Capítulo 3 - Sete Vezes

— Sabe o que é impressionante? — Eric disse, baixando suas baquetas. — Ter um vampiro na nossa banda. Isso é a coisa que realmente vai nos levar para o topo.
Kirk, abaixando o microfone, rolou seus olhos. Eric sempre estava falando sobre colocar a banda no topo, e até então nada tinha acontecido. O melhor que eles tinham feito foi uma apresentação na Knitting Factory, e apenas quatro pessoas tinham ido. E uma delas tinha sido a mãe de Simon.
— Eu não vejo como isso pode nos levar para o topo se não somos permitidos dizer a ninguém que ele é um vampiro.
— Que pena — Simon disse. Ele estava sentado em uma das caixas de som, próximo a Clary, que estava absorvida enviando um texto para alguém, provavelmente Jace — ninguém iria acreditar de qualquer forma, porque veja – aqui estou eu. Diurno.
Ele levantou seus braços para indicar o sol se derramando através dos buracos no teto da garagem de Eric, que era o atual local de ensaio deles.
— Isso dá algum impacto em nossa credibilidade — Matt comentou, puxando seu brilhante cabelo ruivo para fora dos olhos e olhando de esguelha para Simon — talvez nós pudéssemos usar presas falsas.
— Ele não precisa de presas falsas — Clary disse irritada, baixando seu celular — ele tem presas de verdade. Vocês as viram.
Era verdade. Simon tinha posto suas presas para fora quando revelou as novidades para a banda. Primeiro eles tinham pensado que ele tinha batido a cabeça ou tido um colapso mental. Depois que Simon mostrou as presas para eles, eles mudaram de ideia. Eric tinha até mesmo admitido que não estava particularmente surpreso.
— Eu sempre soube que havia vampiros, cara — ele tinha dito — porque, sabe como há pessoas que você conhece que sempre parecem as mesmas mesmo quando elas estão, tipo, com uma centena de anos de idade? Como David Bowie? Isso é por que elas são vampiros.
Ele tinha deixado de lado o fato de que Clary e Isabelle eram Caçadoras de Sombras. Esse não era um segredo dele para se contar. Nem eles sabiam que Maia era uma lobisomem. Eles sabiam apenas que Maia e Isabelle eram as duas garotas gatas que tinham, inexplicavelmente, concordado em namorar Simon. Tomaram isso no que Kirk chamava de seu magnetismo sexy de vampiro. Simon realmente não se importava do que eles chamavam, desde que nunca escorregassem e dissessem a Maia e a Isabelle sobre a outra. Até agora ele tinha conseguido, com sucesso, convidá-las em apresentações alternadas, então elas nunca apareceram nas mesmas e ao mesmo tempo.
— Talvez você pudesse mostrar as presas no palco? — Eric sugeriu. — Só, tipo, uma vez, cara. Um vislumbre para a multidão.
— Se ele fizesse isso, o líder dos vampiros da cidade de Nova York mataria todos vocês — Clary apontou — vocês sabem disso, certo? — Ela sacudiu sua cabeça na direção de Simon. — Eu não acredito que você disse a eles que é um vampiro — ela adicionou, abaixando sua voz para que apenas Simon pudesse ouvir — eles são idiotas, no caso de você não ter notado.
— Eles são meus amigos — Simon murmurou.
— Eles são seus amigos, e são idiotas.
— Eu quero que as pessoas que eu gosto saibam a verdade sobre mim.
— Oh? — Clary disse, não muito gentil. — Então quando você vai contar para a sua mãe?
Antes que Simon pudesse responder, houve uma pancada alta na porta da garagem, e um momento depois ela deslizou, deixando que mais luz do outono se derramasse lá dentro. Simon olhou de esguelha, piscando. Era um reflexo, realmente, de quando ele era humano. Não levava mais do que um segundo para seus olhos se ajustarem a escuridão ou a luz.
Havia um garoto de pé na entrada da garagem, as costas iluminadas pelo sol brilhante. Ele segurava um pedaço de papel na mão. Ele o olhou incerto, e então se voltou para a banda.
— Ei — ele disse — aqui é onde eu posso encontrar a banda Marcha Perigosa?
— Nós agora somos o Lêmure dicotômico — Eric corrigiu, vindo a frente — quem quer saber?
— Eu sou Kyle — disse o garoto, mergulhando sob a porta da garagem.
Se endireitando, ele jogou o cabelo castanho que caia sobre os olhos para trás e estendeu seu pedaço de papel para Eric.
— Eu vi que vocês estão procurando um cantor.
— Whoa — Matt falou — nós colocamos esses folhetos, tipo, um ano atrás. Eu me esqueci totalmente deles.
