Capítulo 3 - Amatis
Ao final da tarde, Luke e Clary haviam deixado o lago bem para trás e estavam marchando aparentemente por intermináveis campos de grama alta. Aqui e ali havia uma ligeira subida em um monte coberto por rochas pretas. Clary estava exausta de andar para cima e para baixo pelas colinas, uma após a outra, suas botas escorregando na grama úmida como se fosse mármore encerado.
Luke guiava com passos determinados. Ocasionalmente ele apontava para itens de interesse em uma voz sombria, como o mais depressivo guia turístico do mundo.
— Nós só atravessamos a planície Brocelind — ele disse à medida que subiam um lugar e viam uma emaranhada vastidão de árvores escuras alongando-se à distância em direção ao oeste, onde o sol baixava no céu — esta é a floresta. Essas árvores cobrem a maior parte das terras baixas do país. Muitas delas foram cortadas para abrir caminho para a cidade – e para exterminar os bandos de lobos e covis de vampiros que tendiam a surgir por lá. A floresta Brocelind sempre foi um esconderijo para os Seres do Submundo.
Eles andaram com dificuldade e em silêncio pela estrada ao longo da floresta por vários quilômetros antes de virarem uma curva abrupta. As árvores pareciam elevar-se para longe enquanto uma crista aparecia, e Clary piscou quando eles saíram de uma alta colina. A menos que seus olhos estivessem enganando-a, havia casas ali embaixo. Pequenas fileiras de casas brancas, ordenadas como a vila Munchkin, de O mágico de Oz.
— Nós estamos aqui! — ela exclamou, mergulhando a frente, só parando quando percebeu que Luke não estava mais ao lado dela.
Ela se virou e o viu de pé no meio da estrada poeirenta, balançando a cabeça.
— Não — ele disse, movendo-se para emparelhar com ela — essa não é a cidade.
— Então é um centro? Você disse que não havia nenhuma cidade próxima daqui...
— É um cemitério. É a Cidade dos Ossos de Alicante. Você achou que só tínhamos uma Cidade dos Ossos para descansar? — Ele soou triste. — Este é o cemitério, o lugar onde enterramos aqueles que morrem em Idris. Você verá. Nós temos que andar através dele para chegar a Alicante.
Clary não tinha ido a um cemitério desde a noite em que Simon tinha morrido, e a memória fez seus ossos tremerem enquanto ela passava pelas estreitas ruelas entre os mausoléus como fita branca. Alguém tomava conta desse lugar: o mármore brilhava como se polido recentemente, a grama era cortada. Havia buquês de flores brancas descansando aqui e ali nos túmulos; Clary primeiro pensou que fossem lírios, mas tinha um picante aroma desconhecido que a fez se perguntar se eram nativas para Idris.
Cada túmulo parecia como uma pequena casa; alguns até tinham portões de metal, e os nomes das famílias de Caçadores de Sombras eram esculpidos sobre suas portas. CARTWRIGHT. MERRYWEATHER. HIGHTOWER. BLACKWELL. MIDWINTER. Ela parou em um: HERONDALE.
Clary se virou para olhar para Luke.
— Este era o nome da Inquisidora.
— Este é o túmulo de sua família. Olhe.
Ele apontou. Ao lado da porta estavam letras brancas cortadas em mármore cinza. Eram nomes. MARCUS HERONDALE. STEPHEN HERONDALE. Ambos tinham morrido no mesmo ano. Por mais que Clary tivesse odiado a Inquisidora, sentiu algo torcer dentro dela, uma pena que ela não conseguia evitar. Perder seu marido e seu filho, tão próximos juntos... Três palavras em latim corriam abaixo do nome de Stephen: AVE ATQUE VALE.
— O que isso significa? — perguntou, virando-se para Luke.
— Significa “saúde e adeus”. Vem de um poema de Catullus. Em algum ponto, se tornou o que os Nephilim dizem durante os funerais, ou quando alguém morre em batalha. Agora vamos lá... é melhor não se demorar sobre essas coisas, Clary — ele segurou seu ombro e moveu-a gentilmente para longe do túmulo.
