Capítulo 24 - E Chamam Isso de Paz
— Quem, então, será o representante das Cortes das Fadas? — perguntou Jia Penhallow.
O Salão dos Acordos estava decorado com as bandeiras de cor azul da vitória. Pareciam recortes do céu. Todas tinham o símbolo dourado do triunfo. Lá fora estava um dia claro de inverno, e a luz que entrava pelas janelas brilhava pelas longas filas de cadeiras colocadas de frente para o palanque no centro, onde a Consulesa e o Inquisidor se encontravam, sentados à uma mesa longa. A mesa tinha sido decorada com mais dourado e azul: enormes castiçais dourados que quase impediam Emma de enxergar os integrantes do Submundo que também estavam à mesa: Luke, representando os lobisomens, uma jovem chamada Lily, representando os vampiros; e o famosíssimo Magnus Bane, representante dos feiticeiros.
Não havia assento para um representante das fadas. Lentamente, dentre a multidão sentada, uma jovem se levantou. Tinha olhos completamente azuis, sem qualquer parte branca, e orelhas pontudas como as de Helen.
— Sou Kaelie Whitewillow — disse. — Represento a Corte Seelie.
— Mas não a Unseelie? — perguntou Jia, a caneta pairando sobre um pergaminho.
Kaelie balançou a cabeça, os lábios contraídos. Um burburinho tomou o salão. Apesar da clareza das bandeiras, o clima no recinto estava tenso, e não alegre. Na fileira de assentos em frente aos Blackthorn estavam os Lightwood: Maryse com a coluna ereta, e ao seu lado, Isabelle e Alec, cujas cabeças estavam abaixadas enquanto ambos sussurravam.
Jocelyn Fairchild estava ao lado de Maryse, mas não havia sinal de Clary Fray ou de Jace Lightwood em lugar nenhum.
— A Corte Unseelie recusa um representante — disse Jia, anotando com acaneta. Depois olhou para Kaelie sobre a armação dos óculos. — Que recado nos traz da Corte Seelie? Concordam com nossas condições?
Emma ouviu Helen respirando fundo, de lá da ponta de sua fileira de assentos. Dru, Tavvy e os gêmeos foram considerados jovens demais para comparecer à reunião; tecnicamente, ninguém com menos de 18 anos podia ir, mas exceções especiais foram abertas para aqueles que, como ela e Julian, tinham sido afetados diretamente pelo que estava passando a se chamar de Guerra Maligna.
Kaelie foi até a passagem entre as filas de assentos e começou a caminhar em direção ao palanque; Robert Lightwood se levantou.
— É preciso pedir permissão para se aproximar da Consulesa — informou ele, com voz grave.
— Permissão não concedida — declarou Jia, com firmeza. — Fique onde está, Kaelie Whitewillow. Estou ouvindo perfeitamente bem.
Emma sentiu uma onda repentina de piedade pela fada – todos a fuzilavam com o olhar. Exceto Aline e Helen, que estavam sentadas grudadas uma na outra, de mãos dadas, com as juntas dos dedos até brancas em função do aperto.
— A Corte das Fadas pede sua clemência — disse Kaelie, apertando as mãos na frente do corpo. — As condições que vocês determinaram são severas demais. As fadas sempre mantiveram a soberania, nossos próprios reis e rainhas. Sempre tivemos guerreiros. Somos um povo ancião. O que estão pedindo vai nos destruir completamente.
Um leve burburinho percorreu o salão. Não foi um ruído amistoso. Jia pegou o papel que estava sobre a mesa na frente dela.
— Vamos revisar? — sugeriu ela. — Solicitamos que as Cortes das Fadas aceitem toda a responsabilidade pelas baixas e pelos danos sofridos por Caçadores de Sombras e integrantes do Submundo durante a Guerra Maligna. O Povo das Fadas ficará responsável pelos custos de reconstrução das barreiras quebradas, pelo restabelecimento do Praetor Lupus em Long Island e pela reconstrução do que foi destruído em Alicante. Gastarão as próprias riquezas com isso. Quanto aos Caçadores de Sombras que foram tirados de nós...
— Se está se referindo a Mark Blackthorn, ele foi levado pela Caçada Selvagem — disse Kaelie. — Não temos jurisdição sobre eles. Terão que negociar diretamente com eles, mas não vamos impedir.
— Ele não foi o único tirado de nós — insistiu Jia. — Há aquilo que não pode ser reparado: a perda de vidas de Caçadores de Sombras e licantropos na batalha, aqueles que perdemos pelo Cálice Infernal...
— Isso foi Sebastian Morgenstern, não as Cortes — protestou Kaelie. — Ele era um Caçador de Sombras.
— E é por isso que não estamos punindo vocês com uma guerra que inevitavelmente perderiam — respondeu Jia, com frieza. — Em vez disso, insistimos para que meramente desmontem seus exércitos, pela extinção dos guerreiros fada. Não podem mais carregar armas. Qualquer fada encontrada armada sem licença da Clave será executada imediatamente.
— As condições são severas demais — protestou Kaelie. — O Povo das Fadas não pode se sujeitar a elas! Se não tivermos armas, não teremos como nos defender!
— Colocaremos em votação, então — disse Jia, repousando o papel. — Qualquer um que discorde das condições apresentadas ao Povo das Fadas, por favor, fale agora.
Fez-se um longo silêncio. Emma notou os olhos de Helen percorrendo a sala, a boca contraída; Aline a segurava pelo pulso, com força. Finalmente ouviu-se o som de uma cadeira se arrastando, ecoando no silêncio, e uma figura solitária se levantou.
Magnus Bane. Ainda estava pálido por conta do ocorrido em Edom, mas os olhos verde-dourados brilhavam com uma intensidade que Emma era capaz de enxergar do outro lado da sala.
— Sei que essa história mundana não interessa muito à maioria dos Caçadores de Sombras — disse ele. — Mas houve uma época anterior aos Nephilim. Uma época na qual Roma lutou contra a cidade de Cartago, e ao longo de muitas guerras foi vitoriosa. Após uma das guerras, Roma exigiu que Cartago lhe pagasse tributos, que se desfizesse do exército e que a terra de Cartago fosse coberta de sal. O historiador Tácito disse o seguinte dos romanos: “Eles fazem um deserto e chamam isso de paz.” — Voltou-se para Jia: — Os cartagineses nunca se esqueceram. O ódio a Roma suscitou outra guerra, e tal guerra terminou em morte e escravidão. Aquilo não foi paz. Isto não é paz.
Com isso, vieram gritos da assembleia.
— Talvez não queiramos paz, feiticeiro! — gritou alguém.
— Então qual é a sua solução? — questionou outra pessoa.
— Clemência — respondeu Magnus. — O Povo das Fadas há muito odeia os Nephilim por sua severidade. Mostrem a eles algo além de severidade e em troca receberão algo além de ódio!
Um novo burburinho se irrompeu, porém dessa vez mais alto que nunca; Jia levantou a mão, e a multidão se aquietou.
— Mais alguém aqui fala em nome do Povo das Fadas? — perguntou ela.
Magnus, sentando-se novamente, olhou de soslaio para os colegas do Submundo, mas Lily sorria e Luke encarava a mesa fixamente. Era de conhecimento geral que a irmã dele tinha sido a primeira a ser levada e Transformada em Crepuscular por Sebastian Morgenstern, que muitos dos lobos do Praetor eram amigos dele, inclusive Jordan Kyle – e, mesmo assim, havia dúvida no rosto de Luke...
— Luke — falou Magnus, com uma voz suave que de algum jeito conseguira ecoar pelo salão. — Por favor.
A dúvida desapareceu. Luke balançou a cabeça de forma sombria.
— Não peça o que não posso dar — respondeu. — Todo o Praetor foi destruído, Magnus. Como representante dos lobisomens, não posso me pronunciar contra o que todos eles querem. Se eu fizesse isso, eles se voltariam contra a Clave, e nada de bom sairia disso.
— Pronto, então — disse Jia. — Fale, Kaelie Whitewillow. Concordará com as condições ou haverá uma guerra entre nós?
A menina fada baixou a cabeça.
— Concordamos com as condições.
A assembleia explodiu em aplausos. Apenas alguns não bateram palmas: Magnus, a fila dos Blackthorn, os Lightwood e a própria Emma. Ela estava ocupada demais observando Kaelie enquanto a fada se sentava. A cabeça podia estar abaixada em submissão, mas o rosto parecia carregado de fúria incandescente.
— Então está feito — disse Jia, claramente satisfeita. — Agora passaremos ao tópico sobre...
— Espere. — Um Caçador de Sombras magro e de cabelos escuros tinha se levantado. Emma não o reconhecera. Poderia ser qualquer um. Talvez um Cartwright? Um Pontmercy? — A questão de Mark e Helen Blackthorn permanece.
Helen fechou os olhos. Parecia um réu num tribunal – meio que à espera de uma condenação, meio que torcendo por um indulto – bem no ato em que a condenação era decretada.
Jia pausou, a caneta na mão.
— O que quer dizer, Balogh?
Balogh se levantou.
— Já se discutiu o fato de que as forças de Morgenstern penetraram o Instituto de Los Angeles com grande facilidade. Tanto Mark quanto Helen têm sangue de fada, Sabemos que o menino já está com a Caçada Selvagem, então não podemos fazer nada, mas a menina não deve permanecer entre Caçadores de Sombras. Não é aceitável.
