no palanque, a expressão dura, confusa e triste. Clary encontrou o olhar dele. Sabia o quanto devia ter sido difícil para ele encenar junto com ela, entregá-la a Sebastian, permitir que ela se arriscasse no fim. E sabia o quanto isso devia estar sendo difícil para ele, Jace, que queria tanto se vingar, olhar para Jonathan e perceber que a parte de Sebastian que poderia, que deveria ser punida tinha desaparecido. Havia outra pessoa ali, completamente diferente, alguém que nunca tivera chance de viver, e que agora nunca mais teria.
— Pegue minha espada — disse Jonathan, a respiração saindo aos trancos, indicando Phaesphoros, que tinha caído a alguns passos de distância. — Corte... abra.
— Abra o quê? — perguntou Jocelyn, confusa, mas Jace já estava agindo, se abaixando para pegar Phaesphoros, descendo do palanque.
Atravessou o salão, passou pelos Crepusculares agrupados, pelo anel de símbolos, indo até onde o demônio Behemoth se encontrava morto em meio ao icor.
— O que ele está fazendo? — questionou Clary, embora tenha ficado óbvio quando Jace ergueu a espada e cortou o corpo do demônio. — Como ele sabia...
— Ele... me conhece — arfou Jonathan.
Uma torrente de entranhas fedorentas de demônio entornou pelo chão. Jace fez uma careta de desgosto – depois de surpresa e, em seguida, demonstrou percepção. Ele se abaixou e pegou alguma coisa rugosa, brilhando com icor – ergueu e Clary reconheceu como o Cálice Infernal.
Ela olhou para Jonathan. Os olhos dele estavam revirando, tremores convulsionavam seu corpo.
— D-diga a ele — gaguejou. — Diga a ele para jogar no círculo de símbolos.
Clary levantou a cabeça.
— Jogue no círculo! — gritou Clary para Jace, e Amatis girou em alerta.
— Não! Se o Cálice for destruído, nós também seremos! — Virou-se para o palanque. — Lorde Sebastian! Não permita que seu exército seja destruído! Somos leais!
Jace olhou para Luke, que por sua vez olhava para a irmã com uma expressão de total tristeza, uma tristeza tão profunda quanto a morte. Luke tinha perdido a irmã para sempre, e Clary havia acabado de ganhar o irmão de volta, o irmão que nunca tivera, e mesmo assim era a morte em ambos os lados.
Jonathan, meio apoiado contra o ombro de Jocelyn, olhou para Amatis; seus olhos verdes eram como luzes.
— Sinto muito — disse. — Nunca deveria tê-los criado.
E virou o rosto.
Luke assentiu uma vez para Jace, que arremessou o Cálice com toda a força possível no círculo de símbolos. O cálice bateu no chão e se estilhaçou. Amatis engasgou e colocou a mão no peito. Por um instante – só por um instante – encarou Luke com um olhar de reconhecimento: um olhar de reconhecimento, e até de amor.
— Amatis — sussurrou ele.
O corpo dela desabou no chão. O mesmo sucedeu com os outros Crepusculares, um por um, ruindo ao chão, até a sala estar cheia de corpos.
Luke virou para o outro lado, os olhos expressando dor demais para que Clary fosse capaz de suportar olhá-los. Ela ouviu um grito – distante e duro – e por um momento ficou imaginando se seria Luke, ou mesmo algum dos outros, horrorizados em verem tantos Nephilim caindo, mas o grito só fez crescer, até se transformar num uivo que rachou o vidro e fez girar a poeira do lado de fora da janela com vista para Edom. O céu ficou vermelho cor de sangue e o grito prosseguiu, daí começou a diminuir, virando um bufar engasgado de tristeza, como se o universo estivesse choramingando.
— Lilith — sussurrou Jonathan. — Ela chora pelos filhos mortos, os filhos de seu sangue. Está chorando por eles e por mim.
***
Emma retirou Cortana do corpo do guerreiro fada morto, ignorando o sangue que escorria em suas mãos. Seu único pensamento era chegar a Julian – ela vira o olhar terrível quando ele deslizara para o chão, e se Julian estivesse destruído, então o mundo inteiro estaria destruído e nada voltaria a ter sentido.
A multidão girava ao seu redor; ela mal os enxergava enquanto abria caminho pela massa em direção aos Blackthorn. Dru estava encolhida no pilar ao lado de Jules, o corpo protetoramente em volta de Tavvy; Livia continuava segurando Ty pelo pulso, mas agora olhava além dele, boquiaberta. E Jules – Jules continuava abaixado contra o pilar, porém tinha começado a levantar a cabeça, e, quando Emma notou que ele estava com o olhar fixo, virou para ver o que ele estava encarando.
Ao redor do salão, os Crepusculares começaram a sucumbir. Caíram como peças de xadrez, silenciosos. Caíram durante a batalha contra os Nephilim, e os irmãos fada também começaram a encarar enquanto os corpos dos Crepusculares desabavam no chão, um por um.
Um grito rouco de vitória se elevou de algumas gargantas de Caçadores de Sombras, mas Emma mal escutou. Correu aos tropeços até Julian e se ajoelhou ao seu lado; ele a encarou, os olhos verde-azulados do menino repletos de tristeza.
— Em — falou ele, rouco. — Pensei que aquele guerreiro fada fosse matá-la. Achei...
— Estou bem — sussurrou ela. — Você está bem?
Ele balançou a cabeça.
— Eu o matei — falou. — Matei meu pai.
— Aquele não era seu pai.
A garganta de Emma estava seca demais para continuar falando; em vez disso, ela desenhou nas costas da mão dele. Não uma palavra, mas um símbolo: o símbolo de coragem, e depois um coração torto.
