Capítulo 7 - Conflito Noturno
A planície vulcânica se esparramava feito uma paisagem lunar pálida diante de Jace, se estendendo até uma linha de montanhas ao longe, negras contra o horizonte. A neve branca salpicava o solo: densa em alguns lugares; em outros, gelo fino e firme, juntamente aos galhos desfolhados de cercas-vivas e musgo congelado.
A lua estava atrás de nuvens, o céu escuro de veludo pintado com estrelas aqui e ali, e obscurecido por uma cortina de nuvens. A luz ardia ao redor deles, porém, vinda das lâminas serafim – e, Jace começava a enxergar, conforme os olhos se adaptavam, a luz do que parecia uma fogueira ardendo à distância.
O Portal havia depositado Jace e Clary a alguns poucos metros um do outro, na neve. Estavam lado a lado agora, Clary muito silenciosa, com o cabelo cor de cobre salpicado de flocos brancos. Ao redor, gritos e berros, o som das lâminas serafim sendo acesas, o murmúrio dos nomes de anjos.
— Fique perto de mim — murmurou Jace, enquanto ele e Clary se aproximavam do topo da serra.
Ele pegara uma espada da pilha perto do Portal pouco antes de pular, o grito desesperado de Jia alcançando-os através dos ventos que guinchavam. Jace meio que esperara que ela ou Robert os seguissem, mas, em vez disso, o Portal se fechara imediatamente atrás deles, como uma porta batendo.
A espada pouco familiar pesava nas mãos dele. Jace preferia usar o braço esquerdo, mas o punho da espada era para destros. A arma estava amassada dos lados, como se já tivesse presenciado algumas batalhas. Ele queria estar com uma das próprias armas na mão...
Subitamente tudo apareceu, erguendo-se diante deles como um peixe rompendo a superfície da água com um brilho prateado repentino. Jace só tinha visto a Cidadela Adamant em fotografias até então. Feita do mesmo material que as lâminas serafim, a Cidadela reluzia contra o céu noturno como uma estrela; era isso que Jace confundira com a luz de uma fogueira. Um muro circular de adamas a envolvia, sem aberturas, exceto por um único portão, formado por duas lâminas imensas cravadas no solo, formando um ângulo, como um par de tesouras aberto.
Ao redor da Cidadela, o solo vulcânico se estendia, preto e branco como um tabuleiro de xadrez – metade rocha vulcânica e metade neve. Jace sentiu os pelos da nuca se arrepiando. Era como estar de volta ao Burren, embora ele se recordasse daquilo tal como se fosse um sonho: o Nephilim maligno de Sebastian com o uniforme vermelho, e o Nephilim da Clave de preto, lâmina contra lâmina, as faíscas da batalha se elevando na noite, e então o fogo da Gloriosa, varrendo tudo que existia.
A terra do Burren costumava ser escura, mas agora os guerreiros de Sebastian estavam parados como gotas de sangue contra o solo branco. Estavam aguardando, o vermelho sob a luz das estrelas, as lâminas das trevas nas mãos.
Eles estavam entre os Nephilim que tinham passado pelo Portal e os portões da Cidadela Adamant. Embora os Crepusculares estivessem ao longe, e Jace não conseguisse ver nenhum dos rostos com clareza, de alguma forma ele sentia que sorriam.
E sentia também a inquietação nos Nephilim em torno dele, os Caçadores de Sombras que tinha vindo tão confiantes pelo Portal, tão dispostos para a batalha. Estavam parados e baixaram os olhos diante dos Crepusculares, e Jace percebia a hesitação em suas bravatas. Finalmente (tarde demais), eles sentiram a estranheza, a diferença dos Crepusculares. Aqueles não eram Caçadores de Sombras que tinham perdido o rumo temporariamente. Não eram, de modo algum, Caçadores de Sombras.
— Onde ele está? — sussurrou Clary. A respiração estava esbranquiçada por causa do frio. — Onde está Sebastian?
Jace balançou a cabeça; muitos dos Caçadores de Sombras tinham os capuzes levantados, e seus rostos estavam invisíveis. Sebastian poderia ser qualquer um deles.
— E as Irmãs de Ferro? — Clary examinou a planície com o olhar.
A única brancura era a da neve. Não havia sinal das Irmãs em suas vestes, familiares por causa das muitas ilustrações do Códex.
— Elas vão ficar dentro da Cidadela — disse Jace. — Precisam proteger o que está em seu interior. O arsenal. Presumidamente, é por isso que Sebastian está aqui... pelas armas. As Irmãs terão cercado o arsenal interior com os próprios corpos. Se ele conseguir cruzar os portões, ou se os Crepusculares conseguirem, as Irmãs destruirão a Cidadela antes de deixá-los ficar com ela. — A voz dele era sombria.
— Mas e se Sebastian souber disso, se ele souber o que as Irmãs farão...? — começou Clary.
Um grito cortou a noite como uma faca. Jace se lançou para a frente antes de perceber que o grito vinha de detrás dele. Jace girou e viu um homem com uniforme puído cair com a lâmina de um Caçador de Sombras maligno enfiada em seu peito. Era o sujeito que havia gritado para Clary em Alicante, antes de chegarem ao Garde.
O Caçador de Sombras maligno girou e sorriu. Ouviu-se um grito dos Nephilim, e a mulher loura que Clary tinha visto falando no Garde com agitação deu um passo à frente.
— Jason! — gritou ela, e Clary percebeu que a mulher falava com o guerreiro Crepuscular, um homem robusto com cabelo louro igual ao dela. — Jason, por favor.
A voz dela falhava quando avançou e esticou a mão para o Crepuscular, que desembainhou outra espada do cinto e olhou para ela com expectativa.
— Por favor, não — pediu Clary. — Não... não se aproxime dele...
Mas a mulher loura estava a apenas um passo do Caçador de Sombras maligno.
— Jason — murmurou ela. — Você é meu irmão. Você é um de nós, um Nephilim. Não tem que fazer isso... Sebastian não pode te obrigar. Por favor... — Ela olhou ao redor, desesperada. — Venha conosco. Eles estão procurando uma cura; vamos curar você...
