Capítulo 6 - Acordar os Mortos
O quarto de Jace estava tão arrumado como sempre – cama perfeitamente feita, os livros alinhados em ordem alfabética nas prateleiras, livros e notas empilhados cuidadosamente na mesa. Mesmo suas armas estavam organizadas ao longo da parede em ordem de tamanho, a partir de um facão enorme até um conjunto de pequenas adagas.
Clary, parada na porta, conteve um suspiro. A limpeza era impecável. Ela era acostumada a ver isso. Era, sempre pensava, o jeito de Jace de externar o controle sobre os elementos de uma vida que, caso contrário, pode parecer caótica. Ele tinha vivido tanto tempo não sabendo quem – ou até o que – ele realmente era, mal podia invejar a cuidadosa sincronia alfabética da sua coleção de poesia.
Ela poderia sentir, entretanto – e sentia – inveja pelo fato de que ele não estava lá. Se não voltou para casa depois de sair da loja de noivas, para onde teria ido?
Quando ela olhou ao redor do cômodo, uma sensação de ilusão tomou conta dela.
Não era possível que qualquer uma dessas coisas estivesse acontecendo, era? Ela sabia como rompimentos eram de ouvir outras meninas se queixando deles. Primeiro o afastamento, a recusa gradual de retornar telefonemas e mensagens. As mensagens vagas falando que nada estava errado, que a outra pessoa somente queria um pouco de espaço. Então o discurso “não é você, sou eu”. Em seguida, a parte do choro.
Clary nunca pensou que alguma dessas coisas se aplicaria a ela e Jace. O que eles tinham não era comum, ou sujeito às regras normais de relacionamentos e rompimentos. Eles pertenciam um ao outro totalmente, sempre foram e sempre seriam.
Mas todos se sentiam assim, será? Até o momento em que percebiam que eram como todos os outros, e tudo o que pensavam ser real fosse destruído em pedaços.
Ela se viu atraída para a caixa agora, contudo. Se lembrou de Jace sentado nos degraus da frente do Salão dos Acordos em Idris, segurando a caixa no colo. “Como se eu pudesse parar de te amar”, ele havia dito.
Tocou a tampa da caixa, e seus dedos encontraram o fecho, que se abriu facilmente. Dentro estavam espalhados papéis e fotografias velhas. Clary puxou uma, e olhou para ela, fascinada.
Havia duas pessoas jovens na fotografia, uma mulher e um homem. Reconheceu a mulher imediatamente como a irmã de Luke, Amatis. Ela estava olhando para o jovem com todo o brilho do primeiro amor. Ele era maravilhoso, alto e loiro, mas seus olhos eram azuis, não dourados, e seus traços menos angulares que os de Jace... e ainda assim, sabendo quem ele era – o pai de Jace – foi o suficiente para fazer o seu estômago apertar.
Clary guardou a foto de Stephen Herondale às pressas, e quase cortou o dedo na lâmina de uma pequena adaga de caça que estava na caixa transversalmente. Pássaros foram esculpidos ao longo do cabo. A lâmina estava coberta de ferrugem, ou algo que parecia ferrugem. Não deve ter sido devidamente limpa.
Fechando a caixa rapidamente, ela afastou-se, a culpa como um peso em seus ombros. Pensou em deixar uma nota, mas, decidindo que seria melhor esperar até poder falar com Jace pessoalmente, saiu e seguiu pelo corredor para o elevador.
Havia batido na porta de Isabelle mais cedo, mas não parecia que ela estava em casa também. Mesmo as tochas com pedras enfeitiçadas nos corredores pareciam estar brilhando mais fracas do que o habitual. Sentindo-se totalmente depressiva, Clary apertou o botão para chamar o elevador – somente para ver que já estava aceso. Alguém estava subindo do térreo do Instituto.
Jace, ela pensou imediatamente, sua pulsação sobressaltando. Mas claro que não deve ser ele, ela disse para si mesma. Poderia ser Izzy, ou Maryse, ou...
— Luke? — Ela disse surpresa quando a porta do elevador se abriu. — O que você está fazendo aqui?
— Eu poderia lhe perguntar a mesma coisa.
Ele andou para fora do elevador, fechando a grade atrás dele. Vestia um casaco xadrez velho que Jocelyn estava tentando fazê-lo jogar fora desde que começaram a namorar. Era muito legal, Clary pensou, que nada parecia poder mudar Luke, não importa o que acontecia em sua vida. Ele gostava do que gostava, e era isso. Mesmo quando se tratava de um casaco velho de aspecto maltrapilho.
— Exceto que eu posso adivinhar. Então, ele está aqui?
— Jace? Não — Clary encolheu os ombros, tentando parecer despreocupado — está tudo bem. Eu o verei amanhã.
Luke hesitou.
— Clary...
— Lucian — a voz fria que veio detrás dela era da Maryse — obrigada por ter vindo tão rapidamente.
Ele se virou para acenar para ela.
— Maryse.
Maryse Lightwood estava na porta, sua mão pousada na moldura. Ela estava usando luvas cinza-claras que combinavam com seu terno cinza sob medida. Clary imaginou se Maryse alguma vez vestiu jeans. Nunca tinha visto a mãe de Isabelle e Alec em nada se não ternos formais ou trajes de combate.
— Clary — ela disse — eu não sabia que você estava aqui.
Clary se sentiu corando. Maryse não parecia se importar com ela vindo e indo, mas também, nunca realmente havia reconhecido a relação de Clary com Jace de qualquer modo. Era difícil culpá-la. Maryse ainda estava lidando com a morte de Max, que havia sido apenas seis semanas atrás, e estava fazendo isso sozinha, com Robert Lightwood ainda em Idris. Ela tinha coisas mais importantes em sua mente do que a vida amorosa de Jace.