Ele balançou a cabeça como se dizendo Não, não, não mereço isto, mas ela desenhou novamente, e em seguida se inclinou para ele, mesmo coberta de sangue como estava, e apoiou a cabeça no ombro do amigo.
As fadas estavam fugindo do Salão, abandonando as armas pelo caminho. Mais e mais Nephilim entravam no recinto, vindo da praça lá de fora. Emma viu Helen correndo na direção deles, com Aline ao lado, e pela primeira vez desde que saíram da casa dos Penhallow, Emma se permitiu acreditar que poderiam sobreviver.
***
— Estão mortos — disse Clary, olhando com assombro para os restos do exército de Sebastian. — Estão todos mortos.
Jonathan soltou um riso meio engasgado.
— “Gostaria de fazer algum bem, apesar de minha natureza” — murmurou ele, e Clary reconheceu a citação da aula de inglês. Rei Lear. A mais trágica dentre todas as tragédias. — Que coisa. Os Crepusculares se foram.
Clary se inclinou sobre ele, a voz desesperada.
— Jonathan — falou ela. — Por favor. Diga-nos como abrir a fronteira. Como voltar para casa. Tem que haver um jeito.
— Não... não tem jeito — sussurrou Jonathan. — Destruí a passagem. O caminho para a Corte Seelie está se fechando; todos os caminhos estão. É... é impossível. — O peito dele tremeu. — Sinto muito.
Clary não disse nada. Só conseguia sentir amargura na boca. Ela havia se arriscado, salvado o mundo, mas todos os que amava iriam morrer. Por um instante, seu coração se encheu de ódio.
— Ótimo — disse Jonathan, o olhar no rosto dela. — Me odeie. Alegre-se quando eu morrer. A última coisa que quero agora é lhe trazer mais dor.
Clary olhou para a mãe; Jocelyn estava parada e ereta, suas lágrimas caindo silenciosamente. Clary respirou fundo. Lembrava-se de uma praça em Paris, de ter visto Sebastian do outro lado de uma mesinha, dizendo: Acha que consegue me perdoar? Digo, acha que o perdão é possível para alguém como eu? O que teria acontecido se Valentim a tivesse levado junto comigo? Você teria me amado?
— Não o odeio — disse ela afinal. — Odeio Sebastian. Já você, não o conheço.
Os olhos de Jonathan se fecharam de maneira trêmula.
— Uma vez sonhei com um lugar verde — sussurrou. — Um solar, uma garotinha de cabelos ruivos e preparativos para um casamento. Se existirem outros mundos, então talvez haja algum onde fui um bom irmão e um bom filho.
Talvez, pensou Clary, e sofreu por esse mundo durante um instante, por sua mãe, e por si. Tinha consciência de Luke ao lado do palanque, observando-os; ciente de que havia lágrimas no rosto dele. Jace, os Lightwood e Magnus estavam bem atrás, e Alec segurava a mão de Isabelle. Em volta deles, estavam os corpos dos guerreiros Crepusculares.
— Não achei que você fosse capaz de sonhar — disse Clary, e respirou fundo. — Valentim encheu suas veias de veneno e o criou para odiar; você nunca teve escolha. Mas a espada queimou isso tudo. Talvez este seja quem você de fato é.
Ele inspirou de forma áspera e impossível.
— Seria uma linda mentira na qual se acreditar — falou, e, incrivelmente, o espectro de um sorriso doce e amargo passou pelo rosto dele. — O fogo da Gloriosa queimou o sangue demoníaco. Durante toda minha vida ele causticou minhas veias e cortou meu coração feito lâminas, e me fez pesar como chumbo... por toda minha vida, e eu nunca soube. Jamais conheci a diferença. Nunca me senti tão... leve — falou suavemente, então sorriu, fechou os olhos e morreu.
***
Clary se levantou lentamente, olhando para baixo. Sua mãe estava ajoelhada, segurando o corpo de Jonathan esticado em seu colo.
— Mãe — sussurrou, mas Jocelyn não levantou a cabeça.
Um instante mais tarde alguém passou por Clary: Luke. Ele deu um aperto na mão da menina, e em seguida se ajoelhou ao lado de Jocelyn, colocando a mão suavemente no ombro dela.
Clary virou; não suportava mais. A tristeza parecia um peso compressor. Ouvia a voz de Jonathan na cabeça enquanto descia as escadas: Nunca me senti tão leve.
Ela avançou pelos corpos e pelo icor no chão, entorpecida e pesada com a noção de seu fracasso. Depois de tudo que fizera, não havia como salvá-los.
Estavam esperando por ela: Jace, Simon e Isabelle, Alec e Magnus, que parecia doente, pálido e muito, muito cansado.
— Sebastian está morto — informou ela, e todos a olharam, com seus rostos cansados e sujos, como se estivessem exaustos e esgotados demais para sentir qualquer coisa em relação àquela notícia, até mesmo alívio.
Jace deu um passo para a frente e pegou as mãos dela, as ergueu e as beijou rapidamente; Clary fechou os olhos, sentido como se apenas uma fração de luz e calor tivesse retornado.
— Mãos de guerreira — disse ele baixinho, e a soltou.
Ela ficou olhando para os próprios dedos, tentando enxergar o que ele via. Suas mãos eram apenas mãos, pequenas e calejadas, manchadas com terra e sangue.
— Jace estava nos contando — falou Simon. — O que você fez, com a espada Morgenstern. Que estava fingindo com Sebastian o tempo todo.
— Agora no fim, não — respondeu. — Não quando ele voltou a ser Jonathan.
— Gostaria que tivesse nos contado sobre o plano — censurou Isabelle.
