Capítulo 4 - O Cuco no Ninho
— Suco de laranja, melado, ovos, tudo fora da validade – porém tem alguma coisa que parece com alface.
— Alface? — Clary espreitou por cima do ombro de Simon dentro da geladeira. — Ah, tem mussarela.
Simon estremeceu e chutou a porta da geladeira de Luke, fechando-a.
— Peço uma pizza?
— Eu já pedi — Luke disse, vindo para a cozinha com o telefone sem fio na mão — uma grande pizza vegetariana e três cocas. E liguei para o hospital — ele acrescentou, pendurado o telefone no gancho — não há nenhuma mudança com Jocelyn.
— Ah — Clary falou desanimada.
Ela se sentou na mesa de madeira da cozinha de Luke. Normalmente, Luke era muito organizado, mas no momento, a mesa estava coberta com correspondências fechadas e pilhas de pratos sujos. O pano de prato verde de Luke estava pendurado na parte de trás da cadeia. Ela sabia que devia estar ajudando na limpeza, porém ultimamente não tinha energia.
A cozinha de Luke era pequena e um pouco desbotada – ele não era muito de cozinhar, tal fato evidenciado pelo armário de temperos que pendia sobre o antiquado fogão a gás estar vazio de especiarias. Em vez disso, ele o usava para pendurar as caixas de café e chá.
Simon se sentou ao lado dela enquanto Luke retirava os pratos sujos da mesa e os colocava dentro da pia.
— Você está bem? — ele perguntou em voz baixa.
— Estou bem — Clary esboçou um sorriso — eu não esperava que minha mãe acordasse hoje, Simon. Tenho a sensação de que ela está esperando alguma coisa.
— Você sabe o quê?
— Não, só que alguma coisa está faltando — ela olhou acima para Luke, mas ele estava envolvido em uma vigorosa limpeza de pratos na pia — ou alguém.
Simon olhou para ela incredulamente, e então deu de ombros.
— Soa como se o que aconteceu no Instituto foi muito intenso.
Clary deu de ombros.
— A mãe de Alec e Isabelle é assustadora.
— Qual é mesmo o nome dela?
— May-ris — Clary disse, copiando a pronúncia de Luke.
— É um antigo nome de Caçador de Sombras — Luke secou suas mãos em um pano de prato.
— E Jace decidiu ficar lá e lidar com esta Inquisidora? Ele não quis sair? — Simon perguntou.
— É o que ele tem que fazer se quer uma vida como um Caçador de Sombras — Luke respondeu — e, ser assim, um dos Nephilim – significa tudo para ele. Eu conheci outros Caçadores de Sombras como ele, de volta à Idris. Se eu tirasse isso dele...
A costumeira campainha estridente soou. Luke jogou o pano de prato no balcão.
— Eu já volto.
Tão logo ele se foi da cozinha, Simon disse:
— É realmente estranho pensar em Luke como alguém que uma vez foi um Caçador de Sombras. Mais estranho do que pensar nele como um lobisomem.
— Sério? Por quê?
Simon encolheu os ombros.
— Eu já tinha ouvido falar de lobisomens antes. Eles são uma espécie de elemento conhecido. Então, ele se transforma em lobo, uma vez por mês, e pronto. Mas essa coisa de Caçador de Sombras... eles são como um culto.
— Eles não são como um culto.
— É claro que são. Ser Caçador de Sombras é sua vida inteira. E eles menosprezam todos os outros. Nos chamam de mundanos. Como se eles não fossem humanos. Eles não tem amizade com pessoas comuns, não vão aos mesmos lugares, não sabem nem mesmo as mesmas piadas, pensam que estão acima de nós — Simon arrastou uma perna para cima e torceu a desgastada borda do buraco no joelho de seu jeans — conheci outro lobisomem hoje.
— Não me diga que você saiu com Freaky Pete no Caçador da Lua.
Havia uma sensação desconfortável na boca do seu estômago, mas ela não podia dizer exatamente o que estava causando. Provavelmente um estresse flutuando livremente.
— Não. Era uma garota. Da nossa idade. Se chama Maia.
— Maia? — Luke estava de volta à cozinha carregando uma caixa quadrada de pizza.