— Eu estava saindo — Clary respondeu.
— Eu vou lhe dar uma carona de volta quando terminar aqui — Luke falou, colocando a mão no seu ombro — Maryse, é um problema se Clary permanecer aqui enquanto conversamos? Porque eu prefiro que ela fique.
Maryse abanou a cabeça.
— Não tem problema, eu suponho — ela suspirou, passando as mãos pelo cabelo — acredite em mim, eu gostaria que não tivesse que incomodar você de qualquer forma. Sei que você vai se casar em uma semana – parabéns, a propósito. Eu não sei se já lhe disse isso antes.
— Não — Luke respondeu — mas é compreensível. Obrigado.
— Somente seis semanas — Maryse sorriu levemente — um namoro muito curto e turbulento.
A mão de Luke apertou o ombro de Clary, o único sinal de seu incômodo.
— Eu não acho que você me chamou aqui para felicitar-me pelo meu noivado, não é?
Maryse balançou a cabeça. Ela parecia muito cansada, Clary pensou, e havia fios cinza em seu cabelo preto penteado que não havia antes.
— Não. Presumo que você ouviu sobre os corpos que temos encontrado desde a semana passada mais ou menos?
— Os Caçadores de Sombras mortos, sim.
— Encontramos mais um esta noite. Enfiado em uma lixeira perto do Columbus Park. O território do seu bando.
As sobrancelhas de Luke subiram.
— Sim, mas os outros...
— O primeiro corpo foi achado em Greenpoint. Território dos bruxos. O segundo, flutuando em um lago no Central Park. O domínio das fadas. Agora temos o território dos lobisomens — ela fixou seu olhar em Luke — o que isso te faz pensar?
— Que alguém que não está muito satisfeito com os novos Acordos está tentando colocar os Seres do Submundo um contra o outro — Luke disse — posso assegurar que meu bando não tem nada a ver com isso. Eu não sei quem está por trás disso, mas é uma tentativa desastrada, se me perguntar. Espero que a Clave possa ver através disso.
— Tem mais — Maryse contou — nós identificamos os dois primeiros corpos. Levou um tempo, desde que o primeiro estava queimado, quase irreconhecível, e o segundo estava em um estágio avançado de decomposição. Você pode adivinhar quem poderia ser?
— Maryse...
— Anson Pangborn — ela respondeu a sua própria pergunta — e Charles Freeman. Nenhum dos dois, eu posso perceber, foram interrogados desde a morte de Valentim...
— Mas isso não é possível — Clary interrompeu — Luke matou Pangborn em agosto, no Renwick.
— Ele matou Emil Pangborn — Maryse explicou — Anson era o irmão mais novo de Emil. Eles estavam no Círculo juntos.
— Assim como Freeman — Luke lembrou — então alguém está matando não somente Caçadores de Sombras, mas os ex-membros do Círculo? E deixando seus corpos em território de Seres do Submundo? — Ele balançou a cabeça. — Soa como alguém tentando abalar alguns dos mais... obstinados membros da Clave. Fazendo-os repensar nos Novos Acordos, talvez. Nós deveríamos ter esperado por isso.
— Suponho que sim — Maryse concordou — já me encontrei com a Rainha Seelie, e tenho uma mensagem para Magnus. Onde quer que ele esteja.
Ela revirou os olhos. Maryse e Robert pareciam ter aceitado a relação de Alec com Magnus com uma surpreendente boa graça, mas Clary podia falar que Maryse, pelo menos, não levou a sério.
— Eu somente pensei, talvez... — ela suspirou — estou tão cansada ultimamente. Sinto-me como se mal pudesse pensar coerentemente. Espero que você tenha alguma ideia sobre quem está fazendo isso, alguma ideia que não tenha me ocorrido.
Luke sacudiu a cabeça.
— Alguém com um ressentimento contra o novo sistema. Pode ser qualquer um, então. Suponho que não há evidências nos corpos?
Maryse suspirou.
— Nada conclusivo. Se apenas os mortos pudessem falar, hein, Lucian?
Era como se Maryse houvesse levantado uma mão e puxado uma cortina na visão de Clary. Tudo ficou preto, exceto por um símbolo, pendurado como um brilhante sinal incandescente contra um inexpressivo céu noturno. Parecia que seu poder não desapareceu, apesar de tudo.
— E se... — ela disse devagar, levantando os olhos para olhar Maryse — e se eles pudessem?
***
Olhando para si mesmo no espelho do pequeno banheiro no apartamento de Kyle, Simon não pôde se impedir de perguntar de onde surgiu todo esse negócio sobre vampiros não serem capazes de se ver no espelho. Ele era capaz de se ver perfeitamente na superfície denteada – o cabelo castanho desgrenhado, grandes olhos castanhos, branco, sem marcas na pele.
Tinha limpado o sangue de seu corte no lábio, apesar de sua pele já ter cicatrizado. Ele sabia, objetivamente falando, que ter se tornado um vampiro o havia tornado mais atraente. Isabelle havia explicado para ele que seus movimentos se tornaram graciosos e que, considerando que antes parecia desgrenhado, de alguma forma agora ele parecia atraentemente amarrotado, como se tivesse acabado de sair da cama. “Da cama de outra pessoa”, ela observou, que, como ele lhe disse, já havia descoberto o que ela queria dizer, obrigado.
