Capítulo 8 - Um dos Vivos

Simon acordou com a luz cintilando em um objeto que tinha sido enfiado através das barras de sua janela. Ele ficou de pé, seu corpo doendo com a fome, e viu que aquilo era um frasco de metal, de cerca do tamanho de uma garrafa térmica. Um bilhete tinha sido amarrado em uma das extremidades. Arrancando o papel, Simon desenrolou-o e leu:

Simon,
Isso é sangue de vaca fresco, vindo de um açougue. Espero que seja bom.
Jace me falou o que você disse, e espero que você saiba que eu te acho realmente corajoso. Aguente aí e nós vamos descobrir um jeito de te tirar daí.
XOXOXOXOXOXO Isabelle

Simon sorriu para os rabiscados Xs e Os que corriam ao longo da parte inferior da página. Era bom saber que a afeição extravagante de Isabelle não havia sofrido sob as atuais circunstâncias.
Ele desatarraxou a ponta do frasco e tomou vários goles grandes antes de uma acentuada picada entre suas omoplatas o fez se virar.
Raphael estava calmamente em pé no meio do quarto. Ele tinha as mãos entrelaçadas atrás das costas, seus frágeis ombros imóveis. Usava uma camisa branca fortemente apertada e uma jaqueta escura. Uma corrente de ouro brilhava em sua garganta.
Simon quase engasgou o sangue que estava bebendo. Ele engoliu duro, ainda olhando.
— Você... você não pode estar aqui.
O sorriso que Raphael dava a impressão que suas presas à mostra, embora não estivessem.
— Não entre em pânico, Diurno.
— Eu não estou em pânico.
Isso não era estritamente verdade. Simon sentia como se tivesse engolido algo grande. Ele não tinha visto Raphael desde a noite que tinha saído, sangrando e machucado, de uma sepultura cavada apressadamente no Queens. Ainda se lembrava de Raphael jogando pacotes de sangue animal para ele, e o modo que tinha rasgado com seus dentes como se fosse um animal. Ele nunca tinha estado tão feliz em ver o garoto vampiro novamente.
— O sol ainda está alto. Como você está aqui?
— Eu não estou — a voz de Raphael era suave como manteiga — sou uma projeção. Olhe — ele agitou a mão, passando-a através da parede de pedra ao seu lado — sou como fumaça. Eu não posso te machucar. É claro, nem você pode me machucar.
— Eu não quero machucar você — Simon colocou o frasco no beliche — quero saber o que está fazendo aqui.
— Você deixou Nova York muito subitamente, Diurno. Você percebeu que supostamente tem que informar ao vampiro líder da sua área local quando está deixando a cidade, não é?
— Vampiro líder? Quer dizer você? Pensei que o vampiro líder era alguém mais...
— Camille ainda não retornou para nós — Raphael interrompeu, sem nenhuma emoção aparente — eu lidero em seu lugar. Você saberia de tudo isso se se incomodasse em se familiarizar com as leis de nossa espécie.
— Minha saída de Nova York não foi exatamente planejada com antecedência. E sem ofensa, mas eu não penso em você como da minha espécie.
— Dios — Raphael baixou seus olhos, como se escondendo o divertimento — você é teimoso.
— Como você pode dizer isso?
— Parece óbvio, não é?
— Eu quero dizer... — A garganta de Simon se fechou. — Aquela palavra. Você pode dizê-la, e eu não posso...
Deus.
Os olhos de Raphael piscaram acima; ele não pareceu divertido.
— Anos. E prática. E fé, ou sua perda... elas são de alguns modos a mesma coisa. Você irá aprender, ao logo do tempo, novatinho.
— Não me chame disso.
— Mas é o que você é. Você é uma Criança da Noite. Não é por isso que Valentim te capturou e pegou seu sangue? Por causa do que você é?
— Você parece muito bem informado — Simon disse — talvez você devesse me dizer.
Os olhos e Raphael se estreitaram.
— Eu ouvi também um rumor que você bebeu o sangue de um Caçador de Sombras e isso é o que deu a você o seu dom, sua habilidade de andar durante o dia. Isso é verdade?
Os pelos de Simon se arrepiaram.
— Isso é ridículo. Se o sangue de Caçador de Sombras pudesse dar aos vampiros a habilidade de andar de dia, todos saberiam disso agora. O sangue Nephilim seria um troféu. E nunca haveria paz entre vampiros e Caçadores de Sombras depois disso. Então é uma coisa boa que não seja verdade.
Um débil sorriso surgiu nos cantos da boca de Raphael.
— Verdade. Falando em troféus, você percebeu, não é, Diurno, que é uma mercadoria valiosa agora? Não há um Ser do Submundo sobre esta terra que não queira colocar as mãos em você.
— Isso inclui você?
— É claro que sim.
— E o que você faria se colocasse as mãos em mim?
Raphael encolheu seus ombros finos.
— Talvez eu pense que a habilidade de andar durante o dia pode não ser o tipo de dom que os outros vampiros acreditem. Nós somos as Crianças da Noite por uma razão. É possível que eu considere você como uma abominação, como a humanidade me considera.
— Você?
— É possível — a expressão de Raphael era neutra — acho que você é um perigo para todos nós. Um perigo para a espécie vampira. E você não pode ficar nesta cela para sempre, Diurno. Eventualmente, você terá que sair e enfrentar o mundo novamente. Me enfrentar novamente. Mas eu posso dizer uma coisa: vou jurar não fazer nenhum mal, e não tentar te encontrar, se você em troca jurar se esconder uma vez que Aldertree o liberte. Se você jurar ir para tão longe que ninguém irá te encontrar, e nunca entrar novamente em contato com quem você tenha conhecido em sua vida mortal. Eu não posso ser mais justo do que isso.
Mas Simon já estava balançando a cabeça.
— Eu não posso deixar minha família. Ou Clary.
Raphael fez um ruído irritado.
— Eles deixaram de ser parte de quem você é. Você é um vampiro agora.
— Mas eu não quero ser — Simon rebateu.
— Olhe só para você, reclamando. Você nunca vai ficar doente, nunca vai morrer, e será forte e jovem para sempre. Nunca irá envelhecer. O que você tem para reclamar?
Jovem para sempre, Simon pensou. Soava bom, mas alguém realmente quer ter dezesseis para sempre? Seria uma coisa ser congelado para sempre aos vinte cinco, mas aos dezesseis? Ser sempre este vara-pau, nunca realmente desenvolver seu rosto ou seu corpo? Sem mencionar que, parecendo assim, ele nunca seria capaz de entrar em um bar e pedir uma bebida. Nunca. Pela eternidade.
— E — Raphael adicionou — você não tem que desistir do sol.
Simon não tinha o desejo de ir por este caminho de novo.
— Eu ouvi de outros falando sobre você no Dumort — Simon falou — sei que você põe um crucifixo todos os domingos e vai ver sua família. Aposto que eles nem sequer sabem que você é um vampiro. Então não me diga para deixar qualquer um em minha vida para trás. Eu não vou fazer isso, e não vou mentir e dizer que vou.
Os olhos de Raphael cintilaram.
— O que minha família acredita não importa. É o que eu acredito. O que eu sei. Um verdadeiro vampiro sabe que ele está morto. Ele aceita sua morte. Mas você, você pensa que é um dos vivos. E é isso que te faz tão perigoso. Você não pode reconhecer que não está mais vivo.

