Capítulo 6 - Irmão de Chumbo e Irmã de Aço
— Não jogue... por favor, por favor, não jogue... Ai, Deus, ele jogou — falou Julian, com voz resignada, quando um pedaço de batata voou pelo cômodo e por pouco não acertou a orelha dele.
— Nada foi quebrado — tranquilizou Emma.
Ela estava sentada com as costas apoiadas no berço de Tavvy e observava Julian dar a refeição da tarde ao irmão caçula. Tavvy havia chegado à idade na qual era muito restrito em relação ao que gostava de comer, e qualquer coisa que não o agradasse era jogada no chão.
— O abajur está um pouco embatatado, só isso.
Felizmente, embora o restante da casa dos Penhallow fosse um tanto elegante, o sótão onde ficavam os “órfãos da guerra” – termo coletivo aplicado às crianças dos Blackthorn e a Emma desde que chegaram a Idris – era extremamente simples, funcional e sólido no design. Ocupava o último andar inteiro da casa: vários cômodos conectados, uma pequena cozinha e um banheiro, uma coleção fortuita de camas e pertences espalhados por toda parte.
Helen dormia no andar de baixo com Aline, embora subisse diariamente; Emma recebera o próprio quarto, assim como Julian, que mal ficava nele. Drusilla e Octavian ainda acordavam todas as noites gritando, e Julian se acostumara a dormir no piso do quarto deles, com o travesseiro e o cobertor amontoados ao lado do berço de Tavvy. Não havia cadeirinha de comer para bebês, por isso Julian sentava-se no chão, na frente do menininho, em um cobertor todo sujo de comida, com um prato na mão e uma expressão desesperada.
Emma se aproximou e sentou-se de frente para ele, erguendo Tavvy até seu colo. O rostinho dele estava enrugado de tristeza.
— Mamã — falou, quando ela o ergueu.
— Faz o trenzinho piuí-piuí — aconselhou a Jules.
Ela se perguntou se deveria avisar que ele estava com molho de espaguete no cabelo. Hesitou e achou melhor não.
Ela observava enquanto ele selecionava a comida, antes de colocá-la na boca de Tavvy. O menininho dava risadas agora. Emma tentava engolir a sensação de perda: ela se lembrava do próprio pai separando a comida no prato pacientemente na fase em que ela se recusava a comer qualquer coisa verde.
— Ele não está comendo o suficiente — disse Jules baixinho, enquanto transformava um pedaço de pão com manteiga num trem barulhento e Tavvy esticava as mãos meladas para ele.
— Ele está triste. É um bebê, mas entende que alguma coisa ruim aconteceu — explicou Emma. — Ele sente saudade de Mark e do pai.
Jules esfregou os olhos, cansado, deixando uma mancha de molho em uma das bochechas.
— Não posso substituir Mark nem papai. — Ele pôs um pedaço de maçã na boca de Tavvy. O menininho cuspiu, com uma expressão cruel de prazer. Julian suspirou. — Vou verificar Dru e os gêmeos. Eles estavam jogando Monopoly no quarto, mas você nunca sabe quando as coisas vão sair do controle.
Era verdade. Tiberius, com a mente analítica, tendia a vencer a maior parte dos jogos. Livvy nunca se importava, mas Dru, que era competitiva, sim, e muitas vezes uma partida terminava em puxões de cabelo de ambos os lados.
— Pode deixar que faço isso — Emma devolveu Tavvy e estava se levantando quando Helen entrou no quarto com a expressão sombria.
Quando viu os dois, a expressão se transformou em apreensão. Emma sentiu os pelos da nuca se arrepiarem.
— Helen — disse Julian. — Qual é o problema?
— As forças de Sebastian atacaram o Instituto de Londres.
Emma percebeu Julian tenso. Ela quase conseguiu sentir, como se os nervos dele fossem os dela, como se o pânico dele fosse o dela. O rosto dele – já muito magro – pareceu se retesar, embora continuasse a segurar o bebê com cuidado e delicadeza.
— Tio Arthur? — perguntou ele.
— Ele está bem — avisou Helen rapidamente. — Ficou ferido. Isso vai atrasar a chegada dele em Idris, mas está bem. Na verdade, todos estão bem no Instituto de Londres. O ataque foi um fracasso.
— Por quê? — A voz de Julian foi pouco mais que um sussurro.
— Não sabemos ainda, não com certeza — disse Helen. — Vou até o Garde com Aline, a Consulesa e o restante do grupo para tentar descobrir o que aconteceu. — Ela se ajoelhou e passou a mão pelos cachos de Tavvy. — É uma boa notícia — falou para Julian, que parecia mais confuso que qualquer coisa. — Sei que é assustador o fato de Sebastian ter atacado de novo, mas ele não venceu.
Emma fitou Julian nos olhos. Sabia que deveria estar animada com as boas notícias, mas havia uma sensação violenta dentro dela – uma inveja terrível.
Por que os habitantes do Instituto de Londres estavam vivos se a família dela morreu? De que maneira eles tinham lutado melhor, feito mais?
— Não é justo — desabafou Julian.
— Jules — disse Helen, e se pôs de pé. — É uma derrota. Isso significa alguma coisa. Significa que podemos derrotar Sebastian e suas forças. Dominá-los. Virar a maré. Isso vai deixar todo mundo com menos medo. É importante.