Quando ele se olhou, porém, não viu nada disso. A brancura de sua pele sem poros, como sempre, o perturbou, assim como as escuras ramificações de veias que apareciam em suas têmporas, evidências do fato de que ele não havia se alimentado hoje. Ele parecia um alien, e não como ele mesmo. Talvez todo o negócio de não ser capaz de se ver no espelho quando você se tornasse um vampiro fosse um desejo. Talvez fosse apenas porque você não reconheceria o reflexo te encarando.
Limpo, ele voltou para sala, onde Jace estava jogado no futon, lendo a cópia surrada de Kyle de “O Senhor dos Anéis.” Ele largou o livro sobre a mesa de café assim que Simon entrou. Seu cabelo estava molhado, como se ele tivesse jogado água em seu rosto na pia da cozinha.
— Eu posso ver o porquê você gosta daqui — ele disse, fazendo um gesto amplo que englobava a coleção de pôsteres de filmes e os livros de ficção científica de Kyle — há uma fina camada de nerd em tudo.
— Obrigado. Eu aprecio isso.
Simon deu um olhar duro para Jace. De perto, sob a luz forte da lâmpada suspensa sem sombra, Jace parecia... mal.
As olheiras que Simon notou sob seus olhos antes estavam mais pronunciadas que nunca, e sua pele parecia repuxada sobre os ossos do rosto. Sua mão tremeu um pouco quando ele empurrou o cabelo para longe da testa, em um gesto característico.
Simon balançou a cabeça como se para limpá-la. Desde quando ele conhecia Jace bem o suficiente para ser capaz de identificar quais gestos dele eram característicos? Não era como se eles fossem amigos.
— Você parece ruim.
Jace piscou.
— Parece um momento estranho para começar uma competição de insultos, mas se você insiste, eu provavelmente poderia pensar em algo bom.
— Não, eu quero dizer isso mesmo. Você não parece bem.
— Isso de um cara que tem todo o sex appeal de um pinguim. Olha, eu percebo que você deve estar com ciúmes que o bom Deus não lhe deu a mesma cinzelada que deu a mim, mas isso não é motivo para...
— Eu não estou tentando insultá-lo — Simon retrucou — quero dizer que você parece doente. Quando foi a última vez que você comeu alguma coisa?
Jace pareceu pensativo.
— Ontem?
— Você comeu algo ontem. Tem certeza?
Jace encolheu os ombros.
— Bom, eu não poderia jurar sobre uma pilha de Bíblias. Acho que foi ontem, talvez.
Simon havia investigado o conteúdo da geladeira de Kyle antes, quando estava examinando o lugar, e não tinha muito o que achar. Um limão murcho e velho, algumas latas de refrigerante, um quilo de carne moída e, inexplicavelmente, um único confeito no congelador.
Ele pegou suas chaves do balcão da cozinha.
— Vamos — Simon chamou — há um supermercado na esquina. Vamos pegar comida pra você.
Jace pareceu como se estivesse com vontade de contestar, então encolheu os ombros.
— Tudo bem — ele respondeu, em tom de quem não se importava muito aonde eles iriam ou o que fariam lá — vamos.
Lá fora nos degraus da frente, Simon trancou a porta atrás deles com as chaves com que qual ainda estava se acostumando, enquanto Jace examinava a lista de nomes ao lado da campainha do apartamento.
— Aquele é o seu, né? — ele perguntou, apontando para o 3A. — Como é que só diz “Kyle”? Ele não tem um sobrenome?
— Kyle quer ser uma estrela do rock — Simon disse, enquanto descia as escadas — acho que ele está trabalhando nesse negócio de um nome. Como Rihanna.
Jace o seguiu, curvando os ombros levemente contra o vento, mas não fez nenhum movimento para fechar a jaqueta de camurça que havia recuperado de Clary mais cedo naquele dia.
— Eu não tenho ideia do que você está falando.
— Tenho certeza que não.
Assim que eles dobraram a esquina para a Avenida B, Simon olhou para Jace de lado.
— Então, você estava me seguindo? Ou é apenas uma incrível coincidência você estar no telhado de um prédio em que eu estava perambulando quando fui atacado?
Jace parou na esquina, esperando o sinal mudar de cor. Aparentemente, até os Caçadores de Sombras tinham que obedecer às leis de trânsito.
— Eu estava te seguindo.
— É essa a parte onde você me conta que é secretamente apaixonado por mim? O sex appeal vampiro ataca novamente.
— Não há tal coisa como um sex appeal vampiro — Jace observou, estranhamente ecoando o comentário anterior de Clary — e eu estava seguindo Clary, mas então ela entrou em um táxi, e não posso seguir um táxi. Então voltei e segui você ao invés dela. Principalmente para ter algo para fazer.
— Você estava seguindo Clary? — Simon repetiu. — Aqui vai uma dica quente: a maior parte das garotas não gosta de ser seguida.
— Ela deixou o celular no bolso da minha jaqueta — Jace respondeu, batendo no seu lado direito, onde, presumivelmente, o telefone estava guardado — pensei que, se eu pudesse descobrir para onde ela estava indo, eu poderia deixa-lo onde ela o encontraria.
— Ou você poderia ligar para ela em casa e dizer que está com o celular dela, e ela poderia vir e pegá-lo.
Jace não disse nada. A luz mudou, e eles atravessaram a rua em direção ao Supermercado C-Town. Ele ainda estava aberto. Supermercados em Manhattan nunca fecham, Simon pensou, o que era uma mudança agradável do Brooklyn.
Manhattan era um bom lugar para se ser vampiro. Podia-se fazer todas as suas compras à meia-noite e ninguém iria pensar que era estranho.
— Você está evitando Clary — Simon observou — suponho que você não queira me dizer por quê?
— Não, eu não quero. Somente se considere sortudo por eu estar seguindo você ou...