Ele a largou sobre a mesa e Clary se aproximou para abri-la. O cheiro quente da massa, molho de tomate e queijo a lembrou que estava faminta. Ela arrancou um pedaço, não esperando que Luke escorregasse o prato por cima da mesa para ela. Ele se sentou com um sorriso, balançando sua cabeça.
— Maia é uma da matilha, certo? — Simon perguntou, pegando um pedaço para si mesmo.
Luke concordou.
— Claro. Ela é uma boa garota. Esteve por aqui algumas vezes, olhando a livraria enquanto eu ia ao hospital. Ela me deixa lhe pagar com livros.
Simon olhou para Luke por cima da sua pizza.
— Você está com pouco dinheiro?
Luke encolheu os ombros.
— Dinheiro nunca foi importante para mim, e a matilha procura ter o seu próprio.
Clary se pronunciou:
— Minha mãe sempre disse que quando nós estávamos com pouco dinheiro, ela vendia algumas das ações de meu pai. Mas desde que o cara que eu pensava ser meu pai não era meu pai, e duvido que Valentim tenha alguma ação...
— Sua mãe estava vendendo suas joias, pouco a pouco — Luke disse — Valentim tinha dado a ela algumas das peças de sua família, joias que haviam estado com os Morgensten por gerações. Mesmo uma pequena peça alcançava um preço elevado em leilão — ele suspirou — elas se foram agora – Valentim pode tê-las recuperado dos destroços do seu antigo apartamento.
— Bem, espero que tenha dado a ela alguma satisfação — Simon disse — vender as coisas dele desse jeito.
Ele pegou um terceiro pedaço de pizza. Era realmente incrível, Clary pensou, o quanto os garotos adolescentes eram capazes de comer sem ganhar peso ou ficarem doentes.
— Deve ser estranho para você — ela falou para Luke — ver Maryse Lightwood daquele jeito, depois de tanto tempo.
— Não precisamente estranho. Maryse não está diferente agora do que era, então, na verdade, está mais do que nunca como ela mesma, se isso faz sentido.
Clary pensou que sim. O modo como Maryse a tinha olhado lembrou a menina esguia na foto que Hodge tinha dado a ela, a com o altivo queixo inclinado.
— Como você acha que ela se sentiu sobre você? Você realmente acha que eles esperavam que estivesse morto?
Luke sorriu.
— Talvez não por ódio, não, mas teria sido mais conveniente e menos confuso para eles se eu tivesse morrido, certamente. Eu não apenas estou vivo, mas sou líder de uma alcateia do centro da cidade não pode ser algo que eles esperavam. É o trabalho deles, afinal, manter a paz entre os Seres do Submundo – e aqui estou eu, com uma história com eles e muitas razões para querer uma vingança. Eles vão estar preocupados. Eu sou um curinga.
— Você é? — Simon perguntou.
Eles estavam empanturrados de pizza, então ele se aproximou, sem olhar, e mordiscou as bordas da pizza. Simon sabia que ela odiava a borda.
— Um curinga, eu quero dizer.
— Não há nada de selvagem em mim. Estou impassível. Meia-idade.
— Exceto que uma vez por mês você se transforma em lobisomem e sai em disparada massacrando coisas — Clary observou.
— Poderia ser pior — Luke respondeu — homens da minha idade são conhecidos por comprar carros esportivos caros e dormir com supermodelos.
— Você está apenas com trinta e oito — Simon apontou — isso não é meia-idade.
— Obrigado, Simon, eu aprecio isso — Luke abriu a caixa de pizza, encontrando-a vazia, e fechou-a com um suspiro — apesar de você ter comido toda a pizza.
— Eu só peguei cinco pedaços — Simon protestou, inclinando sua cadeira para trás, equilibrando-se precariamente sobre suas duas pernas.
— Quantas fatias você pensa que há em uma pizza, idiota? — Clary quis saber.
— Menos de cinco fatias não é uma refeição. É um lanche — Simon olhou apreensivamente para Luke — isso significa que você vai virar um lobo e vai me comer?
— Certamente que não — Luke se levantou e arremessou a caixa de pizza na lixeira — você seria pegajoso e difícil de engolir.
— Mais como kosher — Simon apontou agradavelmente.
