Capítulo 7 - Onde os anjos temem pisar
Fora de um sonho de sangue e luz do dia que Simon acordou subitamente, ao som alguém chamando seu nome.
— Simon — voz era um sussurro sibilante — Simon, acorde.
Simon ficou de pé – algumas vezes ele podia se mover tão rápido que se surpreendia – e girou em torno da escuridão da cela.
— Samuel? — ele sussurrou, olhando para as sombras. — Samuel, é você?
— Vire-se, Simon — agora a voz, ligeiramente familiar, segurou uma nota de irritabilidade — e venha para a janela.
Simon sabia imediatamente de quem era a voz e olhou através da janela de barras para Jace ajoelhado na grama lá fora, uma pedra enfeitiçada na mão. Ele estava olhando para Simon com uma careta tensa.
— O que, você pensou que estava tendo um pesadelo?
— Talvez eu ainda esteja.
Havia um zumbido nos ouvidos de Simon – se ele tivesse um batimento cardíaco, poderia ter pensado que era o sangue correndo através de suas veias, mas isso era algo mais, algo menos corporal, uma sensação. A pedra enfeitiçada lançou um estranho padrão de luz e sombras no rosto pálido de Jace.
— Então é aqui que te colocaram. Não achei que eles usassem mais estas celas — ele olhou para os lados — primeiro eu fui para a janela errada. Dei a seu amigo na cela ao lado algo como um susto. Companheiro atraente, com barba e os trapos. O tipo que me lembra moradores de rua.
E Simon percebeu qual o som que zunia em seus ouvidos. Raiva. Em algum canto distante de sua mente, ele estava consciente que seus lábios estavam puxados para trás, as pontas de suas presas esfolando seu lábio inferior.
— Estou feliz que você ache tudo isso engraçado.
— Você não está feliz em me ver então? — Jace disse. — Eu tenho que dizer, estou surpreso. Sempre digo que minha presença abrilhanta qualquer lugar. Eu poderia pensar que brilha duplamente nas celas úmidas subterrâneas.
— Você sabia o que ia acontecer, não sabia? “Eles vão enviar você direto para Nova York,” você disse, sem problema. Mas nunca tiveram nenhuma intenção de fazer isso.
— Eu não sabia — Jace encontrou os olhos dele através das barras, e seu olhar era claro e firme — sei que você não acredita em mim, mas pensei que eu estava te dizendo a verdade.
— Ou você está mentindo ou é estúpido...
— Então eu sou estúpido.
— ... ou é ambos — Simon terminou. — Estou inclinado a pensar em ambos.
— Eu não tenho razão para mentir para você. Não agora — o olhar de Jace permanecia firme — e pare de expor suas presas para mim. Isso está me deixando nervoso.
— Bom, se você quer saber, é porque você cheira a sangue.
— É a minha colônia. Um perfume francês chamado Ferimentos Recentes.
Jace levantou sua mão esquerda. Ela era uma luva branca de faixas, manchadas nas juntas onde o sangue tinha se infiltrado.
Simon fez uma careta.
— Pensei que sua espécie não se machucava. Que ferimentos não permanecessem.
— Eu a ganhei de uma janela — Jace disse — e Alec me fez curar como um mundano para me ensinar uma lição. Aí está, eu te disse a verdade. Impressionado?
— Não. Eu tenho problemas maiores do que você. O Inquisidor continua me fazendo perguntas que eu não posso responder. Continua me acusando de obter meu poderes de Diurno de Valentim. Ou de ser um espião para ele.
Alarme flutuou nos olhos de Jace.
— Aldertree disse isso?
— Aldertree insinuou que toda a Clave pensava assim.
— Isso é ruim. Se eles decidirem que você é um espião, então os Acordos não se aplicam. Não se puderem convencer a si mesmos que você quebrou a Lei — Jace olhou ao redor rapidamente antes de retornar seu olhar para Simon — vai ser melhor nós tirarmos você daqui.
— E então o quê?
Simon quase não podia acreditar no que estava dizendo. Ele queria sair deste lugar tão rapidamente quanto possível, porém já não podia parar as palavras tropeçando de sua boca.
— Onde você planeja me esconder?
— Há um Portal aqui na Garde. Se nós pudermos achá-lo, eu posso enviar você de volta...
— E todo mundo vai saber que você me ajudou. Jace, não é apenas de mim que a Clave está atrás. Na verdade, duvido que eles se importem com um Ser do Submundo de um modo ou de outro. Eles estão tentando provar alguma coisa contra sua família... sobre os Lightwood. Que eles nunca deixaram realmente o Círculo.
Mesmo na escuridão, era possível ver a cor sumir das bochechas de Jace.
— Mas isso é ridículo. Eles lutaram contra Valentim... no navio... Robert quase morreu...
— O Inquisidor quer acreditar que eles sacrificaram os outros Nephilim e lutaram no barco para preservar a ilusão de que estavam contra Valentim. Mas eles ainda perderam a Espada Mortal, e é isso o que o preocupa. Olha, você tentou alertar a Clave, e eles não se importaram. Agora o Inquisidor está procurando alguém para culpar. Se ele puder marcar vocês como traidores, então ninguém vai culpar a Clave pelo que aconteceu, e ele será capaz de fazer a política que quiser sem oposição.
Jace colocou o rosto nas mãos, seus longos dedos puxando distraidamente os cabelos.
— Mas eu não posso simplesmente deixar você aqui. Se Clary descobrir...
— Eu deveria saber que isso é o que te preocupava — Simon sorriu asperamente — então não diga a ela. Ela está em Nova York. De qualquer maneira, obrigado... — Simon se interrompeu, incapaz de dizer uma palavra — você estava certo. Estou feliz que ela não esteja aqui.
Jace levantou sua cabeça de suas mãos.
— O quê?
— A Clave é louca. Quem sabe o que eles iriam fazer com ela se soubessem o que ela pode fazer. Você estava certo — Simon repetiu, e quando Jace nada disse em resposta, adicionou — e você poderia muito bem comemorar o que eu falei. Eu provavelmente nunca direi isso novamente.
Jace olhou para ele, o rosto pálido, e Simon se lembrou com um desagradável impulso do modo como Jace tinha olhado-o no navio, sangrando e morrendo no piso de metal.
Finalmente, Jace falou.