— Espero que o peguem com vida — disse Emma, os olhos em Julian. — Espero que o matem na Praça do Anjo para que possamos assistir à sua morte, e espero que seja lenta.
— Emma — disse Helen, soando chocada, mas os olhos azuis-esverdeados de Julian ecoaram a própria crueldade de Emma, sem qualquer vestígio de reprovação.
Emma nunca o amara tanto quanto naquele momento por refletir até os sentimentos obscuros nas profundezas de seu coração.
***
A loja de armas era linda. Clary nunca tinha pensado que descreveria uma loja de armas desta forma – talvez um pôr do sol ou uma vista noturna límpida no horizonte de Nova York, mas não uma loja cheia de clavas, machados e bengalas-espada.
Mas aquela era. A placa de metal que pendia do lado de fora tinha o formato de uma aljava e o nome da loja – Flecha de Diana – escrito em letra cursiva.
No interior da loja, havia facas exibidas como leques mortais de ouro, aço e prata. Um imenso candelabro pendia de um teto pintado com um desenho rococó de flechas douradas em pleno voo. Flechas de verdade eram exibidas em suportes de madeira entalhados. Espadas tibetanas, com os pomos decorados em turquesa, prata e coral, pendiam nas paredes ao lado de sabres dha birmaneses com pontas de metal trabalhadas em cobre e latão.
— Então... o que despertou isso? — perguntou Jace com curiosidade, segurando uma naginata entalhada com caracteres japoneses. Quando ele a pôs no chão, a lâmina ergueu-se acima de sua cabeça, e os dedos compridos se curvaram ao redor do punho para mantê-la firme. — Esse desejo por uma espada?
— Quando uma garota de 12 anos diz que sua arma é uma porcaria, é hora de mudar — falou Clary.
A mulher atrás do balcão deu uma risada. Clary a reconheceu como a mulher com tatuagem de peixe que tinha se manifestado na reunião do Conselho.
— Ora, você veio ao melhor lugar.
— Esta loja é sua? — perguntou Clary, e esticou a mão para testar a ponta de uma espada longa com cabo de ferro.
A mulher sorriu.
— Eu sou Diana Wrayburn.
Clary esticou a mão para um florete, mas Jace, depois de apoiar a naginata na parede, balançou a cabeça para ela.
— Aquela claymore ficaria mais alta que você. Não que isso seja difícil.
Clary mostrou a língua para ele e pegou uma espada curta que pendia na parede. Havia arranhões ao longo da lâmina – arranhões que, após um exame mais atento, Clary viu serem letras de uma linguagem que ela não conhecia.
— São símbolos, mas não são símbolos dos Caçadores de Sombras — falou Diana. — Esta é uma espada viking; muito antiga. E muito pesada.
— A senhora sabe o que diz?
— Somente os Valorosos — falou Diana. — Meu pai costumava dizer que você poderia conhecer uma grande arma se ela tivesse um nome ou inscrição.
— Eu vi uma ontem — recordou-se Clary. — Dizia algo como “Sou do mesmo aço e da mesma têmpera que Joyeuse e Durendal.”
— Cortana! — Os olhos de Diana se iluminaram. — A espada de Ogier. Isso é impressionante. É como possuir Excalibur ou Kusanagi-no-Tsurugi. Cortana é uma espada dos Castairs, creio. Emma Castairs, a garota que estava na reunião do Conselho ontem, é a dona agora?
Clary assentiu.
Diana fez um muxoxo.
— Pobre criança — disse ela. — E os Blackthorn também. Perderam tanta coisa num único golpe... Gostaria de poder fazer alguma coisa por eles.
— Eu também — emendou Clary.
Diana deu uma olhadela, avaliando Clary, e se abaixou atrás do balcão. Ela ressurgiu um instante depois com uma espada mais ou menos do tamanho do antebraço de Clary.
— O que você acha desta?
Clary fitou a espada. Sem dúvida, era bela. A guarda, o cabo e o pomo eram dourados com ranhuras de obsidiana; a lâmina, de uma prata tão escura que era quase preta. A mente de Clary percorreu rapidamente todos os tipos de armas que ela estivera memorizando nas lições: cimitarras, sabres, espadões, espadas.
— É uma cinquedea? — Ela tentou adivinhar.
— É uma espada curta. Você pode querer olhar o outro lado — falou Diana, e ela virou a espada.
No lado oposto da lâmina, no sulco central, havia um desenho de estrelas pretas.
— Oh. — O coração de Clary bateu dolorosamente; ela deu um passo para trás e quase esbarrou em Jace, que estava atrás dela, franzindo a testa. — É uma espada dos Morgenstern.
— Sim, é — os olhos de Diana eram penetrantes. — Há muito tempo os Morgenstern encomendaram duas espadas com Wayland, o ferreiro... um conjunto. Uma grande e outra menor, para pai e filho. Como Morgenstern significa Estrela da Manhã, cada uma tem seu nome em função de características da estrela: a menor, esta aqui, chama-se Heosphoros, que significa “que traz a manhã”, enquanto a maior se chama Phaesphoros ou “que porta a luz”. Sem dúvida você já viu Phaesphoros, pois Valentim Morgenstern era o dono dela, e agora é o filho dele quem a carrega.
— Você sabe quem nós somos — disse Jace. Não era uma pergunta. — Quem é Clary.
