Capítulo 6 - Nenhuma arma neste mundo

Pequenos flocos de neve começaram a cair do céu acinzentado enquanto Clary e sua mãe atravessavam a Avenida Greenpoint, com suas cabeças inclinadas contra o vento frio vindo do Rio East.
Jocelyn não tinha falado uma palavra desde que deixaram Luke na delegacia desativada que servia como sede da alcateia. A coisa toda passou como um borrão – a matilha carregando seu líder, o kit de cura, Clary e sua mãe lutando para obter um vislumbre de Luke enquanto os lobos pareciam formar uma barreira em torno dele. Ela sabia que não podia levá-lo a um hospital mundano, mas tinha sido difícil deixá-lo naquela sala branca que servia como enfermaria.
Não é que os lobos não gostassem de Jocelyn ou de Clary. Era apenas que a noiva de Luke e sua filha não faziam parte da matilha. Nunca fariam. Clary havia procurado por Maia, por um aliado, mas ela não estava lá. Eventualmente, Jocelyn mandou Clary esperar no corredor já que a sala estava lotada, e Clary sentou-se no chão, segurando sua mochila no colo. Eram duas horas da manhã, e ela nunca se sentiu tão sozinha. Se Luke morresse...
Ela mal conseguia se lembrar de como era a vida antes dele. Por causa dele e de sua mãe, ela soube o que é ser amada incondicionalmente. Uma de suas primeiras lembranças era de Luke carregando-a para sentá-la no galho de uma macieira em sua fazenda no norte do estado.
Na enfermaria, ele respirava ruidosamente enquanto o terceiro no comando, Bat, desempacotava o kit de cura. As pessoas supostamente respiravam ruidosamente antes de morrer, ela lembrou. Ela não recordava a última coisa que tinha dito a Luke. Você não deveria lembrar a última coisa que disse a alguém antes de morrer?
Quando Jocelyn finalmente saiu da enfermaria, com um olhar exausto, estendeu a mão para Clary e a ajudou a levantar do chão.
— Ele está... — Clary começou.
— Foi estabilizado — disse Jocelyn. Ela olhou para cima e para baixo no corredor — nós temos que ir.
— Ir para onde? — Clary estava confusa. — Pensei que ficaríamos aqui, com Luke. Eu não quero deixá-lo.
— Nem eu — Jocelyn foi firme.
Clary pensou na mulher que virou as costas para Idris e tudo o que conhecia, e foi embora para começar uma nova vida sozinha.
— Mas não podemos atrair Jace e Jonathan para cá também. Não é seguro para a matilha, ou para Luke. E este é o primeiro lugar onde Jace vai procurar por você.
— Então, onde... — Clary começou, mas então entendeu, mesmo antes de terminar sua própria sentença, e fechou a boca. Aonde eles sempre iam quando precisavam de ajuda nos últimos dias?
Agora a calçada ao longo da avenida estava com faixas brancas. Jocelyn tinha colocado um sobretudo antes de sair de casa, mas por baixo ela ainda usava as roupas manchadas com o sangue de Luke. Sua boca estava fechada e seu olhar fixo no caminho à sua frente. Clary imaginou se era assim que sua mãe parecia ao sair de Idris, suas botas cobertas de cinzas e o Cálice Mortal escondido no casaco.
Clary sacudiu a cabeça para clareá-la. Ela estava fantasiando, imaginando coisas que não presenciou, sua mente fugindo, talvez, do horror do que tinha acabado de ver.
Inesperadamente, a imagem de Sebastian atravessando a faca no peito de Luke surgiu em sua cabeça, e o som da voz familiar de Jace dizendo –danos colaterais.
Muitas vezes em que algo precioso é perdido, quando você o encontra novamente, ele pode não estar exatamente como você o deixou.
Jocelyn estremeceu e levantou o capuz para cobrir os cabelos. Os flocos brancos de neve tinham começado a se misturar aos fios vermelhos brilhantes. Ela ainda estava em silêncio, e a rua, repleta de restaurantes poloneses e russos entre as barbearias e salões de beleza, estava deserta na noite amarelada. Uma memória passou pela mente de Clary – uma real desta vez, não um fruto de sua imaginação. Sua mãe estava correndo com ela à noite por uma rua escura entre pilhas de neve suja. O céu baixo, cinza e sombrio...
Ela já tinha visto a imagem antes – na primeira vez em que os Irmãos do Silêncio entraram em sua mente. Só agora ela entendeu o significado. Era a memória da época em que sua mãe a levou até Magnus para ter suas lembranças alteradas. Deve ter sido no auge do inverno, mas ela reconheceu a Avenida Greenpoint.
O prédio de tijolos vermelhos em que Magnus vivia cresceu à frente delas. Jocelyn puxou as portas de vidro e elas entraram.
Clary tentava respirar enquanto sua mãe apertava a campainha de Magnus uma, duas, três vezes. Finalmente a porta se abriu e elas se apressaram em subir as escadas.
A porta do apartamento de Magnus estava aberta, e o bruxo estava encostado na entrada, esperando por elas. Ele vestia um pijama amarelo-canário e pantufas verdes em formato de rostos de ETs – com anteninhas e tudo. Seu cabelo preto era uma massa emaranhada e seus olhos verdes piscaram cansados para elas.
— Casa São Magnus para Caçadores de Sombras desabrigados — disse ele em uma voz profunda — sejam bem-vindas — e esticou um braço aberto — quartos de hóspedes naquela direção. Limpem suas botas no tapete.
Ele voltou para o apartamento, deixando-as passar por ele antes de fechar a porta.
Hoje o lugar tinha uma decoração vitoriana, com sofás dourados de espaldar alto e espelhos grandes por toda parte. Os pilares estavam decorados com luzes em forma de flores.
Havia três quartos de hóspedes no corredor que saia da sala de estar; aleatoriamente, Clary escolheu um à direita. Era pintado de laranja, como seu antigo quarto em Park Slope, tinha um sofá-cama e uma pequena janela com vista para as janelas escuras de uma lanchonete fechada.
Presidente Miau estava enrolado na cama, com o nariz debaixo da cauda. Ela sentou ao lado dele e acariciou suas orelhas, sentindo o ronronar que vibrava através de seu pequeno corpo peludo. Enquanto o acariciava, ela avistou a manga de seu suéter. Estava manchada de sangue. Sangue de Luke.
Ela se levantou e arrancou o suéter violentamente. De sua mochila, tirou uma calça jeans limpa, uma blusa de lã preta com decote em V e se trocou.
Olhou rapidamente na janela, que lhe mostrou um pálido reflexo, seu cabelo escorrido, úmido da neve, suas sardas destacando-se como manchas de tinta. Não que sua aparência importasse. Ela pensou em Jace a beijando – parecia que tinham se passado dias em vez de horas – e seu estômago doía como se tivesse engolido pequenas facas.