— Eu vou me assegurar de apontar qualquer licantropo judeu para o seu caminho — Luke inclinou suas costas contra a pia — respondendo a sua pergunta anterior, Clary, foi estranho ver Maryse Lightwood, mas não por causa dela. Foi o ambiente. O Instituto me lembrou muito do Salão dos Acordos em Idris – eu pude sentir a força das runas do Livro Cinza ao meu redor, após quinze anos tentando esquecê-las.
— Você tenta? — Clary perguntou. — Consegue esquecê-las?
— Há coisas que você nunca se esquece. As runas do Livro são mais do que ilustrações. Elas se tornam parte de você. Parte de sua pele. Ser um Caçador de Sombras nunca deixa você. É um dom que é transportado em seu sangue, e você não pode alterá-lo, mais do que pode mudar seu tipo sanguíneo.
— Eu estava pensando — Clary disse — se talvez eu devesse ter algumas Marcas.
Simon deixou cair a borda de pizza que estava mordiscando.
— Você está brincando.
— Não, eu não estou. Por que eu iria brincar com algo assim? E por que eu não posso ter algumas Marcas? Eu sou uma Caçadora de Sombras. Tenho que ter tanta proteção quanto puder.
— Proteção de quê? — Simon protestou, se inclinando para frente, as pernas da frente da cadeira bateram no chão com um estrondo. — Pensei que tudo isso de caçar sombras tivesse acabado. Pensei que você estava tentando ter uma vida normal.
O tom de Luke era leve.
— Eu não tenho certeza se tal coisa é como uma vida normal.
Clary olhou para baixo em seu braço, onde Jace tinha desenhado a única Marca que ela recebeu. Ainda podia a ver um tracejado branco que foi deixado para trás, mais uma memória do que uma cicatriz.
— Claro que eu quero ficar longe do sobrenatural. Mas e se o sobrenatural vier atrás de mim? E se eu não tiver escolha?
— Ou talvez você não queira ficar longe do que é sobrenatural — Simon murmurou — não enquanto Jace continuar envolvido com isso, de qualquer maneira.
Luke limpou sua garganta.
— A maioria dos Nephilim passam por níveis de treinamento antes de receber suas Marcas. Eu não recomendaria ter nenhuma até que você tivesse concluído alguma instrução. E se ainda quiser fazer isso, é com você, naturalmente. Contudo, há algo que você deve ter. Algo que todo Caçador de Sombras deve ter.
— Uma atitude arrogante? — Simon perguntou.
— Uma estela. Todo Caçador de Sombras deve ter uma estela.
— Você tem uma? — Clary perguntou, surpresa.
Sem responder, Luke saiu da cozinha. Ele estava de volta em poucos minutos, segurando um objeto envolto em um tecido preto. Colocando o objeto sobre a mesa, desenrolou o pano, revelando um reluzente instrumento como uma varinha, feito de um pálido e opaco cristal. Uma estela.
— Linda — Clary elogiou.
— Estou feliz que você ache isso — Luke disse — porque eu quero que você a tenha.
— Eu? — Ela olhou para ele com espanto. — Mas é sua, não é?
Ele balançou a cabeça.
— Esta era de sua mãe. Ela não queria mantê-la no apartamento, caso você visse, então me pediu para guardar.
Clary pegou a estela. Parecia fria ao toque, embora soubesse que aquilo tinha um brilho quente quando utilizada. Era um objeto estranho, não muito curto, o suficiente para ser facilmente manipulado como uma ferramenta. Ela supôs que o estranho tamanho era só algo com que você se acostumava com o tempo.
— Eu posso ficar com ela?
— Claro. É um modelo antigo, é claro, de quase vinte anos atrás. Eles podem ter refinado desde então os desenhos. Mesmo assim, ela é confiável o suficiente.
Simon olhou enquanto ela segurava a estela como uma varinha, traçando invisíveis e suaves desenhos no ar entre eles.
— Me faz lembrar o tempo em que meu avô me deu um velho taco de golfe.
Clary riu e baixou a sua mão.
— Sim, exceto que você nunca o usou.
— E eu espero que você nunca tenha que usar isso — Simon replicou, e olhou rapidamente para longe antes que ela pudesse responder.