— O mundo dos Caçadores de Sombras é pequeno — afirmou Diana, e olhou de um para o outro. — Estou no Conselho. Vi seu depoimento, filha de Valentim.
Clary observava a espada, em dúvida.
— Eu não entendo — disse. — Valentim nunca teria abandonado uma espada Morgenstern. Por que você ficou com ela?
— A esposa dele a vendeu — explicou Diana — para meu pai, que era proprietário da loja na época da Ascensão. Era dela. Deveria ser sua agora.
Clary estremeceu.
— Eu vi dois homens portarem a versão maior desta espada, e odeio os dois. Não há Morgenstern neste mundo agora que se dedique a algo que não seja o mal.
Jace falou:
— Há você.
Ela olhou para ele, mas sua expressão era ilegível.
— De qualquer forma, eu não teria como comprá-la — emendou Clary. — É de ouro, e de ouro negro, e adamas. Não tenho dinheiro para este tipo de arma.
— Eu dou a espada para você — falou Diana. — Tem razão sobre as pessoas odiarem os Morgenstern; elas contam histórias sobre como as espadas foram criadas para conter a mágica mortal e, ao mesmo tempo, matar milhares. São apenas histórias, claro, nenhuma verdade nelas, mas ainda assim... não é o tipo de item que eu poderia vender em outro lugar. Ou que necessariamente iria querer vender. Ela deveria ir para boas mãos.
— Eu não a quero — murmurou Clary.
— Se você se encolher diante dela, estará permitindo que te domine — falou Diana. — Fique com ela, corte a garganta de seu irmão e devolva a honra a seu sangue.
Ela deslizou a arma pelo balcão, até Clary. Sem dizer nada, a garota a pegou, a mão envolvendo o pomo, que se acomodou bem entre seus dedos – perfeitamente, como se tivesse sido feita para ela. Mesmo contendo aço e metais preciosos, a espada parecia leve como uma pluma. Clary a ergueu, as estrelas pretas ao longo da lâmina piscando para ela, uma luz como fogo correndo e faiscando ao longo do aço.
Clary ergueu o olhar para ver Diana pegar algo no ar: um brilho de luz que se transformou num pedaço de papel. Ela o leu, franziu as sobrancelhas de preocupação.
— Pelo Anjo — disse ela. — O Instituto de Londres foi atacado.
Clary quase derrubou a espada. Ouviu Jace arfar ao seu lado.
— O quê? — perguntou ele.
Diana ergueu o olhar.
— Está tudo bem — disse. — Aparentemente algum tipo de proteção especial foi posta sobre o Instituto de Londres, algo que o Conselho ainda não conhece direito. Há feridos, mas ninguém foi morto. As forças de Sebastian foram repelidas. Infelizmente, nenhum dos Crepusculares foi capturado ou morto.
Enquanto Diana falava, Clary percebia que a proprietária da loja estava usando roupas de luto brancas. Será que tinha perdido alguém na guerra de Valentim? Nos ataques de Sebastian aos Institutos? Quanto sangue fora derramado pelas mãos dos Morgenstern?
— Eu... eu sinto muito — Clary arfou.
Ela conseguia enxergar Sebastian, podia vê-lo em sua mente, o uniforme vermelho e o sangue vermelho, o cabelo prateado e a espada prateada. Ela cambaleou para trás.
Subitamente, sentiu alguém tocando seu braço, e percebeu que estava respirando no ar frio. De alguma forma, estava em frente à loja de armas, numa rua cheia de pessoas, com Jace ao seu lado.
— Clary — disse ele. — Está tudo bem. Tudo está bem. Os Caçadores de Londres, todos escaparam.
— Diana falou que há feridos — repetiu Clary. — Mais sangue derramado por causa dos Morgenstern.
Ela baixou os olhos para a espada, a qual sua mão direita ainda agarrava; os dedos pálidos no cabo.
— Você não precisa ficar com a espada.
— Não. Diana tinha razão. Ter medo de tudo que é dos Morgenstern dá... dá a Sebastian poder sobre mim. E é exatamente isso que ele quer.
— Concordo — disse Jace. — Por essa razão eu trouxe isto.
Ele lhe entregou uma bainha de couro preto, ornada com um desenho de estrelas prateadas.
— Você não pode andar para cima e para baixo com uma arma desembainhada — emendou ele. — Quero dizer, você pode, mas é provável que te olhem de maneira estranha.
Clary pegou a bainha, cobriu a espada, a enfiou no cinto e fechou o casaco por cima.
— Melhor?
Ele afastou uma mecha de cabelo ruivo do rosto dela.
— É sua primeira arma de verdade, que pertence a você. O nome Morgenstern não é amaldiçoado, Clary. É um sobrenome de Caçadores de Sombras antigo e glorioso que remonta a centenas de anos. A estrela da manhã.
— A estrela da manhã não é uma estrela — afirmou Clary, mal-humorada. — É um planeta. Aprendi isto na aula de astronomia.
— Lamentavelmente, a educação mundana é prosaica. Olhe — refutou ele, e apontou para cima.
Clary olhou, mas não para o céu. Ela olhou para ele, para o sol no cabelo claro, para a curvatura da boca quando ele sorria.