— Sim — Eric confirmou — nós estávamos fazendo algumas coisas diferentes naquela época. Agora, na maior parte, desligamos os vocais. Você tem experiência?
Kyle – que era muito alto, Simon viu, embora de forma alguma desengonçado – deu de ombros.
— Não de verdade. Mas digo que posso cantar.
Ele tinha uma dicção lenta, leve e pausada.
Os membros da banda olharam incertos um para o outro. Erik coçou a orelha.
— Você pode nos dar um segundo, cara?
— Claro — Kyle foi para fora da garagem, deslizando a porta fechada atrás dele.
Simon podia ouvi-lo assobiando levemente do lado de fora. Soava como “She’ll Be Comin’ Round the Mountain.” Também não estava bem afinado.
— Eu não sei — Eric disse — não tenho certeza de que podemos usar alguém novo agora. Porque, quero dizer, nós não podemos dizer a ele sobre essa coisa de vampiro, podemos?
— Não — Simon respondeu — não podem.
— Bem, pronto — Matt deu de ombros — é uma pena. Nós precisamos de um cantor. Kirk é uma droga. Sem ofensas, Kirk.
— Dane-se — Kirk disse — eu não sou uma droga.
— Sim, é — Matt rebateu — você é uma grande droga cabeluda...
— Eu acho — Clary interrompeu, levantando sua voz — que vocês deveriam deixá-lo tentar.
Simon olhou para ela.
— Por quê?
— Por que ele é supergato — Clary respondeu, para a surpresa de Simon.
Ele não ficou muito ciente da aparência de Kyle, mas, talvez ele não fosse o melhor juiz para beleza masculina.
— E sua banda precisa de alguém com sex appeal.
— Obrigado — Simon disse — em nome de todos nós, muitíssimo obrigado.
Clary fez um barulho impaciente.
— Sim, sim, todos vocês são caras encantadores. Especialmente você, Simon — ela deu um tapinha na mão dele — mas Kyle é gostoso como “whoa”. Só estou dizendo. Minha opinião objetiva como uma mulher é que se vocês adicionarem Kyle em sua banda, dobrarão sua base de fãs femininas.
— O que significa que nós teremos duas fãs femininas ao invés de uma — Kirk apontou.
— Qual uma? — Matt pareceu genuinamente curioso.
— A amiga da priminha do Eric. Qual o seu nome? Aquela que tem uma queda por Simon. Ela vem a todos os nossos shows e diz para todo mundo que é a namorada dele.
Simon piscou.
— Ela tem treze anos.
— É o seu magnetismo sexy de vampiro em funcionamento, cara — Matt falou — as garotas não podem resistir a você.
— Ah, pelo amor de Deus — Clary disse — não existe essa coisa de magnetismo sexy de vampiro — ela apontou um dedo para Eric — e nem mesmo diga queMagnetismo sexy de vampiro soa como um nome de banda ou eu...
A porta da garagem se abriu.
— Uh, caras? — Era Kyle de novo. — Olha, se vocês não querem me dar uma chance, tudo bem. Talvez vocês mudaram seu estilo, sei lá. Só me digam, e vou embora.
Eric ergueu sua cabeça de lado.
— Entre e deixe a gente dar uma olhada em você.
Kyle entrou na garagem. Simon olhou para ele, tentando avaliar o que tinha feito Clary dizer que ele era gostoso. Ele era alto, de ombros largos e maçãs do rosto altas, cabelo preto longo que caía sobre sua testa e abaixo em seu pescoço em cachos, e pele morena que não tinha perdido o bronzeado de verão ainda. Seus cílios longos e espessos sobre surpreendentes olhos verdes acinzentados o faziam parecer como uma bonita estrela do rock. Usava uma camiseta verde justa e jeans, e ambos os braços eram tatuados – sem marcas, apenas tatuagens comuns. Elas pareciam como um texto sinuoso ao redor de sua pele, desaparecendo nas mangas de sua camisa.
Ok, Simon teve que admitir. Ele não era horrível.
— Sabe — Kirk disse finalmente, quebrando o silêncio — estou vendo. Ele é bem bonito.
Kyle piscou e se virou para Eric.
— Então, vocês querem que eu cante ou não?
Eric pegou o microfone de seu suporte e o deu para ele.
— Vá em frente. Experimente.

***

— Sabe, ele era realmente muito bom — Clary disse — eu estava meio que brincando sobre incluir Kyle na banda, mas ele realmente consegue cantar.