Talvez ele estivesse certo, Clary pensou. Talvez fosse melhor não pensar muito sobre morte. Ela manteve seus olhos desviados enquanto faziam seu caminho para fora do cemitério. Estavam quase atravessando os portões de ferro no final quando viu um pequeno mausoléu, crescendo como um fungo branco na sombra de um frondoso carvalho. O nome acima na porta saltou para ela como se ele tivesse sido escrito em luzes. FAIRCHILD
— Clary... — Luke se aproximou, mas ela já tinha seguido naquela direção.
Com um suspiro, ele seguiu-a até a sombra da árvore, onde Clary parou silenciosa, lendo os nomes dos avós e bisavós que ela nem mesmo sabia que tinha.ALOYSIUS FAIRCHILD. ADELE FAIRCHILD B. NIGHTSHADE. GRANVILLE FAIRCHILD. E abaixo de todos aqueles nomes: JOCELYN MORGENSTERN B. FAIRCHILD.
Uma onda de frio passou sobre Clary. Ver o nome de sua mãe lá era como revisitar os pesadelos que às vezes tinha, onde ela estava no funeral de sua mãe e ninguém dizia a ela o que tinha acontecido ou como sua mãe tinha morrido.
— Mas ela não está morta — Clary falou, olhando acima para Luke — ela não está...
— A Clave não sabia disso — ele a lembrou gentilmente.
Clary arfou. Ela não podia mais ouvir a voz de Luke ou vê-lo de pé a sua frente. Perante ela passava uma encosta irregular, uma lápide sobressaindo da terra como ossos violados. Uma lápide negra agigantava em frente a ela, letras recortadas irregularmente em seu rosto: CLARISSA MORGENSTERN, N: 1991 N: 2007. Abaixo das palavras havia um rude esboço de um crânio de uma criança com olhos fundos escancarados. Clary balançou para trás com um grito.
Luke a agarrou pelos ombros.
— Clary, o que é? O que há de errado?
Ela apontou.
— Lá... olhe...
Mas tinha sumido. A grama se esticava em frente a ela, verde e contínua, os mausoléus brancos, polidos e planos em suas ordenadas fileiras. Ela se virou para olhar para ele.
— Eu vi minha própria lápide. Ela dizia que eu ia morrer... agora... este ano.
Ela estremeceu.
Luke pareceu estremecer.
— É a água do lago. Você está começando a ter alucinações. Vamos lá... nós não temos muito tempo.
***
Jace marchou com Simon subindo e descendo degraus, entrando em um curto corredor alinhado com portas. Ele parou apenas para esticar o braço e abrir uma delas, uma careta em seu rosto.
— Aqui — ele disse, meio empurrando Simon através da entrada.
Simon viu o que parecia uma biblioteca lá dentro: fileiras de estantes, sofás e poltronas.
— Nós devemos ter alguma privacidade...
Ele se interrompeu enquanto uma figura levantava-se nervosamente de uma das poltronas. Era um garotinho com cabelo castanho e óculos. Tinha um pequeno e sério rosto, e havia um livro agarrado em uma de suas mãos. Simon era suficientemente familiarizado com os hábitos de leitura de Clary para reconhecer um volume de mangá mesmo à distância.
Jace franziu as sobrancelhas.
— Desculpe, Max. Nós precisamos do cômodo. Conversa de gente grande.
— Mas Izzy e Alec já me chutaram da sala de estar para que eles pudessem ter conversa de gente grande — Max se queixou — onde mais eu poderia ir?
Jace deu de ombros.
— Seu quarto? — ele bateu um dedo em direção a porta. — Hora de fazer o seu dever para com seu país, moleque. Fora.
Parecendo discriminado, Max caminhou passando por ambos, seu livro agarrado no peito.
Simon sentiu uma pontada de simpatia – era um saco ser velho o suficiente para querer saber o que estava acontecendo, mas jovem demais e ser sempre rejeitado. O garoto lançou a ele um olhar enquanto passava – um olhar assustado e suspeito. Esse é o vampiro, seus olhos diziam.