Ela segurou na borda da cama por um longo momento até que a dor diminuiu. Então respirou fundo e voltou para a sala.
Sua mãe estava sentada em uma das cadeiras com encosto dourado, os dedos longos de artista seguravam uma xícara de chá de limão. Magnus estava sentado em um sofá rosa choque, com as pantufas verdes em cima da mesa de café.
— O bando o estabilizou — Jocelyn dizia com uma voz exausta — mas eles não sabem por quanto tempo. Pensaram que houvesse pó de prata na lâmina, mas parece ter sido outra coisa. A ponta da adaga...
Ela olhou para cima, viu Clary e se calou.
— Tudo bem, mãe. Eu tenho idade suficiente para ouvir o que há de errado com Luke.
— Bem, eles não sabem exatamente o que é — Jocelyn disse suavemente — a ponta da lâmina de Sebastian quebrou ao bater em uma costela e se alojou no osso. Mas eles não podem removê-la. Ela... se move.
— Se move? — Magnus parecia intrigado.
— Quando eles tentaram removê-la, ela se enfiou no osso e quase o atravessou — explicou Jocelyn — ele é um lobisomem, se cura rápido, mas aquela coisa está rasgando seus órgãos internos, mantendo a ferida aberta.
— Metal demoníaco — Magnus percebeu — não é prata.
Jocelyn se inclinou para frente.
— Você acha que pode ajudá-lo? Custe o que custar, eu pago...
Magnus se levantou. Suas pantufas de ETs e seu cabelo desgrenhado pareciam extremamente incongruentes, dada a gravidade da situação.
— Eu não sei.
— Mas você curou Alec — disse Clary — quando o Demônio Maior o feriu.
Magnus tinha começado a andar.
— Eu sabia o que havia de errado com ele. Não sei que tipo de metal demoníaco é este. Eu poderia tentar, experimentar magias de cura diferentes, mas não seria o caminho mais rápido para ajudá-lo.
— E qual seria o caminho mais rápido? — Jocelyn perguntou.
— O Praetor — Magnus respondeu — a Guarda dos Lobos. Eu conheci o homem que a fundou. Woolsey Scott. Devido a alguns... incidentes, ele era fascinado pelos detalhes de como os metais e drogas demoníacas agiam em licantropos, da mesma forma que os Irmãos do Silêncio mantém registros de diversas curas para os Nephilim. Ao longo dos anos, infelizmente, o Praetor tornou-se muito fechado e secreto. Mas um membro poderia acessar estas informações.
— Luke não é um membro — Jocelyn apontou — e a lista de associados é secreta...
— Jordan — Clary interrompeu — Jordan é um membro. Ele pode descobrir. Vou ligar para ele...
— Eu ligo para ele — disse Magnus — eu posso não entrar na sede do Praetor, mas posso mandar uma mensagem para acrescentar um peso extra. Já volto.
Ele seguiu até a cozinha, as anteninhas em suas pantufas balançando suavemente como algas em uma correnteza.
Clary se virou para a mãe, que estava olhando para a xícara. Era uma de suas bebidas preferidas, embora Clary não entendesse por que alguém iria querer beber água quente azeda. A neve tinha encharcado o cabelo de sua mãe, e agora que estava secando, começava a enrolar, como o de Clary no tempo úmido.
— Mãe — Clary chamou, e sua mãe olhou para cima — aquela faca que você atirou... na casa de Luke... era para Jace?
— Era para Jonathan.
Ela nunca iria chamá-lo de Sebastian, Clary sabia.
— Mas é que... — Clary respirou fundo — é quase a mesma coisa. Você viu. Quando você feriu Sebastian, Jace começou a sangrar. É como se eles estivessem... ligados de alguma forma. Corte Sebastian, e Jace sangra. Mate-o, e Jace morre.
— Clary — sua mãe esfregou os olhos cansados — será que podemos não discutir isso agora?
— Mas você disse que ele vai voltar por mim. Jace, eu quero dizer. Eu preciso saber que você não vai machucá-lo...
— Bem, não há como você saber disso. Porque eu não vou prometer, Clary. Eu não posso — a mãe olhou para ela com olhos inabaláveis — eu vi vocês dois saindo do seu quarto.
Clary corou.
— Eu não quero...
— Não quer o quê? Falar sobre isso? Bem, que pena. Foi você quem tocou no assunto. Você tem sorte que eu não esteja mais na Clave, sabia? Há quanto tempo você sabe onde Jace está?
— Eu não sei onde ele está. Hoje foi a primeira vez que falei com ele desde que desapareceu. Eu o vi no Instituto com Seb... com Jonathan, ontem. Contei para Alec, Isabelle e Simon. Mas não podia contar a mais ninguém. Se a Clave o capturasse... não posso deixar isso acontecer.
Jocelyn levantou os olhos verdes.
— E por que não?
— Porque é o Jace. Porque eu o amo.
— Ele não é o Jace. Esse é o problema, Clary. Ele não é mais mesmo. Você não consegue ver...
— É claro que consigo ver. Não sou idiota. Mas eu tenho fé. Eu já o vi possuído antes, e o vi se libertando. Acho que Jace ainda está lá dentro, em algum lugar. E acho que há uma maneira de salvá-lo.
— E se não houver?
— Prove.
— Você também não pode provar, Clarissa. Entendo que o ama. Sempre o amou, muito. Você acha que eu não amava seu pai? Acha que eu não dei a ele todas as chances? E olha o resultado disso. Jonathan. Se eu não tivesse ficado com seu pai, ele não existiria...
— Nem eu — Clary apontou — caso você tenha esquecido, eu vim depois do meu irmão, não antes — ela olhou para a mãe severamente — você está dizendo que valeria a pena se eu nunca tivesse nascido contanto que se livrasse de Jonathan?
— Não, eu...
Houve um barulho de chaves e fechadura sendo destrancada, e a porta do apartamento se abriu. Era Alec.
Ele usava um sobretudo de couro aberto sobre um suéter azul, e haviam flocos de neve em seu cabelo preto. Suas bochechas estavam rosadas pelo frio, mas seu rosto estava pálido.
— Onde está Magnus? — perguntou.
Quando ele olhou para a cozinha, Clary viu um hematoma em seu queixo, abaixo da orelha, do tamanho de uma impressão digital.
— Alec!
Magnus veio derrapando até sala e jogou um beijo para seu namorado do outro lado da sala. Ele tinha retirado suas pantufas e estava descalço agora. Seus olhos de gato brilharam quando olhou Alec.
Clary conhecia aquele olhar. Era como ela olhava para Jace. Alec não devolveu o olhar, no entanto. Ele estava despindo o casaco e pendurando-o em um gancho na parede. Estava visivelmente chateado. Suas mãos tremiam, seus ombros largos estavam tensos.