— Muito antes de alguém saber sobre planetas, eles sabiam que havia fendas no tecido da noite. As estrelas. E sabiam que havia uma que se erguia a leste, ao nascer, e a chamaram de estrela da manhã, aquela que trazia a luz, o mensageiro da aurora. É tão ruim assim? Trazer luz para o mundo?
Impulsivamente, Clary se esticou e beijou a bochecha de Jace.
— Certo, está bem — ponderou ela. — Então isso foi mais poético que a aula de astronomia.
Ele abaixou a mão e sorriu para ela.
— Bom — falou ele. — Vamos fazer outra coisa poética agora. Venha. Quero te mostrar uma coisa.
***
Dedos frios contra as têmporas de Simon o acordaram.
— Abra os olhos, Diurno — ordenou uma voz impaciente. — Não temos o dia todo.
Simon sentou-se com tal rapidez que a pessoa diante dele deu um pulo para trás com um sibilo. Simon observou. Ele ainda estava cercado pelas barras da jaula de Maureen, ainda estava dentro do quarto decadente no Hotel Dumort.
Do outro lado, estava Raphael. Ele vestia uma camisa branca abotoada e calça jeans, o brilho do ouro visível no pescoço. Ainda assim... Simon só o vira arrumado e com a roupa engomada, como se estivesse indo a uma reunião de negócios. Agora havia gel no cabelo, a camisa branca estava rasgada e manchada de terra.
— Bom dia, Diurno — disse Raphael.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou Simon, sem rodeios. Ele se sentia sujo, enjoado e zangado. E ainda vestia a camisa com babados. — Já é de manhã?
— Você dormiu, agora está acordado... é de manhã. — Raphael pareceu obscenamente alegre. — Quanto ao que estou fazendo aqui: estou aqui por sua causa, óbvio.
Simon se reclinou contra as barras da jaula.
— O que você quer dizer? E, por falar nisso, como você entrou aqui?
Raphael olhou para Simon com expressão de pena.
— A jaula abre do lado de fora. Foi fácil entrar.
— Então é apenas solidão e um desejo pela companhia de outro garoto ou o quê? — Quis saber Simon. — Da última vez que te vi, você me pediu para ser seu guarda-costas e, quando eu disse que não, deixou claro que se um dia eu perdesse a Marca de Caim, você me mataria.
Raphael sorriu para ele.
— Então esta é a parte em que você me mata? — perguntou Simon. — Devo avisar, não é tão sutil assim. Provavelmente você vai ser pego.
— Sim — refletiu Raphael. — Maureen ficaria muito infeliz com sua morte. Uma vez mencionei a mera ideia de vender você para feiticeiros inescrupulosos, e ela não achou graça. Foi lamentável. Por causa dos poderes de cura, o sangue dos Diurnos vale muito. — Ele suspirou. — Teria sido uma tremenda oportunidade. Infelizmente, Maureen é tola demais para ver as coisas sob meu ponto de vista. Ela prefere manter você vestido como uma boneca. Mas daí, ela é louca.
— Você pode falar esse tipo de coisa da sua rainha vampira?
— Houve um tempo em que eu quis ver você morto, Diurno — retrucou Raphael, em tom casual, como se estivesse contando a Simon que cogitara comprar uma caixa de chocolates para ele em determinada época. — Mas tenho um inimigo maior. Você e eu, nós estamos do mesmo lado.
As barras da jaula pressionavam as costas de Simon de modo desconfortável. Ele mudou de posição.
— Maureen? — perguntou. — Você sempre quis ser o líder dos vampiros, e agora ela assumiu seu lugar.
Raphael torceu o lábio em um rosnado.
— Você acha que isso é apenas um jogo de poder? — disse ele. — Você não entende. Antes de Maureen ser Transformada, ela foi aterrorizada e torturada até o ponto da loucura. Quando se ergueu, saiu do caixão com as garras. Não havia ninguém para ensiná-la. Ninguém para dar o primeiro sangue. Como eu fiz por você.
Simon encarou Raphael. Subitamente, ele se recordou do cemitério, de sair do solo para o frio do ar e da terra, e da fome, da fome insuportável, e de Raphael lhe jogando uma bolsa cheia de sangue. Ele nunca pensara naquilo como um favor ou um serviço, mas teria dilacerado qualquer criatura viva que tivesse encontrado se não fosse por sua primeira refeição. Ele quase dilacerara Clary. Fora Raphael quem impedira isso de acontecer. Fora Raphael quem levara Simon do Dumort ao Instituto; que o deitara, sangrando, nos degraus da frente quando eles não conseguiram mais avançar; e que explicara aos amigos de Simon o que havia acontecido. Simon supôs que Raphael poderia ter tentado esconder isso, poderia ter mentido para os Nephilim, mas ele confessara e assumira as consequências.
Raphael nunca fora particularmente bom para Simon, mas, à sua maneira, ele possuía um tipo estranho de honra.
— Eu criei você — afirmou Raphael. — Meu sangue em suas veias fez de você um vampiro.
— Você sempre disse que eu era um vampiro terrível — observou Simon.
— Não espero sua gratidão — disse Raphael. — Você nunca quis ser o que é. Nem Maureen, imagina-se. Ela ficou louca com a Transformação e ainda está louca. Ela mata sem pensar. Não pensa nos perigos de nos expor ao mundo humano por meio de uma matança descuidada. Ela não pensa que, talvez, se vampiros matarem sem necessidade ou consideração, um dia não haverá mais comida.