— Vamos lá.
Jace empurrou Simon dentro do cômodo, fechando e trancando a porta atrás deles. Com a porta fechada, estava tão fracamente iluminado que mesmo Simon achou escuro. O lugar cheirava a poeira. Jace andou através da sala e puxou as cortinas, revelando uma única janela que dava vista para o canal. Água batia na lateral da casa a algumas dezenas de centímetros abaixo deles, nas grades de pedra castigadas pelo tempo, com desenho de runas e estrelas.
Jace se virou para Simon com uma carranca.
— Qual diabos é o seu problema, vampiro?
— Meu problema? Você é quem praticamente me arrastou de lá pelos cabelos.
— Porque você estava prestes a dizer para eles que Clary nunca cancelou seus planos para vir à Idris. Você sabe o que aconteceria então? Eles iriam entrar em contato com ela e arranjar para ela vir. E eu já te disse porque isso não pode acontecer.
Simon balançou a cabeça.
— Eu não te entendo. Às vezes você age como se tudo o que importasse fosse Clary, e então...
Jace olhou para ele. O ar estava cheio de partículas de poeira dançando, fazendo uma cintilante cortina de poeira entre os dois garotos.
— Ajo como?
— Você estava flertando com Aline — Simon respondeu — não parece como se tudo com o que você se importasse fosse Clary.
— Isso não é da sua conta. E, além disso, Clary é minha irmã. Você sabe disso.
— Eu estava na corte da fadas também — Simon replicou — me lembro do que a Rainha de Seelie disse. O beijo que a garota mais deseja irá libertá-la.
— Eu aposto que você se lembra. Queimou dentro do seu cérebro, não é, vampiro?
Simon fez um barulho na parte de trás da garganta que ele não tinha nem mesmo percebido que era capaz de fazer.
— Ah, não. Eu não tenho este raciocínio. Não estou lutando por Clary com você. Isso é ridículo.
— Então por que trazer tudo isso à tona?
— Porque se você quer que eu minta – não para Clary, mas para todos os seus amigos Caçadores de Sombras – se quer que eu finja que foi a própria decisão de Clary não vir aqui, e se quer que eu finja que não sei sobre os poderes dela, ou o que ela realmente pode fazer, então tem que fazer alguma coisa por mim.
— Tudo bem — Jace respondeu — o que você quer?
Simon ficou em silêncio por um momento, olhando atrás de Jace para a linha de casas brancas em frente ao espumante canal. Passando seus telhados, ele podia ver os reluzentes topos das torres demoníacas.
— Eu quero que você faça o que for preciso para convencer Clary que não tem sentimentos por ela. E não... não me venha me dizer que é irmão dela; eu já sei disso. Pare de forçá-la quando você sabe que não tem futuro. E eu não estou dizendo isso por que a quero para mim. Estou dizendo isso porque sou amigo dela e não quero que ela se machuque.
Jace olhou para suas mãos por um longo momento. Elas eram mãos finas, os dedos e juntas com calos. As costas das mãos eram entrelaçadas com linhas finas brancas de velhas marcas. Eram as mãos de um soldado, não de um adolescente.
— Eu já fiz isso — Jace respondeu finalmente — eu disse a ela que só estava interessado em ser seu irmão.
— Ah.
Simon tinha esperado que Jace lutasse com ele sobre isso, discutisse, não apenas desistisse. Um Jace que apenas desistia era novidade – e deixou Simon se sentindo quase envergonhado por ter pedido. Clary nunca mencionou isso para mim, ele queria dizer, mas então, por que ela mencionaria? Pensando sobre isso, ela tinha parecido extraordinariamente quieta e fechada ultimamente.
— Bem, tome cuidado com isso, eu acho. Há uma última coisa.
— Ah? — Jace falou sem aparente interesse. — E o que é?
— O que foi que Valentim disse quando Clary desenhou aquela runa no navio? Soava como uma linguagem antiga. Meme algo assim...?