— Então você está me dizendo que planeja ficar aqui? Na prisão? Até quando?
— Até que nós pensemos em uma ideia melhor. Mas há uma coisa.
Jace levantou as sobrancelhas.
— E o que é?
— Sangue — Simon respondeu — o Inquisidor está tentado me matar de fome para eu falar. Eu já me sinto bastante fraco. Até amanhã eu estarei... bem, não sei como vou estar. Mas eu não vou dar o que ele quer. E não vou beber seu sangue de novo, ou de outra pessoa — ele adicionou rapidamente, antes que Jace pudesse oferecer — sangue animal está bom.
— Posso conseguir sangue para você — Jace disse. Ele hesitou — você... disse ao Inquisidor que bebeu meu sangue? Que eu te salvei?
Simon agitou a cabeça.
Os olhos de Jace brilharam com a luz refletida.
— Por que não?
— Supus que eu te deixaria com mais problemas.
— Olha, vampiro, proteja os Lightwoods se você quiser. Mas não me proteja.
Simon levantou a cabeça.
— Por que não?
— Eu acho — Jace falou – e por um momento, enquanto ele olhava abaixo através das barras, Simon quase podia imaginar que estava lá fora, e Jace era quem estava trancado na cela — que é por que eu não mereço.
***
Clary acordou ao som parecido com granizo caindo em um telhado de metal. Ela se sentou na cama, olhando ao redor instavelmente. O som veio novamente, uma afiada pancada emanando da janela.
Retirando seu cobertor com relutância, ela foi investigar.
Ao abrir a janela, um sopro de ar penetrou seu pijama como uma faca. Ela estremeceu e se inclinou sobre o peitoril. Alguém estava em pé no jardim, e por um momento, com um salto de seu coração, tudo o que ela viu era que a figura era alta e magra, com um masculinizado cabelo bagunçado. Então a pessoa levantou seu rosto e Clary viu que seu cabelo era escuro, não loiro, e notou que pela segunda vez que esperou por Jace e conseguiu Sebastian.
Ele estava segurando uma mão cheia de pedras. Sorriu quando a viu botar a cabeça para fora, e gesticulou para si mesmo e então para as grades das rosas. Desça.
Ele balançou a cabeça e apontou em direção a frente da casa. Me encontre na porta da frente.
Fechando a janela, ela se apressou escadas abaixo. Era tarde da manhã – a luz que vazava vinha das janelas era forte e dourada, dentro da casa tudo estava apagado e quieto. Amatis ainda deve estar dormindo, ela pensou.
Clary foi para a porta da frente, destrancou e a abriu. Sebastian estava lá, de pé no degrau da frente, e mais uma vez ela teve aquele sentimento, essa estranha explosão de reconhecimento, ainda que mais fraco desta vez. Ela sorriu fracamente para ele.
— Você jogou pedras na minha janela. Pensei que as pessoas só faziam isso em filmes.
Ele sorriu.
— Belo pijama. Te acordei?
— Talvez.
— Desculpe — ele disse, apesar de não parecer arrependido — mas isso não podia esperar. Você deve querer correr lá em cima e se vestir, a propósito. Nós vamos passar o dia todo juntos.
— Uau. Confiante você, não? — ela respondeu, mas garotos que pareciam com Sebastian provavelmente não tinham razão de ser nada além de confiantes. Ela agitou a cabeça — me desculpe, mas eu não posso. Eu não posso sair de casa. Não hoje.
Uma leve linha de preocupação apareceu entre os olhos dele.
— Você saiu de casa ontem.
— Eu sei, mais isso foi antes... — antes de Amatis me fazer sentir com meio centímetro de altura — eu só não posso. E, por favor, não tente discutir comigo sobre isso, ok?
— Ok. Eu não vou discutir. Mas pelo menos me deixe dizer o que eu vim te falar. Então, juro, se você ainda quiser que eu vá, eu vou.
— E o que é?
Ele ergueu seu rosto, e ela se perguntou como era possível que aqueles olhos pudessem brilhar como ouro.
— Eu sei onde você pode encontrar Ragnor Fell.
Clary levou menos de dez minutos para correr escadas acima, trocar suas roupas, rascunhar um rápido bilhete para Amatis e se reunir com Sebastian, que estava esperando por ela na ponta do canal. Ele sorriu enquanto ela corria para se encontrar com ele, arfando, seu casaco verde flutuando num braço.
— Estou aqui — ela falou, deslizando para uma parada — nós podemos ir agora?
Sebastian insistiu em ajudá-la com o casaco.
— Eu não pensei que alguém fosse me ajudar com um casaco antes — Clary observou, libertando seu cabelo que tinha ficado preso debaixo da gola — bem, talvez garçons. Você já foi um garçom?
— Não, mas eu fui educado por uma francesa — Sebastian lembrou ela — isso envolve um rigoroso de treinamento.
Clary sorriu, a despeito de seu nervosismo. Sebastian eram bom em fazê-la sorrir, ela notou com um ligeiro senso de surpresa. Quase bom demais nisso.
— Onde nós vamos? — ela perguntou abruptamente. — A casa de Fell é próxima daqui?
— Ele mora fora da cidade, na verdade — Sebastian respondeu, partindo em direção a ponte.
Clary foi atrás dele.
— É uma caminhada longa?
— Muito longa para caminhar. Nós vamos pegar uma carona.
— Uma carona? De quem? — Ela parou de repente. — Sebastian, nós devemos ser cuidadosos. Não podemos confiar a ninguém a informação sobre o que estamos fazendo... o que eu estou fazendo. É um segredo.
Sebastian a observou com olhos escuros e pensativos.
— Eu juro pelo Anjo que o amigo que vai nos levar não dará nenhuma palavra sobre o que nós estamos fazendo.
— Você tem certeza?
Ragnor Fell, Clary pensou enquanto eles costuravam as ruas lotadas. Estou indo ver Ragnor Fell. Uma selvagem excitação confrontou com o temor – Madeleine tinha o feito parecer formidável. E se ele não tivesse paciência com ela, sem tempo? E se não pudesse fazê-lo acreditar que ela era quem dizia quem era? E se ele nem mesmo lembrasse de sua mãe? Não ajudava seus nervos que cada vez que ela passava por um homem loiro ou uma garota com um cabelo longo e preto seu interior retesasse, quando ela pensava estar reconhecendo Jace ou Isabelle. Mas Isabelle provavelmente a ignoraria, pensou tristemente, e Jace estava sem dúvida nos Penhallow, se agarrando com sua nova namorada.