— Ou o quê? Outro atacante estaria morto? — Simon podia ouvir a amargura em sua própria voz. — Você viu o que aconteceu.
— Sim. E eu vi a expressão em seu rosto quando ocorreu — o tom de Jace era neutro — não foi a primeira vez que você viu isso acontecer, foi?
Simon se encontrou contando a Jace sobre a figura de moletom que o havia atacado em Williamsburg, e como havia assumido que era apenas um assaltante.
— Depois que ele morreu, ele se transformou em sal — concluiu — assim como o segundo cara. Acho que é uma coisa bíblica. Pilares de sal. Como a mulher de Ló.
Eles chegaram ao supermercado. Jace empurrou e abriu a porta, e Simon o seguiu para dentro, agarrando um pequeno carrinho prata enfileirado perto da porta da frente. Ele começou a empurrá-lo em um dos corredores, e Jace o seguiu, claramente perdido em pensamentos.
— Então acho que a pergunta é — Jace disse — você tem alguma ideia de quem poderia querer te matar?
Simon encolheu os ombros. A visão de toda aquela comida ao seu redor estava fazendo seu estômago revirar, lembrando-o com quanta fome ele estava, mas não por algo que fosse vendido aqui.
— Talvez Raphael. Ele parece me odiar. E ele me queria morto antes...
— Não é Raphael.
— Como você pode estar tão certo?
— Porque Raphael sabe sobre sua Marca e não iria ser idiota o suficiente para atacar diretamente assim. Ele sabe exatamente o que aconteceria. Quem quer que esteja atrás de você, é alguém que sabe o suficiente sobre você para saber onde provavelmente estaria, mas não sabem sobre sua Marca.
— Mas poderia ser qualquer um.
— Exatamente — Jace concordou, e sorriu.
Por um momento quase pareceu ele mesmo de novo.
Simon sacudiu a cabeça.
— Olhe, você sabe o que quer comer ou só quer que eu continue empurrando este carrinho para cima e para baixo nos corredores porque isso te diverte?
— Isso — Jace respondeu — e eu não estou realmente familiarizado com o que vendem em supermercados mundanos. Maryse normalmente cozinha ou nós pedimos comida — ele deu de ombros, e pegou uma fruta aleatoriamente — o que é isso?
— É uma manga.
Simon olhou para Jace. Às vezes era como se os Caçadores de Sombras fossem realmente de um planeta alienígena.
— Não acho que eu já tenha visto uma dessas que não estivessem já picadas — Jace meditou — eu gosto de manga.
Simon agarrou a manga e a jogou dentro do carrinho.
— Ótimo. O que mais você gosta?
Jace ponderou por um momento.
— Sopa de tomate — ele disse finalmente.
— Sopa de tomate? Você quer sopa de tomate e manga para o jantar?
Jace encolheu os ombros.
— Eu realmente não me importo com comida.
— Ótimo. Que seja. Fique aqui. Eu já volto.
Caçadores de Sombras. Simon fervilhava silenciosamente quando virou a esquina de um corredor cheio de latas de sopa.
Era uma espécie de variações bizarras para milionários – pessoas que nunca tiveram que refletir sobre as partes triviais da vida, como comprar comida, ou usar as máquinas de bilhetes nos metrôs – e soldados, com suas próprias disciplinas rígidas e treinamentos constantes. Talvez fosse mais fácil para eles passar pela vida, pensou ele, enquanto pegavam uma lata de sopa da prateleira. Talvez tenha ajudado a manter seu foco na grande pintura – que, quando o trabalho era basicamente manter o mundo a salvo do mal, era uma grande e bonita imagem, de fato.
Ele estava quase sentindo uma simpatia por Jace à medida que se aproximava do corredor onde o havia deixado – então parou. Jace estava encostado no carrinho, mexendo algo em suas mãos. Da distância em que Simon se encontrava, ele não podia ver o que era, e não podia se aproximar, tampouco, por causa de duas adolescentes que estavam bloqueando a passagem, paradas no meio do corredor, rindo e se juntando uma com a outra para sussurrar do jeito que garotas fazem. Elas estavam obviamente vestidas para se passar por vinte e um anos, de salto-alto e minissaia, sutiãs de bojo e nenhuma jaqueta para se protegerem do frio. Elas cheiravam como brilho labial. Brilho labial, talco e sangue.
Ele podia escutá-las, claro, apesar dos sussurros. Elas estavam falando sobre Jace, quão quente ele era, cada uma desafiando a outra a andar e ir falar com ele. Houve uma grande discussão sobre seu cabelo e também sobre seus músculos, embora como elas realmente podiam ver seus músculos através da camiseta, Simon não estava certo.
Eca, ele pensou. É ridículo. Ele estava prestes a dizer “Com licença” quando uma delas, a mais alta e com o cabelo mais escuro das duas, saiu e andou na direção de Jace, se desequilibrando um pouco sobre seu salto plataforma.
Jace levantou o olhar quando ela se aproximou, seus olhos cuidadosos, e Simon teve um súbito de pensamento de pânico que talvez Jace a confundiria com um vampiro ou algum tipo de demônio e a atacaria com uma das lâminas serafim, e então os dois seriam presos.
Ele não precisava ter se preocupado. Jace apenar arqueou uma sobrancelha. A garota falou algo para ele, ofegante; ele encolheu os ombros. Ela pressionou algo na sua mão, e depois correu de volta para a amiga. Elas saíram da loja, rindo juntas.
Simon passou por Jace e deixou cair a lata de sopa no carrinho.
— Então, o que foi tudo isso?