Aline se levantou.
— Isso é ridículo! — disparou. — Helen é Caçadora de Sombras; sempre foi! Ela tem sangue do Anjo, você não pode ignorar isso!
— E sangue de fada — argumentou Balogh. — Ela consegue mentir. Para nosso desgosto, já fomos enganados por um da espécie dela. E digo que temos que remover suas Marcas...
Luke bateu na mesa, causando um estrondo; Magnus estava inclinado para a frente, as mãos com dedos longos cobrindo-lhe o rosto, os ombros encolhidos.
— A menina não fez nada — disse Luke. — Você não pode puni-la por um acaso congênito.
— Acasos congênitos fazem de nós o que somos — rebateu Balogh, com teimosia. — Você não pode negar o sangue de fada nela. Não pode negar que ela consegue mentir. Se uma nova guerra acontecer, de que lado sua lealdade estará?
Helen se levantou.
— Do mesmo lado em que esteve agora — refutou ela. — Lutei em Burren, na Cidadela e em Alicante, para proteger minha família e proteger os Nephilim. Jamais dei qualquer motivo para que alguém questionasse minha lealdade.
— É assim que acontece — enfatizou Magnus, levantando-se. — Não conseguem enxergar que é assim que começa, de novo?
— Helen tem razão — disse Jia. — Ela não fez nada de errado.
Outra Caçadora de Sombras se levantou, uma mulher com cabelos escuros amontoados na cabeça.
— Com sua licença, Consulesa, mas a senhora não é imparcial — opinou ela. — Todos nós sabemos da relação de sua filha com a menina fada. A senhora deveria se abster da discussão.
— Helen Blackthorn é necessária, senhora Sedgewick — disse Diana Wrayburn, levantando-se. Parecia revoltada; Emma se lembrou dela no Salão dos Acordos, da maneira como tentou ajudá-la. — Os pais dela foram assassinados; ela tem cinco irmãos mais novos para cuidar...
— Ela não é necessária — disparou Sedgewick. — Estamos reabrindo a Academia; as crianças podem ir para lá, ou podem se dividir por diferentes Institutos...
— Não — sussurrou Julian. As mãos estavam cerradas, apoiadas nos joelhos.
— De jeito nenhum — berrou Helen. — Jia, você deve...
Jia encontrou os olhos dela e assentiu, lenta e relutantemente.
— Arthur Blackthorn — ordenou. — Por favor, levante-se.
Emma sentiu Julian congelando em choque ao seu lado quando um homem do outro lado do recinto, o qual estava oculto em meio à multidão, se levantou.
Era uma versão magra, mais pálida e menor do pai de Julian, com cabelos castanhos ralos e os olhos dos Blackthorn semiescondidos por trás de óculos. Estava pesadamente apoiado em uma bengala de madeira, demonstrando um desconforto que a fez imaginar que o ferimento que requeria a bengala era recente.
— Gostaria de esperar até depois desta reunião para que as crianças conhecessem o tio adequadamente — disse Jia. — Chamei-o assim que soube dos ataques ao Instituto de Los Angeles, é claro, mas ele tinha sido ferido em Londres. Só chegou a Idris hoje de manhã — ela suspirou. — Senhor Blackthorn, pode se apresentar.
O homem tinha um rosto redondo e simpático, e parecia extremamente desconfortável ao ser encarado por tantas pessoas.
— Sou Arthur Blackthorn, irmão de Andrew Blackthorn — falou.
Seu sotaque era britânico; Emma sempre se esquecia que o pai de Julian era de Londres originalmente. Ele tinha perdido o sotaque há anos.
— Vou me mudar para o Instituto de Los Angeles assim que possível, e levarei meus sobrinhos comigo. As crianças ficarão sob minha proteção.
— Aquele é realmente seu tio? — sussurrou Emma, encarando o sujeito.
— Sim, é ele — sussurrou Julian de volta, claramente agitado. — É só que... eu imaginava... quero dizer, eu estava realmente começando a achar que ele não viria. Eu... eu preferia que Helen cuidasse de nós.
— Ao mesmo tempo em que tenho certeza de que estamos todos incomensuravelmente aliviados por você cuidar das crianças Blackthorn — disse Luke — Helen é uma delas. Está dizendo que, ao assumir a responsabilidade pelos irmãos mais novos, concorda que as Marcas dela devam ser removidas?
Arthur Blackthorn pareceu horrorizado.
— De jeito nenhum — falou. — Meu irmão pode não ter sido sábio em seus... galanteios... mas todos os registros afirmam que os filhos de Caçadores de Sombras são Caçadores de Sombras. Como dizem, ut incepit fidelis sic permanent.
Julian deslizou no assento.
— Mais latim — murmurou. — Exatamente como papai.
— O que isso quer dizer? — perguntou Emma.
— “Ela começa leal e termina leal”... algo assim.
Os olhos de Julian percorreram o salão; todos estavam murmurando e encarando. Jia em uma conversa em surdina com Robert e os representantes do Submundo. Helen continuava de pé, mas Aline parecia ser a única coisa a sustentá-la.
O grupo no palanque se separou, e Robert Lightwood deu um passo para a frente. Sua expressão era ameaçadora.
— Para que não haja qualquer discussão de que a amizade pessoal entre Jia e Helen Blackthorn influenciou sua decisão, ela se absteve — informou ele. — O restante de nós decidiu que, como Helen tem 18 anos, a idade em que muitos jovens Caçadores de Sombras são colocados em outros Institutos para estudar, ela irá para a Ilha Wrangel para estudar as barreiras.
— Por quanto tempo? — manifestou-se Balogh imediatamente.
— Por tempo indeterminado — respondeu Robert, e Helen sentou-se na cadeira, com Aline ao lado, o rosto expressando dor e choque.
A Ilha Wrangel podia ser o berço de todas as barreiras que protegiam o mundo, um posto de muito prestígio sob muitos aspectos, mas era também uma ilha minúscula no congelado mar Ártico ao norte da Rússia, a milhares de quilômetros de Los Angeles.
— Está bom para vocês? — perguntou Jia, com a voz gélida. — Senhor Balogh? Senhora Sedgewick? Vamos votar? Todos a favor de enviar Helen Blackthorn para a Ilha Wrangel até que sua lealdade seja determinada, digam “sim”.
Um coro dizendo “sim” e um mais discreto dizendo “não” atravessou a sala. Emma não disse nada, nem Jules; ambos eram jovens demais para votar. Emma esticou a mão e pegou a de Julian, apertando-a com força; os dedos dele pareciam gelo. Ele tinha o olhar de alguém que já havia apanhado tanto que nem queria mais levantar. Helen soluçava baixinho nos braços de Aline.
— Permanece a questão de Mark Blackthorn — disse Balogh.
— Qual questão? — perguntou Robert Lightwood, soando exasperado. — O menino foi levado pela Caçada Selvagem! Na improbabilidade de conseguir negociar a liberação dele, este não deveria ser um problema com o qual devamos nos preocupar quando for a hora?
— É justamente isso — disse Balogh. — Desde que não negociemos a soltura, o problema se resolve sozinho. O menino provavelmente está melhor com seus semelhantes.
O rosto redondo de Arthur Blackthorn empalideceu.
— Não — falou. — Meu irmão não quereria isso. Ele iria querer o menino em casa, com a família — ele apontou para onde Emma e Julian estavam sentados. — Tantas coisas já foram tiradas deles. Como podemos tirar mais?
— Estamos protegendo-os — Sedgewick se irritou. — Contra um irmão e uma irmã que, com o tempo, provavelmente só irão traí-los, e eles vão perceber que a lealdade deles está com as Cortes. Todos em favor do abandono permanente das buscas por Mark Blackthorn digam “sim”.
Emma esticou o braço para segurar Julian enquanto ele se inclinava para a frente na cadeira. Ela estava desajeitadamente agarrada a ele. Todos os músculos de Julian pareciam duros como ferro, como se ele estivesse se preparando para uma queda ou um golpe. Helen se inclinou para ele, sussurrando e murmurando, o rosto dela marcado por lágrimas. Quando Aline esticou o braço por cima de Helen para afagar o cabelo de Jules, Emma viu o anel Blackthorn brilhando no dedo dela. Enquanto o coro dizendo “sim” percorria o recinto em uma terrível sinfonia, o brilho da joia fazia Emma pensar na luz do sinal de alerta no oceano, onde ninguém podia ver, onde não havia ninguém para se importar.
Se aquilo era paz e vitória, pensou Emma, talvez guerra e luta fossem melhores, afinal.
***
Jace deslizou das costas do cavalo e esticou a mão para ajudar Clary a descer.
— Chegamos — disse ele, virando para olhar o lago.
Estavam em uma praia rasa na costa oeste do Lago Lyn. Não era a mesma praia em que Valentim se postara ao invocar o Anjo Raziel, não era a mesma praia onde Jace sangrara até a morte e depois ressuscitara, mas Clary não vinha ao lago desde então, e a visão dele ainda lhe causava calafrios.
Era um local adorável, sem dúvida. O lago se estendia, tingido pela cor do céu de inverno, delineado em prata, a superfície escovada e ondulada de modo que lembrava um pedaço de papel-alumínio dobrando e desdobrando ao toque do vento. As nuvens eram brancas e altas, e as colinas ao redor, sem vegetação.