— Mene, mene, tekel, ufarsim — Jace recitou com um fraco sorriso — você não reconhece? É da Bíblia, vampiro. É antigo. Este é o seu livro, não é?
— Só porque sou judeu não significa que eu tenho o Velho Testamento memorizado.
— Essa é a Escritura na parede do palácio. “Contou Deus o teu reino, e o acabou; pesado fostes na balança e fostes achado em falta.” É um presságio de castigo – significa o fim de um império.
— Mas o que isso tem a ver com Valentim?
— Não só Valentim. Todos nós. A Clave e a Lei – o que Clary pode fazer, derrubando tudo o que eles pensam ser a verdade. Nenhum ser humano pode criar novas runas, ou desenhar o tipo de runas que Clary pode. Só anjos tem esse poder. E uma vez que Clary pode fazer isso – bem, parece como um presságio. As coisas estão mudando. As Leis estão mudando, as velhas formas podem nunca ser os modos certos novamente. Assim como a rebelião dos anjos acabou o mundo como ele era – o Céu foi dividido pela metade e o Inferno foi criado – isso poderia significar o fim dos Nephilim como eles existem atualmente. Esta é a nossa guerra no céu, vampiro, e só um lado pode vencer. E meu pai pretende que seja o dele.
***
Embora o ar ainda estivesse frio, Clary estava fervendo em suas roupas. Suor corria por seu rosto, umedecendo a gola de seu casaco enquanto Luke, a mão no braço dela, a apressava ao longo da estrada debaixo de um céu escurecendo rapidamente. Eles estavam dentro da vista de Alicante agora. A cidade era em um vale raso, repartida por um rio prateado que fluía em uma extremidade da cidade, parecia desaparecer e fluía novamente em outro. Uma confusão de prédios cor de mel com telhados vermelhos de ardósia apoiava-se contra a lateral de uma colina íngreme, com ruas escuras contornando as construções. No sopé da colina se elevava um altivo edifício de pedra escura, com pilares e uma brilhante torre para cada ponto cardeal: quatro ao todo. Espalhadas entre os outros edifícios estavam a mesmas torres altas, cada uma brilhando como quartzo. Elas eram agulhas perfurando o céu. A luz do dia desaparecendo formava o arco-íris em suas superfícies em um jogo de impressionantes faíscas. Era uma bela vista, e muito estranha. Você nunca terá visto uma cidade de verdade até que veja Alicante e suas torres de vidro.
— O que foi? — Luke perguntou. — O que foi que você disse?
Clary não tinha percebido que tinha falado alto. Embaraçada, ela repetiu suas palavras, e Luke olhou para ela em surpresa.
— Onde você ouviu isso?
— Hodge — Clary respondeu — foi algo que Hodge disse para mim.
Luke espreitou-a mais de perto.
— Você está corada. Como está se sentindo?
O pescoço de Clary estava doendo, todo seu corpo em chamas, a boca seca.
— Eu estou bem. Vamos apenas chegar lá, ok?
— Ok.
Luke apontou para o canto da cidade, onde os prédios terminavam. Clary podia ver um arco de entrada, dois lados se curvando para um topo apontado. Um Caçador de Sombras em roupas pretas estava parado na penumbra da arcada.
— Esse é o portão norte – é lá onde os Seres do Submundo podem entrar legalmente na cidade, desde que tenham a papelada. Guardas são colocados ali noite e dia. Agora, se nós estamos em negócios oficiais, ou tivermos permissão para estar lá, poderemos ir através dela.
— Mas não há nenhum muro em torno da cidade — Clary observou — isso não parece muito como um portão.
— As barreiras são invisíveis, mas estão lá. As torres demoníacas as controlam. Tem o feito por mil anos. Você vai sentir quando passar através delas — ele olhou mais uma vez para seu rosto corado, a preocupação enrugando os cantos de seus olhos — você está pronta?