— Eu acho — Jace disse — que ela perguntou se podia tocar minha manga.
— Ela disse isso?
Jace encolheu os ombros.
— Sim, depois ela me deu o seu número.
Ele mostrou a Simon um pedaço de papel com uma expressão de branda indiferença, em seguida, lançou-o no carrinho.
— Podemos ir agora?
— Você não vai ligar para ela, vai?
Jace olhou para ele como se ele fosse insano.
— Esqueça o que eu disse — Simon falou — esse tipo de coisa acontece com você o tempo todo, não é? Garotas somente indo até você?
— Somente quando eu não estou com o encantamento.
— Sim, porque quando você está, as garotas não podem te ver, porque está invisível — Simon balançou a cabeça — você é uma ameaça pública. Não pode sair sozinho.
— O ciúme é uma emoção tão feia, Lewis.
Jace deu um sorriso torto que, normalmente, teria feito Simon querer bater nele. Não desta vez, no entanto. Ele havia acabado de perceber com o que Jace estava brincando, girando mais e mais em seus dedos como se fosse algo precioso ou perigoso, ou os dois. Era o celular de Clary.
***
— Continuo não achando que essa seja uma boa ideia — disse Luke.
Clary, com os braços cruzados sobre o peito para afastar o frio da Cidade do Silêncio, olhou de soslaio para ele.
— Talvez você devesse ter dito antes de chegarmos aqui.
— Estou bastante certo de que o fiz. Várias vezes.
A voz de Luke ecoou pelas colunas de pedra que se erguiam sobre suas cabeças, listradas com faixas de pedras semipreciosas – ônix preta, jade verde, cornalina rosa, lápis-lazúli azul. Pedras enfeitiçadas prateadas queimavam em tochas anexadas aos pilares, iluminando os mausoléus de modo que cada parede parecia forrada de um branco que era quase doloroso de olhar.
Pouco havia mudado na Cidade do Silêncio desde a última vez que Clary esteve lá. Ela ainda continuava estranha e alheia, mas agora as vastas runas que se estendiam pelo chão em espirais esculpidas e padrões gravados provocaram em sua mente os seus significados, ao invés de serem totalmente incompreensíveis.
Maryse havia deixado ela e Luke na entrada da câmara no momento em que chegaram, preferindo ir relatar aos Irmãos do Silêncio ela mesma. Não havia garantias de que deixariam os três entrar para ver os corpos, ela advertiu Clary. Nephilins mortos eram domínio dos guardiões da Cidade dos Ossos, e ninguém mais tinha jurisdição sobre eles.
Não que houvesse muitos guardiões sobrando. Valentim havia matado quase todos enquanto procurava pela Espada Mortal, deixando vivos apenas os poucos que não estavam na Cidade do Silêncio no dia. Novos membros foram aderidos à ordem desde então, mas Clary duvidou que houvesse mais de dez ou quinze Irmãos do Silêncio sobrando no mundo.
O áspero ruído seco dos saltos de Maryse no chão de pedra os alertou de seu retorno antes que ela realmente aparecesse, um encapuzado Irmão do Silêncio seguindo-a.
— Aqui estão vocês — ela falou, como se Clary e Luke não estivessem exatamente onde ela os deixou — este é o Irmão Zacarias. Irmão Zacarias, essa é a garota de quem eu estava lhe falando.
O Irmão do Silêncio empurrou seu capuz um pouco para longe do rosto. Clary escondeu sua surpresa. Ele não parecia com o Irmão Jeremiah, com cavidade nos olhos e a boca costurada. Os olhos de Irmão Zacarias estavam fechados, suas maçãs do rosto estavam marcadas com a cicatriz de uma única runa negra. Mas a boca não fora costurada, e não achava que sua cabeça fora raspada, tampouco. Era difícil dizer, com o capuz levantado, se eram sombras ou cabelos escuros em sua cabeça.
Clary sentiu a voz dele tocando sua mente. Realmente acredita que pode fazer tal coisa, filha de Valentim?
Ela sentiu suas bochechas enrubescerem. Odiava ser lembrada de quem era filha.
— Certamente você já ouviu falar de outras coisas que ela fez — Luke respondeu — sua runa de ligação nos ajudou a acabar com a Guerra Mortal.
Irmão Zacarias puxou o capuz para esconder seu rosto. Venha comigo ao ossuário.
Clary olhou para Luke, esperando por um aceno de apoio, mas ele estava olhando para frente e mexendo nos óculos da forma que fazia quando ele está ansioso. Com um suspiro, ela seguiu Maryse e Irmão Zacarias. Ele se movia silenciosamente como uma nuvem, enquanto os saltos de Maryse faziam barulhos como tiros no chão de mármore. Clary se perguntou se a propensão de Isabelle para calçados inadequados era genética.
Eles seguiram um caminho tortuoso através de pilares, passando pela grande Praça das Estrelas Falantes, onde os Irmãos do Silêncio falaram pela primeira vez para Clary sobre Magnus Bane. Além da praça havia uma porta em arco, colocado com um par de portas de ferro enormes. Nas superfícies havia runas desenhadas que Clary reconheceu como de morte e paz. Sobre as portas, inscrições em latim a fizeram desejar que ela tivesse suas anotações. Estava lamentavelmente atrás em latim em comparação com a maioria dos Caçadores de Sombras; a maioria deles falava como uma segunda língua.
Taceant colloquia. Effugiat risus. Hic locus est ubi mors gaudet succurrere vitae.
— Que cessem as conversas. Que fuja o riso — Luke leu em voz alta — aqui é o lugar onde a morte se delicia ao ensinar os vivos.