Clary avançou até a beira da água. Tinha achado que a mãe viria com ela, mas na última hora Jocelyn recusara, alegando já ter se despedido do filho havia muito tempo e afirmando que esta era a vez de Clary. A Clave tinha cremado o corpo – a pedido de Clary. A cremação era uma honra, e os que morriam em desgraça eram enterrados em cruzamentos, intactos e sem cremação, assim como acontecera à mãe de Jace. A cremação era mais que um favor, pensou Clary; era uma garantia para a Clave, a certeza absoluta de que ele estava morto.
Mas, mesmo assim, as cinzas de Jonathan jamais poderiam ser levadas para a casa dos Irmãos do Silêncio. Jamais fariam parte da Cidade dos Ossos; ele jamais seria uma alma entre outras almas Nephilim. Ele nunca seria enterrado entre aqueles cujas mortes havia provocado, e isso, pensou Clary, era muito justo. Os Crepusculares foram cremados, e suas cinzas enterradas no cruzamento próximo a Brocelind. Ergueriam um monumento ali, uma necrópole para que se recordassem daqueles que um dia foram Caçadores de Sombras, no entanto não haveria monumento para recordar Jonathan Morgenstern, de quem ninguém queria se lembrar. Até Clary queria poder esquecer, mas nada era tão fácil.
A água do lago estava límpida, com um ligeiro brilho de arco-íris, como uma lustrada de óleo. A água lambeu as botas de Clary enquanto ela abria a caixa prateada que segurava. Lá dentro estavam as cinzas, finas e cinzentas, pontilhadas com pedaços de ossos queimados. Entre as cinzas estava o anel Morgenstern, brilhante e prateado. O anel estivera pendurado em um cordão no pescoço de Jonathan quando ele fora cremado, e permanecera intacto e intocado pelo fogo.
— Nunca tive um irmão — disse ela. — Não de verdade.
Clary sentiu Jace colocando a mão em suas costas, entre os ombros.
— Teve, sim — corrigiu ele. — Teve Simon. Ele foi seu irmão de todas as maneiras que importam. Viu você crescer, defendeu você, lutou com e por você, se importou com você a vida toda. Foi o irmão que você escolheu. Mesmo que ele... não esteja mais aqui, nada nem ninguém pode tirar isso de você.
Clary respirou fundo e jogou a caixa o mais longe possível, a qual voou longe, sobre a água brilhante como arco-íris, cinzas pretas deixando um rastro, como a coluna de fumaça de um jatinho, e o anel caiu junto, girando sem parar, irradiando faíscas prateadas enquanto caía e caía e desaparecia sob a água.
— Ave atque vale — disse ela, recitando os versos completos do antigo poema. — Ave atque vale in perpetuum, frater. Saudações e adeus para sempre, meu irmão.
A brisa que vinha do lago era fria; Clary a sentia no rosto, gelada nas bochechas, e só então percebeu que chorava, e que seu rosto na verdade estava frio por estar molhado pelas lágrimas. Após saber que Jonathan estava vivo, ficou imaginando por que a mãe chorava todos os anos no aniversário dele. Por que chorar se o odiava? Mas agora Clary compreendia. A mãe chorava pelo filho que nunca teria, por todos os sonhos perdidos na imaginação de ter um filho, na ideia de como o menino seria. E chorava pelo acaso amargo que destruíra aquela criança antes mesmo de seu nascimento. Então, como Jocelyn havia feito durante tantos anos, Clary ficou ao lado do Espelho Mortal e chorou pelo irmão que jamais teria, pelo menino que nunca tivera a chance de viver. E também chorou por todos os que morreram na Guerra Maligna, e chorou pela mãe, pela perda que ela sofrera, por Emma e pelos Blackthorn, lembrando-se de como se esforçaram para segurar as lágrimas quando ela lhes contara que tinha visto Mark nos túneis de Faerie, e de como ele agora era parte da Caçada, e chorou por Simon e pelo buraco no coração onde ele habitara, e pelo quanto sentiria saudade dele todos os dias até morrer, e chorou por ela mesma e pelas mudanças que aconteceram dentro dela, pois às vezes mesmo mudanças para melhor se assemelhavam um pouco à morte.
Jace ficou ao lado de Clary enquanto ela chorava, segurando sua mão silenciosamente, até as cinzas de Jonathan acabarem de afundar sem deixar rastros.
***
— Não fique ouvindo a conversa alheia — disse Julian.
Emma o encarou. Tudo bem, então ela conseguia ouvir as vozes elevadas através da madeira espessa da porta do escritório da Consulesa, porta que estava fechada, exceto por uma rachadura. E talvez estivesse se inclinando em direção à porta, atormentada pelo fato de poder ouvir as vozes, quase identificá-las, mas não com precisão. E daí? Não era melhor saber das coisas do que não saber?
Ela articulou a boca sem emitir som:
— E daí?
Julian ergueu as sobrancelhas. Não se podia dizer particularmente que Julian gostava de regras, mas ele as obedecia. Emma achava que regras existiam para serem quebradas, ou no mínimo contornadas.
Além disso, estava entediada. Ambos tinham sido conduzidos à porta e deixados ali por um dos membros do Conselho, ao fim do longo corredor que se estendia por quase toda a extensão do Garde. Havia tapeçarias penduradas por toda a entrada do escritório, gastas pela passagem do tempo. A maioria delas ilustrava passagens da história dos Caçadores de Sombras: o Anjo ascendendo do lago com os Instrumentos Mortais, o Anjo entregando o Livro Cinza a Jonathan Caçador de Sombras, os Primeiros Acordos, a Batalha de Xangai, o Conselho de Buenos Aires. Havia também outra tapeçaria, esta parecendo mais nova e recém-pendurada, que ilustrava o Anjo saindo do lago, desta vez sem os Instrumentos Mortais. Havia um homem louro à beira do lago e, perto dele, quase invisível, a figura de uma menina magrinha com cabelos ruivos, empunhando uma estela...
— Um dia vai existir uma tapeçaria sobre você — disse Jules.
Emma desviou o olhar para ele.
— É preciso fazer alguma coisa muito grande para ganhar uma tapeçaria. Tipo vencer uma guerra.
— Você pode vencer uma guerra — afirmou ele, confiante.
Emma sentiu um ligeiro aperto no coração. Quando Julian a olhava daquele jeito, como se ela fosse brilhante e incrível, diminuía um pouco a dor pela ausência dos pais. Ter alguém gostando de você daquele jeito era uma garantia de que nunca se sentiria totalmente só.
A não ser que eles decidissem tirar Emma de Jules, é claro. Que a obrigassem a se mudar para Idris, ou para algum dos Institutos onde tinha parentes distantes – Inglaterra, China ou Irã. Subitamente em pânico, ela pegou a estela e marcou um símbolo de audição no braço antes de encostar a orelha contra a madeira da porta, ignorando o olhar de Julian.
As vozes imediatamente se tornaram claras. Ela reconheceu primeiro a de Jia, e em um instante, a segunda: a Consulesa estava conversando com Luke Garroway.
— ... Zacarias? Ele não é mais um Caçador de Sombras ativo — falava Jia.
— Ele foi embora hoje antes da reunião, dizendo que tinha algumas pontas soltas para atar, e em seguida um compromisso urgente em Londres no começo de janeiro, algo que não podia perder.
Luke murmurou uma resposta que Emma não ouviu; ela não sabia que Zacarias ia embora, e gostaria de ter podido agradecer pela ajuda que ele dera na noite da batalha. E de ter perguntado como ele sabia que seu nome do meio era Cordelia.
Ela se inclinou mais para a porta e ouviu Luke no meio de uma frase:
— ... tinha que contar primeiro a você — dizia. — Estou planejando renunciar a minha posição de representante. Maia Roberts ficará no meu lugar.
Jia emitiu um ruído surpreso.
— Ela não é um pouco jovem?
— É muito capaz — respondeu Luke. — Não precisa do meu aval...
— Não precisa mesmo — concordou Jia. — Sem o aviso dela de que Sebastian iria atacar, teríamos perdido muito mais Caçadores de Sombras.
— E ela será a líder do bando de Nova York a partir de agora, então faz mais sentido que ela seja a representante, e não eu — ele suspirou. — Além disso, Jia, perdi minha irmã. Jocelyn perdeu o filho... outra vez. E Clary ainda está arrasada pelo que aconteceu a Simon. Quero estar presente para minha filha.
Jia emitiu um ruído descontente.
— Talvez eu não devesse tê-la deixado tentar ligar para ele.
— Ela precisava saber — disse Luke. — É uma perda. Ela tem que assimilar. Tem que passar pelo luto. Gostaria de estar por perto para ajudá-la. Gostaria de me casar. Gostaria de estar presente para minha família. Preciso renunciar.
— Bem, você tem minha bênção, é claro — falou ela. — Embora eu fosse gostar de sua ajuda na reabertura da Academia. Perdemos tanta gente. Fazia muito tempo que a morte não levava tantos Nephilim. Precisamos fazer uma busca no universo mundano, encontrar aqueles que podem Ascender, ensiná-los e treiná-los. Teremos muito trabalho.
— E muitas pessoas para ajudar — o tom de Luke era inflexível.
Jia suspirou.
— Vou receber Maia bem, não há o que temer. Pobre Magnus, cercado de mulheres.