— Seres humanos — corrigiu Simon. — Não haveria mais seres humanos.
— Você é um vampiro terrível — disse Raphael. — Mas estamos lado a lado nisso. Você quer proteger os humanos. Eu quero proteger os vampiros. Nosso objetivo é um só, é o mesmo.
— Então mate Maureen — disse Simon. — Mate Maureen e assuma o clã.
— Não posso — Raphael assumiu uma expressão sombria. — As outras crianças do clã a adoram. Elas não enxergam a longa estrada, a escuridão no horizonte. Veem apenas a liberdade para matar e consumir de acordo com a própria vontade. Não se submetem aos Acordos, não seguem uma Lei externa. Maureen deu a elas toda a liberdade do mundo, e elas vão se destruir com isso — o tom era amargo.
— Você realmente se preocupa com o que acontece ao clã — afirmou Simon, surpreso. — Você daria um ótimo líder.
Raphael o olhou com expressão severa.
— Embora eu não saiba como você ficaria com uma tiara de ossos — emendou Simon. — Olhe, eu entendo o que está dizendo, mas como posso ajudar? Caso não perceba, estou preso numa jaula. Se me libertar, serei pego. E se eu sair, Maureen vai me encontrar.
— Não em Alicante — disse Raphael.
— Alicante? — Simon encarou o outro. — Você quer dizer... a capital de Idris, Alicante?
— Você não é muito inteligente — respondeu. — Sim, é dessa Alicante que estou falando. — Ao ver a expressão confusa de Simon, Raphael esboçou um sorriso. — Há um representante dos vampiros no Conselho, Anselm Nightshade. Um tipo recluso, o líder do clã de Los Angeles, mas é um sujeito que conhece certos... amigos meus. Feiticeiros.
— Magnus? — falou Simon, surpreso.
Raphael e Magnus eram imortais, moravam em Nova York e eram representantes razoavelmente importantes de suas divisões do Submundo. Ainda assim, ele nunca havia pensado em como eles poderiam se conhecer, ou no quão bem eles poderiam se conhecer.
Raphael ignorou a pergunta de Simon.
— Nightshade concordou em me enviar como representante em seu lugar, embora Maureen não saiba disso. Portanto, irei a Alicante e me sentarei no Conselho para a grande reunião, mas exijo que você vá comigo.
— Por quê?
— Os Caçadores de Sombras não confiam em mim — disse Raphael, sem rodeios. — Mas confiam em você. Sobretudo, os Nephilim de Nova York. Olhe para você. Usa o colar de Isabelle Lightwood. Eles sabem que você está mais para um Caçador de Sombras do que para uma Criança da Noite. Vão acreditar no que você diz se lhes contar que Maureen violou os Acordos e deve ser detida.
— Muito bem — disse Simon. — Eles confiam em mim. — Raphael o fitou com olhos arregalados, sinceros. — E isso não tem nada a ver com o fato de você não querer que o clã descubra que transformou Maureen, porque eles gostam dela e então se voltariam contra você feito animais.
— Você conhece os filhos do Inquisidor — disse ele. — Pode testemunhar diretamente para ele.
— Claro — emendou Simon. — Ninguém no clã vai se importar se eu dedurar a rainha deles e for morto. Tenho certeza de que minha vida será fantástica quando eu voltar.
Raphael deu de ombros.
— Eu tenho seguidores aqui — informou ele. — Alguém me deixou entrar neste cômodo. Assim que cuidarem de Maureen, é provável que possamos voltar a Nova York com poucas consequências negativas.
— Poucas consequências negativas — Simon fez um muxoxo. — Você me tranquiliza.
— De qualquer forma, você está em perigo aqui — disse Raphael. — Se não tivesse seu protetor lobisomem ou seus Caçadores de Sombras, já teria encontrado a morte eterna muitas vezes. Se não quiser ir comigo a Alicante, ficarei feliz em deixá-lo aqui nesta jaula, e você pode ser o brinquedinho de Maureen. Ou pode se juntar aos seus amigos na Cidade de Vidro. Catarina Loss está esperando no andar de baixo para criar um Portal para nós. A escolha é sua.
Raphael reclinou-se, com uma das pernas cruzadas e a mão pendendo frouxa no joelho, como se ele estivesse relaxando no parque. Atrás dele, através das barras da jaula, Simon via o vulto de outro vampiro de pé à porta, uma garota de cabelos negros, com os traços à sombra. A garota que tinha deixado Raphael entrar, imaginou Simon.
Ele pensou em Jordan. Seu protetor lobisomem. Mas isto, este conflito de clãs e lealdades e, acima de tudo, o desejo homicida de Maureen por sangue e morte, era muita coisa para Jordan suportar.
— Não tenho muita opção, tenho? — perguntou Simon.
Raphael sorriu.
— Não, Diurno. Não tem muita opção.
***
Da última vez que Clary havia estado no Salão dos Acordos, ele quase fora destruído – o teto de cristal estilhaçado, o soalho rachado, a fonte central seca.
Tinha que admitir que os Caçadores de Sombras haviam feito um serviço impressionante na reconstrução do lugar desde então. O telhado voltara a ser uma peça única, o piso de mármore estava limpo e liso, com fios de ouro. Os arcos erguiam-se acima das cabeças, a luz que se infiltrava através do telhado iluminava os símbolos entalhados ali. A fonte central, com a estátua de sereia, reluzia sob o sol de final de tarde, transformando a água em bronze.