Jason riu. A lâmina brilhou, com um golpe lateral. A cabeça da Caçadora de Sombras loura caiu. O sangue começou a jorrar, escuro contra a neve branca, quando o corpo da mulher desabou no chão. Alguém começou a gritar sem parar, histericamente, e então outra pessoa deu um berro e gesticulou de modo selvagem atrás deles.
Jace ergueu os olhos e viu uma fileira de Crepusculares avançando, todos vindos de trás, da direção do Portal fechado. As lâminas brilhavam sob a luz da lua. Os Nephilim começaram a cambalear pela serra, porém não era mais uma caminhada ordenada – havia pânico entre eles; Jace podia sentir, como o gosto de sangue ao vento.
— Martelo e bigorna! — gritou ele, torcendo para que entendessem. Pegou a mão de Clary e a empurrou para trás, para longe do corpo decapitado. — É uma armadilha — gritou para ela, acima do barulho da luta. — Vá para o muro, para algum lugar onde você possa fazer um Portal! Tire a gente daqui!
Clary arregalou os olhos verdes. Jace queria agarrá-la, beijá-la, grudar nela e protegê-la, mas o combatente nele sabia que a havia trazido para esta vida. Que a encorajara. Treinara. Quando viu a compreensão nos olhos dela, ele assentiu e a soltou.
Clary se afastou da mão dele, passando por um guerreiro Crepuscular que se preparava para enfrentar um Irmão do Silêncio, o qual brandia um bastão na ensanguentada túnica de pergaminho. As botas dela escorregavam na neve enquanto ela corria para a Cidadela. A multidão a engoliu, até que um guerreiro Crepuscular desembainhou a arma e atacou Jace.
Como todos os Caçadores de Sombras Crepusculares, seus movimentos eram rápidos e cegantes, quase selvagens. Quando ele ergueu a espada, pareceu riscar a lua. E o sangue de Jace também ferveu, disparando como fogo através das veias conforme sua consciência se estreitava: não havia mais nada no mundo, apenas aquele momento, apenas aquele arma na mão. Ele pulou na direção do Caçador de Sombras maligno, a espada esticada.
***
Clary inclinou-se para pegar Heosphoros, bem onde ela havia caído na neve. A lâmina estava suja de sangue, o sangue de um Caçador de Sombras maligno que mesmo agora estava correndo para longe dela, lançando-se na batalha que se agitava na planície.
Isso tinha acontecido meia dúzia de vezes. Clary atacava, tentando chamar um dos Crepusculares para a luta, e eles largavam as armas, recuavam, se afastavam como se ela fosse um fantasma, e saíam em disparada. Nas primeiras duas vezes, Clary se perguntou se eles tinham medo de Heosphoros, confusos por causa de uma espada que tanto se assemelhava à de Sebastian. Ela suspeitava de outra coisa agora. Provavelmente, Sebastian dissera para não tocarem nela, nem a machucarem, e eles estavam obedecendo.
Isso a fazia querer gritar. Ela sabia que deveria ir atrás deles quando corressem, acabar com eles com uma lâmina nas costas ou um corte no pescoço, mas não conseguia fazê-lo. Eles ainda pareciam Nephilim, humanos o suficiente. O sangue corria vermelho sobre a neve. Ela ainda achava covardia atacar alguém que não poderia contra-atacar.
O gelo foi esmagado atrás dela, e Clary girou o corpo, a espada em prontidão. Tudo aconteceu rapidamente: a percepção de que havia duas vezes mais Crepusculares do que eles tinham imaginado, que agora os cercavam dos dois lados, o apelo de Jace para que ela criasse um Portal. Agora Clary estava abrindo caminho em meio a uma turba desesperada. Alguns Caçadores de Sombras tinham debandado, e outros plantaram-se no local onde estavam, determinados a lutar. Como uma massa, estavam sendo empurrados lentamente encosta abaixo, em direção à planície, bem onde a batalha era mais difícil e as lâminas serafim brilhantes reluziam contra os cavaleiros das trevas, uma mistura de preto, branco e vermelho.
Pela primeira vez, Clary teve motivos para agradecer a baixa estatura. Ela foi capaz de correr em meio à multidão, o olhar captando os quadros vivos desesperadores do combate. Ali, um Nephilim pouco mais velho que ela estava envolvido numa batalha desesperada contra um dos Crepusculares com o dobro do tamanho dele, o qual a empurrou pela neve escorregadia; uma espada girou e então um grito, e uma lâmina serafim foi escurecida para sempre. Um jovem de cabelos escuros, com uniforme preto, estava parado acima do corpo de um guerreiro de vermelho morto. Ele segurava uma espada ensanguentada, e lágrimas escorriam pelo rosto, livremente. Perto de um Irmão do Silêncio, uma visão inesperada porém bem-vinda em sua túnica de pergaminho, o esmagamento do crânio de um Caçador de Sombras maligno com um golpe do cajado de madeira; o Crepuscular desabou em silêncio. Um homem caiu de joelhos, agarrando as pernas de uma mulher de uniforme vermelho; ela o fitou com indiferença, depois enfiou a espada entre os ombros dele. Nenhum dos guerreiros se moveu para impedi-la.
Clary correu para o outro lado da multidão e se flagrou ao lado da Cidadela. Os muros brilhavam com uma luz intensa. Ela pensou ter visto o brilho de alguma coisa vermelha e dourada através da arcada do portão de tesouras, como uma fogueira. Tateou pela estela no cinto, pegou-a, pôs a ponta no muro – e congelou.
A poucos passos dela, um Caçador de Sombras maligno havia se afastado da batalha e seguia para os portões da Cidadela. Ele carregava uma clava e um flagelo debaixo do braço; com um olhar irônico para a batalha, passou pelo portão da Cidadela...
E as tesouras se fecharam. Não houve grito, mas o som nauseante de ossos e cartilagem sendo esmagados pôde ser ouvido mesmo em meio ao burburinho da batalha. Uma bolha de sangue se espalhou pelo portão fechado, e Clary percebeu que não era a primeira. Havia outras manchas, dispersas pelo muro, escurecendo o solo logo abaixo...
Ela se virou, sentindo uma pontada no estômago, e encostou a estela na pedra. Começou a obrigar a mente a pensar em Alicante e tentou visualizar a extensão coberta de relva diante do Garde, procurando afastar todas as distrações à sua volta.
— Baixe a estela, filha de Valentim — alertou uma voz fria e controlada.