Ela acenou. Eles se moveram para longe do portão, ao longo do lado leste da cidade, onde prédios estavam mais densamente aglomerados. Mandando-a ficar quieta com um gesto, Luke puxou-a em direção a uma estreita abertura entre duas casas. Clary fechou seus olhos enquanto se aproximavam, quase como se esperasse ser esmagada em uma parede invisível tão logo eles pisassem nas ruas de Alicante. Não foi assim. Ela sentiu uma súbita pressão, como se estivesse em um avião que estava caindo. Seus ouvidos estalaram... e então a sensação se foi, e eles estava em pé em um beco entre os edifícios. Assim como um beco em Nova York – e como cada beco no mundo, aparentemente – ele cheirava a xixi de gato.
Clary espreitou ao redor de uma das esquinas dos prédios. Uma larga rua esticava-se até a colina, alinhada com pequenas lojas e casas.
— Não há ninguém por aqui — ela notou, com alguma surpresa.
Na luz fraca, Luke parecia cinza.
— Deve haver um encontro acontecendo na Garde. É a única coisa que pode tirar todo mundo das ruas de uma vez.
— Mas isso não é bom? Não haver ninguém por perto para nos ver.
— Isso é bom e ruim. As ruas estão em sua maioria desertas, o que é bom. Mas quem quer que apareça, vai ser muito mais provável de nos notar e advertir.
— Pensei que você disse que todos estavam na Garde.
Luke sorriu ligeiramente.
— Não seja tão literal, Clary. Eu quis dizer a maioria da cidade. Crianças, adolescentes, qualquer um isento da reunião, eles não estarão lá.
Adolescentes. Clary pensou em Jace, e apesar de tudo, seu pulso pulou como um cavalo disparando no início de uma corrida.
Luke fez careta, quase como se pudesse ler os pensamentos dela.
— A partir de agora, estou quebrando a Lei por estar em Alicante sem me declarar para a Clave no portão. Se alguém me reconhecer, poderemos estar em problemas sérios — ele olhou a estreita faixa de céu marrom avermelhado visível entre os topos de telhados — temos que sair das ruas.
— Pensei que estávamos indo para casa de seu amigo.
— Nós estamos. E não é um amigo, precisamente.
— Então quem...?
— Só me siga.
Luke mergulhou em uma passagem entre duas casas, tão estreita que Clary podia tocar as paredes de ambas as casas com seus dedos enquanto faziam seu caminho por uma rua pavimentada de pedra espiralada alinhada com lojas.
Os prédios pareciam como um cruzamento entre uma paisagem gótica e de conto de fadas infantis. Os revestimentos de pedra eram esculpidos com todas as espécies de criaturas de mitos e lendas – as cabeças dos monstros eram uma característica marcante, intercaladas com cavalos alados, algo que parecia com uma casa sobre pernas de galinha, sereias, e, é claro, anjos. Gárgulas sobressaiam de cada canto, suas raivosas faces contorcidas. E em toda parte havia runas: destacadas através de portas, escondidas em padrão de um esculpido abstrato, pendendo de finas correntes de metal como sinos de vento que giravam na brisa. Runas para proteção, para boa sorte, para bons negócios. Olhando para todas elas, Clary começou a se sentir um pouco tonta.
Eles andaram em silêncio, mantendo-se nas sombras. A rua estava deserta, portas de lojas fechadas e trancadas. Clary captou olhares furtivos de dentro das janelas enquanto passavam. Era estranho ver uma exposição de chocolates caros decorados em uma vitrine e na próxima uma igualmente abundante exposição de armas parecendo mortais – cutelos, clavas, bastão com pontas de pregos e uma fileira de lâminas serafim de diferentes tamanhos.
— Nada de armas — ela comentou.
Sua própria voz soava muito distante.
Luke piscou para ela.
— O quê?
— Caçadores de Sombras — ela disse — eles parecem nunca utilizar revólveres.
— Runas impedem a pólvora de funcionar. Ninguém sabe o porquê. Ainda assim, os Nephilim tem sido conhecidos por usarem rifles ocasionalmente contra os licantropos. Não é necessário uma runa para nos matar... apenas balas de prata.