Irmão Zacarias colocou a mão na porta. O mais recente dos mortos foi preparado para você. Está preparada?
Clary engoliu duramente, pensando exatamente no que ela estava se metendo.
— Estou.
As portas se abriram, e eles passaram por elas. Dentro havia uma sala grande, sem janelas, as paredes de mármore brancas e lisas. Elas estavam cheias de ganchos que prendiam instrumentos prateados de dissecação: bisturis brilhantes, coisas que pareciam martelos, serras para ossos e afastadores de costelas. E ao lado deles nas prateleiras havia mais instrumentos peculiares: maciças ferramentas parecidas com saca-rolhas, folhas de lixa e jarros com líquidos multicoloridos, incluindo um esverdeado rotulado com “ácido” que realmente parecia estar fervendo.
O centro da sala apresentava uma fila de mesas de mármore altas. A maioria estava vazia. Três estavam ocupadas, e sobre duas, tudo o que Clary podia ver eram formas humanas cobertas por um lençol branco. Na terceira mesa havia um corpo, o lençol puxado até as costelas.
Nu da cintura para cima, o corpo era claramente masculino, e também tão claramente um Caçador de Sombras. A pele pálida do cadáver estava completamente coberta de tatuagens. Os olhos do homem foram cobertos com uma seda branca, um costume de Caçadores de Sombras.
Clary engoliu a náusea crescente e se moveu para ficar ao lado do cadáver. Luke veio com ela, a mão protetoramente em seu ombro. Maryse parou de frente a eles, vendo tudo com seus curiosos olhos azuis, a mesma cor dos de Alec.
Clary puxou a estela do bolso. Ela podia sentir o frio do mármore através de sua blusa quando se inclinou sobre o corpo do homem morto. Perto assim, ela podia ver detalhes – que seu cabelo havia sido marrom avermelhado, e que sua garganta tinha sido rasgada em tiras limpas, como se uma garra enorme o houvesse arranhado.
Irmão Zacarias estendeu a mão e tirou a amarração de seda dos olhos do homem morto. Embaixo da seda, eles estavam fechados. Você pode começar.
Clary respirou fundo e colocou a ponta da estela no braço do Caçador de Sombras morto. A runa que ela visualizou antes, no corredor de entrada do Instituto, veio tão claramente em sua mente como as letras de seu próprio nome. Ela começou a desenhar.
As linhas pretas da tatuagem saíram em espiral pela ponta da estela, tal como sempre acontecia – mas Clary sentiu sua mão pesada, a estela se arrastava um pouco, como se estivesse escrevendo na lama, em vez de pele. Era como se o instrumento estivesse confuso por deslizar na pele de um morto, buscando o espírito vivo de um Caçador de Sombras que não estava mais lá. O estômago de Clary se agitou enquanto ela desenhava, e quando ela terminou e recolheu sua estela, estava suando e nauseada.
Por um longo momento, nada aconteceu. Então, com uma terrível rapidez, os olhos do Caçador de Sombras se abriram. Eles eram azuis, o branco salpicado de vermelho sangue.
Maryse soltou uma longa arfada. Estava claro que ela realmente não acreditou que a runa funcionaria.
— Pelo Anjo.
Uma respirada ruidosa veio do homem morto, o som de alguém tentando respirar através de uma garganta cortada. A pele áspera de seu pescoço tremulava como as guelras de um peixe. Seu peito ficou rosa, e as palavras saíram de sua boca.
— Isso dói.
Luke praguejou, e olhou para Zacarias, mas o Irmão do Silêncio estava impassível.
Maryse se moveu para perto da mesa, seus olhos afiados de repente, quase predatórios.
— Caçador de Sombras — ela disse — quem é você? Eu exijo o seu nome.
O homem virava a cabeça de um lado para outro. Suas mãos subiam e desciam convulsivamente.
— A dor... Faça a dor parar.
A estela de Clary quase caiu. Isso era muito mais medonho do que havia imaginado. Ela olhou para Luke, que estava se afastando da mesa, seus olhos arregalados de horror.
— Caçador de Sombras — o tom de Maryse era autoritário — quem fez isso com você?
— Por favor...
Luke se virou de costas para Clary. Ele parecia estar mexendo nas ferramentas dos Irmãos do Silêncio. Clary ficou congelada quando a mão com luva cinza de Maryse disparou e segurou o ombro do cadáver, seus dedos apertando-o.
— Em nome do Anjo, eu ordeno que você me responda!
O Caçador de Sombras fez um som abafado.
— Ser do submundo… vampiro…
— Qual vampiro? — Maryse exigiu.
— Camille. Uma das anciãs...
As palavras foram sufocadas quando uma gota de sangue preto coagulado fluiu da boca morta.
Maryse arfou e afastou a mão. Quando ela fez isso, Luke reapareceu, carregando o jarro com ácido verde que Clary tinha notado antes. Com um simples gesto, ele arrancou a tampa e derramou o ácido sobre a tatuagem no braço do cadáver, apagando-a. O cadáver soltou um único grito enquanto a carne chiava e então caiu de costas contra a mesa, olhos em brancos e um olhar fixo. O que quer que o tenha reanimado por esse breve período se foi.
Luke colocou o jarro de ácido vazio em cima da mesa.
— Maryse — sua voz era de censura — não é assim que tratamos nossos mortos.
— Eu decido como tratamos nossos mortos, Ser do Submundo — Maryse estava pálida, suas bochechas avermelhadas — nós temos um nome agora. Camille. Talvez possamos evitar mais mortes.
— Há coisas piores que a morte — Luke estendeu a mão para Clary, sem olhar para ela — vamos, Clary. Eu acho que é hora de irmos.