Ela congelou. Atrás de Clary, estava Amatis, com a espada em punho, a ponta afiada diretamente voltada para ela. Havia um sorriso selvagem em seu rosto.
— Muito bem — disse ela. — Deixe a estela no chão e venha comigo. Sei de alguém que vai ficar muito feliz em te ver.
***
— Ande, Clarissa.
Amatis golpeou a lateral do corpo de Clary com a ponta da espada. Não foi forte o suficiente para rasgar a jaqueta, mas o bastante para deixar a garota desconfortável. Clary deixou a estela cair; ficou a alguns metros, na neve suja, reluzindo com um brilho hipnótico.
— Pare de enrolar.
— Você não pode me machucar — disse Clary. — Sebastian deu ordens.
— Ordens para não matar você — concordou Amatis. — Ele nunca disse nada sobre te machucar. Ficarei feliz em te entregar a ele com todos os dedos faltando, garota. Não pense que não.
Clary encarou a outra com expressão severa antes de dar meia-volta e deixar que Amatis a conduzisse em direção à batalha. O olhar dela se movia entre os Crepusculares, procurando por uma cabeça loura familiar no mar de escarlate. Precisava saber quanto tempo tinha antes de Amatis jogá-la aos pés de Sebastian e dar fim à chance de luta ou fuga. Amatis pegara Heosphoros, claro, e a lâmina Morgenstern agora pendia do quadril da mulher mais velha, as estrelas ao longo da lâmina piscando sob a luz fraca.
— Aposto que nem sabe onde ele está — provocou Clary.
Amatis a cutucou de novo, e Clary se jogou para a frente, quase tropeçando sobre o cadáver de um Caçador de Sombras maligno. O solo era uma massa de neve, terra e sangue revirados.
— Eu sou a primeira-tenente; sempre sei onde ele está. E é por isso que ele confia em mim para levar você até ele.
— Ele não confia em você. Não se importa com você nem com nada. Veja.
Elas chegaram ao cume de uma pequena serra; Clary diminuiu até parar e fez um gesto amplo com o braço, apontando o campo de batalha.
— Veja quantos de vocês estão caindo. Sebastian quer apenas bucha de canhão. Só quer usar vocês.
— É isso que você vê? Eu vejo Nephilim mortos.
Clary conseguia ver Amatis de soslaio. O grisalho cabelo castanho flutuava no ar frio, e os olhos eram severos.
— Você acha que a Clave não foi dominada? Dê uma boa analisada. Olhe ao redor.
Ela cutucou Clary com um dedo, que olhou, contra sua vontade. As duas metades do exército de Sebastian tinham se unido e estavam cercando os Nephilim no meio. Muitos dos Nephilim estavam lutando com habilidade e malícia. Era adorável vê-los em batalha, em seu estilo muito peculiar; a luz das lâminas serafim traçava desenhos no céu escuro. Não que isso mudasse o fato de serem amaldiçoados.
— Eles fizeram o que sempre fazem quando há um ataque do lado de fora de Idris e um Conclave não é iminente. Enviam guerreiros pelo Portal, qualquer um que chegue ao Garde primeiro. Alguns desses guerreiros jamais combateram numa batalha de verdade. Outros lutaram em batalhas demais. Nenhum deles está preparado para matar um inimigo que carrega o rosto dos filhos, namorados, amigos, parabatai. — Ela cuspiu a última palavra. — A Clave não compreende nosso Sebastian nem as forças dele, e todos serão mortos antes disso.
— De onde eles vieram? — questionou Clary. — Os Crepusculares. A Clave disse que eram apenas vinte, e não havia meio de Sebastian esconder quantos havia. Como...
Amatis jogou a cabeça para trás e deu uma risada.
— Como se eu fosse contar. Sebastian tem aliados em mais lugares do que você imagina, pequena.
— Amatis — Clary tentava manter a voz firme. — Você é uma de nós. Nephilim. Você é a irmã de Luke.
— Ele é um membro do Submundo, e não meu irmão. Devia ter se suicidado quando Valentim ordenou.
— Você não está falando sério. Ficou feliz ao vê-lo quando fomos à sua casa. Eu sei que ficou.
Desta vez o golpe da ponta da lâmina entre os ombros foi mais do que desconfortável: doeu.
— Na época, eu era prisioneira — disse Amatis. — Eu pensava que precisava da aprovação da Clave e do Conselho. Os Nephilim tiraram tudo de mim — ela se virou e olhou a Cidadela com expressão severa. — As Irmãs de Ferro tiraram minha mãe. Depois uma delas presidiu meu divórcio. Dividiram as Marcas de casamento em duas, e eu gritei com a dor. Elas não têm coração, apenas adamas, assim como os Irmãos do Silêncio. Você pensa que eles são gentis, que os Nephilim são gentis, porque são bons, mas bondade não é gentileza, e não há nada mais cruel que a virtude.
— Mas nós podemos escolher — falou Clary, mas como ela poderia explicar a alguém que não compreendia que as escolhas tinham sido retiradas, que havia uma coisa chamada livre-arbítrio?
— Ora, diabos, fique quieta... — interrompeu Amatis, retesando-se.
Clary seguiu o olhar dela. Por um instante, não conseguiu ver o que a outra estava encarando. Via apenas o caos da luta, sangue na neve, o brilho das estrelas nas lâminas e o ardor intenso da Cidadela. Depois percebeu que a batalha parecia ter se desenvolvido a um tipo estranho de padrão; alguma coisa estava abrindo caminho em meio à multidão como um navio abrindo as águas e deixando o caos em seu rastro. Um Caçador de Sombras magro, vestido de preto, com cabelo brilhante, se movimentava tão rápido que era como observar o fogo pular de cume em cume numa floresta, incendiando tudo.
Só que nesse caso a floresta era o exército de Sebastian, e os Crepusculares caíam um por um. Caíam com tanta rapidez que mal tinham tempo para pegar as armas, muito menos para brandi-las. E enquanto caíam, outros começavam a recuar, confusos e inseguros, de modo que Clary via o espaço livre no meio da batalha, bem como quem permanecia em seu centro.
Apesar de tudo, ela sorriu.
— Jace.