***

Era o crepúsculo quando Clary fechou a porta da casa de Amatis atrás dela e aferrolhou a fechadura. Ela se inclinou contra a porta por um longo momento na entrada sombreada, seus olhos semicerrados. Exaustão pesava em cada um de seus membros, suas pernas doíam dolorosamente.
— Clary? — A voz insistente de Amatis cortou através do silêncio. — É você?
Clary ficou onde estava, à revelia na calmante escuridão atrás de seus olhos fechados. Ela queria tanto estar em casa, quase podia sentir o sabor do ar metálico das ruas do Brooklyn. Podia ver sua mãe sentada na cadeira perto da janela empoeirada, a luz pálida fluindo das janelas abertas do apartamento, iluminado suas telas enquanto Jocelyn pintava. A saudade de casa girou seu intestinos com dor.
— Clary.
A voz veio de mais perto desta vez. Os olhos de Clary se abriram.
Amatis estava em pé na frente dela, seus cabelos cinza puxados severamente para trás, as mãos nos quadris.
— Seu irmão está aqui para ver você. Ele está esperando na cozinha.
— Jace está aqui?
Clay lutou para manter sua raiva e espanto fora do rosto. Não havia nenhum ponto em mostrar o quão furiosa estava na frente da irmã de Luke.
Amatis olhava para ela curiosamente.
— Eu não devia tê-lo deixado entrar? Pensei que você quisesse vê-lo.
— Não, está tudo bem — Clary respondeu, mantendo seu tom com alguma dificuldade — só estou cansada.
— Huh — Amatis parecia como se não tivesse acreditado — bem, eu vou estar lá em cima se você precisar de mim. Eu preciso de um cochilo.
Clary não podia imaginar o que ela queria de Amatis, mas acenou e avançou com dificuldade do corredor para a cozinha, que estava inundada de luz brilhante. Havia um prato de frutas na mesa – laranjas, maçãs e peras – e um pão longo e espesso, com manteiga e queijo, e um prato ao lado dele do que parecia com... biscoitos? Amatis tinha realmente feito biscoitos?
À mesa sentava-se Jace. Ele estava inclinado em seus cotovelos, seu cabelo dourado desarrumado, a camiseta ligeiramente aberta no pescoço. Ela podia ver as espessas faixas das marcas negras traçando sua clavícula. Ele segurava um biscoito em sua mão enfaixada. Então Sebastian estava certo, ele tinha se machucado. Não que ela se importasse.
— Bom — ele disse — você está de volta. Eu estava começando a pensar que você caiu dentro de um canal.
Clary apenas o encarou, sem palavras. Se perguntou se ele podia ler a raiva nos olhos dela. Jace se inclinou para trás na cadeira, jogando um braço casualmente para trás. Se não tivesse sido pelo rápido pulsar na base da garganta dele, ela poderia quase acreditar no ar de indiferença.
— Você parece exausta — ele adicionou — onde você esteve o dia todo?
— Eu estava com Sebastian.
— Sebastian? — seu olhar de absoluto espanto foi momentaneamente gratificante.
— Ele me trouxe até em casa noite passada — Clary continuou, e em sua mente as palavras Eu vou apenas ser seu irmão daqui para frente, apenas seu irmão, batiam como o ritmo de um coração danificado — e até agora, ele é a única pessoa nesta cidade que parece remotamente legal comigo. Então sim, eu estava fora com Sebastian.
— Estou vendo — Jace colocou seu biscoito de volta ao prato, seu rosto branco — Clary, eu vim aqui para me desculpar. Eu não deveria ter falado com você do modo.
— Não — Clary concordou — você não deveria.
— Eu também vim para perguntar se você reconsideraria voltar para Nova York.
— Deus. Isso de novo...
— Não é seguro para você aqui.
— O que está preocupando você? — Ela perguntou sem tom. — Que eles me joguem na prisão como fizeram com Simon?