— Você está preocupada sobre estarmos sendo seguidos? — Sebastian perguntou enquanto eles viravam uma rua que dava para o centro da cidade, notando que durante o caminho ela se mantinha olhando em torno.
— Eu fico pensando que eu vejo as pessoas que eu conheço — ela admitiu — Jace ou os Lightwood.
— Não acho que Jace tenha saído da casa dos Penhallow desde que chegaram aqui. Ele geralmente parece estar se escondendo em seu quarto. Machucou feio sua mão ontem também...
— Machucou sua mão? Como?
Clary, se esquecendo de olhar para onde estava indo, tropeçou numa pedra. A rua onde eles tinham caminhado de algum modo mudou de pedra para cascalhos sem que ela percebesse.
— Ai.
— Aqui estamos — Sebastian anunciou, parando em frente a uma alta cerca de madeira e arame.
Não havia nenhuma casa ao redor – eles tinham abruptamente deixado a área residencial para trás, e havia somente esta cerca de um lado e uma ladeira de cascalho levando em direção à floresta do outro.
Havia uma porta na cerca, mas ela estava trancada. De seu bolso, Sebastian apresentou uma pesada chave de aço e abriu o portão.
— Já volto com a nossa carona.
Ele fechou o portão atrás dele. Clary colocou seu olho na fresta. Através das lacunas ela podia vislumbrar o que parecia com uma baixa casa vermelha elevada de tábuas. Embora ela não parecesse realmente ter uma porta – ou janelas apropriadas...
O portão se abriu e Sebastian reapareceu, sorrindo de orelha a orelha. Ele segurava uma guia: marchando docilmente atrás dele estava um enorme cavalo cinza e branco com uma mancha como uma estrela na testa.
— Um cavalo? Você tem um cavalo? — Clary olhava em assombro. — Quem tem um cavalo?
Sebastian deu tapinhas carinhosos no cavalo.
— Muitas famílias de Caçadores de Sombras mantém um cavalo nos estábulos aqui em Alicante. Se você notou, não há carros em Idris. Eles não funcionam bem com todas essas barreiras ao redor — ele deu bateu no couro pálido da sela do cavalo, enfeitada com um brasão que mostrava uma serpente de água subindo de um lago em uma série de anéis. O nome Verlac estava escrito abaixo em uma delicada escrita.
— Vamos, suba.
Clary se afastou.
— Eu nunca montei em um cavalo.
— Eu vou guiar Wayfarer — Sebastian tranquilizou-a — você vai apenas se sentar na minha frente.
O cavalo relinchou suavemente. Tinha dentes enormes, Clary notou, nervosa; cada um do tamanho de uma caixinha de tic-tac. Ela imaginou aqueles dentes afundando em sua perna e pensou em todas as garotas que tinha conhecido no ensino médio que tinham desejado pôneis para elas. Se perguntou se elas eram loucas. Seja corajosa, disse a si mesma. Isso é o que sua mãe faria. Ela tomou um profundo fôlego.
— Tudo bem. Vamos lá.
A resolução de Clary de ser corajosa durou até o momento em que Sebastian – depois de ajudá-la a subir na cela – impulsionou a si mesmo no cavalo e fincou seus calcanhares na barriga.
Wayfarer decolou como um tiro, esmagando a estrada de terra com uma força que enviou solavancos de choque espinha acima de Clary. Ela agarrou a parte da sela que estava em sua frente, suas unhas escavando forte o suficiente para deixar marcas no couro.
A estrada onde estavam era estreita enquanto seguiam para fora da cidade, e agora haviam margens de árvores grossas em cada lado deles, paredes verdes que bloqueavam qualquer visão mais ampla. Sebastian puxou as rédeas e o cavalo cessou seu galope frenético, o coração de Clary diminuindo junto com seu passo.
Enquanto seu pânico diminuía, ela se tornou consciente de Sebastian atrás dela – segurando as rédeas de ambos os lados dela, seus braços fazendo um tipo de gaiola ao seu redor que a impediu de sentir que estava prestes a deslizar do cavalo. Ela estava subitamente muito consciente dele, não apenas pela força em seus braços que a seguravam, mas que ela estava inclinada contra o peito dele, e de como ele cheirava, por alguma razão, a pimenta do reino. Não de um jeito ruim – era picante e agradável, muito diferente do cheiro de Jace de sabonete e sol. Não que o sol tivesse um cheiro, realmente, mas se ele tivesse...
Ela apertou os dentes. Ela estava aqui com Sebastian, a caminho de ver um poderoso bruxo e mentalmente estava murmurando sobre a maneira como Jace cheirava. Ela se forçou a olhar ao redor. As margens verdes estavam diminuindo e agora Clary podia ver um brilho marmóreo na zona rural do outro lado. Era bonita de uma maneira absoluta: um tapete verde interrompido aqui e ali e por uma cicatriz cinzenta de estrada de pedra ou um despenhadeiro de rocha negra se elevando acima da grama. Grupos de delicadas flores brancas, as mesmas que ela tinha visto no cemitério com Luke, salpicavam as colinas como neve ocasional.
— Como você descobriu onde Ragnor Fell está? — ela perguntou enquanto Sebastian habilidosamente guiava o cavalo em torno de um sulco na estrada.
— Minha tia Élodie. Ela tem uma grande rede de informantes. Sabe tudo o que está acontecendo em Idris, embora nunca venha aqui. Ela odeia deixar o Instituto.
— E você? Você vem muito aqui em Idris?
— Realmente não. A última vez que estive aqui, eu tinha cinco anos de idade. Não vi meu tio e minha tia desde então, por isso estou feliz por estar aqui agora. Isso me dá uma chance de não ficar para trás. Além do mais, sinto falta de Idris quando não estou aqui. Não há nenhum lugar como este. É o melhor lugar na Terra. Você vai começar a senti-la, e então vai sentir falta quando não estiver aqui.
— Eu sei que Jace sentia falta. Mas pensei que fosse porque ele viveu aqui por anos. Ele foi criado aqui.