— Você recebeu a minha mensagem? — Magnus perguntou.
— Sim. Eu estava a alguns quarteirões de distância, de qualquer maneira.
Alec olhou para Clary, e depois para Jocelyn, ansiedade e incerteza lutando em sua expressão. Embora Alec tivesse sido convidado para a festa de casamento de Jocelyn, e a tivesse encontrado várias vezes depois disso, eles não se conheciam muito bem.
— É verdade o que Magnus disse? Você viu Jace de novo?
— E Sebastian — Clary acrescentou.
— Mas Jace... — Alec disse — como foi... quero dizer, como ele estava?
Clary sabia exatamente o que ele estava perguntando; uma vez que ela e Alec sabiam mais sobre isso do que qualquer um naquela sala.
— Ele não está tentando enganar Sebastian — ela respondeu suavemente — ele realmente mudou. Não é mais o mesmo.
— Como assim? — Alec exigiu, com uma mistura de raiva e vulnerabilidade. — Como não é mais o mesmo?
Havia um buraco no joelho do jeans de Clary; ela o cutucou, encostando o dedo na pele debaixo.
— A maneira como ele fala... ele acredita em Sebastian. Acredita no que está fazendo, seja o que for. Eu o lembrei que Sebastian tinha matado Max, e ele nem sequer pareceu se importar — sua voz falhou — ele disse que Sebastian era tão seu irmão quanto Max.
Alec empalideceu, a vermelhidão nas bochechas destacando-se como manchas de sangue.
— Ele disse alguma coisa sobre mim? Ou sobre Izzy? Ele perguntou por nós?
Clary balançou a cabeça, com dificuldade em manter o olhar no rosto de Alec. Pelo canto do olho ela podia ver Magnus observando Alec, o rosto pálido de tristeza. Se perguntou se o bruxo ainda tinha ciúmes de Jace ou estava apenas magoado com o comportamento de Alec.
— Por que ele foi até a sua casa? — Alec balançou a cabeça. — Eu não entendo.
— Jace queria que eu fosse com eles. Que eu me juntasse a ele e Sebastian. Acho que queria transformar sua pequena dupla do mal em um pequeno trio do mal — ela encolheu os ombros — talvez esteja solitário. Sebastian não deve ser uma grande companhia.
— Nós não sabemos disso. Ele pode ser fantástico na luta desonesta — Magnus apontou.
— Ele é um psicopata assassino — Alec disse categoricamente — e Jace sabe disso.
— Mas Jace não é ele mesmo agora — Magnus começou, e interrompeu-se quando o telefone tocou — vou atender. Quem sabe algum outro foragido da Clave precisa de um lugar para ficar? Não é como se houvesse hotéis nesta cidade.
Ele caminhou na direção da cozinha.
Alec atirou-se no sofá.
— Ele está trabalhando demais — falou, olhando preocupado para seu namorado — tem ficado acordado até tarde todas as noites tentando decifrar aquelas runas.
— A Clave o contratou? — Jocelyn perguntou.
— Não — Alec respondeu lentamente — ele está fazendo isso por mim. Pelo o que Jace significa para mim.
Ele ergueu a manga, mostrando para Jocelyn a runa parabatai no interior de seu antebraço.
— Você sabia que Jace não estava morto — Clary lembrou, sua mente funcionando lentamente — porque vocês são parabatai, e isso cria um laço entre vocês. Mas você disse que sentiu algo errado.
— Porque ele está possuído — disse Jocelyn — isso o transformou. Valentim disse que sentiu quando Luke se tornou um Ser do Submundo. Uma sensação de que há algo errado.
Alec balançou a cabeça.
— Mas quando Jace estava possuído por Lilith, eu não senti. Agora eu posso sentir algo... errado. Algo faltando — ele olhou para seus sapatos — você pode sentir quando seu parabatai morre... como se a corda que os atasse tivesse rompido, e agora você está caindo — ele olhou para Clary — senti isso uma vez, em Idris, durante a batalha. Mas foi tão rápido... e quando voltei para Alicante, Jace estava vivo. Me convenci de que eu tinha imaginado aquilo.
Clary balançou a cabeça, lembrando-se de Jace e da areia encharcada de sangue às margens do Lago Lyn. Você não imaginou.
— O que eu sinto agora é diferente — ele continuou — é como se ele estivesse ausente do mundo, mas não morto. Não aprisionado... Só não está aqui.
— É exatamente isso — Clary concordou — nas duas vezes em que vi Jace e Sebastian, eles desapareceram no ar. Sem portal. Em um momento estavam lá, e no outro, não estavam mais.
— Quando você fala sobre estar aqui ou lá — disse Magnus, bocejando, voltando para a sala — neste mundo ou em outro, você está falando sobre dimensões. Há apenas poucos magos que pode fazer magia dimensional. Meu velho amigo Ragnor podia. Dimensões não ficam lado a lado – elas estão dobradas e sobrepostas, como folhas de papel. Nos locais onde elas se cruzam, podem ser criados bolsos dimensionais, nos quais você não pode ser encontrado por nenhuma magia. Afinal, você não está aqui... Você está lá.
— É por isso que não conseguimos rastreá-lo? Por isso que Alec não pode senti-lo? — Clary perguntou.
— Pode ser — Magnus soou quase impressionado — isso significaria que não há literalmente nenhuma maneira de encontrá-los se eles não quiserem ser encontrados. E não há jeito de mandar uma mensagem de volta para nós se você encontrá-los. Isso é mágica complicada e cara. Sebastian deve ter algumas conexões...
A campainha da porta soou, e todos saltaram. Magnus revirou os olhos.
— Todo mundo se acalme... — ele falou, e desapareceu pela porta.
Voltou um momento mais tarde com um homem envolto em um manto longo cor de pergaminho, com padrões de runas pintadas em vermelho escuro nas costas e nas laterais. Embora o capuz estivesse levantado, sombreando seu rosto, ele parecia completamente seco, como se nenhum floco de neve tivesse caído sobre ele. Quando empurrou o capuz para trás, Clary não ficou surpresa de ver o rosto do Irmão Zacarias.
Jocelyn largou sua caneca, de repente, na mesa do café. Ela estava olhando para o Irmão do Silêncio. Com seu capuz empurrado para trás era possível ver seu cabelo escuro, mas, como seu rosto estava na sombra, Clary não pôde ver seus olhos, apenas as maçãs do rosto proeminentes.
— Você — Jocelyn disse, sua voz sumindo — mas Magnus disse que você não poderia...