— Desculpem — sussurrou Clary. — Tive medo de que não funcionasse. Que ficassem decepcionados. Achei melhor... não criar muitas esperanças.
— Às vezes a esperança é tudo que nos mantém — disse Magnus, embora não soasse magoado.
— Eu precisava que ele acreditasse — explicou Clary. — Então precisava que vocês também acreditassem. Ele precisava ver as reações de vocês e achar que tinha vencido.
— Jace sabia — rebateu Alec, olhando para ela, mas também sem soar magoado, apenas confuso.
— E em nenhum momento olhei para ela, desde que se sentou no trono até a hora em que apunhalou Sebastian no coração — disse Jace. — Não consegui. Ao entregar a pulseira para ele, eu... — Ele parou de falar. — Desculpe. Eu não devia tê-lo chamado de desgraçado. Sebastian era, mas Jonathan não é, não era a mesma pessoa... e sua mãe...
— É como se tivesse perdido um filho duas vezes — disse Magnus. — Acho que poucas coisas podem ser piores.
— Que tal ficar preso em um reino demoníaco sem ter como sair? — sugeriu Isabelle. — Clary, precisamos voltar para Idris. Detesto perguntar, mas Seb... Jonathan disse alguma coisa sobre como reabrir as fronteiras?
Clary engoliu em seco.
— Ele disse que não tem como. Que estão fechadas para sempre.
— Então estamos presos aqui — disse Isabelle, seus olhos escuros tomados de choque. — Para sempre? Não pode ser. Deve haver um feitiço... Magnus...
— Ele não mentiu — falou Magnus. — Nós não temos como reabrir os caminhos daqui para Idris.
Fez-se um silêncio terrível. Então Alec, cujo olhar repousava sobre Magnus, perguntou:
— Nós não temos como fazer?
— Foi o que eu disse — respondeu Magnus. — Não há como abrir as fronteiras.
— Não — insistiu Alec, com um tom perigoso na voz. — Você disse que nós não temos como fazer, no sentido de que pode haver alguém que possa.
Magnus afastou-se de Alec e olhou em volta, para todos eles. Estava com a expressão aberta, despida daquele distanciamento habitual, e parecia ao mesmo tempo muito novo e muito, muito velho. Tinha o rosto de um jovem, mas aqueles olhos já haviam visto séculos correrem, e Clary nunca tivera tanta consciência disso como agora.
— Existem coisas piores que a morte — falou Magnus.
— Talvez você devesse deixar que nós julgássemos isso — argumentou Alec, e Magnus passou a mão desesperada no rosto e disse:
— Meu Deus, Alexander, eu passei a vida inteira sem ter que recorrer a isso, exceto por uma ocasião, quando aprendi minha lição. Não é uma lição que quero que vocês aprendam.
— Mas você está vivo — disse Clary. — Sobreviveu à lição.
Magnus sorriu, um sorriso horrível.
— Não teria sido uma lição se eu não tivesse sobrevivido — falou. — Mas fui devidamente avisado. Jogar dados com minha própria vida é uma coisa; brincar com a de todos vocês...
— Morreremos aqui de qualquer jeito — disse Jace. — É um jogo desvantajoso. Deixe que arrisquemos.
— Concordo — falou Isabelle, e os outros engrossaram o coro.
Magnus olhou para o palanque, onde Luke e Jocelyn continuavam ajoelhados, e suspirou.
— Voto da maioria — falou. — Sabiam que existe um velho ditado no Submundo sobre cachorros loucos e Nephilim não ouvirem conselhos?
— Magnus... — começou Alec, mas Magnus apenas balançou a cabeça e se levantou fracamente.
Continuava vestindo os farrapos que tinha usado no jantar há tanto tempo no refúgio do Povo das Fadas em Idris: os rasgos incongruentes de um paletó formal e uma gravata. Os anéis brilharam em seus dedos quando ele juntou as mãos, como se estivesse em oração, daí fechou os olhos.
— Pai nosso — recitou, e Clary ouviu Alec respirar fundo e então ofegar. — Pai nosso que estais no Inferno, ímpio seja vosso nome. Venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim em Edom como no Inferno. Não perdoai os meus pecados, pois naquele fogo dos fogos não haverá nem gentileza amorosa, nem compaixão, nem redenção. Meu pai, que causa guerras por todos os cantos, venha a mim agora; chamo-lhe como seu filho, e assumo a responsabilidade por vossa invocação.
Magnus abriu os olhos. Estava sem expressão. Cinco faces chocadas o encaravam.
— Pelo Anjo... — disse Alec.
— Não — falou uma voz logo além do grupo. — Definitivamente não é pelo seu Anjo.
Clary encarou. Inicialmente não viu nada, só um pedaço de sombra que se mexia, e em seguida uma figura se formou da escuridão. Um homem alto, pálido como ossos, em um terno totalmente branco; abotoaduras prateadas brilhavam em seus pulsos, esculpidas em forma de moscas. Tinha uma face humana, pele clara esticada, maçãs do rosto afiadas como lâminas. Não possuía cabelos, mas uma coroa brilhante de arame farpado. Seus olhos eram verde-dourados, e tinha pupilas em fendas, como as de um gato.
— Pai — disse Magnus, e a palavra foi uma exalação de tristeza. — Você veio.
O homem sorriu. Os dentes da frente eram afiados, pontudos como dentes felinos.
— Meu filho — falou. — Faz muito tempo que não me chama. Estava começando a me desesperar, achando que você nunca mais o faria.
— Não estava nos meus planos — respondeu Magnus secamente. — Chamei-lhe uma vez para me certificar de que era meu pai. Aquela vez foi suficiente.