— Na mansão dos Wayland — Sebastian falou — não tão longe de onde estamos indo, na verdade.
— Parece que você sabe tudo.
— Nem tudo — Sebastian respondeu com uma risada que Clary sentiu através de suas costas — yeah, Idris opera sua magia com todo mundo – mesmo aqueles como Jace que tem razões para odiar o lugar.
— Por que você disse isso?
— Bem, ele foi criado por Valentim, não foi? E isso deve ter sido bastante terrível.
— Eu não sei — Clary hesitou — a verdade é que ele tem sentimentos confusos sobre isso. Acho que Valentim foi um pai horrível de uma maneira, mas de outra, há pequenas partes de bondade e amor que ele mostrava que foi toda a bondade e amor que Jace conheceu.
Ela sentiu uma onda de tristeza enquanto falou.
— Acho que ele se lembrou de Valentim com muito carinho por um longo tempo.
— Eu não acredito que Valentim tenha mostrado bondade e amor a Jace. Valentim é um monstro.
— Bem, sim, mas Jace é seu filho. E ele era só um garotinho. Acho que Valentim o amou, do seu jeito...
— Não — a voz de Sebastian era afiada — temo que isso seja impossível.
Clary piscou e quase se virou para ver o rosto dele, mas então pensou melhor. Todos os Caçadores de Sombras eram meio fora de si em relação a Valentim – ela pensou na Inquisidora e estremeceu interiormente – dificilmente podia culpá-los.
— Você provavelmente está certo.
— Aqui estamos — Sebastian disse abruptamente – tão abruptamente que Clary se perguntou se ela realmente o tinha ofendido de algum modo – e deslizou das costas do cavalo. Mas quando ele olhou para ela, ele estava sorrindo. — Nós fizemos em bom tempo — ele disse, amarrando as rédeas em um ramo baixo de uma árvore próxima — melhor do que eu pensei que faríamos.
Ele indicou com um gesto que ela devia desmontar, e depois de um momento de hesitação, Clary deslizou do cavalo para os braços dele. Ela o agarrou enquanto ele a segurava, suas pernas instáveis depois da longa cavalgada.
— Desculpe — ela disse envergonhada — eu não queria ter te agarrado.
— Eu não pediria desculpas por isso.
A respiração dele estava quente contra seu pescoço, e ela estremeceu. As mãos dele se demoraram por um momento nas costas dela antes de ele relutantemente retirá-las.
Tudo isso não estava ajudando as pernas de Clary se firmarem.
— Obrigada — ela falou, sabendo muito bem que estava ruborizada, e desejou ardentemente que sua pele clara não mostrasse a cor tão facilmente. — Então, é isso?
Ela olhou ao redor. Eles estavam de pé em um pequeno vale entre colinas baixas. Havia um número de árvores parecendo retorcidas, contornando uma clareira. Seus galhos torcidos tinham uma beleza escultural contra o céu azul de aço. Mas por outro lado...
— Não há nada aqui — ela disse com uma careta.
— Clay, Se concentre.
— Você quer dizer... um encantamento? Mas eu geralmente não tenho...
— Encantamentos em Idris são frequentemente mais fortes do que são em outro lugar. Você tem que tentar com mais força do que geralmente faz — ele colocou suas mãos nos ombros dela e a virou gentilmente — olhe para a clareira.
Clary silenciosamente executou o truque mental, que permitia a ela retirar o encantamento de uma coisa que se disfarçava. Ela se imaginou friccionando terebintina sobre uma tela, descascando as camadas de pintura para revelar a verdadeira imagem por baixo – e lá estava, uma pequena casa de pedra com um telhado acentuadamente triangular, fumaça se contorcendo da chaminé em um elegante cacheado. Um caminho sinuoso demarcado com pedras guiava para a porta da frente. Enquanto ela olhava, a fumaça bafejada da chaminé parou de se enroscar acima e começou a tomar a forma de um ondulante ponto de interrogação preto.
Sebastian riu.
— Eu acho que isso significa, quem está aí?
Clary puxou seu casaco para mais perto em torno dela. O vento soprado no nível da grama não era forte, mas apesar disso houve um enregelar nos ossos dela.
— Isso parece algo saído de um conto de fadas.
— Você está com frio?
Sebastian colocou um braço em torno dela. Imediatamente a fumaça enrolando-se da chaminé parou a formação dos pontos de interrogação e começou a formar corações tortos. Clary mergulhou para longe dele, sentindo-se embaraçada e de algum modo culpada, como se tivesse feito algo errado. Ela se apressou em direção à casa, Sebastian logo atrás. Eles estavam a meio caminho quando a porta voou aberta. Apesar de ter ficado obcecada em encontrar Ragnor Fell desde que Madeleine tinha dito o nome dele, Clary nunca parou para imaginar com ele poderia se parecer. Um grande homem barbudo, ela teria pensado, se tivesse pensado sobre isso. Alguém que parecia como um Viking, com grandes ombros largos.
Mas a pessoa que caminhou para fora da porta da frente era alta e magra, com um cabelo escuro, curto e espetado. Ele estava usando um colete dourado e um par de calças de pijamas de seda. Ele observou Clary com moderado interesse, soprando gentilmente em um fantasticamente longo cachimbo enquanto isso. Embora ele não parecesse como um Viking, era instantaneamente e totalmente familiar.
— Mas... — Clary olhou selvagemente para Sebastian, que parecia tão atônito quanto ela.
Ele estava olhando para Magnus com sua boca ligeiramente aberta, o rosto em branco. Finalmente, ele gaguejou:
— V-você é Ragnor Fell? O bruxo?
Magnus tirou o cachimbo da boca.
— Bem, eu certamente não sou Ragnor Fell, o exótico dançarino.
— Eu... — Sebastian parecia perdido nas palavras.
Clary não tinha certeza do que ele tinha estado esperando, mas Magnus era muito para se considerar.
— Nós estávamos esperando que você pudesse nos ajudar. Eu sou Sebastian Verlac, e esta é Clarissa Morgenstern – a mãe dela é Jocelyn Fairchild...
— Eu não me importo com quem a mãe dela é — Magnus disse — você não pode me ver sem ter horário marcado. Voltem depois. O próximo mês de março seria bom.
— Março? — Sebastian pareceu horrorizado.
— Você está certo — Magnus observou — chovendo muito. Que tal junho?