Sua voz era sombria.
Subitamente, ele levantou a cabeça. Na fraca iluminação da lua era fácil imaginar suas orelhas virando à procura como a de um lobo.
— Vozes — ele comunicou — devem ter terminado na Garde.
Ele tomou seu braço e a puxou pelos lados da rua principal. Emergiram em uma pequena praça com um poço no centro. Uma ponte de alvenaria arqueava-se sobre um estreito canal bem a frente deles. Na luz fraca, a água parecia quase preta. Clary podia ouvir as vozes por agora, vindo das ruas mais próximas. Elas estavam aumentando, sons zangados. A tontura de Clary aumentou – ela sentiu como se o chão estivesse se inclinando debaixo dela, ameaçando enviá-la ao chão. Ela inclinou-se contra a parede do beco, arfando por ar.
— Clary — Luke chamou — Clary, você está bem?
Sua voz soava espessa, estranha. Ela olhou para ele, e sua respiração morreu na garganta. As orelhas dele estavam longas e pontudas, seus dentes afiados de navalha, seus olhos num feroz amarelo...
— Luke — ela sussurrou — o que está acontecendo com você?
— Clary — ele se aproximou dela, suas mãos estranhamente alongadas, as unhas afiadas e cor de ferrugem... — tem alguma coisa errada?
Ela gritou, girando para longe dele. Não tinha certeza do porquê se sentia tão apavorada... tinha visto Luke transformado antes, e ele nunca tinha causado mal a ela. Mas o terror era uma coisa viva dentro dela, incontrolável. Luke a pegou pelos ombros e ela encolheu-se para longe dele, longe de seus amarelos olhos animais, mesmo quando ele a silenciou, implorando para que ela ficasse quieta em sua voz humana comum.
— Clary, por favor...
— Me deixe ir! Me deixe ir!
Mas ele não o fez.
— É a água... você está alucinando... Clary... tente se acalmar.
Ele a puxou em direção a ponte, meio que a arrastando. Ela podia sentir as lágrimas correndo em seu rosto, esfriando suas bochechas quentes.
— Isso não é real. Tente aguentar, por favor — Luke continuou, ajudando-a na ponte.
Ela podia sentir o cheiro da água abaixo dela. Enquanto olhava, um negro tentáculo emergiu da água, sua ponta alinhada com dentes afiados. Ela se contraiu para longe da água, incapaz de gritar, um baixo gemido vindo de sua garganta.
Luke a pegou enquanto seus joelhos cediam, jogando-a em seus braços. Ele não tinha carregado-a desde que ela tinha cinco ou seis anos de idade.
— Clary — ele disse, mas suas palavras fundiram e se borraram em um absurdo rugir enquanto eles caminhavam para o outro lado da ponte.
Correram passando uma série de altas e finas casas que quase lembrou a Clary das fileiras de casas de Brooklyn... ou talvez ela estivesse apenas alucinando sua própria vizinhança? O ar em torno deles parecia deformar enquanto eles seguiam, as luzes das casas resplandecendo em torno deles como tochas, o canal brilhando como um perverso brilho fosforescente. Os ossos de Clary pareciam estar se dissolvendo dentro de seu corpo.
— Aqui.
Luke foi com hesitação para frente de uma alta casa do canal. Ele chutou a porta duramente, gritando; ela era pintada em um brilhante, quase berrante, vermelho, uma única runa destacava-se em ouro. A runa derreteu enquanto Clary olhava para ela, tomando a forma de um horrível crânio sorrindo. Isso não é real, ela disse para si mesma fervorosamente, reprimindo seu grito com o punho, mordendo até que provou o sangue em sua boca.
A dor clareou sua cabeça momentaneamente. A porta voou aberta, revelando uma mulher em um vestido escuro, seu rosto enrugado com uma mistura de raiva e surpresa. Seu cabelo era longo, um emaranhado de cinza e castanho nebuloso escapando de duas tranças; seus olhos azuis eram familiares. Uma pedra enfeitiçada brilhava em sua mão.