— Quando você ganha a primeira arma de verdade, a tradição manda vir aqui e abençoar a lâmina nas águas da fonte — disse Jace. — Os Caçadores de Sombras têm feito isso há gerações.
Ele deu um passo para a frente, sob a luz dourada sombria, até a beira da fonte. Clary se lembrou dos sonhos que tinha, dançando com ele ali. Ele olhou para trás e fez um gesto para que ela se aproximasse.
— Venha cá.
Clary caminhou e parou ao lado dele. A estátua central na fonte, a sereia, tinha escamas sobrepostas, de bronze e cobre, esverdeadas com o azinhavre. A sereia segurava um cântaro do qual jorrava água, e o rosto estava congelado num sorriso de guerreira.
— Ponha a lâmina na fonte e repita depois de mim — pediu Jace. — Que as águas desta fonte purifiquem esta lâmina. Consagrada apenas ao meu uso. Permita-me usá-la somente em auxílio de causas justas. Permita-me brandi-la com virtude. Deixe-me guiá-la para ser uma guerreira valiosa de Idris. E que ela me proteja para que eu possa retornar a esta fonte e mais uma vez abençoar seu metal. Em nome de Raziel.
Clary deslizou a lâmina dentro da água e repetiu as palavras depois dele. A água ondulou e reluziu ao redor da espada, e ela então se recordou de outra fonte, em outro lugar, e de Sebastian sentado atrás dela, olhando para a imagem distorcida do próprio rosto. Você tem um coração sombrio, filha de Valentim.
— Ótimo — disse Jace.
Clary sentiu a mão dele em seu pulso; a água da fonte espirrou, deixando sua pele fria e úmida onde ele a havia tocado. Ele a incitou a recuar a mão com a espada e a soltou para que Clary pudesse erguer a lâmina. O sol estava ainda mais baixo agora, porém havia luz suficiente para lançar centelhas nas estrelas de obsidiana ao longo do sulco central.
— Agora dê o nome à espada.
— Heosphoros — falou, deslizando-a de volta na bainha e prendendo-a no cinto. — A que traz a aurora.
Ele abafou uma risada, e se inclinou para lhe dar um beijo delicado no canto da boca.
— Eu deveria levar você para casa... — E se aprumou.
— Você tem pensado nele — disse ela.
— Talvez você devesse ser mais específica — afirmou Jace, embora suspeitasse saber do que ela estava falando.
— Sebastian — emendou ela. — Quero dizer, mais que o normal. E alguma coisa está incomodando você. O que é?
— O que não é?
Ele começou a se afastar dela, cruzando o piso de mármore até as grandes portas duplas do Salão, que se abriram. Ela o acompanhou e saiu para o amplo patamar acima da escadaria que conduzia à Praça do Anjo. O céu escureceu para o cobalto, a cor do espelho do mar.
— Não — pediu Clary. — Não se retraia.
— Eu não ia fazer isso — ele soltou a respiração com força. — É só que não há nada de novo. Sim, eu penso nele. Penso nele o tempo todo. Queria não pensar. Não sei explicar, não para outra pessoa, além de você, porque você estava lá. Era como se eu fosse ele, e agora, quando você me conta coisas como o fato de ele ter deixado aquela caixa na casa de Amatis, sei exatamente o porquê. E odeio saber.
— Jace...
— Não diga que não sou como ele — pediu Jace. — Eu sou. Fui criado pelo mesmo pai... nós dois temos as vantagens da educação especial de Valentim. Falamos os mesmos idiomas. Aprendemos o mesmo estilo de combate. Ele nos ensinou os mesmos princípios. Tínhamos os mesmos animais de estimação. Sem dúvida, isso mudou; tudo mudou quando completei 10 anos, mas a base da infância fica com a pessoa. Algumas vezes, eu me pergunto se isso tudo é minha culpa.
Aquilo tomou Clary de sobressalto.
— Você não pode estar falando sério. Nada do que você fez quando estava com Sebastian foi opção sua...
— Eu gostava — retrucou Jace, e ouviu-se um tom rouco em sua voz, como se o fato o arranhasse como uma lixa. — Sebastian é brilhante, mas há buracos no pensamento dele, locais que ele desconhece... eu o ajudei com isso. Nós nos sentávamos ali e conversávamos sobre incendiar e destruir o mundo, e era emocionante. Eu queria isso. Varrer todas as coisas, recomeçar, um holocausto de fogo e sangue, e depois uma cidade reluzente sobre a colina.
— Ele fez você pensar que queria essas coisas — disse Clary, mas a voz tremia um pouco. Você tem um coração sombrio, filha de Valentim. — Ele fez você oferecer a ele o que ele queria.
— Eu gostei de oferecer — afirmou Jace. — Por que você acha que eu conseguia pensar em meios de quebrar e destruir com tanta facilidade, mas agora não consigo pensar num meio de consertar? Quero dizer, para quê exatamente isso me qualifica? Um trabalho no exército do inferno? Eu poderia ser general, como Asmodeus ou Samael.
— Jace...
— Antigamente eram os servos mais brilhantes de Deus — emendou Jace. — É isso que acontece quando você decai. Tudo que era brilhante em você se torna escuridão. Por mais brilhante que tenha sido, você se torna mau. É um longo caminho para decair.