Amatis arfou, surpresa – foi um momento de distração, mas era tudo de que Clary precisava para se jogar e enganchar a perna nos tornozelos da mulher, do mesmo modo que Jace ensinara, e então ela puxou os pés de Amatis, que caiu. Em seguida a espada se afastou da mão dela e deslizou pelo solo congelado. Amatis estava se inclinando para se levantar quando Clary deu um encontrão nela – não foi gracioso nem eficiente, mas a mulher caiu de costas na neve. Amatis reagiu, agarrando Clary e puxando sua cabeça para trás, no entanto a mão da menina alcançou o cinto da mulher mais velha e liberou Heosphoros, para depois encostar a ponta afiada no pescoço de Amatis.
A mulher ficou imóvel.
— Muito bem — disse Clary. — Nem pense em se mexer.
***
— Solte-me! — gritou Isabelle para o pai! — Solte-me!
Quando as torres demoníacas ficaram vermelhas e douradas com o aviso para ir para o Garde, ela e Alec saíram aos tropeços para pegar os uniformes e as armas e subir pela colina. O coração de Isabelle batia forte, não por causa do esforço, mas da agitação. Alec estava sombrio e prático como sempre, porém o flagelo de Isabelle cantava para ela. Talvez fosse isso: uma batalha de verdade; talvez fosse o momento de voltar a enfrentar Sebastian em campo, e desta vez ela o mataria.
Por seu irmão. Por Max.
Alec e Isabelle não estavam preparados para a multidão no pátio do Garde, ou para a velocidade com que os Nephilim estavam sendo empurrados pelo Portal. Isabelle perdera o irmão na multidão, mas avançara até o Portal; tinha visto Jace e Clary ali, prestes a entrar, e redobrara a velocidade, até subitamente duas mãos saírem da multidão e agarrarem seus braços.
Era o pai dela. Isabelle começou a espernear e gritou por Alec, mas Jace e Clary já tinham ido embora, rumo ao redemoinho do Portal. Rosnando, Isabelle lutou, porém seu pai era alto e forte, e tinha muitos anos a mais de treinamento.
Ele a soltou quando o Portal deu um último rodopio e se fechou com força, desaparecendo na parede branca do arsenal. Os Nephilim restantes no pátio ficaram quietos, aguardando instruções. Jia Penhallow anunciou que quantidade suficiente deles tinha passado pela Cidadela, e que os outros deveriam aguardar dentro do Garde, caso reforços se fizessem necessários; não havia necessidade de ficar no pátio e congelar. Ela compreendia o quanto todos desejavam lutar, mas muitos guerreiros já haviam sido despachados para a Cidadela, e Alicante ainda precisava de uma força para guardá-la.
— Viu? — disse Robert Lightwood, gesticulando com exasperação para a filha quando ela girou para encará-lo. Ficou satisfeita ao ver que havia arranhões sangrando nos pulsos dele, bem onde ela enfiara as unhas. — Você é necessária aqui, Isabelle...
— Cale a boca — sibilou ela para o pai, entre dentes. — Cale a boca, mentiroso filho da mãe.
O espanto deixou Robert sem expressão. Isabelle sabia por meio de Simon e Clary que alguns berros com os pais eram esperados na cultura mundana, no entanto os Caçadores de Sombras acreditavam no respeito pelos mais velhos, bem como no controle das emoções.
No entanto, Isabelle não tinha vontade de controlar as emoções. Não agora.
— Isabelle... — Era Alec, deslizando para ficar ao lado dela.
A multidão ao redor diminuía, e ela estava remotamente consciente de que muitos dos Nephilim já haviam entrado no Garde. Aqueles que sobraram olhavam para outra direção de modo esquisito. As discussões de famílias alheias não eram da conta dos Caçadores de Sombras.
— Isabelle, vamos voltar para casa.
Alec esticou a mão; ela a afastou com um movimento irritado. Isabelle adorava o irmão, mas nunca havia sentido tanta vontade de socá-lo como agora.
— Não — retrucou ela. — Jace e Clary atravessaram; nós devíamos ir com eles.
Robert Lightwood parecia exausto.
— Não era para terem ido — disse ele. — Eles fizeram isso contra as ordens estritas. O que não significa que você deveria acompanhar.
— Eles sabiam o que estavam fazendo — interrompeu Isabelle. — Você precisa de mais Caçadores de Sombras para enfrentar Sebastian, não de menos.
— Isabelle, não tenho tempo para isso — falou Robert, e fitou Alec, exasperado, como se esperando que o filho ficasse ao lado dele. — Há apenas vinte Crepusculares com Sebastian. Mandamos cinquenta guerreiros pelo Portal.
— Vinte guerreiros deles são como uma centena de Caçadores de Sombras — afirmou Alec em sua voz baixa. — Nosso lado poderia ser massacrado.
— Se alguma coisa acontecer a Jace e Clary, será culpa sua — disse Isabelle. — Assim como aconteceu com Max.
Robert Lightwood recuou.
— Isabelle. — A voz da mãe rompeu o silêncio terrível e súbito.
Isabelle girou a cabeça e viu que Maryse estava atrás deles; a exemplo de Alec, ela parecia espantada. Uma pequena parte longínqua de Isabelle sentia-se culpada e nauseada, mas a parte dela que parecia ter assumido o controle, que estava borbulhando dentro dela como um vulcão, sentia somente um triunfo amargo. Estava cansada de fingir que tudo ia bem.
— Alec está certo — emendou Maryse. — Vamos voltar para casa...
— Não — disse Isabelle. — Você não ouviu a Consulesa? Somos necessários aqui, no Garde. Eles podem querer reforços.
— Eles vão querer adultos, não crianças — afirmou Maryse. — Se você não vai voltar, então peça desculpas ao seu pai. A morte de... O que aconteceu a Max não foi culpa de ninguém; foi culpa de Valentim.
— Talvez se vocês já não tivessem ficado do lado de Valentim uma vez, não haveria uma Guerra Mortal — sibilou Isabelle para a mãe. Depois, ela se virou para o pai: — Estou cansada de fingir que não sei o que sei. Sei que você traiu mamãe.
Isabelle não conseguiu deter as palavras agora; elas continuaram saindo como uma torrente. Ela viu Maryse empalidecer, Alec abrir a boca para protestar. Robert parecia ter levado um golpe.