Eles estavam caminhando na Avenida Kent, em direção à casa de Luke. O céu tinha escurecido do azul para o cinza em antecipação ao crepúsculo, e nuvens pendiam baixas sobre o Rio East. Clary estava passando uma de suas mãos enluvadas ao longo dos elos de uma cerca que os separava do aterro de concreto rachado, fazendo o metal chocalhar.
— Você só está dizendo isso por que acha que ele é gostoso — Simon apontou.
Ela fez um muxoxo.
— Não tão gostoso. Não, como, o cara mais gostoso que eu já tenha visto — o que, Simon imaginou, seria Jace, embora ela fosse legal o suficiente para não dizer — mas, honestamente, eu pensei que seria uma boa ideia tê-lo na banda. Se Eric e o resto deles não podem contar para ele que você é um vampiro, eles não podem contar para mais ninguém também. Finalmente isso colocaria um fim nessa ideia estúpida.
Eles estavam próximos à casa de Luke; Simon podia ver do outro lado da rua a janela iluminada contra o céu escuro.
Clary parou em um buraco na cerca.
— Se lembra quando nós matamos um bando de demônios Raum aqui?
— Você e Jace mataram alguns demônios Raum. Eu quase vomitei — Simon se lembrou, mas sua mente não estava nisso.
Estava pensando em Camille, sentada em frente a ele no jardim, dizendo, Você é amigo dos Caçadores de Sombras, mas nunca pode ser um deles. Você sempre será o outro, o de fora. Ele olhou de esguelha para Clary, se perguntando o que ela diria se lhe contasse sobre o seu encontro com a vampira, e sua oferta. Imaginou que ela provavelmente ficaria aterrorizada. O fato de que ele não podia ser ferido não a tinha feito parar de se preocupar sobre sua segurança.
— Você não estaria assustado agora — ela disse suavemente, como se lesse a mente dele — agora você tem a Marca — ela se virou para olhá-lo, ainda apoiada contra a cerca — alguém já notou ou perguntou sobre ela?
Ele sacudiu a cabeça.
— Meu cabelo a cobre, a maior parte, e de qualquer modo, ela apagou bastante. Vê?
Ele puxou seu cabelo de lado.
Clary estendeu a mão e tocou sua testa, a escrita sinuosa da marca lá.
Seus olhos estavam tristes, como tinham estado naquele dia no Salão dos Acordos em Alicante, quando ela tinha entalhado a mais antiga das maldições do mundo na pele dele.
— Dói?
— Não. Não dói. E Caim disse para o Senhor, Minha punição é maior do que posso suportar — eu não te culpo, sabia? Você salvou minha vida.
— Eu sei — seus olhos estavam brilhando. Ela baixou sua mão da testa e esfregou as costas de sua luva em seu rosto — merda. Eu odeio chorar.
— Bem, é melhor você se acostumar — ele respondeu, e quando os olhos dela se arregalaram, ele adicionou rapidamente: — quero dizer, o casamento. É o que, no próximo sábado? Todo mundo chora em casamentos.
Ela bufou.
— A propósito, como está sua mãe e Luke?
— Insuportavelmente apaixonados. É horrível. Aliás... — ela deu um tapinha no ombro dele. — Eu devo entrar. Te vejo amanhã?
Ele concordou.
— Claro. Amanhã.
Simon a observou enquanto ela corria para o outro lado da rua e subia as escadas em frente à porta de Luke. Amanhã. Ele se perguntou quanto tempo fazia desde que ele tinha ficado mais do que uns poucos dias sem ver Clary. Se perguntou sobre ser um fugitivo ou um errante sobre a Terra, como Camille tinha dito. Como Raphael tinha dito. O sangue de teu irmão clama a mim da terra. Ele não era Caim, o que tinha matado seu irmão, mas a maldição julgava que ele era. Era estranho, ele pensou, esperar perder tudo, sem saber se isso aconteceria ou não.
A porta se fechou atrás de Clary. Simon virou para seguir a Avenida Kent, em direção à estação da linha G na Rua Lorimer. Estava quase totalmente escuro agora, o céu acima um espiral de cinza e preto. Simon escutou pneus frearem na estrada atrás dele, mas não se virou. Carros dirigiam muito rápido nesta rua o tempo todo, apesar das rachaduras e buracos. Não foi até que a van azul encostou ao lado dele e guinchou parando, que ele se virou para olhar.
O motorista da van arrancou as chaves da ignição, desligando o motor, e jogou a porta aberta. Era um homem – um homem alto, vestido em um agasalho de capuz cinza e tênis, o capuz puxado tão baixo que escondia a maior parte de seu rosto. Ele saltou do assento do motorista e Simon viu que havia uma faca longa e brilhante em sua mão.