***
— Então, você realmente não pode pensar em ninguém mais que possa querer te matar? — Jace perguntou, não pela primeira vez.
Haviam repassado a lista de suspeitos várias vezes, e Simon estava se cansando de ser questionado pela mesma coisa repetidamente. Sem mencionar que ele suspeitava que Jace não estivesse prestando muita atenção.
Depois de já ter comido a sopa que Simon havia comprado – fria, numa tigela, com uma colher, o que Simon não podia deixar de pensar que era nojento – ele estava inclinado contra a janela, a cortina um pouco afastada para que ele pudesse ver o tráfego na Avenida B e as janelas iluminadas dos apartamentos do outro lado da rua. Através delas Simon podia ver as pessoas jantando, vendo televisão, e sentadas na mesa conversando. Coisas normais que pessoas comuns faziam. Isso o fez sentir estranhamente vazio.
— Ao contrário do seu caso — disse Simon — não há realmente muitas pessoas que não gostam de mim.
Jace ignorou isso.
— Tem algo que você não está me dizendo.
Simon suspirou. Ele não queria falar qualquer coisa sobre a proposta de Camille, mas diante de alguém tentando matá-lo, ainda que ineficazmente, talvez o segredo não fosse uma prioridade. Ele explicou o que aconteceu no seu encontro com a vampira, enquanto Jace prestava atenção.
Quando ele acabou, Jace falou:
— Interessante, mas ela não parece ser quem está tentando te matar também. Ela sabe sobre sua Marca, primeiramente. E eu não tenho certeza se ela estaria interessada em ser pega quebrando os Acordos dessa forma. Quando os Seres do Submundo são tão velhos assim, eles normalmente sabem como ficar longe de problemas — ele abaixou sua lata de sopa — nós podemos sair de novo. Ver se eles tentam atacar uma terceira vez. Se nós pudéssemos somente capturar um deles, talvez...
— Não — Simon interrompeu — por que você está sempre tentando ser morto?
— É o meu trabalho.
— É um risco do seu trabalho. Pelo menos para a maioria dos Caçadores de Sombras. Para você isso parece como o objetivo.
Jace suspirou.
— Meu pai sempre disse... — ele se calou, sua expressão endurecendo — desculpe. Eu quis dizer Valentim. Pelo Anjo, toda vez que eu o chamo assim, parece que traio o meu pai verdadeiro.
Simon sentiu simpatia por Jace apesar de tudo.
— Olhe, você pensou que ele era seu pai por o quê, dezesseis anos? Isso não acaba em um dia. E você nunca conheceu o outro cara que era realmente o seu pai. E ele está morto, então você não pode realmente traí-lo. Somente pense um pouco em você como alguém que teve dois pais por um tempo.
— Você não pode ter dois pais.
— Claro que pode. Quem disse que não? Nós podemos comprar pra você um desses livros que eles têm para crianças. Timmy tem dois pais. Exceto que eu não acho que eles têm um chamado Timmy tem dois pais e um deles era malvado. Essa parte você só vai ter que imaginar.
Jace revirou os olhos.
— É fascinante. Você sabe todas as palavras, e todas são em inglês, mas quando as reúne em frases, elas simplesmente não fazem qualquer sentido — ele puxou levemente a cortina — eu não esperava que você entendesse.
— Meu pai está morto — Simon falou.
Jace virou para olhar para ele.
— O quê?
— Imaginei que você não soubesse. Quero dizer, não é como se você fosse perguntar, ou estivesse particularmente interessado em qualquer coisa sobre mim. Então, sim. Meu pai está morto. Então nós temos isso em comum.
Exausto de repente, ele se inclinou contra o futon. Se sentia mal, tonto e cansado – um cansaço profundo que parecia ter se afundado em seus ossos. Jace, por outro lado, parecia possuído de uma energia inesgotável que Simon achou um pouco perturbador. Não havia sido muito fácil vê-lo tomando a sopa de tomate, tampouco. Ela parecia muito com sangue.
Jace olhou para ele.
— Quanto tempo faz desde que você... comeu? Você parece muito ruim.
Simon suspirou. Ele supôs que não podia falar nada, depois de atormentar Jace para comer algo.
— Espera aí. Já volto.
Levantando do futon, ele entrou no seu quarto e pegou sua última garrafa de sangue debaixo da cama.
Ele tentou não olhar para ela – o sangue separado era uma visão nauseante. Ele balançou a garrafa duramente enquanto se dirigia para a sala de estar, onde Jace ainda estava olhando pela janela.
Encostado contra o balcão da cozinha, Simon abriu o frasco de sangue e tomou um gole. Normalmente não gostava de beber na frente de outras pessoas, mas era Jace, e Simon não se importava com o que ele pensava. Além disso, não era como se Jace nunca o tivesse visto bebendo sangue antes. Pelo menos Kyle não estava em casa. Seria difícil explicar para seu novo companheiro de quarto. Ninguém gostava de um cara que mantinha sangue na geladeira.
Dois Jaces olharam para ele – um o Jace real, o outro o seu reflexo na vidraça.
— Você não pode simplesmente não se alimentar, sabe.
Simon suspirou.
— Estou comendo agora.
— Sim, mas você é um vampiro. Sangue não é como comida para você Sangue é... sangue.
— Isso é muito esclarecedor.
Simon se jogou na poltrona em frente à TV; que provavelmente era um veludo dourado pálido quando novo, mas agora era usado e parecia um amontoado cinzento.
— Você tem um monte de outros pensamentos profundos como esse? Sangue é sangue? Uma torradeira é uma torradeira? Uma jujuba é uma jujuba?
Jace suspirou.