— Antes de Max nascer. Eu sei. Ela me contou. Com uma mulher que morreu na Guerra Mortal. E você ia embora, ia abandonar todos nós, e só ficou porque Max nasceu, e aposto que você está feliz por ele estar morto, não é? Porque agora não precisa ficar.
— Isabelle... — começou Alec, horrorizado.
Robert virou-se para Maryse.
— Você contou a ela? Pelo Anjo, Maryse, quando?
— O senhor está dizendo então que é verdade? — A voz de Alec tremia, enojado.
Robert se voltou para ele.
— Alexander, por favor...
Mas Alec lhe dera as costas. O pátio estava quase vazio agora. Isabelle podia ver Jia de pé ao longe, perto da entrada do arsenal, esperando que o último deles entrasse. Viu Alec ir até Jia, ouviu o som da discussão com ela.
Os pais de Isabelle a fitavam como se seus mundos estivessem desmoronando. Ela nunca havia se imaginado capaz de destruir o mundo dos pais. Esperava que o pai fosse berrar com ela, e não ficar ali, com sua maturidade de Inquisidor, parecendo arrasado. Finalmente, ele pigarreou.
— Isabelle — disse, com voz rouca. — Não importa o que você pense, tem que acreditar... você não pode realmente acreditar que quando perdemos Max, que eu...
— Não fale comigo — retrucou Isabelle, afastando-se aos trancos, o coração batendo de modo irregular no peito. — Simplesmente... não fale comigo.
Ela se virou e correu.
***
Jace disparou no ar, colidiu contra um Caçador de Sombras maligno e conduziu o corpo do Crepuscular até o solo, dando-lhe um golpe cruel, semelhante a uma tesoura. De alguma forma ele havia obtido uma segunda lâmina; não tinha certeza de onde. Tudo era sangue e fogo em sua mente.
Já havia lutado antes, muitas vezes. Conhecia a emoção da batalha conforme esta se desenrolava, o mundo ao redor dele baixando para um sussurro, todos os movimentos precisos e exatos. Uma parte de sua mente era capaz de afastar o sangue, a dor e o mau cheiro daquilo para detrás de um muro de gelo cristalino.
Mas aquilo não era gelo; era fogo. O calor que percorria suas veias o conduzia, acelerava seus movimentos de tal modo que era como se estivesse voando. Ele chutou o corpo decapitado do Caçador de Sombras maligno para o caminho de outro, um vulto vestido de vermelho que voava na direção dele. O Crepuscular tropeçou, e Jace o cortou rigorosamente ao meio. O sangue surgiu na neve. Jace já estava empapado nele: sentia o uniforme pesado e encharcado contra o corpo, e sentia o cheiro ferroso e salgado, como se o sangue invadisse o ar que ele respirava.
Ele praticamente pulou o corpo do Crepuscular morto e caminhou até outro deles, um homem de cabelo castanho com um rasgo na manga do uniforme vermelho. Jace ergueu a espada na mão direita, e o homem se encolheu, surpreendendo-o. Os Caçadores de Sombras malignos não pareciam sentir muito medo e morriam sem gritar. Este, porém, tinha o rosto contorcido pelo medo.
— Na verdade, Andrew, não há necessidade de ficar assim. Não vou fazer nada com você — afirmou uma voz por trás de Jace, aguda, límpida e familiar. E apenas um pouco exasperada. — A menos que você não saia do caminho.
O Caçador de Sombras de cabelo castanho disparou para longe de Jace, que deu meia-volta, já sabendo o que veria.
Sebastian estava parado atrás dele. Aparentemente tinha vindo de lugar nenhum, embora isso não surpreendesse Jace. Ele sabia que Sebastian ainda possuía o anel de Valentim, o qual permitia que ele aparecesse e desaparecesse quando quisesse. Vestia o uniforme vermelho, desenhado com símbolos dourados – símbolos de proteção, cura e boa sorte. Símbolos do Livro Cinza, do tipo que os seguidores não podiam usar. O vermelho fazia o cabelo claro parecer mais claro ainda, o sorriso era uma abertura branca no rosto enquanto seu olhar examinava Jace da cabeça às botas.
— Meu Jace — disse ele. — Sentiu minha falta?
Em um lampejo, as espadas de Jace se ergueram e as pontas pairaram bem sobre o coração de Sebastian. Jace ouviu um murmúrio da multidão à sua volta. Parecia que os Caçadores de Sombras malignos e seus equivalentes Nephilim tinham parado a luta para observar o que estava acontecendo.
— Você não pode pensar de verdade que senti sua falta.
Sebastian ergueu o olhar lentamente, a expressão divertida encontrando a de Jace. Os olhos eram negros como os do pai. Na profundidade escura deles Jace enxergava a si mesmo, via o apartamento que tinha dividido com Sebastian, as refeições que fizeram juntos, as piadas que contaram, os combates que compartilharam. Ele tinha se incorporado a Sebastian, desistido completamente do livre-arbítrio, e isso fora agradável e fácil, e, no fundo das profundezas mais obscuras de seu coração pérfido, Jace sabia que aquela parte dele desejava tudo aquilo novamente.
Isso fazia com que odiasse Sebastian ainda mais.
— Bem, não consigo imaginar outro motivo para você estar aqui. Sabe que não posso ser morto com uma espada — relembrou Sebastian. — O pirralho do Instituto Los Angeles deve ter lhe contado isso, pelo menos.
— Eu poderia fatiar você — afirmou Jace. — Ver se você consegue sobreviver em pedacinhos. Ou eu corto sua cabeça. Isso talvez não te matasse, mas seria engraçado observar você tentando encontrá-la.
Sebastian ainda sorria.
— Eu não tentaria se fosse você — acrescentou ele.
Jace soltou o ar, o hálito parecia uma pluma branca. Não deixe que ele te controle, gritava sua mente, mas a maldição era que ele conhecia Sebastian bem o suficiente para não acreditar que ele estivesse blefando. Sebastian odiava blefar. Ele gostava de ter a vantagem e de ter consciência disso.
— Por que não? — rosnou Jace através dos dentes trincados.
— Minha irmã — disse Sebastian. — Você mandou Clary criar um Portal? Não foi muito inteligente se separarem. Ela está sendo mantida a alguma distância daqui por um de meus tenentes. Se você me machucar, cortam a garganta dela.