Eventos inesperados pedem medidas inesperadas. A voz do Irmão Zacarias flutuou, tocando o interior da cabeça de Clary. Ela sabia, devido às expressões nos rostos dos outros, que eles podiam ouvi-lo também. Eu não direi nada a Clave ou ao Conselho sobre o que transcorrer nesta noite. Se a chance de salvar o último Herondale sobrevivente apresentar-se a mim, eu a considerarei de maior importância do que minha fidelidade perante a Clave.
— Então, está resolvido — Magnus falou. Ele fazia um par estranho com o Irmão do Silêncio, um deles em vestes claras e pálidas, o outro em um brilhante pijama amarelo — alguma ideia nova sobre as runas de Lilith?
Tenho estudado as runas cuidadosamente e ouvido todos os depoimentos dados ao Conselho, contou o Irmão Zacarias. Acredito que tenha sido um ritual de duas fases. Primeiro ela usou a mordida do Diurno para reavivar a consciência de Jonathan Morgenstern. Seu corpo ainda estava fraco, mas sua mente estava viva. Acredito que quando Jace Herondale foi deixado sozinho no telhado, Jonathan extraiu poder das runas de Lilith e forçou Jace a entrar no círculo enfeitiçado que o cercava. Nesse ponto, Jace já estava sujeito à vontade de Jonathan. Acredito que ele tenha tirado forças do sangue de Jace para levantar e escapar do telhado, levando Jace consigo.
— E, de alguma forma, isso tudo criou uma conexão entre eles? — Clary perguntou. —Porque quando minha mãe esfaqueou Sebastian, Jace começou a sangrar.
Sim. O que Lilith fez foi uma espécie de ritual de geminação, não muito diferente de nossa própria cerimônia parabataimas muito mais poderosa e perigosa. Os dois agora estão irremediavelmente ligados. Se um morrer, o outro o seguirá. Nenhuma arma neste mundo pode ferir apenas um deles.
— Quando você diz que eles estão irremediavelmente ligados... — Alec disse, inclinando-se para frente — isso significa... quero dizer, Jace odeia Sebastian. Sebastian assassinou nosso irmão.
— E eu não vejo como Sebastian pode estar gostando da companhia de Jace, também. Ele sempre foi horrivelmente invejoso. Ele pensava que Jace era o favorito de Valentim — acrescentou Clary.
— Para não mencionar — Magnus observou — que Jace o matou. Isso deixaria qualquer um chateado.
— É como se Jace não se lembrasse de nenhuma dessas coisas — Clary disse frustrada — não. Não é como se ele não lembrasse. É como se ele não acreditasse.
Ele se lembra. Mas o poder da ligação é tamanha, que os pensamentos de Jace passam sobre e em torno desses fatos, como a água que passa em torno de rochas no leito de um rio. É como o feitiço que Magnus lançou sobre sua mente, Clarissa. Quando você viu partes do Mundo Invisível, sua mente as rejeitou, as afastou. Não há razão em argumentar com Jace sobre Jonathan. A verdade não pode quebrar sua conexão.
Clary pensou no que tinha acontecido quando ela tentou lembrar a Jace que Sebastian havia matado Max, como seu rosto ficou temporariamente franzido e pensativo, e em seguida, suavizou como se ele tivesse esquecido rapidamente o que ela havia dito.
Tire algum conforto no fato de que Jonathan Morgenstern está tão ligado quanto Jace. Ele não pode prejudicar ou machucar Jace, nem se quisesse. Zacarias acrescentou.
Alec jogou as mãos para cima.
— Então eles se amam agora? São melhores amigos? — A mágoa e o ciúme eram evidentes em seu tom.
Não. Eles são a mesma pessoa agora. Um vê como o outro vê. Eles sabem que um é indispensável para o outro. Sebastian é o líder, o primário dos dois. O que ele acredita, Jace vai acreditar. O que ele quiser, Jace vai fazer.
— Então ele está possuído — Alec disse, sem rodeios.
Em uma possessão, muitas vezes uma parte da consciência original é deixada intacta. Aqueles que foram possuídos relatam ter assistido de fora suas próprias ações, gritando, mas incapazes de serem ouvidos. Mas Jace tem total controle sobre seu corpo e mente. Ele acredita estar são. Ele acredita que é isso que quer.
— Então o que ele quer de mim? — Clary exigiu com a voz trêmula. —Por que ele foi ao meu quarto esta noite?
Ela esperou que suas bochechas não queimassem. Tentou empurrar de volta a memória de beijá-lo, a pressão de seu corpo contra o dela na cama.
Ele ainda a ama, respondeu o Irmão Zacarias, e sua voz estava surpreendentemente suave. Você é o ponto central sobre o qual o mundo dele gira. Isso não mudou.
— E é por isso que tivemos que sair — Jocelyn falou tensa — ele vai voltar por ela. Não podíamos ficar na delegacia. Eu não sei onde seria seguro...
— Aqui — Magnus respondeu — posso criar defesas que irão manter Jace e Sebastian longe.
Clary viu o alívio inundar os olhos da mãe.
— Obrigada — Jocelyn agradeceu.
Magnus acenou.
— É um prazer. Eu realmente amo proteger Caçadores de Sombras do ataque de pessoas raivosas, especialmente se estiverem possuídas.
Ele não está possuído, lembrou Irmão Zacarias.
— Semântica — Magnus replicou. —A questão é, o que os dois estão fazendo? O que eles estão planejando?
— Clary disse que quando os viu na biblioteca, Sebastian falou que Jace estaria mandando no Instituto em breve — Alec lembrou — então eles estão planejando alguma coisa.
— Provavelmente continuar o trabalho de Valentim — Magnus sugeriu — acabar com os Seres do Submundo, matar todos os Caçadores de Sombras que se opuserem, blá, blá, blá.
— Talvez — Clary não tinha certeza — Jace disse algo sobre Sebastian servir a uma causa maior.
— Só o Anjo sabe o que isso quer dizer — Jocelyn comentou — eu fui casada com um fanático por anos. Eu sei o que uma causa maior significa. Significa tortura de inocentes, assassinatos brutais, virar as costas para seus amigos antigos, tudo em nome de algo que você acredita ser maior do que você mesmo, mas não é nada além de ganância e infantilidade.
— Mãe — Clary protestou, preocupada em ouvir Jocelyn tão amargurada.
Mas Jocelyn estava olhando para o Irmão Zacarias.
— Você disse que nenhuma arma neste mundo pode ferir apenas um deles. Nenhuma arma que você conheça ou...
Os olhos de Magnus brilharam de repente, como os de um gato quando refletem um feixe de luz.
— Você acha que...
— As Irmãs de Ferro — Jocelyn falou — elas são especialistas em armamento. Talvez possam ter uma resposta.