Antes Simon pensaria que deveria correr. Era um vampiro, mais rápido do que qualquer humano. Ele podia ultrapassar qualquer um. Devia ter corrido, mas também estava surpreso. Ele ficou parado enquanto o homem, com a faca brilhando na mão, veio em direção a ele. O homem disse algo em uma voz baixa e gutural, alguma coisa em uma linguagem que Simon não entendeu.
Simon deu um passo para trás.
— Olha — ele disse, alcançando seu bolso — você pode ficar com minha carteira...
O homem investiu sobre Simon, mergulhando a faca em direção ao seu peito. Simon olhou para baixo em descrença. Tudo pareceu estar acontecendo muito lentamente, como se o tempo estivesse se esticando. Ele viu a ponta da faca próxima ao seu peito, a ponta amassando a ponta do couro de sua jaqueta – e então ela foi para o lado, como se alguém tivesse agarrado o braço de seu atacante e o puxado. O homem gritou enquanto era lançado no ar como um fantoche sendo puxado por suas cordas. Simon olhou ao redor selvagemente – certo de que alguém deve ter escutado ou notado o alvoroço, mas ninguém surgiu. O homem se manteve gritando, se sacudindo violentamente, enquanto sua camisa se rasgava na frente, como se cortada por uma mão invisível.
Simon olhou horrorizado. Imensas feridas estavam aparecendo no dorso do homem. A cabeça dele voou para trás e sangue jorrou de sua boca. Ele parou de gritar abruptamente e caiu como se a mão invisível tivesse se aberto, soltando-o. Ele bateu no chão e se quebrou como vidro estilhaçado em milhares de pedaços brilhantes que se esparramaram de um lado a outro da calçada.
Simon caiu de joelhos. A faca que pretendia matá-lo, ao alcance da mão, foi tudo o que sobrou de seu atacante, salvo uma pilha de cristais cintilantes que já estavam começando a ser soprados no vento forte.
Ele tocou um, cautelosamente.
Era sal. Simon olhou para suas mãos. Elas estavam tremendo. Ele sabia o que tinha acontecido, e porque.
E o Senhor, porém, lhe disse, portanto qualquer um que matar a Caim, vingança será colocada sobre ele sete vezes.
Então era assim que sete vezes acontecia.
Ele mal se levantou da sarjeta antes de se dobrar e vomitar sangue na rua.
No momento em que abriu a porta, sabia que tinha calculado mal.
Ele pensava que sua mãe estaria dormindo por agora, mas ela não estava. Estava acordada, sentada em um sofá de frente para a porta, seu telefone sobre a mesa ao lado, e ela viu o sangue sobre sua jaqueta imediatamente.
Para sua surpresa ela não gritou, mas sua mão voou para sua boca.
— Simon.
— Não é meu sangue — ele disse rapidamente — eu estava no Eric, e Matt teve um sangramento nasal...
— Eu não quero ouvir isso — o tom mordaz era um que ela raramente usava; isso o lembrou do modo que ela tinha falado durante aqueles últimos meses quando seu pai tinha estado doente, ansiedade como uma faca em sua voz — eu não quero ouvir mais nenhuma mentira.
Simon largou suas chaves sobre a mesa ao lado da porta.
— Mãe...
— Tudo o que você faz é contar mentiras. Estou cansada disso.
— Isso não é verdade — ele disse, mas se sentiu enjoado, sabendo que era — eu só tenho muita coisa acontecendo na minha vida agora.
— Eu sei que tem.
Sua mãe ficou de pé; ela sempre tinha sido uma mulher magra, e parecia esquelética agora, seu cabelo preto da mesma cor que o dele, listrado com mais cinza do que ele tinha se lembrado, caindo em torno do rosto.
— Venha comigo, jovenzinho. Agora.
Confuso, Simon a seguiu para a pequena cozinha brilhante amarela. Sua mãe parou e apontou em direção ao balcão.
— Importa-se de me explicar aquilo?
A boca de Simon ficou seca. Alinhadas ao longo da bancada como uma fileira de soldados de brinquedo, estavam as garrafas de sangue que tinham estado na minigeladeira dentro de seu armário. Uma estava preenchida pela metade, as outras inteiramente cheias, o líquido vermelho nelas brilhando como uma acusação. Ela também tinha descoberto as sacolas vazias de sangue que ele tinha removido e cuidadosamente empurrado dentro de uma sacola do shopping antes de descarregá-las em sua lixeira. Elas também estavam espalhadas sobre a bancada, como uma decoração grotesca.
— Primeiro eu pensei que as garrafas eram vinho — Elaine Lewis disse em uma voz trêmula — então eu descobri as sacolas. Abri uma das garrafas. É sangue, não é?
Simon não disse nada. A voz dele pareceu ter fugido.