Houve um murmúrio dos Nephilim atrás dele, mas Jace não conseguiu ouvir. O nome de Clary pulsava no sangue de suas veias, e o local onde o símbolo de Lilith outrora o conectara a Sebastian ardia. Diziam que era melhor você conhecer seu inimigo, mas em que ajudava saber que a fraqueza de seu inimigo era a sua também?
A multidão que murmurava ergueu-se a um rugido quando Jace começou a baixar as espadas. Sebastian se movimentou com tanta rapidez que Jace viu apenas um borrão quando o outro garoto girou e chutou seu pulso. A espada se soltou do aperto dormente da mão direita, e ele se jogou para trás. No entanto Sebastian foi mais rápido, sacou a espada Morgenstern e acertou um golpe que Jace conseguiu evitar apenas girando o corpo para o lado. A ponta da espada fez um corte superficial em suas costelas.
Agora um pouco do sangue em seu uniforme era dele mesmo.
Ele se abaixou quando Sebastian o atacou novamente, e a espada sibilou por sua cabeça. Ele ouviu o xingamento de Sebastian e se lançou girando a própria espada. As duas espadas colidiram com o som de metal estridente, e Sebastian deu um sorriso.
— Você não pode vencer — provocou ele. — Eu sou melhor que você, sempre fui. Eu poderia ser o melhor.
— Modesto também — disse Jace, e as espadas se separaram com um rangido.
Ele recuou, apenas o suficiente para ter alcance.
— E não pode me machucar, não de verdade, por causa de Clary — emendou Sebastian, insistente. — Da mesma forma que ela não poderia me machucar por sua causa. Sempre a mesma dança. Nenhum dos dois está disposto a fazer o sacrifício. — Ele se aproximou de Jace com um giro lateral; Jace se defendeu, embora a força do golpe de Sebastian tivesse enviado um choque por todo seu braço. — Você pensaria, com toda a sua obsessão pela bondade, que um de vocês estaria disposto a abrir mão do outro por uma causa maior. Mas não. Em essência, o amor é egoísta, e vocês dois também são.
— Você não conhece nenhum de nós — arfou Jace; estava ofegante agora, e sabia que lutava defensivamente, evitando Sebastian mais do que atacando.
O símbolo de Força no braço ardia, incendiando o restante de seu poder. Isso era ruim.
— Conheço minha irmã — afirmou Sebastian. — E agora não, mas em breve eu a conhecerei de todos os modos que se é possível conhecer alguém.
Ele sorriu mais uma vez, selvagem. Era o mesmo olhar de muito tempo atrás, numa noite de verão em frente ao Garde, quando ele dissera: Ou, talvez, só esteja irritado porque eu beijei sua irmã. Porque ela me quis.
A náusea invadiu Jace, náusea e raiva, e ele se lançou contra Sebastian, esquecendo-se, por um minuto, das regras da luta, esquecendo-se de manter a pressão do aperto no punho distribuída igualmente, esquecendo-se do balanço, da precisão, de tudo, menos do ódio, e o sorriso de Sebastian se abriu quando ele escapou do ataque e chutou a perna de Jace com exatidão.
O garoto caiu com força, e as costas colidiram com o solo congelado, deixando-o sem fôlego. Jace ouviu o sibilo da Morgenstern antes de vê-la, e rolou para o lado quando a espada acertou o ponto onde ele estivera um segundo antes. As estrelas giravam enlouquecidas acima de sua cabeça, pretas e prateadas, e então Sebastian ficou de pé acima dele, mais preto e prata, e a espada baixou outra vez; depois ele rolou para o lado, mas não foi veloz o suficiente, e desta vez sentiu o golpe.
A agonia foi instantânea, nítida e clara, quando a lâmina bateu em seu ombro. Foi como ser eletrocutado – Jace sentiu a dor através do corpo inteiro, seus músculos se contraíram, as costas arquearam. O calor chamuscava através dele, como se os ossos estivessem sendo fundidos ao carvão. As chamas se reuniram e percorreram suas veias, subindo pela espinha...
Ele viu Sebastian arregalar os olhos, e se viu refletido na escuridão deles, esparramado no solo preto e vermelho, e seu ombro estava incendiando. Chamas se erguiam da ferida feito sangue. Faiscavam para cima, e uma única centelha percorreu a espada Morgenstern e ardeu para dentro do cabo.
Sebastian xingou e jogou a mão para trás, como se tivesse sido golpeado. A espada retiniu no chão; ele ergueu a mão e a encarou. E mesmo através da confusão de dor, Jace notara uma marca preta, uma queimadura na palma da mão do rival, no formato do cabo de uma espada.
Jace esforçou-se para se apoiar nos cotovelos, embora o movimento enviasse uma onda de dor tão severa pelo ombro que ele pensou que fosse desmaiar. Sua visão escureceu. Quando ele voltou a enxergar, Sebastian estava de pé acima dele, com um rosnado contorcendo seus traços, a espada Morgenstern de volta à mão – e os dois estavam cercados por um círculo de vultos. Mulheres vestidas de branco como oráculos gregos, os olhos jorrando chamas alaranjadas. Seus rostos eram tatuados com máscaras, como vinhas delicadas e contorcidas. Elas eram belas e terríveis. Eram as Irmãs de Ferro.
Cada uma segurava uma espada de adamas, com a ponta virada para baixo. Estavam em silêncio, e a boca formava uma linha rígida. Entre duas delas, estava o Irmão do Silêncio que Jace tinha visto, lutando na planície, o cajado de madeira na mão.
— Em seiscentos anos, não abandonamos nossa Cidadela — disse uma das Irmãs, uma mulher alta, com cabelo preto que caía em tranças até a cintura. Os olhos faiscavam, fornalhas gêmeas na escuridão. — Mas o fogo celestial nos chamou, e nós viemos. Afaste-se de Jace Lightwood, filho de Valentim. Se machucá-lo de novo, nós vamos te destruir.
— Nem Jace Lightwood nem o fogo em suas veias vão te salvar, Cleophas — retrucou Sebastian, ainda empunhando a espada. Sua voz era firme. — O Nephilim não tem salvação.
— Você não sabia temer o fogo celestial. Agora sabe — disse Cleophas. — Hora de se retirar, garoto.