As Irmãs de Ferro, pelo o que Clary sabia, eram a vertente feminina da seita dos Irmãos do Silêncio; ao contrário de seus irmãos, elas não tinham bocas ou olhos costurados, mas, por outro lado, viviam na solidão quase total em uma fortaleza cuja localização era desconhecida. Elas não eram combatentes – eram criadoras, as mãos que moldavam as armas, as estelas, as lâminas serafim que mantinham os Caçadores de Sombras vivos. Havia runas que só elas podiam esculpir, e só elas conheciam os segredos da manipulação da substância branco-prateada chamada adama na fabricação das torres demoníacas, estelas e luz de bruxa. Raramente vistas, elas não compareciam às reuniões do Conselho ou se aventuravam em Alicante.
É possível. Disse Irmão Zacarias após uma longa pausa.
— Se Sebastian pudesse ser morto... se houvesse uma arma que conseguisse matá-lo, mas deixar Jace vivo... Jace ficaria livre de sua influência? — Clary perguntou.
Houve uma pausa ainda maior.
Neste caso, sim, o Irmão Zacarias respondeu. Este seria o resultado mais provável.
— Então nós temos que ir ver as Irmãs — a exaustão caiu sobre Clary como um manto, pesando sobre seus olhos, azedando o gosto em sua boca. Ela esfregou os olhos, tentando espantar a sensação — agora.
— Eu não posso ir — Magnus observou — só mulheres Caçadoras de Sombras podem entrar na Fortaleza de Adamant.
— E você não vai — Jocelyn falou para Clary usando sua voz de você-não-vai-para-a-discoteca-com-Simon-depois-da-meia-noite — você está mais segura aqui, sob proteção.
— Isabelle — Alec sugeriu — Isabelle pode ir.
— Você tem alguma ideia de onde ela está? — Clary perguntou.
— Em casa, imagino — Alec respondeu, encolhendo os ombros — eu posso chamá-la...
— Eu cuido disso — Magnus interrompeu, tirando o celular do bolso e digitando um texto com habilidade — é tarde, e não precisamos acordá-la. Todo mundo precisa descansar. Se eu vou enviar qualquer um de vocês para ver as Irmãs de Ferro, será amanhã.
— Eu vou com Isabelle — Jocelyn falou — ninguém está procurando por mim especificamente, e é melhor que ela não vá sozinha. Mesmo que agora eu não seja tecnicamente uma Caçadora de Sombras, eu fui uma vez. Só é necessário que uma de nós esteja na ativa.
— Isso não é justo — Clary apontou.
Sua mãe nem sequer olhou para ela.
— Clary...
Clary levantou-se.
— Eu fui praticamente uma prisioneira nas últimas duas semanas — ela disse com a voz trêmula — a Clave não me deixou procurar por Jace. E agora que ele veio até mim, até mim, você não vai me deixar ir até as Irmãs de Ferro...
— Não é seguro. Jace provavelmente está te seguindo...
Clary perdeu o controle.
— Toda vez que você tenta me manter segura, você destrói a minha vida!
— Não. Quanto mais você se envolve com Jace, mais você destrói a sua vida! — Sua mãe retrucou. — Cada risco que você correu, cada perigo que passou, foi por causa dele! Ele segurou uma faca na sua garganta, Clarissa...
— Não. Era. Ele — Clary respondeu na voz mais suave e mortal que ela poderia imaginar — você acha que eu ficaria por um segundo com um garoto que tivesse me ameaçado com uma faca mesmo se eu o amasse? Talvez você tenha vivido tempo demais no mundo dos mundanos, mãe, mas existe mágica. A pessoa que me machucou não era Jace. Era um demônio usando seu rosto. E a pessoa que estamos procurando agora não é Jace. Mas se essa pessoa morrer...
— Não haverá chance de trazer Jace de volta — Alec completou.
— Pode ser que já não haja nenhuma chance — Jocelyn falou — Deus, Clary, veja as evidências. Você pensou que você e Jace eram irmãos! Sacrificou tudo para salvar a vida dele, e um Demônio Maior o usou para chegar até você! Quando vai encarar o fato de que vocês dois não estão destinados a ficar juntos?
Clary tropeçou para trás como se sua mãe tivesse batido nela. Irmão Zacarias ainda estava imóvel como uma estátua, como se ninguém tivesse gritado em nenhum momento. Magnus e Alec estavam pasmos; Jocelyn estava corada, com seus olhos brilhando de raiva. Sem saber se conseguiria falar, Clary girou nos calcanhares, avançou pelo corredor até o quarto de hóspedes de Magnus e bateu a porta atrás dela.

***

— Certo, estou aqui — disse Simon.
Um vento frio soprava em toda a extensão do jardim da cobertura, e ele enfiou as mãos nos bolsos da calça jeans. Não sentia frio realmente, mas achou que deveria fazê-lo. Ele levantou a voz.
— Eu apareci. Onde você está?
O jardim da cobertura do Hotel Greenwich – agora fechado, e, portanto, sem ninguém – foi projetado como um jardim inglês, com árvores-anãs cuidadosamente aparadas, elegantes mobílias de vime e vidro, guarda-sóis que sacudiam ao vento forte. As treliças de rosas trepadeiras formavam teias nas paredes de pedra que cercavam a cobertura sobre a qual Simon podia avistar o centro reluzente de Nova York.
— Estou aqui — disse uma voz, e uma sombra esguia se desprendeu de uma poltrona de vime e se ergueu — eu estava começando a me perguntar se você viria, Diurno.
— Raphael — Simon falou em uma voz resignada. Ele caminhou para frente, através dos pedaços de madeira que serpenteavam entre as bordas dos arbustos e das piscinas artificiais revestidas de quartzo brilhante — eu estava me perguntando a mesma coisa.
Quando ele se aproximou, pôde ver Raphael claramente. Simon tinha uma visão noturna excelente, e apenas a habilidade de Raphael em se camuflar nas sombras o manteve escondido antes. O outro vampiro estava vestindo um terno preto, com os punhos levantados para mostrar o brilho das abotoaduras em forma de corrente. Ele ainda tinha o rosto angelical de um garoto, apesar do olhar frio que lançava a Simon.
— Quando o líder do clã de vampiros de Manhattan te chama, Lewis, você vem.
— E o que você faria se eu não viesse? Me atacaria com uma estaca? — Simon abriu bem os braços. — Vá em frente. Faça o que quiser. Boa sorte.
— Dios, como você é chato — atrás dele, perto da parede, Simon pôde ver o brilho cromado da motocicleta vampírica que ele usou para chegar até lá.
Simon baixou os braços.
— Foi você quem me pediu para encontrá-lo.
— Eu tenho uma oferta de emprego para você — disse Raphael.
— Sério? Você está com falta de pessoal no hotel?
— Preciso de um guarda-costas.
Simon olhou para ele.
— Você andou assistindo O guarda-costas? Porque eu não vou me apaixonar por você e carregá-lo em meus braços musculosos.