— Você tem estado agindo tão estranho ultimamente — sua mãe continuou — fora toda hora, você nunca come, mal dorme, tem amigos que eu nunca conheci, nunca ouvi. Acha que eu não posso dizer quando você está mentindo para mim? Eu sei, Simon. Pensei que talvez você estivesse nas drogas.
Simon encontrou sua voz.
— Então você revistou o meu quarto?
Sua mãe corou.
— Eu tive! Eu pensei... pensei que se eu encontrasse drogas lá, eu poderia ajudá-lo, colocar você em um programa de reabilitação, mas isso? — Ela gesticulou nervosamente para as garrafas. — Eu nem mesmo sei o que pensar sobre isso. O que está acontecendo, Simon? Você entrou em algum tipo de culto?
Ele sacudiu a cabeça.
— Então me diga — sua mãe pediu, seus lábios tremendo — por que as únicas explicações que eu posso pensar são horríveis e doentias. Simon, por favor...
— Eu sou um vampiro — Simon revelou.
Ele não tinha ideia de como tinha dito isso ou mesmo por que. Mas lá estava. As palavras perduraram no ar entre eles como gás envenenado.
Os joelhos de sua mãe pareceram ceder, e ela afundou na cadeira da cozinha.
— O que você disse? — ela sussurrou.
— Eu sou um vampiro — Simon repetiu — faz cerca de dois meses agora. Eu lamento não ter dito a você antes. Eu não sabia como.
O rosto de Elaine Lewis estava branco como giz.
— Vampiros não existem, Simon.
— Sim. Eles existem. Olhe, eu não pedi para ser um vampiro. Fui atacado. Eu não tive uma escolha. Eu mudaria isso se eu pudesse.
Ele pensou freneticamente no panfleto que Clary tinha dado a ele há tanto tempo, um sobre sair do armário para seus pais. Tinha sido como uma analogia engraçada no momento, agora, não era mais.
— Você pensa que é um vampiro — a mãe de Simon disse entorpecida — você acha que bebe sangue.
— Eu bebo sangue — Simon falou — bebo sangue animal.
— Mas você é vegetariano — sua mãe pareceu estar à beira das lágrimas.
— Eu era. Não sou agora. Não posso ser. Sangue é do que eu vivo — a garganta de Simon pareceu apertar — eu nunca machuquei ninguém. Nunca bebi sangue de ninguém. Eu ainda sou a mesma pessoa. Eu ainda sou eu.
Sua mãe pareceu lutar para se controlar.
— Seus novos amigos – eles são vampiros, também?
Simon pensou em Isabelle, Maia, Jace. Ele não poderia explicar os Caçadores de Sombras e lobisomens, também. Era demais.
— Não, Mas... eles sabem que eu sou um.
— Eles... eles te deram drogas? Fizeram você tomar alguma coisa? Algo que faria você ter alucinações? — Ela mal pareceu ter escutado sua resposta.
— Não, mãe, essa é a verdade.
— Isso não é verdade — ela sussurrou — você acha que é verdade. Oh, Deus, Simon. Eu lamento tanto. Eu deveria ter percebido. Nós vamos conseguir ajuda. Nós encontraremos alguém. Um médico. O que quer que custe...
— Eu não posso ir a um médico.
— Sim, você pode. Precisa estar em algum lugar. Um hospital, talvez...
Ele estendeu o pulso para ela.
— Sinta meu pulso.
Ela olhou para ele, confusa.
— O quê?
— Meu pulso — Simon repetiu — pegue-o. Se eu tiver uma pulsação, tudo bem. Eu irei ao hospital com você. Se não, você tem que acreditar em mim.
Ela limpou as lágrimas de seus olhos e lentamente se aproximou para tomar seu pulso. Depois de tanto tempo tomando conta do pai de Simon quando ele esteve doente, ela sabia como tomar o pulso tão bem quanto uma enfermeira. Ela pressionou seu dedo indicador no local correto, e esperou.
Simon se sentiu mal.
— Eu te disse, mãe. Eu sou um vampiro.
— Você não é meu filho. Você não é Simon — ela estava estremecendo — que tipo de coisa viva não tem um pulso? Que tipo de monstro você é? O que você fez com meu menino?
— Eu sou Simon...
Ele deu um passo em direção a sua mãe.
Ela gritou. Ele nunca a tinha ouvido gritar daquele jeito, e nunca gostaria de ouvir de novo. Foi um barulho horrível.
— Fique longe de mim — a voz dela partiu — não chegue mais perto — ela começou a sussurrar — Baruk ata Adonai sho’me a t’fila...