— Você não decaiu.
— Ainda não — retrucou ele, e então o céu explodiu em faíscas vermelhas e douradas.
Por um momento vertiginoso, Clary recordou-se dos fogos de artifício que pintaram o céu na noite em que eles comemoraram na Praça do Anjo. Ela deu um passo para trás e tentou obter uma visão melhor.
Mas agora não era uma comemoração. Quando os olhos de Clary se adaptaram ao brilho, ela notou que a luz vinha das torres demoníacas. Cada uma se acendera como uma tocha, tons de vermelho e dourado flamejante contra o céu.
Jace empalidecera.
— As luzes de batalha — falou. — Temos que ir para o Garde.
O garoto segurou a mão de Clary e começou a puxá-la degraus abaixo. Clary protestou.
— Mas minha mãe. Isabelle, Alec...
— Todos estão a caminho do Garde também.
Eles chegaram à base da escada. A Praça do Anjo estava ficando movimentada, com pessoas abrindo as portas das casas com violência e esvaziando as ruas, todas correndo em direção à trilha iluminada que subia pela encosta da colina até o topo do Garde.
— É isto que o sinal vermelho-e-dourado significa: “Ir até o Garde.” É isto que eles esperam que a gente faça... — Ele se desviou de um Caçador de Sombras que passou correndo por eles enquanto amarrava uma braçadeira. — O que está acontecendo? — gritou Jace atrás dele. — Por que o alarme?
— Houve outro ataque! — berrou um sujeito idoso vestindo um uniforme puído.
— Outro Instituto? — gritou Clary.
Eles voltaram a uma rua com lojas dos dois lados, da qual ela se lembrava de ter visitado com Luke antes: eles corriam colina acima, mas ela não estava sem fôlego. Em silêncio, agradeceu os últimos meses de treinamento.
O homem com a braçadeira deu meia-volta e correu, de costas, colina acima.
— Não sabemos ainda. O ataque está em andamento.
Ele girou e redobrou a velocidade, disparando pela rua em curva em direção ao fim da trilha do Garde. Clary se concentrava em não esbarrar nas pessoas na multidão. Era uma horda correndo e empurrando. Ela continuava segurando a mão de Jace enquanto corriam, a nova espada batendo contra a lateral externa da perna, como se a recordando de que estava ali – ali e pronta para ser usada.
A trilha que conduzia ao Garde era íngreme, de terra batida. Clary tentava correr com cuidado por causa das botas e do jeans que vestia, a jaqueta do uniforme com o zíper fechado até em cima, mas não era tão bom quanto estar com o uniforme completo. De algum modo, uma pedrinha tinha entrado na bota esquerda e estava espetando a sola do pé quando chegaram ao portão principal do Garde e diminuíram a velocidade, observando.
Os portões foram abertos com violência. Lá dentro havia um pátio amplo, que ficava coberto de grama no verão, embora agora estivesse nu, cercado pelos muros internos do Garde. Contra um dos muros, via-se um imenso quadrado girando, tomado por vento e vazio.
Um Portal. Dentro dele, Clary pensou ter visto traços de preto, verde e branco incandescente, e até mesmo um trecho de céu salpicado de estrelas...
Robert Lightwood agigantou-se diante deles e bloqueou o caminho; Jace quase colidiu contra ele e soltou a mão de Clary, equilibrando-se. O vento do Portal era frio e poderoso, e atravessava o tecido da jaqueta do uniforme de Clary, agitando o cabelo dela.
— O que está acontecendo? — perguntou Jace sem rodeios. — Isto tem a ver com o ataque de Londres? Pensei que tivesse sido repelido.
Robert balançou a cabeça, com expressão sombria.
— Parece que Sebastian fracassou em Londres e voltou a atenção para outro lugar.
— Onde...? — começou Clary.
— A Cidadela Adamant foi sitiada! — Era a voz de Jia Penhallow, erguendo-se acima dos gritos da multidão. Estava de pé, próxima ao Portal; o movimento do ar dentro e fora agitava sua capa como as asas de um melro imenso. — Vamos ajudar as Irmãs de Ferro! Caçadores de Sombras que estão armados e prontos, apresentem-se a mim!
O pátio estava cheio de Nephilim, embora não tantos quanto Clary imaginara de início. Parecia uma torrente enquanto eles disparavam colina acima até o Garde, mas agora ela via que estava mais para um grupo de quarenta ou cinquenta guerreiros. Alguns usavam uniforme, outros estavam em roupas comuns. Nem todos estavam armados. Os Nephilim que serviam o Garde corriam de um lado para o outro, até a porta aberta do arsenal, acrescentando armas a uma pilha de espadas, lâminas serafim, machados e clavas empilhados ao lado do Portal.
— Vamos atravessar — afirmou Jace para Robert.
Com o uniforme completo e vestido com o cinza do Inquisidor, Robert Lightwood fazia Clary se lembrar do lado íngreme e rochoso de um penhasco: irregular e imóvel.
Robert balançou a cabeça.
— Não há necessidade — disse ele. — Sebastian tentou um ataque furtivo. Ele tinha apenas vinte ou trinta guerreiros Crepusculares consigo. Temos guerreiros suficientes para o serviço, sem mandarmos nossas crianças.