— Ótimo. Ignore meu conselho. Você vai se arrepender mais tarde.
Antes que Simon pudesse responder, ele ouviu o som da porta da frente se abrindo. Ele olhou afiadamente para Jace.
— É o meu companheiro de quarto. Seja agradável.
Jace sorriu encantadoramente.
— Eu sempre sou agradável.
Simon não teve chance de responder da maneira que gostaria, pouco tempo depois Kyle saltou para sala, parecendo energético e os olhos brilhando.
— Cara, eu fui por toda parte na cidade hoje — ele disse — eu quase me perdi, mas você sabe o que dizem. Próximo ao Bronx, bateria acaba...
Ele olhou para Jace, registrando tardiamente que havia outra pessoa na sala.
— Oh, hey. Eu não sabia que você trouxe amigos — ele estendeu a mão — eu sou Kyle.
Jace não respondeu. Para a surpresa de Simon, Jace havia ficado rígido, seus pálidos olhos amarelos se estreitaram, exibindo em todo o seu corpo a vigilância de um Caçador de Sombras que parecia transformá-lo de um garoto adolescente comum em algo muito mais sério que isso.
— Interessante. Você sabe, Simon nunca mencionou que seu novo companheiro de apartamento era um lobisomem.
***
Clary e Luke seguiram em silêncio na maior parte do tempo, de volta para o Brooklyn. Clary estava olhando pela janela enquanto iam, vendo Chinatown passando gradualmente, e então a Ponte Williamsburg brilhou como um colar de diamantes contra o céu noturno. Ao longe, por cima da água preta do rio, ela podia ver Renwick, iluminado como sempre. Parecia como uma ruína de novo, janelas pretas vazias escancaradas como o buraco do olho de um crânio.
A voz do Caçador de Sombras morto sussurrou em sua mente: A dor… faça a dor parar.
Ela estremeceu e puxou a jaqueta mais firmemente em torno dos ombros. Luke olhou brevemente para ela, mas não disse nada até que parou na frente de casa e desligou o motor da caminhonete. Ele se virou para ela.
— Clary, o que você fez...
— Foi um erro — ela completou — sei que foi um erro. Eu estava lá também — ela esfregava o rosto com as pontas da manga da jaqueta — vá em frente e grite comigo.
Luke olhou através do para-brisa.
— Eu não vou gritar com você. Você não sabia o que ia acontecer. Inferno, eu também pensei que poderia funcionar. Eu não teria ido com você se não achasse.
Clary sabia que deveria ter se sentido melhor, mas não se sentiu.
— Se você não tivesse jogado ácido na runa...
— Mas eu joguei.
— Eu não sabia que se podia fazer isso. Destruir uma runa daquele jeito.
— Se você desfigurá-la o suficiente, pode minimizar ou acabar com seu poder. Algumas vezes na batalha, o inimigo irá tentar queimar ou cortar a pele dos Caçadores de Sombras, somente para privá-los do poder de suas runas — Luke parecia distraído.
Clary sentiu seus lábios tremerem, e os pressionou juntos, fortemente, para parar o tremor. Às vezes ela se esquecia dos aspectos ruins de ser um Caçador de Sombras – a vida de cicatrizes e matanças, como Hodge contou a ela uma vez.
— Bem, eu não farei isso novamente.
— Não fará o que de novo? Fazer essa runa em particular? Eu não tenho dúvidas de que você não usará, mas não tenho certeza de que isso resolve o problema — Luke tamborilou os dedos no volante — você tem uma habilidade, Clary. Uma grande habilidade. Mas não tem absolutamente nenhuma ideia do que isso significa. Você é totalmente inexperiente. Não sabe quase nada sobre a história das runas, ou o que elas significaram para os Nephilim através dos séculos. Você não pode dizer se uma runa foi projetada para o bem ou projetada para o mal.
— Você estava feliz o suficiente para me deixar usar meu poder quando era a runa de ligação — ela disse com raiva — você não me disse para não criar runas lá.
— Eu não estou dizendo para você não usar seu poder agora. De fato, penso que o problema é que você raramente o usa. Não é como se estivesse usando o seu poder para mudar a cor do esmalte ou fazer o metrô chegar quando quiser. Você só usa nessas ocasiões de vida ou morte.
— As runas só vem para mim nesses momentos.
— Talvez seja porque você não foi treinada em como funciona o seu poder. Pense em Magnus; seu poder é parte dele. Você parece pensar no seu separado de você, algo que acontece. Mas é uma ferramenta que precisa aprender como usar.
— Jace disse que Maryse quer contratar um especialista em runas para trabalhar comigo, mas isso não aconteceu ainda.
— Sim. Imagino que Maryse tenha outras coisas em mente — ele tirou a chave da ignição e ficou um momento em silêncio — perder um filho da forma como ela perdeu Max... Eu não posso imaginar isso. Eu devia ser mais tolerante pelo seu comportamento. Se algo acontecesse com você, eu…
Sua voz sumiu.
— Eu gostaria que Robert voltasse de Idris — Clary falou — não vejo o porquê de ela ter que lidar com tudo isso sozinha. Deve ser horrível.
— Muitos casamentos acabam quando um filho morre. O casal não pode parar de se culpar, ou o companheiro. Imagino que Robert está lá porque ele precisa de espaço, ou Maryse que precisa.
— Mas eles se amam — Clary disse, horrorizada — não é isso o que significa o amor? Que você deveria estar lá para a outra pessoa ter a quem recorrer, não importa o quê?
Luke olhou para o rio, a água escura se movendo lentamente sob a luz da lua do outono.
— Às vezes, Clary, somente amor não é o suficiente.
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