Ela estava orando, Simon percebeu com um choque. Ela estava tão aterrorizada que estava orando para que ele partisse, fosse banido. E o pior era que ele podia sentir. O nome de Deus apertou seu estômago e fez a garganta dele doer.
Ela estava certa em orar, ele pensou, era ruim para ele. Ele estava amaldiçoado. Não pertencia ao mundo. Que tipo de coisa viva não tinha um pulso?
— Mãe — ele sussurrou — mãe, pare.
Ela olhou para ele, olhos arregalados, seus lábios ainda se movendo.
— Mãe, você não precisa estar tão chateada.
Ele ouviu sua própria voz como uma distante, suave e calmante, voz de um estranho. Manteve os olhos fixos em sua mãe enquanto falava, capturando o olhar dela com os seu, como um gato pode capturar um rato.
— Nada aconteceu. Você caiu no sono no sofá da sala de estar. Você teve um pesadelo no qual eu cheguei em casa e te disse que era um vampiro. Mas isso é loucura. Isso nunca aconteceria.
Ela começou a parar de orar. Ela piscou.
— Eu estou sonhando — ela concordou.
— Isso é um pesadelo — Simon disse.
Ele se moveu em direção a ela e colocou uma mão sobre seu ombro. Ela não se afastou. Sua cabeça estava curvando como uma criança cansada.
— Só um sonho. Você nunca descobriu nada em meu quarto. Nada aconteceu. Você apenas esteve dormindo, só isso.
Ele tomou sua mão. Ela o deixou guiá-la para a sala de estar, onde a assentou na poltrona. Ela sorriu quando ele puxou um cobertor sobre ela, e fechou seus olhos.
Simon voltou para a cozinha e rapidamente, metodicamente, varreu as garrafas e plásticos de sangue para dentro do saco de lixo. Ele o amarrou e o trouxe para seu quarto, onde trocou sua jaqueta ensanguentada por uma nova e jogou algumas coisas rapidamente em uma mochila. Ele apagou a luz e saiu, fechando a porta atrás dele.
Sua mãe já estava dormindo enquanto ele passou pela sala de estar. Ele se aproximou e tocou a mão dela levemente.
— Eu estarei fora por alguns dias — ele sussurrou — mas você não se preocupará. Você não esperará que eu volte. Acha que eu estou em uma excursão escolar. Não há necessidade de ligar. Tudo está bem.
Ele puxou sua mão de volta. Na luz fraca, sua mãe pareceu tanto mais velha e mais jovem do que ele estava acostumado. Ela era tão pequena quanto uma criança, encolhida sob o cobertor, mas havia novas linhas sobre o rosto que ele não se lembrava de estarem ali antes.
— Mãe — ele sussurrou.
Ele tocou a mão dela, e ela se mexeu. Sem querer acordá-la, ele puxou seus dedos de volta e se moveu sem som para a porta, agarrando suas chaves da mesa enquanto ia.

***

O Instituto estava em silêncio. Sempre estava em silêncio ultimamente.
Jace tinha deixado sua janela aberta durante a noite, então podia ouvir os barulhos do tráfego, a ocasional sirene de ambulância e o buzinar na Avenida York. Podia ouvir coisas que os mundanos não podiam, também, e estes sons eram filtrados através da noite e em seus sonhos – a corrente de ar de uma moto em voo de um vampiro, o flutuar de uma fada alada, o distante uivo de lobos nas noites quando a lua estava cheia.
Era apenas lua crescente agora, lançando luz suficiente para ele ler enquanto se estendia sobre a cama. Ele tinha a caixa de prata de seu pai aberta em frente a ele, e estava vasculhando o que havia dentro dela.
Uma das estelas do seu pai estava nela, e uma adaga de prata de caça com as iniciais SWH no punho, e – o de mais interesse para Jace – uma pilha de cartas.
Nas últimas seis semanas ele esteve lendo uma carta ou mais, todas as noites, tentando ter uma noção do homem que era seu pai biológico. Uma imagem tinha começado a surgir lentamente, de um jovem homem sério com pais difíceis que tinha sido empurrado para Valentim e o Círculo por que eles tinham parecido oferecer a ele uma oportunidade para se distinguir no mundo.
Ele continuou escrevendo para Amatis mesmo depois de seu divórcio, algo que ela não tinha mencionado antes. Naquelas cartas, seu desencantamento com Valentim e indisposição para as atividades do Círculo estavam claras, embora ele raramente mencionasse a mãe de Jace, Céline. Fazia sentido – Amatis não desejaria escutar sobre sua substituta – e ainda assim Jace não podia se impedir de odiar seu pai um pouco por isso. Se ele não tivesse se importado com a mãe de Jace, por que se casou com ela? Se tinha odiado tanto assim o Círculo, por que não o tinha deixado? Valentim tinha sido um louco, mas pelo menos ele se manteve por seus princípios.