Raphael olhou para ele acidamente.
— Eu daria um pagamento extra para você permanecer inteiramente silencioso enquanto trabalha.
Simon o encarou.
— Você está falando sério, não é?
— Eu não me incomodaria em vê-lo se não fosse para falar sério. Se eu estivesse com humor para brincadeiras, iria passar esse tempo com alguém que eu gostasse — Raphael sentou-se na poltrona — Camille Belcourt está livre na cidade de Nova York. Os Caçadores de Sombras estão totalmente presos a esse negócio estúpido com o filho de Valentim e não se incomodarão em localizá-la. Ela representa um perigo imediato para mim, pois deseja reafirmar seu controle sobre o clã de Manhattan. A maioria é leal a mim. Me matar seria o caminho mais rápido para que ela retornasse ao topo da hierarquia.
— Certo — Simon respondeu lentamente — mas por que eu?
— Você é um Diurno. Outras pessoas podem me proteger durante a noite, mas você pode me proteger de dia, quando a maioria da nossa espécie é impotente. E você carrega a Marca de Caim. Com você entre nós, ela não se atreveria a me atacar.
— Tudo isso é verdade, mas eu não vou fazer.
Raphael olhou incrédulo.
— Por que não?
As palavras explodiram de Simon.
— Você está brincando? Porque você nunca fez uma única coisa por mim desde que me tornei um vampiro. Muito pelo contrário, você deu o melhor de si para tornar a minha vida miserável e depois acabar com ela. Então... se você quiser ouvir isso na linguagem dos vampiros... é com grande prazer, meu senhor, que lhe digo agora: nem ferrando.
— Não é sábio de sua parte me ter como inimigo, Diurno. Como amigos nós...
Simon riu, incrédulo.
— Espere um segundo. Nós éramos amigos? Aquilo era amizade?
As presas de Raphael saltaram para fora. Ele estava realmente com muita raiva, Simon percebeu.
— Eu sei porque você recusou a minha oferta, Diurno, e não foi por uma falsa mágoa pela rejeição. Você está tão envolvido com os Caçadores de Sombras que pensa que é um deles. Nós o vimos com eles. Em vez de passar as suas noites caçando, como deveria, as passa com a filha de Valentim. Você vive com um lobisomem. É uma desgraça.
— Você age assim em todas as entrevistas de emprego?
Raphael mostrou os dentes.
— Você deve decidir se é um vampiro ou um Caçador de Sombras, Diurno.
— Vou optar pelo Caçador de Sombras, então. Porque, pelo que eu já conheci dos vampiros, a maioria de vocês não vale nada.
Raphael se levantou.
— Você está cometendo um grave erro.
— Eu já falei...
O outro vampiro acenou com a mão, interrompendo-o.
— Há uma grande escuridão se aproximando. Ela irá varrer a terra com fogo e sombras, e quando ela se for, não restará mais nenhum dos seus preciosos Caçadores de Sombras. Nós, os Filhos da Noite, vamos sobreviver a isso, pois vivemos na escuridão. Mas se você insistir em negar o que é, você também será destruído, e ninguém estenderá a mão para ajudá-lo.
Sem pensar, Simon levantou a mão para tocar a marca em sua testa.
Raphael riu silenciosamente.
— Ah, sim, a Marca do Anjo sobre você. Nos tempos de trevas, até mesmo os anjos serão destruídos. Sua força não irá ajudá-lo. E é melhor rezar, Diurno, para que você não perca essa marca antes da guerra começar. Porque, se isso acontecer, haverá uma fila de inimigos esperando para matá-lo. E eu serei o primeiro.

***

Clary ficou deitada no sofá-cama de Magnus por um longo tempo. Ela tinha ouvido a mãe passar pelo corredor e entrar no outro quarto, fechando a porta atrás de si. Através de sua própria porta, pôde ouvir Magnus e Alec conversando em voz baixa na sala de estar. Supôs que poderia esperar até eles irem dormir, mas Alec havia dito que Magnus passava horas em claro todas as noites estudando as runas; embora o Irmão Zacarias aparentemente tenha interpretado-as, ela não tinha certeza se Alec e Magnus iriam se retirar em breve.
Ela se sentou na cama ao lado de Presidente Miau, que fez um ruído confuso em protesto, e remexeu em sua mochila. Tirou uma caixa de plástico transparente e a abriu. Ali estavam seus lápis coloridos, alguns tocos de giz... e sua estela.
Ela se levantou, deslizando a estela no bolso da jaqueta. Pegou seu celular sobre a mesa e mandou a mensagem: me encontre no taki's. Ela observou a mensagem sendo enviada e, em seguida, enfiou o telefone em seu jeans e respirou fundo.
Sabia que não era justo com Magnus. Ele havia prometido à sua mãe que cuidaria dela, e isso não incluía ela se esgueirando para fora de seu apartamento. Mas manteve a boca fechada. Não tinha prometido nada. E, além disso, era Jace.
Você faria qualquer coisa para salvá-lo, custe o que custar, não importa o que pudesse dever ao Céu ou ao Inferno, não é mesmo?
Ela pegou a estela, apoiou a ponta na parede laranja e começou a desenhar um Portal.

***

O barulho forte acordou Jordan de um sono profundo. Ele despertou imediatamente e rolou para fora da cama, agachando-se no chão. Anos de treinamento no Praetor lhe deram reflexos rápidos e um sono leve. Uma rápida análise visual e olfativa confirmou que o quarto estava vazio, apenas o luar refletido no chão a seus pés.
O barulho soou novamente, e desta vez ele o reconheceu. Era o som de alguém batendo na porta da frente. Ele costumava dormir apenas de cueca, então, vestiu rapidamente um jeans e uma camiseta, abriu a porta do quarto e saiu para o corredor. Se fosse um grupo de jovens universitários bêbados se divertindo batendo em todas as portas do edifício, eles estavam prestes a encarar um lobisomem raivoso.
Ele chegou à porta e parou. A imagem de Maia fugindo dele no Arsenal da Marinha surgiu novamente na sua cabeça. O olhar no rosto dela quando se afastou. Sabia que a tinha pressionado demais, exigido muito, rápido demais. Provavelmente tinha estragado tudo. A não ser que... talvez ela tivesse reconsiderado. Houve um tempo em que a relação deles tinha sido uma alternância entre brigas passionais e sessões de amassos igualmente passionais.
Com seu coração batendo forte, ele abriu a porta. E piscou. Ali estava Isabelle Lightwood, com seu longo cabelo preto brilhante caindo quase até a cintura. Ela usava botas pretas de camurça na altura do joelho, jeans apertados, uma regata vermelha de seda e seu pingente familiar vermelho-escuro brilhante em volta do pescoço.