***
A fumaça subiu vinda das Marcas em espiral e ele sentiu o cheiro de sua própria pele queimando. Seu pai estava sobre ele com a estela, a ponta reluzindo vermelha como ferro em brasa
— Feche seus olhos, Jonathan — ele disse — a dor é apenas o que você permitir que seja.
Mas a mão de Jace se fechou, com relutância, enquanto sua pele estava sofrendo, retorcendo para se afastar da estela. Ele ouviu um estalo como se um osso quebrasse em sua mão, e depois outro...
Jace abriu os olhos e piscou na escuridão, a voz de seu pai sumindo como fumaça subindo ao vento. Ele provou a dor, metálica em sua língua. Tinha mordido o interior do seu lábio. Se sentou, piscando.
O estalo veio novamente, e involuntariamente ele olhou para sua mão. Ela estava sem marca. Percebeu que o som vinha do lado de fora do quarto. Alguém batendo, embora hesitantemente, na porta.
Ele rolou da cama, estremecendo quando seus pés descalços encontraram o chão frio. Tinha adormecido com suas roupas e então olhou abaixo com desgosto para sua camisa amarrotada. Provavelmente ainda cheirava como um lobo. E ainda estava todo dolorido.
A batida veio novamente. Jace caminhou pelo quarto e abriu-a. Piscou em surpresa.
— Alec?
As mãos de Alec estavam nos bolsos de seus jeans, conscientemente, os ombros encolhidos.
— Desculpe, é muito cedo. Mamãe me mandou te chamar. Ela quer vê-lo na biblioteca.
— Que horas são?
— Cinco da manhã.
— E o que você está fazendo acordado?
— Eu não fui para a cama.
Parecia que ele estava dizendo a verdade. Seus olhos azuis estavam rodeados por sombras escuras.
Jace correu uma mão pelo seu cabelo desarrumado.
— Tudo bem. Espere um segundo, enquanto eu mudo minha camisa.
Indo para o guarda-roupa, ele inspecionou as ordenadas pilhas dobradas até encontrar uma camisa de mangas longas azul-escura. Retirou a camisa que estava vestindo cuidadosamente – em alguns lugares ela estava presa À pele com o sangue seco.
Alec olhou para longe.
— O que aconteceu com você? — Sua voz estava estranhamente contraída.
— Puxei uma briga com uma matilha de lobisomens.
Jace deslizou a camisa azul pela sua cabeça. Vestido, ele caminhou após Alec pelo corredor.
— Você tem alguma coisa em seu pescoço — ele observou.
A mão de Alec voou para sua garganta.
— O quê?
— Parece como uma marca de mordida — Jace disse — o que você estava fazendo a noite toda, afinal?
— Nada.
Como uma beterraba vermelha, a mão ainda apertando o pescoço, Alec caminhou pelo corredor. Jace seguiu-o.
— Eu fui caminhar no parque. Tentei limpar minha cabeça.
— E correu para um vampiro?
— O quê? Não! Eu caí.
— Em seu pescoço? — Alec fez um barulho, e Jace decidiu que era melhor abandonar o assunto. — Tudo bem, tanto faz. O que fez você precisar limpar a cabeça?
— Você. Meus pais. Eles vieram e explicaram o motivo de estarem muito bravos quando você saiu. E falaram sobre Hodge. À propósito, obrigado por não me dizer isso.
— Desculpe — foi a vez de Jace enrubescer — de alguma forma, eu não consegui trazer isso à tona.
— Bem, isso não parece ser bom — Alec finalmente soltou a mão de seu pescoço e se virou para olhar acusadoramente para Jace — parece que você estava escondendo coisas. Coisas sobre Valentim.
Jace parou em seu caminho.
— Você acha que eu estava mentindo? Que eu não sabia que Valentim era meu pai?
— Não! — Alec começou, quer pela pergunta ou pela veemência em Jace perguntar isso. — E eu não me importo com quem quer que seja seu pai. Não importa para mim. Você é ainda a mesma pessoa.
— Quem quer que seja — as palavras saíram frias, antes que ele pudesse pará-las.
— Estou apenas dizendo — o tom de Alec era apaziguador — que você pode ser um pouco... difícil às vezes. Basta pensar antes de falar, isso é tudo o que estou pedindo. Ninguém aqui é seu inimigo, Jace.