— Duvido que ele vá se importar, ou notar — disse Luke. — No entanto, devo dizer, ele tem razão, Jia. Abandonar as buscas por Mark Blackthorn, enviar Helen Blackthorn para a Ilha Wrangel... Foi uma crueldade desmedida.
Fez-se uma pausa, e então:
— Eu sei — concordou Jia, com a voz baixa. — Acha que não sei o que fiz com minha própria filha? Mas permitir que Helen ficasse... vi o ódio nos olhos de meus próprios Caçadores de Sombras e temi por Helen. Temi por Mark, caso o encontremos.
— Bem, já eu notei a desolação nos olhos das crianças Blackthorn — argumentou Luke.
— Crianças são fortes.
— Eles perderam o irmão e o pai, e agora você os está deixando para que sejam criados por um tio que só viram algumas vezes na vida...
— Vão passar a conhecê-lo; ele é um homem bom. Diana Wrayburn também já solicitou o cargo de tutora deles, e estou inclinada a conceder. Ela ficou impressionada com a coragem deles...
— Mas não é mãe deles. Minha mãe me abandonou quando eu era criança — disse Luke. — Ela se tornou uma Irmã de Ferro. Cleophas. Nunca mais a vi. Amatis me criou. Não sei o que teria feito sem ela. Era... tudo que eu tinha.
Emma olhou rapidamente para Julian, para ver se ele tinha escutado. Achou que não; ele não estava olhando para ela, mas encarando o nada, os olhos verde-azulados tão distantes quanto o oceano ao qual se assemelhavam. Ela ficou se perguntando se ele estaria se lembrando do passado ou temendo o futuro; desejou que pudesse rebobinar o relógio, recuperar os pais, devolver o pai a Jules, Helen e Mark, consertar o que estava quebrado.
— Sinto muito por Amatis — disse Jia. — E estou preocupada com as crianças Blackthorn, acredite. Mas sempre tivemos órfãos; somos Nephilim. Você sabe disso tão bem quanto eu. Quanto à menina Carstairs, será trazida a Idris; temo que ela fique um pouco resistente...
Emma empurrou a porta do escritório, a qual cedeu com mais facilidade do que ela esperava, e ela meio que caiu lá dentro. Ouviu Jules soltar uma exclamação de espanto e em seguida ir atrás dela, puxando a traseira do cinto para colocá-la de pé.
— Não! — exclamou ela.
Tanto Jia quanto Luke a encararam, surpresos; a boca de Jia parcialmente aberta, Luke começando a esboçar um sorriso.
— Um pouco? — disse ele.
— Emma Carstairs — começou Jia, levantando — como você ousa...
— Como você ousa.
E Emma ficou completamente surpresa por ter sido Julian a dizer aquela frase, seus olhos verdes queimando. Em cinco segundos ele passou de menino preocupado a jovem furioso, os cabelos castanhos arrepiados, como se também estivessem irritados.
— Como ousa gritar com Emma quando foi você quem fez promessas? Você prometeu que a Clave jamais abandonaria Mark enquanto ele estivesse vivo, você prometeu!
Jia teve a decência de parecer envergonhada.
— Ele agora faz parte da Caçada Selvagem — justificou ela. — Eles não são mortos nem vivos.
— Então você sabia — disse Julian. — Quando fez sua promessa, sabia que não significava nada.
— Significava salvar Idris — respondeu Jia. — Sinto muito. Precisávamos de vocês dois, e eu... — Ela soou como se estivesse engasgando com as palavras. — Eu teria cumprido a promessa caso pudesse. Se houvesse um jeito... se pudesse ser feito... eu faria.
— Então você tem uma dívida conosco — disse Emma, plantando os pés com firmeza diante da mesa da Consulesa. — Você nos deve uma promessa quebrada. Então tem que fazer isto agora.
— Fazer o quê? — Jia pareceu espantada.
— Não vou me mudar para Idris. Não vou. Meu lugar é em Los Angeles.
Emma sentiu Jules congelar atrás dela.
— Claro que você não vai se mudar para Idris — interrompeu ele. — Do que está falando?
Emma apontou um dedo acusatório para Jia.
— Ela disse isso.
— De jeito nenhum — falou Julian. — Emma mora em Los Angeles; é a casa dela. Pode ficar no Instituto. É o que Caçadores de Sombras fazem. O Instituto é um abrigo.
— Seu tio vai controlar o Instituto — disse Jia. — Ele vai decidir.
— E o que ele disse? — perguntou Julian, e por trás daquelas palavras havia uma enormidade de sentimentos.
Quando Julian amava alguém, amava para sempre; quando odiava, também era para sempre. Emma tinha a sensação de que a dúvida sobre odiar ou amar o tio para sempre seria respondida neste exato momento.
— Ele disse que a receberia — respondeu Jia. — Mas, sinceramente, acho que há lugar para Emma na Academia de Caçadores de Sombras aqui em Idris. Ela é excepcionalmente talentosa, estaria cercada pelos melhores instrutores, há muitos alunos que sofreram perdas e podem ajudá-la com sua dor...
Sua dor. De repente a mente de Emma navegou por uma série de imagens: as fotos dos corpos de seus pais na praia, cobertos por marcas. A clara falta de interesse da Clave no que acontecera com eles. Seu pai abaixando para beijá-la antes de ir para o carro, onde sua mãe esperava. A risada deles ao vento.
— Eu sofri perdas — falou Julian, entre dentes. — Posso ajudá-la.
— Você tem 12 anos — afirmou Jia, como se isso respondesse tudo.
— Não terei 12 para sempre! — gritou Julian. — Eu e Emma nos conhecemos desde sempre. Ela é como... ela é como...
— Nós vamos ser parabatai — declarou Emma subitamente, antes que Julian pudesse falar que ela era como se fosse sua irmã. Por algum motivo, ela não queria ouvir isso.
Os olhos de todos se arregalaram, inclusive os de Julian.
— Julian me pediu, e eu disse sim — esclareceu ela. — Temos 12 anos; temos idade suficiente para fazer essa escolha.
Os olhos de Luke brilharam ao olhar para ela.
— Você não pode separar parabatai — falou ele. — É contra a Lei da Clave.
— Precisamos poder treinar juntos — alegou Emma. — Fazer provas juntos, passar pelo ritual juntos...
— Sim, sim, compreendo — disse Jia. — Muito bem. Seu tio não se importa, Julian, se Emma morar no Instituto, e a instituição parabatai supera todas as outras considerações.
Ela olhou de Emma para Julian, cujos olhos estavam brilhando. Ele parecia feliz, feliz de verdade, pela primeira vez em tanto tempo que Emma quase não conseguia se lembrar da última vez em que o vira sorrir assim.
— Tem certeza? — acrescentou a Consulesa. — Tornar-se parabatai é algo muito sério, nada para ser encarado com leviandade. É um compromisso. Terão que cuidar um do outro, proteger um ao outro, se importar com o outro mais que consigo.
— Já fazemos tudo isso — respondeu Julian, confiante.
Emma demorou um pouco mais para falar. Ainda enxergava os pais em sua mente. Los Angeles tinha todas as respostas sobre o que havia acontecido com eles. Respostas das quais ela precisava. Se ninguém vingasse as mortes deles, seria como se nunca tivessem vivido.
E não era como se ela não quisesse ser parabatai de Julian. A ideia de passar a vida inteira sem nunca se separar dele, uma promessa de que jamais estaria sozinha, superava a voz no fundo de sua mente que sussurrava: espere...
Ela assentiu com firmeza.
— Absoluta — falou. — Temos certeza absoluta.
***
Idris era verde, dourada e castanho-avermelhada no outono, quando Clary esteve lá pela primeira vez. Tinha um esplendor forte no fim do inverno, tão perto do natal: as montanhas se erguiam ao longe, os cumes cobertos por neve branca, e as árvores cercando a estrada que levava de volta a Alicante a partir do lago estavam nuas, os galhos desfolhados formavam estampas semelhantes a renda contra o céu brilhante.
Cavalgaram sem pressa, Wayfarer galopando levemente pelo caminho, Clary atrás de Jace, os braços segurando-o pelo tronco. Às vezes ele desacelerava o cavalo para apontar para as casas das famílias de Caçadores de Sombras mais ricas, que ficavam escondidas da estrada quando as árvores estavam carregadas, no entanto estavam visíveis agora. Ela sentiu os ombros dele enrijecerem quando passaram por uma cujas pedras cobertas por hera quase se camuflavam na floresta ao redor. Obviamente tinha sido incendiada e reconstruída.
— O solar Blackthorn — disse ele. — O que significa que depois desta curva está...
Ele pausou quando Wayfarer subiu um pequeno monte, e então Jace o controlou para que pudessem olhar para onde a estrada se bifurcava. Uma das direções levava a Alicante. Clary achou estar vendo as torres demoníacas ao longe, enquanto a outra se curvava em direção a uma enorme construção de pedras douradas, cercada por um muro baixo.
— O solar Herondale — concluiu Jace.
O vento aumentou; gelado, soprou os cabelos de Jace. Clary estava com o capuz levantado, mas Jace estava com a cabeça e as mãos desprotegidas, após declarar que detestava usar luvas quando montava. Gostava de sentir as rédeas na mão.
— Quer descer e dar uma olhada? — perguntou ela.
A respiração dele saiu em uma nuvem branca.
— Não tenho certeza.