— Isabelle?
Ele não conseguia esconder a surpresa em sua voz, ou, suspeitava, a decepção.
— Sim, bem, eu também não estava esperando por você — ela respondeu, passando por ele para entrar no apartamento.
Ela cheirava a Caçadora de Sombras – um cheiro de vidro aquecido pelo sol – e, sob isso, um perfume doce.
— Eu estava procurando por Simon.
Jordan apertou os olhos para ela.
— São duas da manhã.
Ela encolheu os ombros.
— Ele é um vampiro.
— Mas eu não sou.
— Ohhhhh? — Seus lábios vermelhos se curvaram nos cantos. — Eu te acordei?
Ela estendeu a mão e deu um peteleco no botão da calça jeans dele, a ponta de sua unha raspou em sua barriga.
Jordan sentiu seus músculos saltarem. Izzy era linda, não havia como negar. Ela também era um pouco assustadora. Ele se perguntava como o modesto Simon conseguia lidar com ela.
— Talvez você devesse manter esse botão fechado. Cueca legal, a propósito.
Ela passou por ele até o quarto de Simon. Jordan a seguiu, abotoando a calça e resmungando sobre como não havia nada de estranho em ter uma cueca com estampa de pinguins dançarinos.
Isabelle esticou a cabeça para dentro do quarto de Simon.
— Ele não está aqui — ela bateu a porta atrás de si e encostou-se à parede, olhando para a Jordan — você disse que são duas da manhã?
— Sim. Ele provavelmente está com Clary. Tem dormido lá muitas vezes, ultimamente.
Isabelle mordeu o lábio.
— Certo. Claro.
Jordan estava começando a ter aquela sensação de que estava dizendo algo errado, mas sem saber exatamente o que era.
— Existe uma razão para você ter vindo aqui? Quer dizer, aconteceu alguma coisa? Há algo de errado?
— Errado? — Isabelle jogou as mãos para cima. — Você quer dizer além do fato de que meu irmão desapareceu e provavelmente sofreu lavagem cerebral pelo demônio que assassinou meu outro irmão, e meus pais estão se divorciando e Simon está fora com Clary...
Ela parou abruptamente e avançou, passando por ele, até a sala. Jordan correu atrás dela. No momento em que a alcançou, ela estava na cozinha, vasculhando as prateleiras da despensa.
— Você tem alguma coisa para beber? Um bom Barolo? Um Sagrantino?
Jordan a segurou pelos ombros e a levou gentilmente para fora da cozinha.
— Sente-se. Vou trazer um pouco de tequila.
— Tequila?
— É só o que temos. Tequila e xarope para tosse.
Sentada em um dos bancos que ladeavam o balcão da cozinha, ela acenou para ele. Ele esperava que suas unhas fossem perfeitas, longas e pintadas de vermelho ou rosa para combinar com o resto, mas não, Isabelle era uma Caçadora de Sombras. Suas mãos tinham cicatrizes, as unhas eram quadradas e curtas. A runa da Visão se destacava em sua mão direita.
— Tudo bem.
Jordan pegou a garrafa de Cuervo, destampou-a e serviu uma dose. Ele empurrou o copo sobre o balcão. Ela o virou de uma só vez, franziu a testa, e bateu o copo vazio no balcão.
— Não é o suficiente — disse ela, levantando-se, contornando balcão e pegando a garrafa da mão dele.
Inclinou a cabeça para trás e engoliu uma, duas, três vezes. Quando abaixou a garrafa novamente, suas bochechas estavam coradas.
— Onde você aprendeu a beber assim? — Ele não tinha certeza se deveria ficar impressionado ou amedrontado.
— A idade mínima para beber em Idris é 15 anos. Não que alguém se importe. Eu bebo vinho misturado com água, junto com meus pais, desde criança.
Isabelle deu de ombros. O gesto saiu mais descoordenado que de costume.
— Certo. Bem, você quer deixar alguma mensagem para Simon, ou há algo que eu possa dizer ou...
— Não — ela tomou outro gole da garrafa — eu fiquei bêbada e vim falar com ele e é claro que ele está com Clary. Faz sentido.
— Pensei que você tinha dito que ele deveria ir para lá.
— Sim — Isabelle brincava com o rótulo da garrafa de tequila — eu disse.
— Então — Jordan respondeu, em um tom que ele pensava ser razoável — diga a ele para parar de ir.
— Eu não posso fazer isso — ela soava exausta — eu devo a ela.
Jordan se inclinou sobre o balcão. Ele se sentiu um pouco como um garçom de um programa de TV, dando conselhos sábios.
— O que você deve a ela?
— Vida — Isabelle respondeu.
Jordan piscou. Isso estava um pouco além das suas habilidades como bartender e conselheiro gratuito.
— Ela salvou sua vida?
— Ela salvou a vida de Jace. Ela poderia ter pedido qualquer coisa para o Anjo Raziel, e salvou meu irmão. Eu sempre confiei em poucas pessoas na vida. Confiança real. Minha mãe, Alec, Jace e Max. Eu já perdi um deles. E Clary é a única razão para eu não ter perdido outro.
— Você acha que seria realmente capaz de confiar em alguém que não é da sua família?
— Jace não é tecnicamente da família — Isabelle respondeu, evitando o olhar.
— Você sabe o que quero dizer — Jordan replicou, olhando significativamente para o quarto de Simon.
Izzy fez uma careta.
— Os Caçadores de Sombras vivem sob um código de honra, lobisomem — ela disse, e por um momento voltou a ser uma Nephilim arrogante, e Jordan se lembrou por que tantos Seres do Submundo não gostavam deles — Clary salvou um Lightwood. Devo-lhe minha vida. Mas se eu não posso dar isso a ela, já que não teria nenhuma utilidade, posso dar algo que a deixe menos infeliz.
— Você não pode dar Simon a ela. Simon é uma pessoa, Isabelle. Ele vai para onde quiser.
— Sim. Bem, ele não parece se importar de ir onde ela está, não é?
Jordan hesitou. Havia algo sobre o que Isabelle estava dizendo que parecia errado, mas ela não estava completamente errada. Simon tinha uma comodidade com Clary que ele nunca demonstrou com mais ninguém. Tendo amado apenas uma garota em sua vida, Jordan não sabia se estava qualificado para distribuir conselhos sobre esse assunto – embora se lembrasse de Simon o advertindo, ironicamente, que Clary tinha – um namorado que era uma bomba nuclear. Jordan não tinha certeza se havia ciúme sob toda aquela ironia. Ele também não tinha certeza se alguém poderia esquecer completamente a primeira garota que amou. Especialmente quando ela estava bem ali na sua frente, todos os dias.
Isabelle estalou os dedos.