Sebastian ficou ereto.
— Eu não acho que você entenda o quanto isso é importante...
— Sebastian, não se incomode — Clary falou com desgosto — ele só está brincando com você. Ele não pode nos ajudar, de qualquer maneira.
Sebastian só pareceu ainda mais confuso.
— Mas eu não vejo o porque ele não pode...
— Tudo bem, isso é o suficiente — Magnus disse, e estalou os dedos uma vez.
Sebastian congelou no lugar, sua boca ainda aberta, a mão parcialmente estendida.
— Sebastian!
Clary ergueu o braço para tocá-lo, mas ele estava tão rígido quanto uma estátua. Só o ligeiro subir e descer de seu peito mostrava que ele estava ainda vivo.
— Sebastian? — ela chamou de novo, mas era inútil: sabia que de algum modo ele não podia ver ou ouvi-la. Ela se virou para Magnus. — Eu não posso acreditar que você fez isso. Que diabos há de errado com você? O que tem nesse seu cachimbo derreteu seu cérebro? Sebastian está do nosso lado.
— Eu não tenho um lado, Clary querida — Magnus replicou com um aceno de seu cachimbo — e na verdade, é sua culpa que eu tenha congelado-o por um tempinho. Você estava terrivelmente próxima de dizer a ele que eu não sou Ragnor Fell.
— Porque você não é Ragnor Fell.
Magnus soprou fumaça de sua boca e contemplou-a pensativamente através da névoa.
— Vamos lá — ele disse — me deixe eu te mostrar algo.
Ele segurou a porta da pequena casa aberta, gesticulando para ela entrar. Com um último e incrédulo olhar para Sebastian, Clary o seguiu.
O interior do chalé era escuro. A fraca luz do dia jorrando através das janelas era suficiente para mostrar a Clary que eles estavam dentro de uma larga sala cercada de sombras escuras. Havia um estranho cheiro no ar, como de lixo queimando. Ela fez um fraco ruído de choque quando Magnus levantou a mão e estalou seus dedos uma vez novamente. Uma luz azul brilhante fluiu das pontas de seus dedos.
Clary arfou. A sala era uma confusão de mobília esmagada em lascas, gavetas abertas e seus conteúdos espalhados. Páginas arrancadas de livros eram levadas pela corrente do ar como cinzas. Mesmo o vidro da janela estava estilhaçado.
— Eu recebi uma mensagem de Fell noite passada — Magnus contou — pedindo para encontrá-lo aqui. Eu vim para cá – e encontrei isso. Tudo destruído, e o fedor de demônios em todo parte.
— Demônios? Mas demônios não podem entrar em Idris...
— Eu não disse que eles estavam aqui. Só estou dizendo a você o que aconteceu — Magnus falou sem mudar o tom — o lugar fedia a alguma coisa de origem demoníaca. O corpo de Ragnor estava no chão. Ele não tinha sido morto quando eles o deixaram, mas estava morto quando cheguei — ele se virou para Clary — quem sabia que você estava procurando por ele?
— Madeleine — Clary sussurrou — mas ela está morta. Sebastian, Jace e Simon. Os Lightwood...
— Ah. Se os Lightwood sabem, a Clave pode muito bem saber agora, e Valentim tem espiões na Clave.
— Eu devia ter mantido segredo disso ao invés de ir perguntando a todo mundo sobre ele — Clary falou em horror — é minha culpa. Eu deveria ter alertado Fell...
— Posso apontar que você não poderia ter encontrado Fell, que é de fato o porquê você estava perguntando às pessoas sobre ele. Olha, Madeleine... e você... apenas pensaram em Fell como alguém que poderia ajudar sua mãe. Não alguém que Valentim poderia estar interessado além disso. Mas há mais do que isso. Valentim pode não saber como acordar sua mãe, mas ele parece saber que o que a colocou neste estado tinha uma ligação com algo que ele queria bastante. Um particular livro de magia.
— Como você sabe tudo isso? — Clary perguntou.
— Por que Ragnor me disse.
— Mas...
Magnus interrompeu-a com um gesto.
— Bruxos tem seus meios de se comunicar uns com os outros. Eles têm suas próprias linguagens — ele levantou uma mão e segurou uma chama azul — símbolos.
Letras de fogo, cada uma com pelo menos 15 centímetros de altura, apareceram nas paredes como se gravadas na pedra com líquido dourado. Elas corriam ao redor das paredes, anunciando palavras que Clary não podia ler. Ela se virou para Magnus.
— O que isso diz?
— Ragnor fez isso quando soube que estava morrendo. Isso dirá a qualquer bruxo o que aconteceu — enquanto Magnus se virava, o brilho das letras queimando iluminaram seus olhos de gato de dourado — ele foi atacado aqui por servos de Valentim. Eles queriam o Livro Branco. Além do Livro Cinza, esse é um dos mais famosos volumes de trabalhos sobrenaturais já escrito. A receita da poção que Jocelyn usou e a do antídoto para ele estão contidas neste livro.
A boca de Clary caiu aberta.
— Portanto ele estava aqui?
— Não. Ele pertencia a sua mãe. Tudo que Ragnor fez foi aconselhá-la onde esconder de Valentim.
— E esse lugar é...
— A mansão dos Wayland. Os Wayland tinham sua casa muito perto de onde Jocelyn e Valentim moravam, eram seus vizinhos mais próximos. Ragnor sugeriu a sua mãe esconder o livro em sua casa, onde Valentim nunca iria procurar por ele. Na biblioteca, na realidade.
— Mas Valentim morou na mansão Wayland por muitos anos depois disso — Clary protestou — ele não iria encontrá-lo?
— O Livro Branco estava escondido dentro de outro livro. Um que Valentim provavelmente nunca abriu — Magnus disse, sorrindo torto — Receitas simples para donas de casa. Ninguém pode dizer que sua mãe não tinha senso de humor.
— Então você foi na mansão dos Wayland? Procurou pelo livro?
Magnus balançou a cabeça.
— Clary, há barreiras de desorientação na mansão. Elas não só deixam a Clave para fora, mantém qualquer um. Especialmente Seres do Submundo. Talvez se eu tivesse tempo para trabalhar sobre elas, eu poderia quebrá-las, mas...