A ponta da espada Morgenstern baixou na direção de Jace – baixou – e, com um grito, Sebastian atacou. A espada passou sibilando por Jace e se enterrou no solo.
A terra pareceu uivar, como se mortalmente ferida. Um tremor fendeu o solo, espalhando-se a partir da ponta da espada Morgenstern. A visão de Jace ia e voltava, a consciência escapava dele como o fogo que escapava de sua ferida, porém, mesmo enquanto as trevas o dominavam, ele via o triunfo no rosto de Sebastian, e o ouviu começar a rir quando, com uma contorção terrível e súbita, a terra se rompeu. Uma rachadura negra imensa se abriu ao lado deles.
Sebastian pulou para dentro dela e desapareceu.
***
— Não é tão simples, Alec — disse Jia, com voz cansada. — A magia do Portal é complicada, e não temos notícias das Irmãs de Ferro para indicar que precisam de nosso auxílio. Além disso, depois do que aconteceu hoje cedo em Londres, precisamos ficar aqui, alertas...
— Eu estou dizendo, eu sei — afirmou Alec.
Ele estava tremendo, apesar do uniforme. Estava frio na Colina do Garde, mas não era somente por isso. Em parte, era o choque pelo que Isabelle dissera aos pais, pela expressão do pai. Mas grande parte daquilo era por causa da apreensão. O pressentimento frio pingava por sua espinha como gelo.
— Você não compreende os Crepusculares; você não entende como eles são...
Ele se curvou. Uma coisa quente o havia perfurado, passando do ombro até as vísceras, como uma lança de fogo. Ele atingiu o solo, de joelhos, gemendo.
— Alec... Alec! — As mãos da Consulesa estavam nos ombros dele.
Alec tinha consciência remota dos pais correndo até ele. Sua visão nadou em agonia. Dor, sobreposta e duplicada porque não era dor de modo algum; as centelhas sob as costelas não queimavam em seu corpo, mas sim no de outra pessoa.
— Jace — ele trincou os dentes. — Alguma coisa está acontecendo... o fogo. Você precisa abrir um Portal, rápido.
***
Amatis, deitada de costas no chão, soltou uma risada.
— Você não vai me matar. Não tem coragem.
Respirando com dificuldade, Clary cutucou o queixo de Amatis com a ponta da espada.
— Você não sabe do que sou capaz.
— Olhe para mim — os olhos de Amatis reluziram. — Olhe para mim e me diga o que vê.
Clary olhou, mas já sabia. Amatis não se parecia exatamente com o irmão, mas tinha o mesmo queixo, os mesmos olhos azuis confiáveis, o mesmo cabelo castanho com toques de cinza.
— Clemência — disse Amatis, e ergueu as mãos como se quisesse evitar o golpe de Clary. — Você a daria para mim.
Clemência. Clary ficou imóvel, mesmo quando Amatis ergueu o olhar para ela, evidentemente se divertindo. Bondade não é gentileza e nada é mais cruel que a virtude. Ela sabia que deveria cortar a garganta da outra, queria até, mas como contar a Luke que tinha matado a irmã dele? Que havia matado a irmã dele enquanto ela jazia no solo, implorando por clemência?
Clary sentiu a própria mão tremer, como se estivesse desligada do corpo. Ao redor, os sons da batalha tinha diminuído: ela ouvia gritos e murmúrios, mas não ousava virar a cabeça e ver o que acontecia. Estava concentrada em Amatis, no aperto no cabo de Heosphoros, no filete de sangue que descia abaixo do queixo de Amatis, onde a ponta da espada de Clary perfurara a pele...
O solo se abriu. As botas de Clary escorregaram na neve, e ela se lançou para o lado; rolou, mal conseguindo evitar se cortar com a própria lâmina. A queda fez com que perdesse o fôlego, mas ela tropeçou para trás e agarrou Heosphoros enquanto o solo sacudia em volta. Terremoto, pensou furiosamente. Clary pegou uma pedra com a mão livre enquanto Amatis ficava de joelhos, olhando ao redor com um sorriso de predador.
Ouviram-se gritos por toda parte e um estranho som de algo se partindo. Quando Clary olhou, apavorada, o solo havia se dividido em dois, uma fenda imensa se abrindo. Pedras, terra e pedaços irregulares de gelo caíam pela abertura enquanto Clary saía dela com dificuldade. A fenda aumentava rapidamente, a rachadura irregular se tornando uma fissura ampla com laterais íngremes que desapareciam em meio à sombra.
O solo começava a parar de sacudir. Clary ouvira a gargalhada de Amatis. Ela ergueu o olhar e viu a mulher mais velha se levantar e sorrir com sarcasmo.
— Dê lembranças ao meu irmão — pediu Amatis, e pulou para dentro da fissura.
Clary se levantou, com o coração acelerado, e correu até a beira da fissura. Olhou por cima dela. A garota conseguia ver apenas alguns metros de terreno íngreme e então trevas, e sombras, sombras que se movimentavam. Ela se virou e viu que, em toda parte do campo de batalha, os Crepusculares corriam em direção à fissura e pulavam dentro dela. Eles a recordavam dos mergulhadores olímpicos, seguros e determinados, confiantes de sua aterrissagem.
Os Nephilim fugiam da fissura aos trancos enquanto os inimigos vestidos com roupas vermelhas disparavam por eles, lançando-se dentro da cova. O olhar de Clary rastreou entre eles, ansioso, procurando por uma figura vestida de preto em particular, com a cabeça com cabelo claro.
Ela parou. Ali, exatamente na fissura, a alguma distância dela, estava um grupo de mulheres usando branco. As Irmãs de Ferro. Através das brechas entre elas, notou um vulto no chão, e outro, com a túnica de pergaminho, encolhida...
Clary começou a correr. Sabia que não devia com a espada fora da bainha, mas não se importou. Pisava na neve com força, saindo do caminho de Crepusculares apressados, passando no meio dos Nephilim, e a neve estava ensanguentada, encharcada e escorregadia, mas mesmo assim ela continuava correndo, até que irrompeu no círculo das Irmãs do Ferro e alcançou Jace.