E então, é claro, Jace apenas se sentia pior por preferir Valentim a seu pai de verdade. Que tipo de pessoa essa escolha o fazia?
Uma batida na porta o tirou de suas autorrecriminações; ele se levantou e foi respondê-la, esperando que Isabelle estivesse lá, esperando por qualquer empréstimo de algo ou reclamação sobre alguma coisa.
Mas não era Isabelle. Era Clary.
Ela não estava vestida do modo que geralmente estava. Usava uma regata preta decotada, uma blusa branca amarrada frouxa e aberta, e uma saia curta, curta o suficiente para mostrar as curvas de suas pernas, na altura da coxa. Ela usava seu brilhante cabelo ruivo em tranças, cachos frouxos agarrados contra as concavidades de suas têmporas, como se estivesse chovendo levemente lá fora.
Ela sorriu quando o viu, arqueando suas sobrancelhas. Elas eram acobreadas, como os cílios finos que emolduravam seus olhos verdes.
— Você vai me deixar entrar?
Ele olhou acima e abaixo no corredor. Ninguém mais estava lá, graças a Deus. Tomando Clary pelo braço, ele a puxou para dentro e fechou a porta. Se inclinando contra ela, ele perguntou:
— O que você está fazendo aqui? Está tudo bem?
— Tudo bem.
Ela chutou seus sapatos e sentou na ponta da cama. Sua saia subiu enquanto ela se apoiava atrás em suas mãos, mostrando ainda mais as coxas. Não estava fazendo maravilhas para a concentração de Jace.
— Eu senti a sua falta. E mamãe e Luke estão dormindo. Eles não notaram que eu saí.
— Você não devia estar aqui — as palavras saíram como um tipo de gemido.
Ele odiava dizê-las, mas sabia que precisavam ser ditas, por razões que ela nem mesmo sabia. E esperou que ela nunca soubesse.
— Bem, se você quer que eu vá, eu irei — ela provocou. Seus olhos estavam cintilantemente verdes. Ela deu um passo para mais perto dele — mas eu vim até aqui. Você podia pelo menos me dar um beijo de despedida.
Ele se aproximou e a puxou. E a beijou.
Havia algumas coisas que você tinha que fazer, mesmo que fossem uma má ideia. Ela se envolveu em seus braços como uma seda delicada. Colocou as mãos nos cabelos dela e correu seus dedos através dele, desenroscando suas tranças até que seu cabelo caísse ao redor dos ombros do jeito que gostava.
Ele se lembrou de desejar fazer isso na primeira vez que a viu, e descartou a ideia como loucura. Ela era uma mundana, era uma estranha, não havia sentido em querê-la. E então ele a tinha beijado pela primeira vez, e isso quase o deixou louco. Eles tinham descido e sido interrompidos por Simon, e ele nunca tinha desejado matar alguém tanto quanto quis matar Simon naquele momento, embora ele soubesse, racionalmente, que Simon não tinha feito nada de errado. Mas o que ele sentiu não tinha nada a ver com a razão, e quando tinha imaginado Clary deixando-o por Simon, o pensamento o deixou enjoado e assustado, do modo que nenhum demônio sequer tinha.
E então Valentim tinha dito que eles eram irmão e irmã, e Jace tinha percebido que isso era pior, infinitamente pior que tudo, pior do que Clary deixá-lo por outra pessoa – era saber que o modo pela qual ele a amava era de algum modo cosmicamente errado; que o que tinha parecido a mais pura e a mais improvável coisa em sua vida, tinha sido agora corrompida além da redenção. Ele se lembrou de seu pai dizendo que quando os anjos caíam, caíam em angústia, porque uma vez tinham visto a face de Deus e agora nunca a veriam novamente. E tinha pensado que sabia como eles se sentiam.
Esse fato não o fez querê-la menos; tinha apenas tornado o desejo uma tortura. Algumas vezes a sombra daquela tortura caia em suas memórias, mesmo quando ele a estava beijando, como agora, e o fazia apertá-la mais firmemente.
Clary fez um ruído surpreso, mas não protestou, mesmo quando ele a levantou e a transportou para a cama.
Eles se estenderam nela juntos, amassando algumas das cartas. Jace jogou a caixa de lado para dar espaço para eles. Seu coração estava martelando dentro de suas costelas. Eles nunca tinham estado na cama juntos desse jeito antes, não realmente. Estiveram naquela noite no quarto dela em Idris, mas eles mal tinham se tocado. Jocelyn era muito cuidadosa em nunca deixar nem um, nem o outro, passar a noite onde o outro morava. Ela não gostava muito dele, Jace suspeitava, e mal podia culpá-la. Ele duvidava se gostaria muito de si mesmo se estivesse no lugar dela.