— Então ninguém pode entrar na mansão? — O desespero arranhou o seu peito. — Isso é impossível?
— Eu não disse ninguém. Eu posso pensar em pelo menos uma pessoa que poderia quase que certamente entrar na mansão.
— Você quer dizer Valentim?
— Eu quero dizer o filho de Valentim.
Clary balançou a cabeça.
— Jace não vai me ajudar, Magnus. Ele não me quer aqui. Na verdade, duvido que ele fale comigo de qualquer modo.
Magnus olhou para ela, meditando.
— Acho — ele comentou — que não há muito que Jace não faria por você, se você pedisse a ele.
Clary abriu a boca e então a fechou novamente. Ela pensou no modo como Magnus tinha sempre parecido saber como Alec se sentia sobre Jace, como Simon se sentia sobre ela. Os sentimentos dela por Jace deveriam estar escritos em sua testa agora, e Magnus era um ótimo leitor. Ela olhou para longe.
— Digamos que eu possa convencer Jace a vir para mansão comigo e pegar o livro — ela falou — e então o quê? Eu não sei como lançar um feitiço, ou fazer um antídoto...
Magnus aspirou.
— Você acha que eu estaria dando todo esse conselho de graça? Uma vez que você pegue o Livro Branco, quero que o traga direto para mim.
— O livro? Você o quer?
— É um dos mais poderosos livros de magia do mundo. É claro que eu o quero. Além do mais, ele pertence, por direito, às crianças de Lilith, não as de Raziel. É um livro bruxo e deverá estar em mãos bruxas.
— Mas eu preciso dele... para curar minha mãe...
— Você precisa de uma página dele, que você pode ter. O resto é meu. E em troca, quando me trouxer o livro, farei o antidoto para você administrá-lo em Jocelyn. Você não pode dizer que isso não é um acordo justo — ele ergueu a mão — negócio fechado?
Depois de um momento de hesitação, Clary apertou a mão dele.
— É melhor eu não me arrepender disso.
— Eu certamente espero que não — Magnus respondeu, virando-se alegremente para trás, em direção à porta da frente. Nas paredes, as letras de fogo já estavam se apagando — arrependimento é uma emoção tão inútil, você não concorda?
O sol lá fora parecia especialmente brilhante depois da escuridão no chalé. Clary ficou piscando enquanto sua visão nadava dentro do foco: as montanhas à distância, Wayfarer contentemente mastigando grama, e Sebastian imóvel como uma estátua de jardim, uma mão ainda estendida. Ela se virou para Magnus.
— Você poderia descongelá-lo, por favor?
Magnus parecia divertido.
— Eu fiquei surpreso quando recebi a mensagem de Sebastian esta manhã, dizendo que estava fazendo um favor para você, não menos... como você conseguiu terminar encontrando-o?
— Ele é um primo de alguns amigos dos Lightwood ou algo assim. Ele é legal, eu juro.
— Legal, bah. Ele é lindo — Magnus olhou sonhadoramente na direção dele — você deveria deixá-lo aqui. Eu poderia pendurar chapéus e coisas nele.
— Não, você não pode tê-lo.
— Por que não? Você gosta dele? — Os olhos de Magnus cintilaram. — Ele parece gostar de você. Eu o vi indo para seu lado como um esquilo mergulhando em um amendoim.
— Por que nós não falamos sobre sua vida amorosa? — Clary reagiu. — E quanto a você e Alec?
— Alec se recusa a reconhecer que nós temos um relacionamento, e eu me recuso a reconhecê-lo. Ele me enviou uma mensagem de fogo me pedindo um favor outro dia. Ela estava endereçada para o “Bruxo Bane”, como se eu fosse um perfeito estranho. Ele ainda está vidrado em Jace, eu acho, embora esse relacionamento nunca vá dar em lugar nenhum. Um problema, imagino, que você não saiba nada a respeito...
— Ah, cala a boca — Clary olhou para Magnus com desgosto — olha, se você não descongelar Sebastian, então eu nunca poderei sair daqui, e você nunca terá o Livro Branco.
— Ah, tudo bem, tudo bem. Mas se eu pudesse fazer um pedido? Não diga a ele nada do que eu te disse, amigo dos Lightwood ou não.
Magnus estalou os dedos com petulância. O rosto de Sebastian voltou à vida, como um vídeo voltando à ação depois de ter sido pausado.
— ... nos ajudar — ele disse — este não é apenas um pequeno problema. É de vida ou morte.
— Vocês Nephilim acham que todos os seus problemas são de vida ou morte — Magnus respondeu — agora vá embora. Você está começando a me aborrecer.
— Mas...
— Vá — Magnus repetiu, um perigoso tom em sua voz.
Faíscas azuis piscaram nas pontas de seus longos dedos, e havia um súbito cheiro acentuado no ar, como um incêndio. Os olhos de gato de Magnus brilhavam. Apesar de saber que era uma atuação, Clary não pôde evitar e se afastou.
— Eu acho que nós devemos ir, Sebastian — ela falou.
Os olhos de Sebastian se estreitaram.
— Mas, Clary...
— Estamos indo — ela insistiu, e agarrando-o pelo braço, meio o arrastou em direção a Wayfare.
Relutantemente ele a seguiu, murmurando sob sua respiração. Com um suspiro de alívio Clary, olhou de volta por sobre seu ombro. Magnus estava de pé na porta do chalé, seus braços cruzados sobre o peito. Encontrando os olhos dela, ele sorriu e desceu uma pálpebra em um único e cintilante piscar.
— Eu lamento, Clary.
Sebastian tinha uma mão sobre o ombro de Clary e outra em sua cintura enquanto ele a ajudava a subir em Wayfare. Ela lutou com a vozinha dentro de sua cabeça que a alertava para são se impulsionar para cima do cavalo – para nenhum cavalo. Ela colocou uma perna por cima e sentou na sela, dizendo para si mesma que estava balançando em um enorme sofá e não em uma criatura viva que poderia se virar e mordê-la a qualquer momento.
— Desculpas sobre o que? — Ela perguntou enquanto ele subia atrás dela.
Era quase chato como ele facilmente fazia isso – como se estivesse dançando – mas estimulante para se assistir. Ele claramente sabia o que estava fazendo, pensou enquanto Sebastian alcançava em torno dela para pegar as rédeas. Supôs que era bom que um deles soubesse.