— Ei. Você está ao menos prestando atenção? — Ela inclinou a cabeça para o lado, soprando fios escuros de cabelo fora do rosto, e olhou duramente para ele. — Deixa pra lá. O que está acontecendo entre você e Maia?
— Nada — a palavra não soou muito convincente — eu não tenho certeza se ela deixará de me odiar algum dia.
— Talvez ela não deixe — Isabelle respondeu — ela tem uma boa razão.
— Obrigado.
— Eu não dou falsas esperanças — Izzy disse, e empurrou a garrafa de tequila para longe. Seu olhar sobre Jordan era animado e escuro — vem cá, garoto lobisomem.
Ela baixou a voz, que soou macia e sedutora. Jordan sentiu a garganta secar de repente. Lembrou-se quando viu Isabelle em seu vestido vermelho em Ironworks e pensou, Essa é a outra garota que Simon está saindo além de Maia? Nenhuma delas era do tipo de garota que você podia enganar e viver para contar a história. E nenhuma delas era do tipo de garota que aceitava um “não” como resposta.
Cautelosamente, ele rodeou o balcão até Isabelle. Estava a poucos passos quando ela estendeu a mão e o puxou para perto pelos pulsos. Suas mãos deslizaram pelos braços dele, sobre a curva de seus bíceps, sobre os músculos de seus ombros. Seu batimento cardíaco acelerou. Ele podia sentir o calor que vinha dela e podia sentir seu cheiro de perfume e tequila.
— Você é lindo — suas mãos deslizaram até seu peito — sabe disso, né?
Jordan se perguntou se ela podia sentir seu coração batendo através de sua camisa. Ele sabia como as garotas olhavam para ele na rua – alguns garotos também, às vezes – sabia o que ele via no espelho todos os dias, mas nunca pensou muito sobre isso. Passou tanto tempo focado em Maia que nunca pareceu importante se ela ainda o acharia atraente se o visse outra vez.
Ele já tinha sido assediado várias vezes, mas não por garotas como Isabelle, e nunca por ninguém tão direta. Ele se perguntou se ela ia beijá-lo. Não tinha beijado ninguém além de Maia desde seus quinze anos. Mas Isabelle estava fitando-o, seus olhos eram grandes e escuros, e seus lábios cor de morango estavam entreabertos. Ele se perguntou se teriam gosto de morango, se a beijasse.
— E eu não me importo — ela terminou.
— Isabelle, acho que nós não... Espere. O quê?
— Eu deveria me importar. Quero dizer, eu teria que pensar em Maia também, então eu provavelmente não sairia simplesmente rasgando suas roupas de qualquer maneira, mas o negócio é: eu não quero. Normalmente eu iria querer.
— Ah — disse Jordan. Ele sentiu um alívio, e também uma pequena pontada de decepção. — Bem... isso é bom?
— Eu penso nele o tempo todo. É horrível. Isso nunca aconteceu comigo antes.
— Você quer dizer Simon?
— Aquele mundano magrelo idiota — ela falou, e tirou as mãos do peito de Jordan — só que ele não é mais magrelo. Nem mundano. E eu gosto de passar meu tempo com ele. Ele me faz rir. E gosto da maneira como ele sorri. Sabe, um canto de sua boca sobe antes do outro... Bem, você mora com ele. Deve ter notado.
— Na verdade, não.
— Eu sinto falta dele quando ele não está por perto — confessou Isabelle — pensei... depois do que aconteceu naquela noite com Lilith, pensei que as coisas mudariam entre nós. Mas agora ele está com Clary o tempo todo. E eu não posso nem mesmo ficar zangado com ela.
— Você perdeu seu irmão.
Isabelle olhou para ele.
— O quê?
— Bem, ele está se esforçando para fazer Clary se sentir melhor porque ela perdeu Jace. Mas Jace é seu irmão. Simon não deveria estar se esforçando para fazer você se sentir melhor também? Talvez você não esteja brava com ela, mas poderia estar brava com ele.
Isabelle olhou para ele por um longo momento.
— Mas nós não somos nada um para o outro. Ele não é meu namorado. Eu só gosto dele — ela franziu a testa — merda. Não acredito que eu disse isso. Devo estar mais bêbada do que pensava.
— Eu meio que já tinha percebido isso pelo o que você disse antes.
Ele sorriu para ela.
Ela não sorriu de volta, mas baixou seus cílios e olhou para ele através deles.
— Você não é tão ruim. Se quiser, eu posso dizer coisas boas sobre você a Maia.
— Não, obrigado — disse Jordan, que não tinha certeza sobre qual era a versão de “coisas boas” de Izzy, e temia descobrir — sabe, é normal, quando se está atravessando um momento difícil, querer estar com a pessoa que você... — ele estava prestes a dizer “ama”, mas percebeu que ela nunca tinha usado essa palavra, e mudou de rumo — ... se preocupa. Mas eu não acho que Simon saiba que você se sente assim sobre ele.
Seus olhos se abriram novamente.
— Ele nunca disse nada sobre mim?
— Ele acha que você é muito forte — Jordan respondeu — e que não precisa dele para nada. Acho que ele se sente... supérfluo na sua vida. Tipo, o que ele pode lhe dar quando você já tem tudo? Por que você iria quer um cara como ele?
Jordan piscou; ele não tinha a intenção de ir por esse caminho, e não estava certo sobre quanto do que disse se aplicava a Simon, e quanto se aplicava a ele mesmo e Maia.
— Então acha que eu deveria dizer a ele como me sinto? — Isabelle perguntou em voz baixa.
— Sim. Definitivamente. Diga a ele como se sente.
— Certo — ela pegou a garrafa de tequila e tomou um gole — vou até a casa de Clary agora e vou dizer a ele.
Um pequeno alarme cresceu em seu peito.
— Você não pode. Já são praticamente três da manhã...
— Se eu esperar, vou perder a coragem — ela falou, naquele tom razoável que só as pessoas muito bêbadas usavam. Ela tomou outro gole da garrafa — eu apenas vou lá, bater na janela de Clary e vou dizer a Simon como eu me sinto.
— Você sabe ao menos qual é a janela de Clary?
Ela apertou os olhos.
— Nããão.
A horrível visão de Isabelle bêbada acordando Jocelyn e Luke flutuava pela cabeça de Jordan.
— Isabelle, não.
Ele estendeu a mão para tirar a garrafa de tequila dela, e ela se esquivou dele.
— Acho que estou mudando minha opinião sobre você — ela falou num tom semiameaçador que teria sido mais assustador se ela fosse capaz de fixar os olhos diretamente nele — acho que eu não gosto tanto assim de você, afinal de contas.
Ela se levantou, olhou para os pés com uma expressão de surpresa e caiu para trás. Apenas os reflexos rápidos de Jordan permitiram que ele a segurasse antes que ela batesse no chão.

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