— Assim me machuca — disse o homem, e voltou seu sorriso afiado para os outros. — Sou Asmodeus. Um dos Nove Príncipes do Inferno. Talvez conheçam meu nome.
Alec emitiu um ruído curto, rapidamente abafado.
— Já fui serafim uma vez, um dos anjos de fato — continuou Asmodeus, parecendo satisfeito consigo. — Parte de uma companhia inumerável. Então veio a guerra, e todos nós caímos como estrelas do Céu. Segui o Portador da Luz para baixo, a Estrela da Manhã, pois fui um de seus conselheiros-chefe, e, quando ele caiu, eu caí junto. Ele me criou no Inferno e me fez um dos nove governantes. Caso tenham dúvida, é preferível governar no Inferno a servir no Paraíso: já fiz as duas coisas.
— Você é... o pai de Magnus? — disse Alec, com a voz sufocada. Virou-se para Magnus. — Quando você segurou a luz enfeitiçada no túnel do metrô, ela ardeu em cores... é por causa dele? — Apontou para Asmodeus.
— Sim — respondeu Magnus. Parecia muito cansado. — Avisei, Alexander, que era algo de que você não iria gostar.
— Não entendo o frenesi. Fui pai de muitos feiticeiros — disse Asmodeus. — Magnus foi quem mais me orgulhou.
— Quem são os outros? — perguntou Isabelle, os olhos escuros desconfiados.
— O que ele está dizendo é que a maioria já morreu — retrucou Magnus.
Encontrou brevemente o olhar do pai, em seguida desviou, como se não suportasse o contato prolongado. Os lábios finos e sensíveis de Magnus estavam rijos.
— Ele também não está contando que todos os príncipes do Inferno possuem um reino que governam; este é o dele.
— Como este lugar, Edom, é o seu reino — disse Jace — então você é responsável pelo... pelo que aconteceu aqui?
— É meu reino, apesar de eu raramente vir para cá — explicou Asmodeus com um suspiro martirizado. — Era um lugar ótimo. Os Nephilim deste reino lutaram muito. Quando inventaram o skeptron, achei que pudessem sair vitoriosos no último segundo, mas o Jonathan Caçador de Sombras deste mundo era um divisor, não um agregador, e no fim eles se destruíram. Todos se destroem, vocês sabem. Nós demônios levamos a culpa, mas só abrimos a porta. É a humanidade que atravessa.
— Não venha com desculpas — irritou-se Magnus. — Você assassinou minha mãe...
— Ela era uma criaturinha bem disposta, garanto a você — disse Asmodeus, e Magnus enrubesceu.
Clary sentiu uma pontada de choque por ser possível fazer aquilo com Magnus, machucá-lo com relação à própria família. Fazia muito tempo, e ele era tão reservado. Mas então, pais sempre eram capazes de mexer com os filhos, independentemente da idade.
— Vamos direto ao ponto — disse Magnus. — Você pode abrir uma porta, certo? Mandar-nos para Idris, de volta ao nosso mundo?
— Gostaria de uma demonstração? — perguntou Asmodeus, estalando os dedos em direção ao palanque, onde Luke estava de pé, olhando para eles.
Jocelyn parecia prestes a se levantar também. Clary notava a expressão de preocupação de ambos, pouco antes de desaparecerem, levando consigo o corpo de Jonathan. Exatamente quando sumiram, por um instante, Clary viu o interior do Salão dos Acordos, o chafariz de sereia e o chão de mármore, e em seguida a visão desapareceu, como um rasgo no universo se costurando outra vez.
Um grito irrompeu da garganta de Clary.
— Mãe!
— Eu os enviei de volta ao seu mundo — disse Asmodeus. — Agora você sabe que consigo. — Examinou as próprias unhas.
Clary estava arfando, em parte pânico, em parte raiva.
— Como ousa...
— Bem, era o que queriam, não era? — disse Asmodeus. — Pronto, os dois primeiros foram de graça. O restante, bem, terá que pagar. — Suspirou ao ver os olhares ao redor. — Sou um demônio — falou, mordaz. — Sério, o que ensinam aos Nephilim hoje?
— Sei o que quer — falou Magnus, com a voz esgotada. — E pode ficar. Mas precisa jurar pela Estrela da Manhã que enviará todos os meus amigos de volta a Idris, todos eles, e nunca mais voltará a incomodá-los. Eles não lhe deverão nada.
Alec deu um passo adiante.
— Pare. Não... Magnus, o que quer dizer, o que ele quer? Por que está falando como se não fosse voltar conosco?
— Chega um momento — começou Asmodeus — em que todos devemos voltar a morar nas casas de nossos pais. Este é o momento de Magnus.
— “Na casa de meu pai há muitas moradas” — sussurrou Jace; estava muito pálido, como se fosse vomitar. — Magnus. Ele não pode... não quer levá-lo com ele? De volta a...
— Ao Inferno? Não precisamente — disse Asmodeus. — Como Magnus disse, Edom é meu reino. Eu o compartilhava com Lilith. Então o pestinha dela tomou tudo e arrasou o terreno, destruiu minha torre, está tudo aos pedaços. E você dizimou metade da população com o skeptron — parte final foi endereçada a Jace, bem petulante. — É preciso muita energia para abastecer um reino. Extraímos do poder do que abandonamos, a grande cidade de Pandemônio, o fogo em que caímos, mas chega um momento em que a vida deve nos abastecer. E a vida imortal é a melhor de todas.
O peso entorpecente que puxava os braços de Clary para baixo desapareceu quando ela ficou atenta de súbito, colocando-se na frente de Magnus. Ela quase colidiu contra os outros. Todos fizeram o mesmo movimento, visando bloquear o feiticeiro de seu pai demônio, até mesmo Simon.