Ela se aconchegou mais perto dele, tremendo.
— Está com medo de perder a reunião do Conselho? — Ela estava, apesar de que fossem voltar para Nova York no dia seguinte e não fosse haver outro momento no qual ela poderia pensar em repousar secretamente as cinzas de seu irmão; fora Jace quem sugerira pegar o cavalo no estábulo e cavalgar até o Lago Lyn quando quase todo mundo em Alicante estivesse no Salão dos Acordos.
Jace entendia o que significava para Clary a ideia de enterrar o irmão, muito embora fosse ser difícil explicar para qualquer outra pessoa.
Ele balançou a cabeça.
— Somos jovens demais para votar. Além disso, acho que eles se viram bem sem nós dois — ele franziu a testa. — Teríamos que invadir. A Consulesa disse que enquanto eu quiser me chamar Lightwood, não terei qualquer direito legal sobre as propriedades Herondale. Sequer tenho um anel Herondale. Nem existe. As Irmãs de Ferro teriam que forjar um novo. Inclusive, quando eu fizer 18 anos, perderei totalmente o direito ao nome.
Clary ficou sentada, parada, segurando levemente a cintura dele. Havia momentos em que ele queria ser estimulado e queria que fizessem perguntas, e momentos em que não queria. Este se encaixava na segunda opção. Jace chegaria a uma conclusão sozinho. Ela o abraçou, respirando baixinho até ele ficar tenso de repente e bater os pés nas laterais de Wayfarer.
O cavalo trotou pela trilha que levava ao solar. Os portões baixos – decorados em ferro com insígnias de pássaros voando – estavam abertos, e a trilha levava a uma entrada circular de cascalhos, ao centro da qual havia um chafariz de pedra, agora seco. Jace foi até a frente dos amplos degraus que levavam à porta principal e ficou olhando para as janelas vazias.
— Foi aqui que nasci — informou. — Aqui que minha mãe morreu, e onde Valentim me arrancou do corpo dela. E onde Hodge me pegou e me escondeu, para que ninguém soubesse. Também era inverno.
— Jace... — Ela abriu as mãos sobre o peito dele, sentindo o coração com os dedos.
— Acho que quero ser um Herondale — disse ele subitamente.
— Então seja um Herondale.
— Não quero trair os Lightwood — falou. — São minha família. Mas percebi que se eu não assumir o nome Herondale, este morrerá comigo.
— Não é responsabilidade sua...
— Eu sei — respondeu. — Na caixa, aquela que Amatis me deu, tinha uma carta do meu pai para mim. Ele escreveu antes de eu nascer. Li algumas vezes. Nas primeiras vezes em que li, simplesmente o odiei, apesar de ele ter falado que me amava. Mas havia algumas frases que não consegui tirar da minha cabeça. Ele disse “quero que você seja um homem melhor do que eu fui. Não deixe que ninguém lhe diga quem você é ou deve ser”. — ele inclinou a cabeça para trás, como se capaz de ler o futuro na curva das calhas do solar. — Mudar o nome não muda a natureza. Veja só Sebastian... Jonathan. Chamar-se Sebastian não fez a menor diferença no fim. Eu queria me livrar do nome Herondale porque achava que odiava meu pai, mas não o odeio. Ele pode ter sido fraco e feito as escolhas erradas, mas estava ciente disso. Não tenho razão para odiá-lo. E houve gerações de Herondale antes dele; é uma família que fez muitas coisas boas, então deixar esta casa inteira ruir só para me vingar de meu pai seria um desperdício.
— Esta é a primeira vez que ouço você chamá-lo de pai, e que soa como tal — disse Clary. — Normalmente você só fala assim de Valentim.
Ela o sentiu suspirar, e então cobriu as mãos dela com a dele, que estavam em seu peito. Os dedos longos e esguios estavam gelados, tão familiares que ela seria capaz de reconhecê-los no escuro.
— Podemos morar aqui um dia — disse ele. — Juntos.
Ela sorriu, sabendo que ele não podia vê-la, mas sem conseguir se conter.
— Acha que me ganha com uma casa chique? — brincou ela. — Não se precipite, Jace. Jace Herondale — acrescentou, e o abraçou no frio.
***
Alec estava sentado na beira do telhado, balançando os pés. Supunha que se algum dos pais retornasse para casa e olhasse para cima, eles o veriam ali e gritariam com ele, mas duvidava que Maryse ou Robert fossem voltar tão cedo. Foram chamados ao escritório da Consulesa depois da reunião e provavelmente ainda estavam lá. O novo tratado com o Povo das Fadas seria acertado ao longo da semana seguinte, e durante este período eles ficariam em Idris, enquanto o restante dos Lightwood voltaria a Nova York e comemoraria o ano-novo sem eles. Alec tecnicamente iria administrar o Instituto naquela semana. Ficou surpreso em descobrir que estava ansioso por isso.
Tal responsabilidade era uma boa forma de distrair a mente de outras coisas. Coisas como o estado de Jocelyn quando seu filho morrera, ou a maneira como Clary abafara seus soluços silenciosos contra o chão ao perceber que tinham voltado de Edom sem Simon. A expressão de Magnus, carregada de desespero, enquanto dizia o nome de seu pai.
A perda era parte da vida dos Caçadores de Sombras, era algo esperado, mas isso não ajudara Alec em nada ao ver a expressão de Helen no Salão do Conselho quando ela foi exilada para a Ilha Wrangel.
— Não havia nada que você pudesse fazer. Não se condene — a voz era familiar; Alec cerrou os olhos, tentando regular a respiração antes de responder.
— Como chegou aqui em cima? — perguntou.
Fez-se um ruído de tecido farfalhando enquanto Magnus se acomodava ao lado de Alec na beira do telhado.
Alec arriscou uma olhada de soslaio para ele. Só tinha visto Magnus duas vezes, brevemente, desde a volta de Edom; uma quando os Irmãos do Silêncio os liberaram da quarentena, e outra no Salão do Conselho. Em nenhuma das ocasiões conseguiram conversar. Alec o olhava agora com uma ansiedade que desconfiava estar mal disfarçada. Magnus já recuperara a cor saudável depois da aparência desgastada que adquirira em Edom; os hematomas estavam praticamente curados, os olhos tinham recuperado a luz, brilhando sob o céu crepuscular.
Alec se lembrou de ter abraçado Magnus no reino demoníaco, quando o encontrou acorrentado, e ficou imaginando por que essas coisas eram mais fáceis quando você achava que estava prestes a morrer.
— Eu deveria ter falado alguma coisa — comentou Alec. — Votei contra o exílio.
— Eu sei — disse Magnus. — Você e mais ou menos outras dez pessoas. A votação foi imensamente favorável ao exílio de Helen. — Ele balançou a cabeça. — As pessoas se assustam e descontam em qualquer um que julgam ser diferente. É a mesma história que já vi mil vezes.
— Faz com que eu me sinta tão inútil.
— Você é tudo menos inútil — Magnus inclinou a cabeça para trás, os olhos vasculhando o céu enquanto as estrelas começavam a aparecer, uma a uma. — Salvou minha vida.
— Em Edom? — perguntou Alec. — Ajudei, mas na verdade... você salvou a própria vida.
— Não só em Edom — falou Magnus. — Eu tinha... eu tenho quase 400 anos de idade, Alexander. Feiticeiros, à medida que envelhecem, começam a calcificar. Param de conseguir sentir coisas. De se importar, de se animar, de se surpreender. Eu sempre disse a mim que isso jamais aconteceria comigo. Que eu tentaria ser como Peter Pan, que não cresceria, sempre conservaria o senso de surpresa. Que sempre me apaixonaria, me surpreenderia, me disporia a me machucar tanto quanto me disporia a ser feliz. Mas ao longo dos últimos vinte anos mais ou menos, senti a idade me alcançar assim mesmo. Antes de você, eu não tinha ninguém há muito tempo. Ninguém que eu tenha amado. Ninguém que tenha me surpreendido ou me tirado o fôlego. Até você entrar naquela festa, eu achava que nunca mais voltaria a sentir com tanta intensidade.
Alec prendeu a respiração e olhou para as próprias mãos.
— O que está dizendo? — A voz saiu trêmula. — Que quer reatar?
— Se você quiser — falou Magnus, e de fato soou inseguro, o suficiente para Alec encará-lo, surpreso.
Magnus parecia muito jovem, olhos arregalados, verde-dourados, o cabelo tocando as têmporas em cachos negros.
— Se você...
Alec ficou paralisado. Há semanas vinha sonhando acordado com Magnus falando aquelas exatas palavras, mas agora que estava acontecendo, não se sentia como imaginara. Não houve fogos de artifício no peito; sentia-se vazio e frio.
— Não sei — respondeu.
A luz nos olhos de Magnus se apagou. Ele disse:
— Bem, consigo entender que você... não fui muito gentil.
— Não — respondeu Alec bruscamente. — Não foi, mas suponho que seja difícil terminar com alguém de modo gentil. A questão é que realmente lamento pelo que fiz. Errei. Errei feio. Mas o motivo pelo qual errei não vai mudar. Não posso passar a vida com a sensação de que não o conheço. Você fica dizendo que passado é passado, mas o passado fez de você quem é. Eu quero saber sobre a sua vida. E, se não estiver disposto a me contar, então não devo ficar com você. Porque eu me conheço, e nunca vou aceitar isso na boa. Então não devo submeter nós dois a tudo outra vez.