— Quem é? — ela exigiu. — O que quer?
— Amatis — Luke moveu-se para dentro da piscina de luz, Clary em seus braços — sou eu.
A mulher empalideceu e cambaleou, pondo uma mão para apoiar-se contra a entrada.
— Lucian?
Luke tentou dar um outro passo a frente, mas a mulher... Amatis... bloqueou seu caminho. Ela estava balançando a cabeça tão fortemente que suas tranças chicotearam para trás e para frente.
— Como você pôde vir aqui, Lucian? Como se atreve a vir aqui?
— Eu tinha pouca escolha — Luke reforçou seu aperto em Clary.
Ela afastou um choro. Sentia todo o seu corpo em chamas, cada terminação nervosa queimando com a dor.
— Você tem que ir então — Amatis disse — se você sair imediatamente...
— Eu não estou aqui por mim. Estou aqui pela garota. Ela está morrendo — enquanto a mulher o fitava, Luke continuou — Amatis, por favor. Ela é a filha de Jocelyn.
Houve um longo silêncio durante o qual Amatis ficou em pé como uma estátua, imóvel na entrada. Ela parecia congelada, por surpresa ou horror, Clary não podia adivinhar. Clary apertou seu punho, suas palmas estavam pegajosas com o sangue onde as unhas tinham escavado... mas mesmo a dor não estava ajudando agora; o mundo estava se repartindo em suaves cores, como um vai-e-vem de quebra-cabeça à deriva na superfície da água. Ela mal podia ouvir a voz de Amatis enquanto a mulher mais velha andava para trás e dizia:
— Muito bem, Lucian. Pode trazê-la para dentro.
***
Naquele momento, Simon e Jace voltaram à sala de estar. Aline tinha posto comida na mesa baixa entre os sofás. Havia pão e queijo, pedaços de bolo, maçãs e até mesmo uma garrafa de vinho, que Max não foi autorizado a tocar. Ele sentou no canto com um prato de bolo, seu livro aberto no colo.
Simon simpatizou com ele. Ele se sentia tão sozinho entre as risadas do grupo quanto Max provavelmente se sentia. Ele observou Aline tocar o pulso de Jace com seus dedos enquanto ela se aproximava para pegar um pedaço de maçã e se sentiu tenso.
Mas isso é o que você quer que ele faça, ele disse para si mesmo, e ainda assim não podia se livrar da sensação de que Clary estava sendo descartada.
Jace encontrou seus olhos acima da cabeça de Aline e sorriu. De algum modo, mesmo que ele não fosse um vampiro, ele foi capaz de dar um sorriso que parecia ter todos os dentes pontudos. Simon virou para longe, olhando em torno da sala. Ele notou que a música que tinha escutado mais cedo não estava vindo de um estéreo de modo algum, mas de uma complicada inovação técnica.
Pensou em iniciar uma conversa com Isabelle, mas ela estava conversando com Sebastian, cujo elegante rosto estava curvado atentamente abaixo para o dela. Jace tinha rido da atração de Simon por Isabelle uma vez, mas Sebastian podia indubitavelmente lidar com ela. Caçadores de Sombras eram capazes de lidar com qualquer coisa, não eram? Embora o olhar no rosto de Jace quando ele tinha dito que planejava ser apenas o irmão de Clary fez Simon se admirar.
— Nós estamos sem vinho — Isabelle declarou, colocando a garrafa na mesa com uma pancada — estou indo buscar mais.
Com uma piscadela para Sebastian, ela desapareceu para a cozinha.
— Se você não se importa de eu dizer, você me parece um pouco quieto.
Era Sebastian, inclinado sobre as costas da cadeira de Simon com um sorriso desarmante. Para alguém com tal cabelo escuro, Simon pensou, a pele de Sebastian era muito clara, como se ele não saísse muito ao sol.
— Está tudo bem?
Simon deu de ombros.
— Não há muitas aberturas para mim na conversa. Tudo parece ser sobre a politica de Caçadores de Sombras ou pessoas de que nunca ouvi falar, ou ambos.