— Sobre Ragnor Fell. Eu não esperava que ele não estivesse disposto a ajudar, Embora bruxos sejam caprichosos. Você conheceu um antes, não conheceu?
— Eu conheci Magnus Bane.
Ela girou ao redor para olhar além de Sebastian para o chalé retrocedendo à distância atrás deles. A fumaça saía da chaminé no formato de pequenas figuras dançando. Magnus estava dançando? Ela não podia ver dali.
— Ele é o Alto Bruxo do Broklyn.
— Ele é como Fell?
— Chocantemente iguais. Está tudo bem sobre Fell. Eu sabia que havia uma chance de ele se recusar a nos ajudar.
— Mas eu prometi te ajudar — Sebastian soou genuinamente chateado — bem, pelo menos há algo mais que eu posso mostrar a você, portanto o dia não será uma completa perda de tempo.
— O que é?
Clary girou de novo para olhar para ele. O sol estava alto no céu atrás dele, iluminando as pontas dos seus cabelos escuros com um tracejar de ouro.
Sebastian sorriu.
— Você vai ver.
Enquanto a montaria se afastava de Alicante, paredes de folhagem verde chicoteavam de ambos os lados, dando emoldurando as cada vez mais frequentes vistas provavelmente bonitas: lagos azuis congelados, vales verdes, montanhas cinzas, fendas prateadas do rio e córregos ladeados por margens de flores. Clary se perguntou como seria viver em um lugar como este. Ela não podia se impedir de se sentir nervosa, quase exposta, sem o conforto dos prédios altos cercando-a.
Não que não houvesse nenhum edifício. De vez em quando o teto de um alto edifício de pedra se elevava acima das árvores. Estas eram mansões, Sebastian explicou (gritando em sua orelha): As casas de campo das favorecidas famílias de Caçadores de Sombras. Lembravam a Clary das grandes mansões antigas ao longo do rio Hudson, ao norte de Manhattan, onde os ricos nova yorkinos tinham passado seus verões a centenas de anos atrás.
A estrada abaixo deles tinha mudado de cascalhos para terra. Clary foi sacudida de seu devaneio enquanto eles elevavam-se numa colina e Sebastian parou Wayfarer brevemente.
— É isso — ele disse.
Clary olhou.
“Isso” era uma massa amontoada de pedras enegrecidas carbonizada, reconhecida somente pelo contorno de algo que tinha sido uma vez uma casa: havia uma chaminé oca, ainda apontando em direção ao céu, e um pedaço de parede com uma janela sem vidro escancarando no seu centro. Ervas daninhas subiam pelas fundações, verde entre o preto.
— Eu não entendo. Por que nós estamos aqui?
— Você não sabe? — Sebastian perguntou. — Aqui foi onde sua mãe e seu pai moravam. Onde seu irmão nasceu. Esta era a mansão Fairchild.
Não pela primeira vez, Clary ouviu a voz de Hodge em sua cabeça. Valentim fez um grande incêndio e se queimou até a morte junto com sua família, sua esposa e seu filho. Chamuscou a terra de negra. Ninguém vai construir nada lá. Eles dizem que o lugar está amaldiçoado.
Sem nenhuma palavra, Clary deslizou das costas do cavalo. Ela ouviu Sebastian chamar por ela, mas ela já estava meio correndo, meio deslizando colina abaixo. O terreno nivelava onde a casa tinha estado em pé uma vez; pedras enegrecidas que tinham sido um caminho de entrada descansavam secas e quebradas a seus pés. Entre as ervas daninhas, ela podia ver um conjunto de escadas que terminavam abruptamente a poucos metros do chão.
— Clary...
Sebastian seguiu-a através das ervas daninhas, mas ela mal estava consciente de sua presença. Virando-se em um lento círculo, ela capturou tudo lá dentro.
Árvores queimadas meio mortas que provavelmente tinham sido um campo sombreado, alongando-se à distância de uma colina inclinada.
Ela podia ver o telhado do que era provavelmente outra mansão vizinha, logo acima da linha das árvores. O sol aparecia-se pela janela quebrada na parede que ainda estava de pé. Ela andou dentro das ruínas por uma protuberância de pedras escurecidas. Podia ver o contorno das salas, de entradas – até mesmo um armário chamuscado, quase intacto, arremessado de um lado com pedaços quebrados de porcelana chinesa se derramando, misturado com a terra negra.
Uma vez tinha sido uma casa de verdade, habitada por pessoas vivas. Sua mãe tinha vivido aqui, se casado aqui, tido um bebê aqui. E então Valentim tinha chegado e transformou tudo isso em pó e cinzas, deixando Jocelyn pensar que seu filho estava morto, levando-a a esconder a verdade sobre o mundo de sua filha...
Um sentimento de tristeza invadiu Clary. Mais de uma vida tinha sido destruída neste lugar. Ela colocou a mão sobre o rosto e estava quase surpresa ao encontrá-lo úmido: esteve chorando sem saber.
— Clary, me desculpe. Eu pensei que você iria querer ver.
Era Sebastian, pisando em direção a ela através dos escombros, sua botas chutando baforadas de cinzas. Ele parecia preocupado.
Ela se virou para ele.
— Eu quero. Eu queria. Obrigada.
O vento tinha se levantado. Soprou os fios do cabelo através do rosto dele. Ele deu um sorriso pesaroso.
— Deve ser difícil pensar sobre tudo o que aconteceu neste lugar, sobre Valentim, sua mãe... ela teve uma coragem incrível.
— Eu sei. Ela tinha. Ela tem.
Ele tocou o rosto dela levemente.
— Então você tem.
— Sebastian, você não sabe nada sobre mim.
— Isso não é verdade — sua outra mão subiu, e agora ele estava moldando o rosto dela. Seu toque era gentil, quase tímido — eu ouvi tudo sobre você, Clary. O modo como você lutou com seu pai pelo Cálice Mortal, como você foi para dentro daquele hotel infestado de vampiros atrás de seu amigo. Isabelle me contou as histórias, e ouvi rumores também. E mesmo desde a primeira vez... a primeira vez que ouvi falar de seu nome... eu quis te conhecer. Eu sabia que você seria extraordinária.
Ela riu instavelmente.
— Espero que você não esteja muito decepcionado.