Magnus puxou os joelhos para o peito. No crepúsculo, ele parecia desengonçado contra as sombras, com pernas e braços longos e dedos esguios brilhando por causa dos anéis.
— Eu te amo — disse ele baixinho.
— Não... — retrucou Alec. — Não faça isso. Não é justo. Além disso... — Ele desviou o olhar. — Duvido que eu seja o primeiro a partir seu coração.
— Meu coração já foi partido mais vezes que a Lei da Clave sobre Caçadores de Sombras não poderem se envolver romanticamente com integrantes do Submundo foi violada — falou Magnus, mas a voz soou frágil. — Alec... você tem razão.
Alec olhou de esguelha para ele. Desconfiava que provavelmente nunca tinha visto um feiticeiro tão vulnerável.
— Não é justo com você — disse Magnus. — Eu sempre disse a mim mesmo que ia me abrir a novas experiências, então quando comecei a... a endurecer... fiquei surpreso. Achei que tivesse feito tudo certo, que não tivesse fechado o coração. E aí pensei no que você falou, e percebi que estava começando a morrer por dentro. Se jamais conta a ninguém a verdade sobre si, em algum momento começa a esquecê-la. O amor, a dor, a alegria, o desespero, as coisas boas que fiz, as vergonhosas... se eu guardasse todas para mim, minhas lembranças começariam a desaparecer. E eu desapareceria.
— Eu... — Alec não sabia ao certo o que dizer.
— Tive muito tempo para pensar desde que terminamos — falou Magnus. — E escrevi isto.
Ele tirou um caderno do bolso interno do paletó: um caderno normal, em espiral e com folhas pautadas, mas quando o vento bateu, Alec notou que as páginas estavam preenchidas por uma letra cursiva bem delicada. A letra de Magnus.
— Escrevi a minha vida.
Alec arregalou os olhos.
— A vida toda?
— Não toda — respondeu Magnus cautelosamente. — Mas alguns dos incidentes que me moldaram. Como conheci Raphael, quando ele era bem jovem — falou Magnus, e soou triste. — Como me apaixonei por Camille. A história do Hotel Dumort, embora Catarina tenha precisado me ajudar nessa parte. Alguns dos meus primeiros amores, e alguns dos últimos. Nomes que você talvez conheça: Herondale...
— Will Herodale — disse Alec. — Camille o mencionou.
Ele pegou o caderno; as páginas finas pareciam irregulares, como se Magnus tivesse pressionado a caneta com muita força enquanto escrevia.
— Você esteve... com ele?
Magnus riu e balançou a cabeça.
— Não... mas há muitos Herondale nessas páginas. O filho de Will, James Herondale, era incrível, assim como a irmã de James, Lucie. Mas devo dizer que Stephen Herondale me fez perder o encanto pela família, até Jace aparecer. Aquele sujeito era um saco — Magnus notou Alec encarando-o e acrescentou rapidamente: — Nenhum Herondale. Nenhum Caçador de Sombras, aliás.
— Nenhum Caçador de Sombras?
— Nenhum está em meu coração como você está — disse Magnus. E tamborilou levemente no caderno. — Considere esta uma primeira edição de tudo que quero lhe contar. Eu não tinha muita certeza, mas torci para que... se você quisesse ficar comigo, do mesmo jeito que quero ficar contigo, você encarasse isto como uma prova. Prova de que quero dar a você algo que nunca dei a ninguém: meu passado, a verdade a meu respeito. Quero compartilhar minha vida com você, e isso significa hoje, o futuro e todo meu passado, se você quiser. Se me quiser.
Alec baixou o caderno. Havia algo escrito na primeira página, uma dedicatória: Querido Alec...
Ele via o caminho diante de si muito claramente: poderia devolver o caderno, afastar-se de Magnus, encontrar outra pessoa, um Caçador de Sombras para amar, ficar com ele, compartilhar a previsibilidade de dias e noites, a poesia diária de uma vida comum.
Ou poderia dar um passo para o nada e escolher Magnus, sua poesia muito mais estranha, seu brilho e sua fúria, seus maus-humores e alegrias, as incríveis habilidades de sua magia e a magia não menos incrível da forma extraordinária como ele amava.
E isso mal configurava uma escolha. Alec respirou fundo e mudou de atitude repentinamente.
— Tudo bem — falou.
Magnus correu para ele no escuro, todo enérgico agora, olhos brilhantes e maçãs do rosto acentuadas.
— Sério?
— Sério — respondeu Alec, que esticou a mão e entrelaçou os dedos nos de Magnus.
Havia uma animação sendo despertada no peito de Alec, onde até então tudo estivera escuro. Magnus segurou o rosto de Alec e o beijou, seu toque leve: um beijo lento e suave, um beijo que prometia que havia mais por vir, quando não estivessem mais em um telhado e pudessem ser vistos por qualquer um que passasse.
— Então sou seu primeiro Caçador de Sombras, hein? — perguntou Alec quando finalmente se afastaram.
— Você é meu primeiro muita coisa, Alec Lightwood — respondeu Magnus.
***
O sol estava se pondo quando Jace deixou Clary na casa de Amatis, a beijou e voltou pelo canal para a casa da Inquisidora. Clary ficou observando-o se afastar antes de virar para casa com um suspiro. Sentia-se feliz por estarem indo embora no dia seguinte.
Havia coisas que ela amava em Idris. Alicante continuava sendo a cidade mais charmosa que já vira: acima das casas, agora, dava para ver o pôr do sol fazendo faíscas irradiarem dos topos das torres demoníacas. As fileiras de casas pelo canal eram suavizadas pela sombra, como silhuetas de veludo. Mas era extremamente triste entrar na casa de Amatis, sabendo agora, com certeza, que a dona jamais voltaria.
Por dentro a casa estava aconchegante e pouco iluminada. Luke encontrava-se no sofá, lendo um livro. Jocelyn dormia ao lado dele, encolhida e coberta. Luke sorriu para Clary assim que ela entrou, e apontou para a cozinha, fazendo um gesto bizarro que Clary entendeu como uma indicação de que havia comida, caso ela quisesse.
Ela balançou a cabeça afirmativamente e subiu as escadas nas pontas dos pés, com cuidado para não acordar a mãe. Foi para o quarto, já tirando o casaco, e levou um instante para perceber que havia mais alguém ali.
O quarto estava frio, o ar gelado entrando pela janela semicerrada. Isabelle estava sentada no parapeito, com botas de cano alto cobrindo a calça jeans e com os cabelos soltos, esvoaçando singelamente ao vento. Olhou para Clary quando ela entrou, e sorriu fracamente.
Clary foi até a janela e sentou ao lado de Izzy. Havia espaço suficiente para as duas, mas no limite; a ponta do sapato de Clary tocou a perna de Izzy. Ela abraçou os joelhos e esperou.
— Desculpe — falou Isabelle, afinal. — Eu provavelmente devia ter vindo pela porta da frente, mas não queria ter que lidar com seus pais.
— Foi tudo bem na reunião do Conselho? — perguntou Clary. — Aconteceu alguma coisa...
Isabelle deu uma risada curta.
— As fadas concordaram com as condições impostas pela Clave.
— Bem, isso é bom, certo?
— Talvez. Magnus não pareceu achar — Isabelle exalou. — É só que... Houve um monte de alfinetadas cheias de mágoa e raiva espetando para todos os lados. Não pareceu uma vitória. E vão mandar Helen Blackthorn para a Ilha Wrangel para “estudar as barreiras”. Vai entender. Querem afastá-la porque ela tem sangue de fada.
— Que horror! E Aline?
— Aline vai junto. Ela contou para Alec — relatou Isabelle. — Tem um tio qualquer que vai vir para cuidar dos pequenos Blackthorn e da menina, a que gosta de você e de Jace.
— O nome dela é Emma — disse Clary, cutucando a perna de Isabelle com o pé. — Você podia ao menos tentar se lembrar. Ela nos ajudou, afinal.
— É, está um pouco difícil sentir gratidão no momento.
Isabelle passou as mãos pelas pernas envoltas no jeans e respirou fundo.
— Sei que não tinha outra solução. Fico tentando imaginar alguma, mas não consigo pensar em nada. Tínhamos que ir atrás de Sebastian, tínhamos que ter saído de Edom, ou todos teríamos morrido de qualquer jeito, mas estou com saudades de Simon. Sinto falta dele o tempo todo e vim aqui porque você é a única pessoa que sente tanta saudade quanto eu.
Clary congelou. Isabelle estava brincando com a pedra vermelha no pescoço, olhando pela janela, o tipo de olhar fixo que Clary conhecia bem. O olhar que dizia estou tentando não chorar.
— Eu sei — falou Clary. — Também sinto saudade dele o tempo todo, só que de um jeito diferente. É como acordar sem um braço ou uma perna, como se fosse uma coisa que eu sempre tive, e na qual sempre me apoiei, e agora não tenho mais.
Isabelle continuava olhando pela janela.
— Conte sobre o telefonema — pediu ela.
— Não sei — hesitou Clary. — Foi horrível, Iz. Não acho que você realmente queira...
— Conte — Isabelle repetiu entre dentes, e Clary suspirou e assentiu.
Não era como se não se lembrasse; todos os segundos daquele telefonema ardiam em seu cérebro.