— Bem, obrigado pelo conselho. Eu posso andar sozinho pelo resto do caminho até a biblioteca.
— Jace...
Mas Jace já tinha desaparecido, deixando Alec para trás, aflito. Jace odiava quando outras pessoas ficavam preocupadas consigo. O fazia sentir que talvez houvesse realmente algo para se preocupar.
A porta da biblioteca estava entreaberta. Sem se importar em bater, Jace entrou. Sempre tinha sido um de seus lugares favoritos no Instituto – havia algo confortável sobre sua antiquada mistura de madeira, acessórios de metal, o couro e livros encadernados em veludo correndo ao longo das paredes como velhos amigos esperando o seu retorno.
Agora, um sopro de ar frio acertou-o no momento em que a porta foi aberta. O fogo que geralmente ardia na enorme lareira durante todo o outono e inverno era um amontoado de cinzas. As lâmpadas tinham sido desligadas. A única luz vinha através das estreitas aberturas laterais das janelas e da claraboia acima.
Sem querer, Jace pensou em Hodge. Se ele estivesse aqui, o fogo estaria aceso, as lâmpadas a gás ligadas, lançando sombras de piscinas de luz dourada nos tacos do piso. O próprio Hodge estaria relaxado em uma poltrona por causa do fogo, Hugo sobre um ombro, um livro apoiado a seu lado...
Mas havia alguém na velha poltrona de Hodge. Um alguém magro e cinza, que se levantou da poltrona, fluidamente desenrolando como uma cobra com seu encantador, e se virou em direção a ele com um sorriso frio.
Era uma mulher. Ela usava um longo e antiquado manto cinza escuro que caía até ao topo de seus sapatos. Abaixo dele estava um ajustado terno azul cinzento com um colarinho que pressionava com firmeza seu pescoço. Seu cabelo era um tipo de pálido loiro, bem puxado para trás, os olhos eram incrustados cinza impiedosos. Jace podia senti-los como o toque de água congelada enquanto seu olhar percorria o seu jeans sujo, salpicado de lama, e seus olhos permaneceram lá.
Por um segundo, algo quente tremeluziu em seu olhar, como o brilho de uma chama presa embaixo do gelo. Em seguida, ele desapareceu.
— Você é o menino?
Antes que Jace respondesse, outra voz respondeu: era Maryse, entrando na biblioteca atrás dele. Ele se perguntou por que não escutou sua aproximação e percebeu que ela tinha abandonado seus salto-altos por chinelos. Usava um roupão longo de seda padronizado e a expressão dos lábios era fina.
— Sim, Inquisidora — ela disse — este é Jonathan Morgenstern.
A Inquisidora se moveu em direção a Jace como uma fumaça cinza levada pela corrente. Ela parou em frente a ele e segurou uma mão longa com dedos brancos. Lembrava a ele uma aranha albina.
— Olhe para mim, rapaz — ela disse, e de repente os longos dedos dela estavam sob seu queixo, forçando sua cabeça para cima. Ela era incrivelmente forte — você pode me chamar de Inquisidora. Não vai me chamar de outra coisa.
A pele ao redor de seus olhos era uma confusão de linhas finas como rachaduras de tinta. Duas ranhuras estreitas corriam pelos cantos de sua boca para o seu queixo.
— Você entendeu?
Pela maior parte de sua vida, a Inquisidora tinha sido uma distante figura meio mítica para Jace. Sua identidade, e mesmo muito de suas funções, eram envoltas em um segredo da Clave. Sempre tinha imaginado que seria como os Irmãos do Silêncio, com seu poder velado e mistérios ocultos. Ele não teria imaginado alguém tão direto, ou tão hostil.
Seus olhos pareciam cortá-lo, fatiando à distância a sua armadura de confiança e divertimento, desnudando-o por baixo até os ossos.
— Meu nome é Jace — ele disse — não menino. Jace Wayland.
— Você não tem direito ao nome de Wayland. Você é Jonathan Morgenstern. Reivindicar o nome de Wayland faz de você um mentiroso. Assim como seu pai.
— Na verdade — Jace disse — prefiro pensar que sou um mentiroso de uma forma unicamente minha.