— Quer tirar a vida dele? — perguntou Clary. — Isso é cruel e tolo, mesmo que você seja um demônio. Como pode querer matar seu próprio filho...
Asmodeus riu.
— Que ótimo! — comentou ele. — Veja só, Magnus, estes meninos que o amam e querem protegê-lo! Quem poderia imaginar! Quando você for enterrado, certificar-me-ei de que gravem no seu túmulo: Magnus Bane, adorado pelos Nephilim.
— Não vai tocá-lo — disse Alec, com a voz dura como ferro. — Talvez tenha se esquecido do que fazemos, nós, os Nephilim, mas matamos demônios. Até mesmo Príncipes do Inferno.
— Ah, sei bem o que fazem; destruíram meu compatriota Abbadon e disseminaram nossa princesa Lilith pelos ventos do vazio, embora ela vá voltar. Ela sempre terá lugar em Edom. Foi por isso que permiti que seu filho se estabelecesse aqui, mas admito que não imaginei a bagunça que ele faria — Asmodeus revirou os olhos; Clary suprimiu um calafrio. Em torno das pupilas verde-douradas, as escleras dos olhos eram como óleo negro. — Não tenho a intenção de matar Magnus. Seria desordeiro e tolo, e, além disso, eu poderia ter providenciado sua morte em qualquer tempo. O que quero é a vida dele cedida voluntariamente, pois a vida de um imortal tem poder, grande poder, e vai me ajudar a abastecer meu reino.
— Mas ele é seu filho — protestou Isabelle.
— E vai permanecer comigo — falou Asmodeus, com um sorriso. — Em espírito, por assim dizer.
Alec girou para Magnus, que estava com as mãos nos bolsos, franzindo o rosto.
— Ele quer tirar sua imortalidade?
— Exatamente — respondeu Magnus.
— Mas... você sobreviveria? Só não seria mais imortal? — Alec parecia arrasado, e Clary não conseguia evitar sentir-se péssima por ele.
Depois do motivo pelo qual Alec e Magnus terminaram, Alec não Precisava ser lembrado de que um dia já desejara que a imortalidade de Magnus fosse retirada.
— Minha imortalidade teria fim — explicou Magnus. — Todos os anos da minha vida me alcançariam de uma só vez. Seria muito improvável que eu sobrevivesse. Quase quatrocentos anos são muita coisa para assimilar, mesmo que você sempre use hidratante.
— Não pode — disse Alec, e tinha uma súplica na voz. — Ele disse “uma vida cedida voluntariamente”. Diga não.
Magnus levantou a cabeça e olhou para Alec; foi um olhar que fez Clary enrubescer e desviar o rosto. Tinha tanto amor, misturado a exasperação, orgulho e desespero. Um olhar sem reservas, que parecia errado testemunhá-lo.
— Não posso negar, Alexander — falou. — Se o fizer, todos permaneceremos aqui; morreremos de qualquer jeito. Passaremos fome, nossas cinzas se transformarão em pó para atormentarem os demônios deste reino.
— Tudo bem — disse Alec. — Nenhum de nós daria sua vida em troca da nossa.
Magnus olhou em volta, para os rostos dos companheiros, sujos, exaustos, brutalizados e desesperados, e Clary viu a expressão de Magnus mudar quando ele notou que Alec estava certo. Nenhum deles trocaria a vida de Magnus pela própria, nem pela de todos.
— Eu vivi por muito tempo — argumentou Magnus. — Tantos anos, e não, não parece suficiente. Não vou mentir e dizer que parece. Quero continuar; em parte por sua causa, Alec. Jamais quis viver tanto quanto nos últimos meses, com você.
Alec pareceu arrasado.
— Morreremos juntos — falou. — Permita que pelo menos eu fique, com você.
— Precisa voltar. Você precisa voltar para o mundo.
— Não quero o mundo. Quero você — suplicou Alec, e Magnus fechou os olhos, como se as palavras quase machucassem.
Asmodeus observava enquanto falavam, ávidos, quase famintos, e Clary se lembrou de que demônios se alimentavam de emoções humanas: medo, alegria, amor e dor. Sobretudo dor.
— Você não pode ficar comigo — disse Magnus após uma pausa. — Não haverá mais eu; o demônio tomará minha força de vida, e meu corpo irá ruir. Quatrocentos anos, lembre-se.
— “O demônio” — reclamou Asmodeus, e fungou. — Poderia ao menos dizer meu nome enquanto me entedia.
Clary concluiu então que talvez odiasse Asmodeus mais que a qualquer outro demônio que já havia conhecido.
— Vá em frente, meu menino — acrescentou Asmodeus. — Não tenho toda a eternidade para esperar; nem você, não mais.
— Tenho que salvá-lo, Alec — disse Magnus. — Você e todos que você ama; é um preço pequeno a se pagar, não é, no fim das contas? Por tudo isso?
— Não todos que eu amo — sussurrou Alec, e Clary sentiu lágrimas acumuladas nos olhos.
Ela havia se esforçado tanto, tanto para se tornar a pessoa a pagar o preço por aquilo tudo. Não era justo que Magnus pagasse; Magnus, quem menos tinha participação na história de Nephilim, anjos, demônios e vingança em comparação ao restante; Magnus, que era apenas parte daquilo porque amava Alec.
— Não — disse Alec.
Em meio a lágrimas Clary os viu agarrados; havia carinho até mesmo na curva dos dedos de Magnus em torno do ombro de Alec enquanto ele se abaixava para beijá-lo. Um beijo de desespero e apego, mais que paixão; Magnus chegou a cravar os dedos no braço de Alec, mas no fim recuou, e virou-se para o pai.