— Não — ele respirou, deslizando as pontas de seus dedos embaixo de seu queixo — de modo algum.
Ele levantou o rosto dela para o dele. Ela estava surpresa demais para se mover, até mesmo quando ele se inclinou na direção dela e ela percebeu, muito atrasada, o que ele estava fazendo. Por reflexo, ela fechou os olhos enquanto os lábios dele tocavam suavemente os dela, enviando arrepios por seu corpo. Uma súbita lembrança feroz de ser abraçada e beijada de um modo que a fazia esquecer-se de tudo mais se agitava através dela. Ela colocou seus braços para cima, torcendo-os em torno do pescoço dele, em parte para se firmar e em parte para puxá-lo mais para perto. O cabelo dele fazia cócegas nas pontas de seus dedos, não sedoso como os de Jace, mas fino e suave, e ela não deveria estar pensando em Jace. Ela empurrou os pensamentos sobre Jace para trás enquanto os dedos de Sebastian traçavam as suas bochechas e a linha de sua mandíbula. Seu toque era gentil, apesar dos calos nas pontas dos dedos. É claro, Jace tinha os mesmos calos das lutas; provavelmente todos os Caçadores de Sombras tinham...
Ela suprimiu o pensamento em Jace, ou tentou, mas isso não foi bom. Podia vê-lo mesmo com seus olhos fechados – ver os formatos e os ângulos de um rosto que nunca poderia ser propriamente desenhado, não importasse o quanto a imagem dele tivesse gravada em sua mente; os delicados ossos de suas mãos, a pele cicatrizada de seus ombros...
A feroz lembrança que tinha surgido nela rapidamente recuou com um forte retrocesso que era como um elástico libertando-se. Ela ficou paralisada enquanto os lábios de Sebastian pressionavam os dela e suas mãos se moviam para tocar a nuca dela – ela ficou tensa com um choque gelado de erro.
Algo estava terrivelmente errado, algo ainda mais do que ela desejar desesperadamente alguém que nunca poderia ter. Isso foi algo mais: um súbito golpe de horror, como se tivesse dado um passo confiante a frente e de repente mergulhado em um vácuo negro. Ela arfou e se afastou de Sebastian com tal força que quase tropeçou. Se ele não estivesse abraçando-a, Clary teria caído.
— Clary — os olhos dele estavam desfocados, suas bochechas enrubescidas com uma forte cor — Clary, qual o problema?
— Nada — sua voz soou aguda para seus próprios ouvidos — nada... é só, eu não deveria ter... eu não estou realmente pronta...
— Nós estamos indo muito rápido? Nós podemos ir mais devagar...
Ele a alcançou, e antes que ela pudesse se parar, Clary se esquivou.
Ele pareceu arrasado.
— Eu não vou te machucar, Clary.
— Eu sei.
— Algo aconteceu? — A mão dele se levantou, jogando o cabelo dela para trás, ela afastou a vontade de fugir. — Jace...
— Jace?
Sebastian sabia que ela estava pensando em Jace? E ao mesmo tempo...
— Jace é meu irmão. Por que você o trouxe à tona? O que você quer dizer?
— Eu só pensei... — ele balançou a cabeça, dor e confusão surgindo em suas feições — que talvez alguém tivesse te machucado.
As mãos dele ainda estavam em sua bochecha, Clary as alcançou e gentilmente, porém firmemente as retirou.
— Não. Nada disso. Eu só... — ela hesitou — isso parece errado.
— Errado? — A dor no rosto dele desapareceu, substituída pela descrença. — Clary, nós temos uma ligação. Você sabe que nós temos. Desde o primeiro segundo que eu te vi...
— Sebastian, não...
— Eu senti você como alguém que sempre estive esperando. Vi que você se sentiu assim também. Não me diga que você não sentiu.
Mas não tinha sido assim que ela sentiu. Ela sentiu como se andasse em torno de uma esquina em uma cidade estranha e de repente visse uma construção se agigantando a sua frente. Um surpreendente e não inteiramente agradável reconhecimento: Como pode isso estar aqui?
— Eu não — ela respondeu.
A raiva que subiu subitamente nos olhos dele, escuros e descontrolados – tomou-a de surpresa. Ele agarrou o seu pulso em um doloroso aperto.
— Isso não é verdade.
Ela tentou se puxar.
— Sebastian...
— Isso não é verdade.
A escuridão nos olhos dele parecia ter engolido suas pupilas. Seu rosto era uma máscara branca, dura e rígida.
— Sebastian — ela chamou tão calmamente quanto podia — você está me machucando.
Ele a soltou. Seu peito estava subindo e descendo rapidamente.
— Me desculpe. Me desculpe. Eu pensei...
Bem, você pensou errado, Clary quis dizer, mas ela guardou as palavras. Não queria ver aquele olhar no rosto dele de novo.
— Nós devemos voltar — ela disse no lugar — vai estar escuro em breve.
Ele acenou entorpecidamente, parecendo tão chocado por seu ataque quanto ela. Sebastian se virou e se guiou em direção a Wayfare, que estava pastando à sombra de uma árvore. Clary hesitou por um momento, então o seguiu – não parecia haver nada que pudesse fazer. Ela olhou discretamente para seu pulso enquanto seguia atrás dele – eles estavam marcados em vermelho onde os dedos de Sebastian tinham apertado, e mais estranhamente, as pontas dos dedos estavam manchadas de preto, como se ela tivesse de algum modo manchado em tinta. Sebastian ficou em silêncio enquanto a ajudava a subir nas costas de Wayfarer.
— Me desculpe se eu relembrei algo sobre Jace — ele disse finalmente enquanto ela se arrumava na sela — ele nunca faria nada para te machucar. Eu sei que é por sua causa que ele esteve visitando aquele vampiro preso na Garde...
Era como se tudo no mundo fundasse em uma súbita parada. Ela podia ouvir sua própria respiração silvando para dentro e para fora em seus ouvidos, viu suas mãos, congeladas como as mãos de uma estátua, ainda descansando contra o cabeçote da sela.
— Um vampiro preso? — ela sussurrou.
Sebastian virou um rosto surpreso para o dela.
— Sim. Simon, aquele vampiro que eles trouxeram de Nova York. Eu pensei... quero dizer, eu tinha certeza que você sabia disso tudo. Jace não te disse?
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