— Estou vendo — um pequeno sorriso curvou em sua boca pálida. E não era uma sorriso simpático — você é intolerante com a autoridade, tal como seu pai era. Tal como o anjo cujo nome ambos carregam — seus dedos agarraram seu queixo com uma súbita ferocidade, as unhas encravando dolorosamente — Lúcifer foi recompensado por sua rebelião quando Deus o arremessou no poço do inferno — sua respiração era amarga como vinagre — se você desafiar minha autoridade, posso te prometer que você vai lhe invejar o seu destino.
Ela soltou Jace e caminhou para trás. Ele pôde sentir o lento escorrer de sangue onde as dela unhas tinham cortado o seu rosto. Suas mãos tremiam com a raiva, mas ele se recusou a limpar uma gota de sangue.
— Imogen... — Maryse começou, então corrigiu a si mesma — Inquisidora Herondale. Ele concorda em ser julgado pela Espada. Você pode descobrir se ele está dizendo a verdade.
— Sobre seu pai? Sim. Eu sei que eu posso — Inquisidora Herondale escavou seu colarinho encravado em sua garganta enquanto ela olhava para Maryse — você sabe, Maryse, a Clave não está satisfeita com vocês. Você e Robert são os guardiões do Instituto. Vocês tem apenas sorte com seus registros que por anos tem sido relativamente limpos. Poucas perturbações demoníacas até recentemente, e tudo tem sido calmo nos últimos dias. Sem relatórios, até mesmo em Idris, de modo que a Clave é clemente. Temos realmente nos perguntado se vocês realmente rescindiram sua lealdade para com Valentim. Como ele é, ele colocou uma armadilha para você e você caiu nela. Se poderia pensar que você saberia melhor.
— Não houve uma armadilha — Jace cortou — meu pai sabia que os Lightwood me educariam se pensassem que eu era o filho de Wayland. Isso é tudo.
A Inquisidora olhou para ele como se ele estivesse passando uma conversa fiada.
— Você conhece o pássaro cuco, Jonathan Morgenstern?
Jace se perguntou se talvez ser uma Inquisidora – ela não podia ter um trabalho agradável – tinha deixado Imogen Herondale um pouco enlouquecida.
— O quê?
— O pássaro cuco. Veja, os cucos são parasitas. Eles põem seus ovos nos ninhos de outras aves. Quando os ovos chocam, o filhote cuco empurra as outras aves filhotes para fora do ninho. Os pobres pais das aves trabalham até a morte tentando encontrar comida suficiente para alimentar o enorme cuco que assassinou seus filhotes e tomou seus lugares.
— Enorme? — Jace repetiu. — Você me chamou de gordo?
— Isso foi uma analogia.
— Eu não sou gordo.
— E eu — Maryse se pronunciou — não quero sua pena, Imogen. Eu me recuso a acreditar que a Clave irá punir a mim ou ao meu marido por escolher trazer o filho de um amigo morto. — Ela endireitou seus ombros. — Não é como se nós não disséssemos a eles o que estávamos fazendo.
— E eu nunca prejudiquei nenhum dos Lightwood de modo algum — Jace acrescentou — trabalhei duro, e fui treinado duramente – diga o que quiser sobre meu pai, mas ele fez de mim um Caçador de Sombras. Eu mereci o meu lugar aqui.
— Não defenda seu pai para mim — a Inquisidora disse — eu o conheci. Ele era – é – o mais vil dos homens.
— Vil? Quem disse “vil”? O que isso quer dizer mesmo?
Os cílios incolores da Inquisidora chicotearam, roçando as bochechas enquanto ela estreitava seus olhos, o olhar especulativo.
— Você é arrogante — ela disse finalmente — bem como intolerante. Seu pai ensinou você a agir desse jeito?
— Não com ele — Jace disse brevemente.
— Então você está o imitando. Valentim era um dos homens mais arrogantes e desrespeitosos que eu já conheci. Suponho que ele trouxe você para ser como ele.