— Certo — falou Magnus, e Clary percebeu que ele estava se preparando como se estivesse prestes a se lançar em uma fogueira. — Certo, leve-me. Dou-lhe a minha vida. Eu sou...
Simon – que tinha permanecido em silêncio até aquele instante; Simon, que Clary quase esquecera que estava ali – deu um passo para a frente.
— Eu estou disposto.
As sobrancelhas de Asmodeus se ergueram.
— O que foi isso?
Isabelle pareceu entender antes de todo mundo. Empalideceu e disse:
— Não, Simon, não!
Mas Simon prosseguiu, as costas eretas, o queixo empinado.
— Também tenho vida imortal — falou. — Magnus não é o único. Pegue a minha; pegue minha imortalidade.
— Ahhh — respirou Asmodeus, com os olhos subitamente brilhantes. — Azazel me falou a seu respeito. Um vampiro não é interessante, mas um Diurno! Você carrega o poder do sol em suas veias. Luz do sol e vida eterna, é um poder e tanto.
— Sim — disse Simon. — Se aceitar minha imortalidade em vez da de Magnus, darei a você. Estou...
— Simon! — protestou Clary, porém já era tarde demais.
— Estou disposto — concluiu, e com uma olhada em volta para o restante do grupo, tensionou o maxilar, com um olhar que significava Está dito. Está feito.
— Meu Deus, Simon, não — interveio Magnus, com uma voz de terrível tristeza, e fechou os olhos.
— Só tenho 17 anos — falou Simon. — Se ele retirar minha imortalidade, vou viver minha vida, não morrerei aqui. Eu jamais quis ser imortal, jamais quis ser vampiro, jamais quis nada disso.
— Você não vai viver a sua vida! — Havia lágrimas nos olhos de Isabelle. — Se Asmodeus tirar sua imortalidade, você será um cadáver Simon. Você é morto-vivo.
Asmodeus emitiu um ruído grosseiro.
— Você é uma menina muito burra — falou. — Sou um Príncipe do Inferno. Posso derrubar paredes entre os mundos. Posso construir mundos e destruí-los. Você acha que não posso reverter a Transformação que torna um humano num vampiro? Acha que não posso fazer com que o coração dele volte a bater? Brincadeira de criança.
— Mas por que você faria isso? — questionou Clary, espantada. — Por que o faria viver? Você é um demônio. Não se importa...
— Não me importo. Mas quero — respondeu Asmodeus. — Tem mais uma coisa que desejo de vocês. Mais um item para adoçar o acordo. — Sorriu, e seus dentes brilharam como cristais afiados.
— O quê? — A voz de Magnus tremeu. — O que quer?
— As lembranças dele — respondeu Asmodeus.
— Azazel pegou uma lembrança de cada um de nós como pagamento por um favor — disse Alec. — Qual é a relação entre demônios e lembranças?
— Lembranças humanas, cedidas livremente, são como alimento para nós — explicou Asmodeus. — Demônios vivem dos gritos e da agonia dos amaldiçoados em tormenta. Imagine então que bela mudança de ritmo é um banquete de boas lembranças. Ficam deliciosas quando misturadas, o doce e o amargo. — Olhou em volta, os olhos de gato brilhando. — E já dá para perceber que haverá muitas lembranças boas para extrair, vampirinho, pois você é muito amado, não é?
Simon pareceu arrasado. Falou:
— Mas se você retirar minhas lembranças, quem eu serei? Eu não...
— Bem — disse Asmodeus. — Eu poderia tirar todas as suas lembranças e deixá-lo como um idiota babão, suponho, mas, sinceramente, quem quer as lembranças de um bebê? Chatice, chatice. A questão é: o que seria mais divertido? Lembranças são deliciosas, mas a dor também é. O que causaria mais dor aos seus amigos, aqui? O que os lembraria de temer o poder e a inteligência dos demônios? — Ele entrelaçou as mãos junto às costas. Cada um dos botões do terno branco tinha formato de mosca.
— Prometi minha imortalidade — disse Simon. — Não minhas lembranças. Você disse “cedidas voluntariamente”...
— Deus do Inferno, a banalidade — falou Asmodeus, e se moveu, rápido como uma chama, para pegar Simon pelo braço.
Isabelle avançou, como se fosse segurar Simon, e então recuou com um arfar. Um vergão vermelho apareceu na bochecha dela. Izzy colocou a mão, parecendo chocada.
— Deixe-a em paz — disparou Simon, e desvencilhou o braço das garras do demônio.
— Membro do Submundo — arfou o demônio, e tocou os longos dedos aracnídeos no rosto de Simon. — Você devia ter um coração que batia muito forte, quando batia.
— Deixe-o em paz — disse Jace, sacando a espada. — Ele é nosso, não seu; os Nephilim protegem o que é deles...
— Não! — protestou Simon. Estava tremendo completamente, mas a coluna se mantinha ereta. — Jace, não. É o único jeito.
— De fato é — concordou Asmodeus. — Pois nenhum de vocês pode combater um Príncipe do Inferno em seu reino de poder; nem mesmo você, Jace Herondale, filho dos anjos, ou você, Clarissa Fairchild, com seus truques e símbolos.
Ele remexeu os dedos, sutilmente; a espada de Jace caiu no chão, e este puxou a mão, se contorcendo de dor, como se tivesse sofrido uma queimadura. Asmodeus lhe concedeu apenas um olhar antes de levantar a mão outra vez.
— Lá está o portal. Vejam.