O sorriso desapareceu.
— Nós podemos ser um círculo fechado, nós Nephilim. E este caminho exclui o resto do mundo.
— Você não acha que vocês se excluem a si mesmos? Vocês desprezam os humanos comuns...
— “Desprezam” é um pouco forte — Sebastian disse — você realmente pensa que o mundo dos humanos quer ter alguma coisa com a gente? Tudo em nós é um lembrete vivo de que não importa o quanto eles se confortem que não existem vampiros de verdade, não existem demônios ou monstros debaixo de camas... eles estão mentindo — ele virou sua cabeça para olhar para Jace, que, Simon notou, tinha estado olhando ambos em silêncio por alguns minutos — você não concorda?
Jace sorriu.
— De ce crezi ca va ascultam conversatia?
Sebastian encontrou seu olhar com um olhar de agradável interesse.
— M-ai urmarit de cand ai ajuns aici nu-mi dau seama daca nu ma placi ori daca e sti atat de banuitor cu toata lumea — ele ficou em seus pés — aprecio o treino de romeno, mas se não se importa, vou ver o que está tomando tanto o tempo de Isabelle na cozinha.
Ele desapareceu através da entrada, deixando Jace olhando após ele com uma expressão confusa.
— Qual o problema? Afinal ele não fala romeno? — Simon perguntou.
— Não — Jace respondeu. Uma pequena linha franzida apareceu entre seus olhos — não, ele fala muito bem.
Antes que ele pudesse perguntar a Jace o que quis dizer com aquilo, Alec entrou na sala. Ele estava de cara amarrada, como tinha estado quando saiu. Seu olhar demorou-se momentaneamente sobre Simon, um olhar quase de confusão em seus olhos azuis.
Jace o fitou.
— De volta tão cedo?
— Não por muito tempo — Alec se abaixou para colher uma maçã da mesa com uma mão enluvada — eu só vim para pegar... ele — Alec respondeu, gesticulando em direção a Simon com a maçã — ele é aguardado na Garde.
Aline pareceu surpresa.
— Sério? — ela perguntou, mas Jace já tinha se levantado do sofá, desentrelaçando suas mãos das dela.
— Aguardado para quê? — ele indagou, com uma calma perigosa. — Espero que você tenha perguntado antes porque o querem, pelo menos.
— É claro que eu perguntei — Alec rebateu — não sou burro.
— Ah, vamos lá — Isabelle disse. Ela tinha reaparecido na entrada com Sebastian, que estava segurando uma garrafa — às vezes você é um pouquinho estúpido, você sabe. Só um pouquinho — ela repetiu enquanto Alec lhe atirava um olhar assassino.
— Eles enviarão Simon de volta para Nova York através do Portal.
— Mas ele acabou de chegar! — Isabelle protestou com uma careta. — Isso não tem graça.
— Não é para ser divertido, Izzy. Simon vir aqui foi um acidente, então a Clave acha que a melhor coisa é ele ir para casa.
— Ótimo — Simon comentou — talvez eu possa voltar antes que minha mãe note que desapareci. Qual a diferença de horário entre aqui e Manhattan?
— Você tem uma mãe? — Aline parecia espantada.
Simon preferiu ignorar isso.
— Sinceramente — ele continuou, enquanto Alec e Jace trocavam olhares — está tudo bem. Tudo o que eu quero é sair deste lugar.
— Você vai com ele? — Jace perguntou para Alec. — E ter certeza de que tudo está bem?
Eles trocaram um olhar que era familiar para Simon. Era o jeito que ele e Clary às vezes se olhavam, trocando olhares codificados quando não queriam que seus pais soubessem o que estavam planejando.
— O quê? — ele perguntou, olhando de um para o outro. — Qual o problema?
Eles interromperam seu olhar; Alec olhando para longe, e Jace virando um meigo e sorridente olhar sobre Simon.
— Nada. Está tudo bem. Parabéns, vampiro... você vai para casa.
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