— Sim — Jace respondeu, incapaz de se controlar — eu fui treinado para ser um mestre intelectual maligno desde a tenra idade. Puxando as asas das moscas, envenenando o suprimento de água da Terra – eu estava acobertando isso desde o jardim de infância. Acho que nós todos temos apenas sorte de meu pai ter representado sua própria morte antes de ter violado e saqueado parte da minha educação, ou ninguém estaria seguro.
Maryse deixou sair um som como um gemido de horror.
— Jace...
Mas a Inquisidora tinha interrompido-a.
— E, assim como seu pai, você não consegue manter seu temperamento — ela continuou — os Lightwood mimaram você e deixaram as piores qualidades correrem livremente. Você pode parecer como um anjo, Jonathan Morgenstern, mas eu sei exatamente quem você é.
— Ele é apenas um garoto — Maryse disse.
Ela estava defendendo ele? Jace olhou para ela rapidamente, mas seus olhos estavam desviados.
— Valentim foi um garoto uma vez. Agora, antes de fazermos qualquer pesquisa ao redor de sua cabeça loira para descobrir a verdade, sugiro que você esfrie seu temperamento. E eu sei onde você pode fazer isso melhor.
Jace piscou.
— Você está me mandando para meu quarto?
— Eu estou mandando você para as prisões da Cidade do Silêncio. Depois de uma noite lá, suspeito que você será muito mais cooperativo.
Maryse arfou.
— Imogen... você não pode!
— Certamente que posso — seus olhos brilhavam como navalhas — você tem alguma coisa a dizer a mim, Jonathan?
Jace apenas a encarou. Havia andares e mais andares na Cidade do Silêncio, e ele só conhecia os dois primeiros, onde os arquivos eram mantidos e onde os Irmãos sentavam em conselho. As celas das prisões eram nos níveis mais baixos da cidade, abaixo do nível do cemitério onde milhares de Caçadores de Sombras mortos descansavam em silêncio. As celas eram reservadas para os piores criminosos: vampiros perigosos, bruxos que quebraram a Lei do Pacto, Caçadores de Sombras que derramaram o sangue uns dos outros. Jace não era nenhuma dessas coisas. Como ela sequer poderia sugerir que ele fosse enviado para lá?
— Muito sábio, Jonathan. Vejo que você já aprendeu a melhor lição que a Cidade do Silêncio ensinará para você — o sorriso da Inquisidora era como um crânio sorrindo — como manter sua boca fechada.
***
Clary estava ajudando Luke a limpar os restos do jantar quando a campainha tocou novamente. Ela se endireitou, seu olhar flutuando para Luke.
— Esperando alguém?
Ele fechou a cara, secando as mãos na toalha de pratos.
— Não. Espere aqui.
Ela o viu pegar algo das prateleiras enquanto deixava a cozinha. Alguma coisa que brilhava.
— Você viu essa faca? — Simon assobiou, levantando-se da mesa. — Ele está esperando por problemas?
— Acho que ele está sempre esperando por problemas nestes dias — Clary respondeu.
Ela espreitou pela fresta da porta da cozinha e viu Luke abrir a porta da frente. Pôde ouvir a sua voz, mas não o que ele estava dizendo. Ele não parecia chateado, apesar de tudo.
A mão de Simon em seu ombro a puxou de volta.
— Fique longe da porta. Você está maluca? E se houver algum demônio lá fora?
— Então Luke poderia provavelmente utilizar nossa ajuda — ela olhou para baixo, a mão dele em seu ombro e sorriu — agora você está todo protetor? Que gracinha.
— Clary! — Luke chamou-a da porta da frente. — Venha aqui. Eu quero que você conheça alguém.
Clary afastou a mão de Simon e a colocou de lado.
— Volto já.
Luke estava inclinado contra a moldura da porta, os braços cruzados. A faca em sua mão tinha magicamente desaparecido. Uma garota permanecia em frente aos degraus da casa, uma garota com um cabelo cacheado castanho em múltiplas traças e em uma jaqueta de veludo.
— Esta é Maia — Luke apresentou — de quem eu estava falando.
A garota olhou para Clary. Seus olhos brilhantes sob a varanda tinham uma estranha luz de âmbar verde.
— Você deve ser Clary.
Clary admitiu que este era o caso.
— Então aquele menino – o garoto com o cabelo loiro que agitou o Caçador da Lua – ele é seu irmão?