Gesticulou para a parede, que brilhou e ficou clara. Através dela, Clary via os contornos do Salão dos Acordos. Lá estavam os corpos dos Crepusculares, caídos no chão em montes escarlate, e lá estavam os Caçadores de Sombras, correndo, tropeçando, se abraçando: vitória depois da batalha.
E lá estavam sua mãe e Luke, olhando em volta, espantados. Continuavam na mesma posição em que estavam no palanque. Luke de pé, Jocelyn ajoelhada com o corpo do filho nos braços. Outros Caçadores de Sombras estavam começando a olhar para eles, surpresos, como se tivessem surgido do nada – o que era o caso.
— Aí está tudo que vocês desejam — disse Asmodeus, enquanto o portal piscava e escurecia. — Em troca ficarei com a imortalidade do Diurno, e, além disso, com as lembranças que ele tem do Mundo das Sombras: todas as lembranças de todos vocês, de tudo que aprendeu, de tudo que passou. É o meu desejo.
Simon arregalou os olhos; Clary sentiu seu coração saltar. Magnus parecia ter sido apunhalado.
— Aí está — sussurrou. — O truque no coração do jogo. Sempre tem algum, com os demônios.
Isabelle pareceu incrédula.
— Está dizendo que quer que ele se esqueça de nós?
— Tudo sobre vocês, e que um dia os conheceu — disse Asmodeus. — Ofereço isto em troca. Ele vai viver. Terá a vida de um mundano. Terá a família de volta; a mãe, a irmã. Amigos, colégio, todos os aspectos de uma vida humana normal.
Clary olhou desesperadamente para Simon. Ele estava tremendo, abrindo e fechando as mãos. Não disse nada.
— De jeito nenhum — disse Jace.
— Tudo bem. Então todos morrerão aqui. Você não tem muitas condições de negociar, Caçadorzinho de Sombras. O que são as lembranças em comparação a este custo de vida?
— Você está falando sobre quem Simon é — argumentou Clary. — Está falando em tirá-lo de nós para sempre.
— Sim. Não é ótimo? — Asmodeus sorriu.
— Isso é ridículo — declarou Isabelle. — Digamos que você tire as lembranças dele. O que nos impede de encontrá-lo e contar sobre o Mundo das Sombras? De apresentá-lo à magia? Já fizemos isso, podemos fazer de novo.
— Antes, ele conhecia você, conhecia Clary e confiava nela — disse Asmodeus. — Agora não conhecerá nenhum de vocês. Todos serão estranhos para ele, e por que ele daria ouvidos a estranhos loucos? Além disso, conhecem a Lei do Pacto tão bem quanto eu. Vocês a estão violando ao contar sobre o Mundo das Sombras sem qualquer motivo, colocando a vida dele em risco. Antes as circunstâncias eram especiais. Agora não serão mais. A Clave retirará todas as suas Marcas, se tentarem.
— Por falar em Clave — falou Jace. — Não ficarão muito felizes se você jogar um mundano em uma vida onde todos que o conhecem pensam que ele é um vampiro. Todos os amigos de Simon sabem! A família sabe! A irmã, a mãe. Eles contarão, mesmo que nós não contemos.
— Entendo — Amadeus pareceu desagradado. — Isso complica as coisas. Talvez seja melhor pegar a vida de Magnus, afinal...
— Não — berrou Simon.
Estava chocado, nauseado, mas sua voz parecia determinada. Asmodeus olhou para ele, cheio de cobiça.
— Simon, cale a boca — interrompeu Magnus desesperadamente. — Leve a mim, pai...
— Quero o Diurno — disse Asmodeus. — Magnus, Magnus. Você nunca entendeu direito o que é ser demônio, entendeu? Alimentar-se de dor? Mas o que é a dor? Tormento físico, isso é tão tedioso; qualquer demônio de jardim é capaz de fazer isso. Ser um artista da dor, criar agonia, escurecer a alma, transformar motivos nobres em sujeira, amar cobiçar e depois odiar, transformar uma fonte de alegria em uma fonte de tortura, é para isso que existimos! — A voz dele ressoou. — Vou até o universo mundano. Tirarei as lembranças daqueles que são próximos do Diurno. Vão se lembrar dele apenas como mortal. Não se lembrarão de Clary.
— Não! — gritou Clary, e Asmodeus lançou a cabeça para trás e riu, uma risada deslumbrante que a fez se lembrar de que ele um dia ele fora anjo.
— Você não pode tirar nossas lembranças — falou Isabelle, furiosa. — Somos Nephilim. Seria equivalente a um ataque. A Clave...
— As lembranças de vocês podem ficar — cortou Asmodeus. — Nada do que se recordam sobre Simon vai me causar problemas com a Clave, e, além disso, vocês serão atormentados por isso, o que só aumentará meu júbilo — sorriu. — Vou abrir um buraco no coração do seu mundo, e, quando sentirem, pensarão em mim, e se lembrarão de mim. Lembrarão!
Asmodeus puxou Simon, sua mão deslizando para pressionar o peito de Simon, como se pudesse alcançar o coração dele através das costelas.
— Começamos aqui. Está pronto, Diurno?
— Pare! — Isabelle deu um passo à frente, com o chicote na mão, os olhos em chamas. — Sabemos seu nome, demônio. Acha que tenho medo de acabar até mesmo com um Príncipe do Inferno? Eu colocaria sua cabeça na minha parede como um troféu, e, se ousar tocar em Simon, vou caçá-lo. Passarei minha vida caçando-o...
Alec passou os braços em volta da irmã e a segurou firme.
— Isabelle — disse baixinho. — Não.
— Como assim, não? — protestou Clary. — Não podemos permitir que isso aconteça... Jace...