— Eu te amo — Clary sussurrou.
Ela tinha tirado a camisa, e as pontas de seus dedos estavam traçando as cicatrizes em suas costas, e a cicatriz em forma de estrela em seu ombro que era o par da dela, uma lembrança do anjo cujo sangue eles compartilhavam.
— Eu jamais quero perder você.
Ele deslizou a mão para tirar a blusa dela. Sua outra mão, apoiada contra o colchão, tocou o metal frio da adaga. Ela deve ter deslizado na cama com o resto do conteúdo da caixa.
— Isso nunca acontecerá.
Ela fitou-o com olhos luminosos.
— Como você pode estar tão certo?
Sua mão apertou o cabo da faca. O luar que se derramava através da janela moveu-se na lâmina enquanto ele a levantava.
— Eu tenho certeza — ele disse, e trouxe a adaga abaixo.
A lâmina passou através da carne dela, como se ela fosse papel, e sua boca se abriu em um espantado e sangue ensopou a frente de sua camisa branca. Ele pensou,Querido Deus, de novo, não.
Acordar do pesadelo era como bater em uma janela de vidro. Os afiados fragmentos pareceram fatiar Jace, mesmo enquanto ele se libertava e se sentava, arfando. Ele rolou para fora da cama, instintivamente querendo fugir, e caiu no chão de pedra com suas mãos e joelhos.
O ar frio se derramou através da janela aberta, fazendo-o estremecer, mas limpando os últimos tentáculos apegados do sonho.
Ele olhou para suas mãos. Elas estavam limpas do sangue. A cama estava uma bagunça, os lençóis e cobertores enroscados em uma bola emaranhada do seu retorcer e girar, mas a caixa, contendo as coisas de seu pai, estava imóvel no criado mudo, onde ele a tinha deixado antes de ir dormir.
As primeiras vezes que ele tinha tido o sonho, ele tinha acordado e vomitado. Agora cuidava em não comer por horas antes de ir dormir, então, ao invés, seu corpo teve sua vingança sobre ele atormentando-o com espasmos de náusea e febre. Um espasmo o atingiu agora, e ele se curvou em uma bola, arfando e enjoando, até que passou.
Quando acabou, ele pressionou sua testa contra o chão de pedra fria. Suor estava resfriava o seu corpo, sua camiseta grudava, e ele imaginou, não inutilmente, se eventualmente os sonhos o matariam.
Ele tinha tentado tudo para pará-los – dormir com remédios e poções, runas de sono e runas de paz e cura. Nada funcionou. Os sonhos surgiam como veneno em sua mente, e não havia nada que ele pudesse fazer para trancá-los.
Mesmo durante suas horas acordado, ele achava difícil olhar para Clary. Ela sempre tinha sido capaz de ver através dele, do modo que ninguém mais podia, e ele só podia imaginar o que ela pensaria se soubesse o que ele sonhava.
Ele rolou de lado e olhou para a caixa sobre o criado mudo, o luar cintilando nela. E pensou em Valentim. Valentim, que tinha torturado e aprisionado a única mulher que tinha amado, que tinha educado seu filho – ambos os filhos – dizendo que amar era destruir.
Sua mente girou freneticamente enquanto ele dizia as palavras para si mesmo, mais e mais. Se tornou como uma espécie de cântico para ele, e como qualquer cântico, as palavras tinham começado a perder seus significados individuais.
Eu não sou como Valentim. Eu não quero ser como ele. Eu não serei como ele. Eu não serei.
Ele viu Sebastian – Jonathan, na verdade – meio que seu irmão, sorrindo para ele através de um emaranhado de cabelo prata bagunçado, seus olhos pretos cintilando com brilho sem misericórdia. E ele viu sua própria faca ir na direção de Jonathan e se libertar, o corpo de Jonathan tombando rio abaixo, seu sangue se misturando com as algas e o mato na beira da margem.
Eu não sou como Valentim.
Ele não tinha lamentado a morte de Jonathan. Dada a chance, ele faria isso de novo.
Eu não quero ser como ele.
Com certeza não era normal matar alguém – matar seu próprio irmão adotivo – e não sentir nada sobre isso.
Eu não serei como ele.
Mas seu pai o tinha educado de modo que matar sem misericórdia era uma virtude, e talvez você nunca pudesse esquecer o que seus pais te ensinaram. Não importa o quanto você quisesse.
Eu não serei.
Talvez as pessoas nunca pudessem realmente mudar.
Eu não serei.

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