Fazia três dias que tinham voltado, três dias durante os quais todos ficaram em quarentena. Nunca nenhum Caçador de Sombras havia sobrevivido a uma viagem a uma dimensão demoníaca, e os Irmãos do Silêncio queriam ter certeza absoluta de que o grupo não estava trazendo magia negra consigo. Clary passou os três dias gritando com os Irmãos do Silêncio que queria sua estela, queria um Portal, queria ver Simon, queria que alguém apenas verificasse como ele estava, se certificasse de que estava bem. Não viu Isabelle nem os outros naqueles dias, nem mesmo a mãe ou Luke, mas eles provavelmente ficaram aos berros também, pois no instante em que foram liberados pelos Irmãos do Silêncio, um guarda apareceu e levou Clary até o escritório da Consulesa.
Dentro do escritório da Consulesa, no Garde, no topo da Colina de Garde, situava-se o único telefone ativo em Alicante. Tinha sido enfeitiçado pelo feiticeiro Ragnor Fell para funcionar em algum momento na virada do século, pouco antes do desenvolvimento das mensagens de fogo. Sobrevivera a diversas tentativas de remoção sob o argumento de que poderia comprometer as barreiras de proteção, considerando que nunca demonstrara qualquer sinal disto.
A única outra pessoa no recinto era Jia Penhallow, e ela gesticulou para Clary sentar.
— Magnus Bane me informou sobre o que aconteceu com seu amigo Simon Lewis no reino demoníaco — disse. — Gostaria de apresentar meus sentimentos por sua perda.
— Ele não morreu — respondeu Clary através de dentes cerrados. — Pelo menos não deveria ter morrido. Alguém se deu o trabalho de verificar? Alguém foi investigar se ele está bem?
— Sim — respondeu Jia, um tanto inesperadamente. — Ele está bem, morando em casa com a mãe e a irmã. Parece totalmente bem: não é mais um vampiro, é claro, mas simplesmente um mundano levando uma vida normal. Pelo que pudemos observar, ele não parece ter qualquer lembrança do Mundo das Sombras.
Clary se encolheu, em seguida se aprumou.
— Quero falar com ele.
Jia contraiu os lábios.
— Você conhece a Lei. Não pode contar a um mundano sobre o Mundo das Sombras, a não ser que o mundano em questão esteja correndo perigo. Não pode revelar a verdade, Clary. Magnus disse que o demônio que os libertou avisou a vocês sobre isso.
O demônio que os libertou. Então Magnus não revelara que tinha sido seu pai; não que Clary o culpasse por isso. Ela também não revelaria o segredo dele.
— Não vou revelar nada a Simon, tudo bem? Só quero ouvir a voz dele. Preciso saber que ele está bem.
Jia suspirou e empurrou o telefone para ela. Clary pegou, imaginando como se discava de Idris – como pagavam a conta de telefone? – então deixou para lá, ia ligar como se estivesse no Brooklyn. Se não desse certo, pediria orientações.
Para sua surpresa o telefone tocou, e foi atendido quase imediatamente, a voz familiar da mãe de Simon ecoando pela linha.
— Alô?
— Alô — o fone quase escorregou da mão de Clary; estava com a mão ensopada de suor. — Simon está?
— Como? Ah, sim, ele está no quarto — respondeu Elaine. — Quem fala?
Clary fechou os olhos.
— É Clary.
Fez-se um silêncio breve, e em seguida Elaine falou:
— Desculpe, quem?
— Clary Fray. — Sentiu um gosto amargo de metal no fundo da garganta. — Eu... eu estudo na Saint Xavier. É sobre nosso dever de inglês.
— Ah! Sim, muito bem, então — respondeu Elaine. — Vou chamá-lo.
Ela apoiou o fone, e Clary aguardou enquanto a mulher que expulsara Simon de casa e o chamara de monstro, abandonando-o ajoelhado enquanto vomitava sangue numa vala, fosse chamá-lo para atender o telefone como um adolescente comum.
Não foi culpa dela. Foi a Marca de Caim, atuando sem que ela tivesse conhecimento, transformando Simon em um viajante, cortando-o da família, disse Clary a si, no entanto sem conseguir fazer com que o ardor de fúria e ansiedade parasse de correr por suas veias. Ouviu os passos de Elaine se afastando, murmúrios, mais passos...
— Alô?
Era a voz de Simon, e Clary quase derrubou o telefone. O coração dela batia violentamente. Conseguia visualizá-lo com tanta clareza, magro e com cabelos castanhos, se apoiando na mesa no corredor estreito logo após a porta de entrada dos Lewis.
— Simon — disse ela. — Simon, sou eu. Clary.
Fez-se uma pausa. Quando falou novamente, ele pareceu espantado.
— Eu... a gente se conhece?
Cada palavra foi como um prego sendo martelado em sua pele.
— Fazemos aula de inglês juntos — disse ela, o que de certa forma era verdade; ambos faziam quase todas as aulas juntos quando Clary ainda frequentava o colégio mundano. — Senhor Price.
— Ah, certo — ele não soou antipático; foi alegre o suficiente, porém espantado. — Sinto muito. Sou péssimo com nomes e rostos. Tudo bem? Minha mãe falou alguma coisa sobre dever de casa, mas acho que não temos nenhum hoje.
— Posso fazer uma pergunta? — disse Clary.
— Sobre Um conto de duas cidades? — Ele soou entretido. — Olhe, ainda não li. Gosto de coisas mais modernas. Ardil 22, O apanhador no campo de centeio, essas coisas.
Estava flertando um pouco, pensou Clary. Ele devia pensar que ela havia telefonado do nada por tê-lo achado bonitinho. Uma garota qualquer da escola que ele sequer conhecia.
— Quem é a pessoa que você mais considera sua amiga? — perguntou ela. — No mundo inteiro?
Ele ficou em silêncio por um instante, em seguida riu.
— Devia ter imaginando que era sobre Eric — disse ele. — Sabe, se quisesse o telefone dele, bastava ter pedido...
Clary desligou e ficou sentada olhando para o aparelho como se fosse uma cobra venenosa. Teve consciência da voz de Jia, perguntando se estava bem, perguntando o que tinha acontecido, mas ela não respondeu, apenas enrijeceu a mandíbula, absolutamente determinada a não chorar na frente da Consulesa.
— Não acha que ele talvez só estivesse fingindo? — dizia Isabelle agora. — Fingindo que não sabia quem você era, sabe, porque podia ser perigoso?
Clary hesitou. A voz de Simon tinha soado tão jovial, tão banal, tão completamente comum. Ninguém seria capaz de fingir aquilo.
— Tenho total certeza — respondeu. — Ele não se lembra da gente. Não consegue.
Izzy desviou o olhar da janela, e Clary enxergou com clareza as lágrimas em seus olhos.
— Quero contar uma coisa — disse Isabelle. — E não quero que você me odeie.
— Eu não seria capaz de odiar você — respondeu Clary. — Impossível.
— É quase pior — disse ela — do que se ele tivesse morrido. Se estivesse morto, eu poderia ficar de luto, mas não sei o que pensar; ele está seguro, está vivo, eu deveria ser grata. Ele não é mais um vampiro, e ele odiava ser vampiro. Eu deveria estar feliz. Mas não estou. Ele disse que me amava. Disse que me amava, Clary, e agora nem sabe quem eu sou. Se eu estivesse na frente de Simon, ele não reconheceria meu rosto. Parece que nunca tive a menor importância. Que nada teve importância, ou que sequer aconteceu. Ele nunca me amou — ela passou a mão no rosto furiosamente. — Odeio isso! — disparou subitamente. — Odeio essa sensação, como se tivesse uma coisa pesando no meu peito.
— Saudade de alguém?
— É — respondeu Isabelle. — Nunca pensei que fosse me sentir assim por causa de um garoto.
— Não foi um garoto — disse Clary. — Foi Simon. E ele amou você de fato. E foi importante. Talvez ele não se lembre, mas você lembra. Eu me lembro. O Simon que agora mora no Brooklyn é o mesmo Simon que ele era há seis meses. E isso não é uma coisa horrível. Ele era maravilhoso. Mas ele mudou quando você o conheceu: ficou mais forte, foi ferido e ficou diferente. E esse foi o Simon por quem você se apaixonou, e o qual se apaixonou por você, então você está de luto, porque ele se foi. Mas pode mantê-lo um pouco vivo através das lembranças. Nós duas podemos.
Isabelle emitiu um ruído engasgado.
— Odeio perder as pessoas — falou, e havia um aspecto selvagem em sua voz: o desespero de alguém que tinha perdido muita coisa, muito jovem. — Odeio.
Clary segurou a mão de Izzy – a mão direita magra, a que possuía o símbolo da Clarividência se espalhando pelas juntas.
— Eu sei — disse Clary. — Mas lembre-se também das pessoas que você ganhou. Eu ganhei você. Sou grata por isso.
Ela apertou a mão de Izzy com força, e por um instante não houve reação. Então os dedos de Isabelle se fecharam sobre os dela. Ficaram sentadas em silêncio no parapeito, de mãos dadas através da distância que as separava.
***
Maia estava sentada no sofá do apartamento – agora era o apartamento dela. Ser líder do bando garantia um pequeno salário, e ela resolvera usá-lo para pagar um aluguel, para manter o que um dia fora a casa de Jordan e Simon, para impedir que as coisas deles fossem jogadas nas ruas por um senhorio irritado.