Ele estava no chão, e o coração de Clary, que parecia prestes a explodir dentro do peito, diminuiu lentamente os batimentos quando viu que os olhos dele estavam abertos. No entanto, Jace parecia pálido e respirava com dificuldade suficiente para que ela pudesse ouvir. O Irmão do Silêncio estava ajoelhado ao lado dele, e os dedos pálidos e compridos abriam o uniforme no ombro de Jace.
— O que está acontecendo? — perguntou Clary, olhando ao redor com expressão feroz.
Dezenas de Irmãs de Ferro retribuíam aquele olhar, impassíveis e silenciosas. Havia outras Irmãs de Ferro também, do outro lado da fissura, observando, imóveis, enquanto os Crepusculares se lançavam dentro dela. Era assustador.
— O que aconteceu?
— Sebastian — falou Jace entredentes, e ela se deixou cair ao lado dele, de frente para o Irmão do Silêncio, enquanto ele tirava o uniforme e ela via o corte no ombro. — Foi Sebastian quem aconteceu.
A ferida era fogo jorrando.
Não havia sangue, mas fogo, dourado como a linfa dos anjos. A respiração de Clary estava entrecortada, então ela ergueu o olhar e viu o Irmão Zacarias olhando para ela. Captou um único lampejo do rosto dele, todo ângulos, palidez e cicatrizes, antes de ele tirar uma estela das vestes. Em vez de passá-la na pele de Jace, conforme Clary teria imaginado, ele a passou na própria pele e entalhou um símbolo em sua palma. Ele fez isso rapidamente, entretanto Clary conseguia sentir o poder que emanava do símbolo. Ele a fazia estremecer.
Fique imóvel. Isto vai acabar com a dor, falou em seu sussurro baixo multidirecional, e colocou a mão sobre o corte ardente no ombro de Jace.
Jace gritou alto. O corpo dele se elevara um pouco do chão, e o fogo que sangrava da ferida como lágrimas lentas ergueu-se como se tivesse recebido gasolina, chamuscando o braço do Irmão Zacarias. Um fogo incontrolável consumiu a manga de pergaminho das vestes de Zacarias; o Irmão do Silêncio teve um sobressalto, mas não antes de Clary perceber que as brasas cresciam, consumindo-o. Nas profundezas das chamas, conforme ondulavam e estalavam, Clary viu uma forma – a forma de um símbolo que pareciam duas asas unidas por uma única barra. Um símbolo que ela já tinha visto, de pé num telhado em Manhattan: o primeiro símbolo que ela já visualizara, que não era do Livro Cinza. Ele tremeluziu e desapareceu com tanta rapidez que ela supôs ter imaginado aquilo. Parecia ser um símbolo que aparecia para ela em momentos de estresse e pânico, mas o que ele significava? Será que significava um modo de ajudar Jace – ou o Irmão Zacarias?
O Irmão do Silêncio se reclinou para trás na neve, em silêncio, desabando como uma árvore queimada virando cinzas.
Um murmúrio irrompeu das fileiras de Irmãs do Ferro. O que quer que estivesse acontecendo ao Irmão Zacarias, não deveria acontecer. Alguma coisa dera terrivelmente errado.
As Irmãs do Ferro avançaram até o irmão caído. Elas bloquearam a visão que Zacarias tinha de Clary quando ela se dirigiu a Jace. Ele estava encolhido e convulsionando no chão, os olhos fechados e a cabeça inclinada para trás. Ela olhou em volta, desesperada. Através das brechas entre as Irmãs do Ferro, Clary via Irmão Zacarias, remexendo-se no chão: seu corpo estava brilhando e crepitando com fogo. Um grito irrompeu de sua garganta: um barulho humano, o grito de um homem com dor, não o sussurro mental silencioso dos Irmãos. A Irmã Cleophas o pegou – túnica de pergaminho e fogo, e Clary ouviu a voz da Irmã crescendo: “Zacarias, Zacarias...”
Mas ele não era o único ferido. Alguns dos Nephilim estavam reunidos em volta de Jace, mas muitos outros estavam com os colegas feridos, administrando símbolos de cura e procurando ataduras nos uniformes.
— Clary — murmurou Jace. Ele tentava se apoiar nos cotovelos, com esforço, mas eles não o sustentavam. — Irmão Zacarias... o que aconteceu? O que eu fiz para ele...?
— Nada. Jace. Deite quietinho — Clary guardou a espada na bainha e tateou em busca da estela no cinturão de armas, com dedos dormentes. Ela esticou a mão para encostar a ponta na pele dele, mas o garoto se contorceu e se afastou dela, convulsionando.
— Não — arfou. Os olhos dele eram imensos e de uma cor dourada ardente. — Não me toque. Vou te machucar também.
— Você não vai.
Desesperada, ela se jogou em cima dele, o peso de seu corpo fazendo-o afundar na neve. Ela tocava o ombro de Jace enquanto ele se contorcia debaixo dela, as roupas e a pele do garoto escorregadias com o sangue e quentes com o fogo. Os joelhos deslizaram para as laterais dos quadris quando ela jogou todo o peso contra o peito dele, prendendo-o ao chão.
— Jace — disse. — Jace, por favor. — Mas os olhos dele não conseguiam focalizá-la e as mãos se contorciam contra o solo. — Jace — repetiu Clary, e pôs a estela na pele dele, pouco acima do ferimento.
E ela estava novamente no barco com o pai, com Valentim, e jogava tudo que tinha, todos os fragmentos de força, cada átomo derradeiro de vontade e energia para criar um símbolo que destruísse o mundo com fogo, que revertesse a morte, que fizesse os oceanos voarem para os céus. Porém desta vez era o mais simples dos símbolos, o símbolo que todo Caçador de Sombras aprendia no primeiro ano de treinamento.
Cure-me.
A iratze tomou forma no ombro de Jace, a cor produzia espirais da ponta tão preta que a luz que vinha das estrelas e da Cidadela parecia desaparecer dentro dela. Clary conseguia sentir a própria energia desaparecendo enquanto desenhava. Ela nunca sentira tanto a estela como uma extensão das próprias veias, como se estivesse escrevendo no próprio sangue, como se toda a energia nela estivesse sendo drenada através da mão e dos dedos, e a visão escurecendo enquanto ela lutava para manter a estela firme, para terminar o símbolo. A última coisa que viu foi o grande redemoinho ardente de um Portal, o qual se abriu para a visão impossível da Praça do Anjo, antes de deslizar para o nada.
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