— Eu não sou uma criança — falou Jace ferozmente.
Clary se perguntou o que Robert pensara ao olhar para o garoto que adotara; se Robert enxergara o pai de Jace no rosto do garoto, ou se ainda buscava vestígios ausentes de Michael Wayland.
Jace examinou a expressão de Robert Lightwood, a desconfiança obscurecendo os olhos dourados.
— O que você está fazendo? Tem alguma coisa que não quer que eu saiba.
O rosto de Robert adquiriu linhas rígidas. Naquele momento, uma mulher loura de uniforme passou por Clary, falando, agitada, com seu companheiro: “... disse que podemos tentar capturar os Crepusculares e trazê-los de volta para cá. Ver se podem ser curados. O que significa que talvez possam salvar Jason.”
Clary olhou severamente para Robert.
— Você não vai deixar. Você não vai deixar que as pessoas que tiveram os parentes levados nos ataques atravessem. Você não vai dizer que os Crepusculares podem ser salvos.
Robert olhou para ela com expressão sombria.
— Não sabemos se não podem.
— Nós sabemos — falou Clary. — Eles não podem ser salvos! Não são quem eram! Não são humanos. Mas quando estes soldados aqui virem os rostos das pessoas que conhecem, eles vão hesitar, vão querer que não seja verdade...
— E serão massacrados — disse Jace, com pesar. — Robert, você precisa impedir isso.
Robert balançava a cabeça.
— Esta é a vontade da Clave. É isso que eles querem que seja feito.
— Então por que enviá-los? — perguntou Jace. — Por que simplesmente não ficam aqui e apunhalam cinquenta indivíduos do próprio povo? Por que não poupar o tempo?
— Não ouse fazer piada — rosnou Robert.
— Eu não estava fazendo piada...
— E não ouse me dizer que cinquenta Nephilim não são capazes de derrotar vinte guerreiros Crepusculares.
Os Caçadores de Sombras começavam a passar pelo Portal, guiados por Jia. Clary sentiu uma pontada de pânico descer por sua espinha. Jia só permitia a passagem daqueles que usavam o uniforme completo, mas alguns poucos eram muito jovens, ou muito idosos, e muitos tinham ido desarmados e estavam simplesmente pegando armas da pilha fornecida pelo arsenal, antes de atravessar.
— Sebastian espera exatamente esta reação — afirmou Jace, desesperado. — Se ele foi com apenas vinte guerreiros, então há uma razão, e ele terá reforços...
— Ele não pode ter reforços! — Robert ergueu a voz. — Você não pode abrir um Portal para a Cidadela Adamant, a menos que as Irmãs de Ferro permitam. Elas estão permitindo que nós façamos isso, mas Sebastian deve ter ido por terra. Sebastian não imagina que estejamos vigiando a Cidadela por causa dele. Sabe que temos noção de que não pode ser rastreado; sem dúvida, pensou que estivéssemos vigiando apenas os Institutos. Isso é um presente...
— Sebastian não dá presentes! — gritou Jace. — Vocês estão cegos!
— Não estamos cegos! — rugiu Robert. — Você pode estar com medo dele, Jace, mas ele é só um garoto; ele não é a mente militar mais brilhante que já existiu! Ele te enfrentou em Burren e perdeu!
Robert deu meia-volta e se afastou, caminhando na direção de Jia. Era como se Jace tivesse sido estapeado. Clary duvidava que alguém já o tivesse acusado de sentir medo em alguma outra ocasião.
Ele se virou e olhou para ela. O movimento de Caçadores de Sombras em direção ao Portal tinha diminuído; Jia acenava e dispensava as pessoas. Jace tocou a espada curta no quadril de Clary.
— Eu vou atravessar — informou ele.
— Eles não vão deixar — disse Clary.
— Eles não precisam deixar.
O rosto de Jace parecia entalhado em mármore sob aquelas luzes vermelhas-e-douradas das torres. Atrás dele, Clary via outros Caçadores de Sombras subindo a colina. Conversavam entre si como se fosse um combate habitual, uma situação que poderia ser resolvida com o envio de uns cinquenta Nephilim ao local do ataque. Eles não tinham estado em Burren. Não tinham visto. Eles não sabiam. Os olhos de Clary encontraram os de Jace. Ela notava as linhas de tensão no rosto dele, aprofundando os ângulos das maçãs do rosto, enrijecendo o queixo.
— A pergunta é: há alguma chance de você concordar em ficar aqui? — perguntou ele.
— Você sabe que não — disse ela.
Jace inspirou de maneira exasperada.
— Muito bem. Clary, isso pode ser perigoso, perigoso de verdade...
Ela ouvia as pessoas murmurando ao redor, vozes agitadas, erguendo-se na noite em nuvens de ar exalado, pessoas fofocando que a Consulesa e o Conselho haviam se encontrado para discutir o ataque a Londres no momento em que Sebastian subitamente passou a existir no mapa de rastreamento, que ele somente estivera ali havia pouco tempo e com alguns reforços, que eles tinham uma chance real de impedi-lo, que ele fora repelido em Londres e que seria novamente...
— Eu te amo — disse Clary. — Mas não tente me impedir.
Jace esticou a mão e pegou a dela.
— Muito bem — falou. — Então nós corremos juntos. Em direção ao Portal.
— Nós corremos — concordou ela, e foi o que fizeram.
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