— Jace — Clary disse curtamente, não gostando da curiosidade importuna da garota.
— Maia?
Era Simon, vindo por trás de Clary, suas mãos empurradas dentro dos bolsos de sua jaqueta.
— Yeah. Você é o Simon, certo? Eu sou uma droga com nomes, mas eu me lembro de você.
A garota sorriu por cima de Clary para ele.
— Ótimo — Clary disse — agora somos todos amigos.
Luke tossiu e se endireitou.
— Eu queria que vocês se conhecessem porque Maia vai trabalhar na livraria nas próximas semanas. Se você vê-la entrando e saindo, não se preocupe com isso. Ela tem uma chave.
— E eu vou manter um olho em qualquer coisa estranha — Maia prometeu — demônios, vampiros, tanto faz.
— Obrigada — Clary disse — eu me sinto mais segura agora.
Maia piscou.
— Você está sendo sarcástica?
— Estamos todos um pouco tensos — Simon disse — eu sou um que fico feliz em conhecer alguém que vai ficar por aqui mantendo um olho em minha namorada quando ninguém mais estiver em casa.
Luke levantou sua sobrancelha, mas não disse nada. Clary falou:
— Simon está certo. Desculpe por ter sido ríspida com você.
— Tá tudo bem — Maia pareceu simpática — eu ouvi sobre sua mãe. Lamento.
— Eu também — Clary respondeu, virando-se e indo de volta para cozinha.
Ela se sentou à mesa e pôs o rosto em suas mãos. Um instante depois Luke a seguiu.
— Desculpe. Achei que você estaria com disposição para conhecer alguém.
Clary olhou para ele através dos dedos estendidos.
— Onde está Simon?
— Falando com Maia — Luke respondeu, e mesmo Clary pôde ouvir suas vozes, suaves como murmúrios, vindo do outro lado da casa — eu só achei que seria bom para você ter uma amiga agora.
— Eu tenho Simon.
Luke empurrou seus óculos para cima em seu nariz.
— Eu o ouvi te chamar de sua namorada?
Ela quase riu de sua expressão.
— Eu acho que sim.
— Isso é algo novo ou alguma coisa que é suposto eu saber, mas esqueci?
— Eu não tinha escutado essa antes — ela levou suas mãos para longe do rosto e olhou para ele.
Pensou na runa, o olho aberto, que decorava a parte de trás da mão direita de cada Caçador de Sombras
— A namorada de alguém — ela disse — a irmã de alguém, a filha de alguém. Todas essas coisas que eu nunca soube que era antes, e ainda não sei o que realmente sou.
— Não é sempre uma questão — Luke falou.
Clary ouviu a porta se fechar do outro lado da casa, as passadas de Simon se aproximando da cozinha. O cheiro do ar frio da noite veio com ele.
— Está tudo bem eu ficar aqui hoje à noite? — ele perguntou. — Está um pouco tarde para ir para casa.
— Você sabe que é sempre bem-vindo — Luke olhou para seu relógio — eu vou dormir um pouco. Tenho que acordar às cinco horas para chegar ao hospital às seis.
— Porque seis? — Simon perguntou, depois que Luke deixou a cozinha.
— É quando as visitas no hospital começam — Clary respondeu — você não tem que dormir no sofá. Não se você não quiser.
— Eu não me importo em ficar te fazendo companhia até amanhã — ele respondeu, balançando seu cabelo escuro para fora de seus olhos impacientemente — de forma alguma.
— Eu sei. Quero dizer que você não precisa dormir no sofá se não quiser.
— Então onde... — Sua voz sumiu, os olhos arregalados atrás de seus óculos. — Ah.
— Tem uma cama de casal no quarto de hóspedes.
Simon tirou as mãos do bolso. Havia uma cor brilhante em suas bochechas. Jace tentaria parecer legal; Simon não.
— Você tem certeza?
— Tenho.
Ele atravessou a cozinha vindo até ela, curvou-se e beijou leve e desajeitadamente em sua boca. Sorrindo, ela ficou de pé.
— Chega de cozinha — ela disse. — Sem mais cozinhas.
E segurando-o firmemente por seus pulsos, o puxou atrás dela para fora da cozinha, em direção ao quarto onde ela dormia.
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