— É uma escolha de Simon — Jace continuava em choque; estava completamente pálido e imóvel. Os olhos se fixaram nos de Simon. — Temos que honrá-la.
Simon olhou para Jace e inclinou a cabeça. Seu olhar estava passeando lentamente por todos eles, de Magnus para Alec, e Isabelle, onde parou e ficou, e estava tão cheio de possibilidades arruinadas que Clary sentiu o próprio coração partir.
Então seu olhar foi para Clary, e ela sentiu o restante de si ruir. Havia tanto na expressão dele, tantos anos de tanto amor, tantos segredos sussurrados, promessas e sonhos compartilhados. Ela o viu esticar o braço, e em seguida algo brilhante voou em direção a ela. Clary levantou a mão e pegou, reflexivamente.
Era o anel dourado que tinha dado a ele. Fechou a mão em volta da peça, sentindo a espetada do metal na palma da mão, a mão acolhendo a dor.
— Basta — disse Asmodeus. — Detesto despedidas.
E apertou Simon, que engasgou, arregalando os olhos; e levou a mão ao peito.
— Meu coração... — Engasgou-se, e Clary soube, soube pelo olhar dele, que seu coração tinha voltado a bater.
Ela piscou contra as lágrimas enquanto uma bruma branca explodia em torno deles. Ouviu Simon gritar de dor; os pés dela começaram a se movimentar espontaneamente, e ela correu para a frente, apenas para ser contida, como se tivesse batido em uma parede invisível. Alguém a segurou; Jace, pensou ela. Havia braços em volta dela, mesmo enquanto a bruma cercava Simon e o demônio como um pequeno tornado, bloqueando-os parcialmente da vista.
Formas começaram a aparecer na bruma conforme ela ficava mais densa. Clary se viu com Simon quando crianças, de mãos dadas, atravessando uma rua no Brooklyn; ela usava fivelas no cabelo, e Simon estava adoravelmente desgrenhado, os óculos caindo no nariz. Lá estavam os dois novamente, atirando bolas de neve no Prospect Park; e na fazenda de Luke, bronzeados pelo verão, pendurados de cabeça para baixo em galhos de árvores. Ela os viu no Java Jones, ouvindo a poesia terrível de Eric, e na garupa de uma moto voadora que aterrissava em um estacionamento, com Jace ali, olhando para eles, olhos semicerrados contra o sol. E Simon com Isabelle, com as mãos no rosto dela, beijando-a, e Clary enxergou Isabelle pelos olhos de Simon: frágil e forte, e muito, muito linda. E lá estava o navio de Valentim, Simon ajoelhado em Jace, sangue na boca e na camisa, sangue na garganta de Jace, a cela em Idris, o rosto esgotado de Hodge, e Simon e Clary novamente, Clary desenhando a Marca de Caim em sua testa. Maureen com seu sangue no chão, e o chapeuzinho rosa, e o telhado de Manhattan onde Lilith despertara Sebastian, e Clary passando para ele um anel sobre uma mesa, e um Anjo saindo de um lago diante dele, e ele beijando Isabelle...
Todas as lembranças de Simon, as lembranças de magia, as lembranças de todos eles, sendo extraídas e rodando em um turbilhão. Brilhavam num tom de ouro branco tão reluzente quanto a luz do dia. Havia um ruído em torno deles, como uma tempestade se formando, mas Clary mal ouvia. Esticou as mãos, rogando, apesar de não saber pelo que implorava.
— Por favor...
Sentiu os braços de Jace a apertarem, e em seguida a beira da tempestade a capturou. Ela foi elevada e carregada. Viu o salão de pedra se afastar a uma velocidade terrível, e a tempestade levou seus gritos por Simon e os transformou nos sons de uma ventania impetuosa. As mãos de Jace foram arrancadas dos ombros dela. Clary estava sozinha no caos, e por um instante achou que Asmodeus tivesse mentido afinal, que não havia passagem, e que flutuariam naquele nada para sempre, até morrer.
Então veio o chão, rápido. Ela viu o piso do Salão dos Acordos, mármore duro com veias douradas, antes de atingi-lo. A colisão foi forte, fazendo-a bater os dentes; ela rolou automaticamente, conforme aprendera, e parou ao lado do chafariz de sereia no centro.
Sentou-se e olhou em volta. O salão estava preenchido por rostos silenciosos que a encaravam, mas nenhum deles importava. Ela não estava procurando por estranhos. Viu Jace primeiro; ele tinha aterrissado agachado, em posição de combate. Clary notou os ombros dele relaxarem enquanto ele olhava em volta, percebendo onde estavam, que estavam em Idris, e que a guerra tinha acabado.
E lá estava Alec; ainda segurando a mão de Magnus, que parecia nauseado e exausto, mas pelo menos estava vivo.
E Isabelle. Foi a que pousou mais perto de Clary, a mais ou menos 30 centímetros. Ela já estava de pé, seu olhar percorrendo a sala uma, duas, e uma terceira vez, desesperada. Estavam todos ali, todos, exceto um.
Ela olhou para Clary; os olhos brilhavam de lágrimas.
— Simon não está aqui — disse ela. — Ele realmente se foi.
O silêncio que dominou os Caçadores de Sombras reunidos pareceu romper como uma onda: de repente havia vários Nephilim correndo para eles. Clary viu a mãe e Luke, Robert e Maryse, Aline e Helen, e até Emma Carstairs, vindo cercá-los, abraçá-los, curá-los e ajudá-los. Clary sabia que todos tinham boas intenções, que estavam correndo para o bem, mas não sentiu alívio. Apertando o anel dourado na palma, ela se encolheu no chão e finalmente se permitiu chorar.
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