Em algum momento ela reviraria os pertences, empacotaria o que pudesse, garimparia as lembranças. Exorcizaria os fantasmas.
Mas por ora, contudo, estava satisfeita em sentar e olhar o que tinha recebido de Idris em um pacotinho enviado por Jia Penhallow. A Consulesa não agradecera pelo alerta, embora tenha lhe dado as boas-vindas como a mais nova e permanente líder do bando de Nova York. Seu tom fora frio e distante. Na carta havia um selo de bronze, o selo do líder do Praetor Lupus, o selo com o qual a família Scott sempre assinava suas cartas. Fora recuperado das ruínas em Long Island. Havia um pequeno bilhete anexo, com duas palavras escritas com a letra cuidadosa de Jia.
Comece novamente.
***
— Você vai ficar bem. Prometo.
Provavelmente era a seiscentésima vez que Helen dizia a mesma coisa, pensou Emma. E provavelmente teria ajudado mais se ela não parecesse estar tentando convencer a si.
Helen praticamente havia terminado de empacotar os pertences que trouxera a Idris. Tio Arthur (ele tinha dito a Emma que o chamasse assim também) prometera enviar o restante depois. Ele estava lá embaixo esperando com Aline para levar Helen até Garde, onde pegaria o Portal para a Ilha Wrangel; Aline iria na semana seguinte, após o fim dos tratados e das votações em Alicante.
Tudo soava muito chato, complicado e horrível para Emma. Tudo que sabia era que lamentava um dia ter achado Helen e Aline sentimentais demais. Helen agora não parecia nem um pouco sentimental, só triste, os olhos vermelhos e as mãos trêmulas enquanto fechava a mala e se voltava para a cama.
Era uma cama enorme, grande o bastante para seis pessoas. Julian estava sentado apoiado no encosto de um lado, e Emma do outro. Daria para ter colocado o restante da família entre eles, pensou Emma, mas Dru, os gêmeos e Tavvy dormiam nos respectivos quartos. Dru e Livvy já tinham chorado até não poder mais; Tiberius recebera a notícia sobre a partida de Helen com olhos arregalados de assombro, como se não soubesse o que estava acontecendo ou como deveria reagir. No fim, ele apertou a mão dela solenemente e lhe desejou boa sorte, como se ela fosse uma colega partindo em uma viagem de negócios.
Ela começou a chorar.
— Ah, Ty — dissera, e ele se esquivou, horrorizado.
Helen estava ajoelhada agora, cara a cara com Jules, que estava sentado na cama.
— Lembre-se do que falei, tudo bem?
— Vamos ficar bem — repetiu Julian.
Helen apertou a mão dele.
— Detesto deixá-los — falou. — Cuidaria de vocês se pudesse. Você sabe disso, não sabe? Eu assumiria o Instituto. Amo muito todos vocês.
Julian se encolheu do jeito que só um menino de 12 anos era capaz de fazer ao ouvir a palavra “amo”.
— Eu sei — conseguiu responder.
— A única razão pela qual posso ir é porque sei que os estou deixando em boas mãos — explicou ela, olhando nos olhos dele.
— Está falando do tio Arthur?
— Estou falando de você — respondeu, e Jules arregalou os olhos. — Sei que é pedir muito — acrescentou. — Mas também sei que posso confiar em você. Sei que pode ajudar Dru com os pesadelos, e cuidar de Livia e Tavvy, e talvez até o tio Arthur possa fazer isso também. Ele é um homem bom. Um pouco distraído, mas parece disposto a tentar... — Ela se calou. — Mas Ty é... — Suspirou. — Ty é especial. Ele... traduz o mundo de um jeito diferente do restante de nós. Nem todo mundo fala a língua dele, mas você fala. Cuide dele por mim, tudo bem? Ele vai ser alguém incrível. Só temos que impedir que a Clave entenda o quanto ele é especial. Não gostam de pessoas diferentes — concluiu, e houve uma amargura em seu tom.
Julian estava sentando bem ereto agora, parecendo preocupado.
— Ty me odeia — disse ele. — Briga comigo o tempo todo.
— Ty ama você — corrigiu Helen. — Ele dorme com aquela abelha que você lhe deu. Ele observa você o tempo todo. Quer ser como você. Ele só é... é difícil — concluiu, sem saber ao certo como dizer o que queria: que Ty tinha inveja da forma como Julian navegava pelo mundo com tanta facilidade, de como conquistava facilmente o amor dos outros, da forma como os gestos cotidianos de Julian não pareciam nada de mais, soando como um truque de mágica para Ty. — Às vezes é difícil quando você quer ser como alguém e não sabe como.
Uma carranca expressiva de confusão apareceu entre as sobrancelhas de Julian, mas ele olhou para Helen e assentiu.
— Vou cuidar de Ty — falou. — Prometo.
— Ótimo — Helen se levantou e beijou Julian rapidinho na cabeça. — Porque ele é incrível e especial. Todos vocês são. — Ela sorriu para Emma. — Você também, Emma — disse, e a voz apertou ao dizer o nome da menina, como se fosse começar a chorar. Fechou os olhos, abraçou Julian mais uma vez e saiu do quarto, pegando a mala e o casaco ao passar. Emma pôde ouvi-la correndo para baixo e, em seguida, a porta da frente se fechando entre murmúrios.
Emma olhou para Julian. Ele estava sentado reto, rijo, com o peito arfante, como se tivesse corrido. Ela esticou o braço rapidamente e pegou a mão dele, desenhando na palma do amigo: O-Q-U-E-H-O-U-V-E?
— Você ouviu o que Helen disse — falou com a voz baixa. — Ela confia em mim para cuidar deles. Dru, Tavvy, Livvy, Ty. Minha família inteira, basicamente. Eu vou... tenho 12 anos, Emma, e vou ter três filhos!
Ansiosamente, ela começou a escrever: N-Ã-O-V-A-I-N-Ã-O...
— Não precisa fazer isso — interrompeu ele. — Não é como se tivesse algum pai aqui para ouvir.
Aquela era uma coisa estranhamente amarga para Jules dizer, e Emma engoliu em seco.
— Eu sei — declarou ela afinal. — Mas gosto de ter uma linguagem secreta com você. Quero dizer, com quem mais podemos conversar sobre essas coisas, se não um com o outro?
Ele se recostou na cabeceira, virando-se para olhar para ela.
— A verdade é que não conheço nada sobre o tio Arthur. Só o vi nas festas de fim de ano. Sei que Helen diz que o conhece, e que ele é legal e tudo o mais, no entanto eles são meus irmãos. Eu os conheço. Ele não. — Cerrou as mãos. — Vou cuidar deles. Vou me certificar para que tenham tudo que desejam e que nada nunca seja tirado deles outra vez.
Emma esticou a mão para pegar o braço dele, e desta vez ele foi receptivo, deixando os olhos se fecharem enquanto ela escrevia na parte interna do pulso dele com o indicador.
E-U-V-O-U-A-J-U-D-A-R.
Ele sorriu para Emma, mas ela notou a tensão nos olhos dele.
— Sei que vai ajudar — respondeu, e esticou a mão e fechou sobre a dela. — Sabe qual foi a última coisa que Mark me disse antes de o levarem? — perguntou, apoiando-se contra o encosto. Parecia absolutamente exausto. — Ele falou “fique com Emma”. Então vamos ficar juntos. Porque é isso que parabatai fazem.
Emma sentiu como se o ar tivesse sido arrancado de seus pulmões.
Parabatai. Era uma palavra grande – para Caçadores de Sombras, uma das emoções mais fortes, mais intensas e mais envolventes que se podia ter, o compromisso mais significativo que se podia ter com alguém sem envolver amor romântico ou casamento.
Ela queria ter contado a Jules quando voltaram para casa, queria ter dito a ele de algum jeito que, quando disparou as palavras no escritório da Consulesa, sobre o plano de assumirem o compromisso parabatai, tinha sido mais que querer ser parabatai. Diga a ele, ecoava uma vozinha em sua mente. Diga que é porque você precisava ficar em Los Angeles; diga que falou aquilo porque precisa estar lá para descobrir o que aconteceu com seus pais. Para se vingar.
— Julian — falou ela suavemente, mas ele não se mexeu.
Estava com os olhos fechados, os cílios escuros tocando o rosto.
O luar que adentrava pela janela o contornava em branco e prata. Os ossos da face já estavam começando a ficar proeminentes, a perda da suavidade da infância. De repente ela conseguia imaginar como seria a aparência dele quando ficasse mais velho, mais largo e forte, um Julian crescido. Ia ser muito bonito, pensou ela. As meninas iam ficar loucas por ele, e uma delas o levaria para sempre, porque Emma era sua parabatai, e isso significava que ela jamais poderia ser uma dessas meninas. Jamais poderia amá-lo assim.
Jules murmurou e se remexeu em seu sono inquieto. O braço estava esticado para Emma, os dedos não chegando a tocá-la no ombro. A manga estava arregaçada até o cotovelo. Ela esticou a mão e escreveu cuidadosamente em seu antebraço, onde a pele era mais clara e macia, ainda imaculada, sem nenhuma cicatriz.
S-I-N-T-O-M-U-I-T-O-J-U-L-E-S, escreveu, e se recostou, prendendo a respiração, mas ele não sentiu, e não acordou.
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