A expressão de Jace não mudou, mas ele se movimentou na cadeira, as pernas da frente se levantando do chão quase como se ela tivesse impulsionado.
— Simon...
— Sebastian me contou o que aconteceu com ele — ela continuou na mesma voz plana — o que você fez. O modo como você o trouxe aqui e o deixou ser jogado na cadeia. Está tentando me fazer te odiar?
— E você acredita em Sebastian? Você mal o conhece, Clary.
Ela o encarou.
— Isso não é verdade?
Ele encontrou seu olhar, mas o rosto dele continuava o mesmo, como o rosto de Sebastian quando ela o empurrou para longe.
— É verdade.
Ela agarrou um prato da mesa e o jogou nele. Ele abaixou, fazendo a cadeira girar, e o prato bateu na parece acima da pia e quebrou em uma explosão de porcelana quebrada. Ele saltou da cadeira enquanto Clary pegava outro prato e jogava, seu alvo fora do controle: este saltou na geladeira e bateu no chão aos pés de Jace, onde se partiu em dois pedaços.
— Como você pôde? Simon confiava em você. Onde ele está agora? O que vão fazer com ele?
— Nada. Ele está bem. Eu o vi noite passada...
— Antes ou depois que te vi? Antes ou depois que você fingiu que estava tudo bem e você estava bem?
— Você foi embora pensando que eu estava bem? — Ele abafou alguma coisa quase como uma risada. — Eu devo ser melhor ator do que eu pensava.
Havia um sorriso torto em seu rosto.
Isso foi um fósforo para inflamar a raiva de Clary: como ele ousa rir dela agora? Ela pegou a fruteira, mas de repente não parecia ser o suficiente. Então chutou sua cadeira do caminho e se jogou sobre ele, sabendo que seria a última coisa que ele esperaria dela.
A força do súbito ataque o pegou fora de guarda. Ela atingiu-o e ele tropeçou para trás, batendo duramente contra a ponta do balcão. Clary quase caiu em cima dele, ouvindo-o arfar, e ergueu seu braço para trás, nem mesmo sabendo o que pretendia fazer – ela tinha se esquecido do quão rápido ele era. Seu punho bateu não em seu rosto, mas em sua mão levantada; ele envolveu seus dedos ao redor dos dela, forçando o braço dela de volta. Ela estava subitamente consciente do quão perto eles estavam, seu corpo inclinado contra ele, pressionando-o contra o balcão com o leve peso de seu corpo.
— Solte a minha mão.
— Você realmente vai me bater se eu fizer? — Sua voz era rouca e suave, seus olhos em chamas. — Você acha que eu mereço isso?
Ela sentiu o subir e descer do peito dele contra ela enquanto Jace ria sem divertimento.
— Acha que eu planejei tudo isso? Você realmente acha que eu faria tudo isso?
— Bem, você não gosta de Simon, não é? Nunca gostou.
Jace fez um som duro e incrédulo e soltou a mão dela. Quando Clary se afastou, ele ergueu o braço direito, a palma para cima. Levou um momento para ela perceber o que ele estava mostrando para ela: a cicatriz irregular ao longo de seu pulso.
— Aqui — ele disse, sua voz tão tensa quanto um fio — é onde eu cortei meu pulso para deixar o seu amigo vampiro beber meu sangue. Isso quase me matou. E agora você acha, o que, que eu simplesmente o abandonei sem considerar?
Ela olhou para a cicatriz no pulso de Jace – uma de tantas que ele tinha sobre seu corpo, cicatrizes de todas as formas e tamanhos.
— Sebastian me disse que você trouxe Simon para cá, e então Alec o levou para A Garde. Deixou a Clave com ele. Você devia saber...
— Eu o trouxe aqui por acidente. Pedi a ele ir ao Instituto para que eu pudesse falar com ele. Sobre você, na verdade. Pensei que talvez ele pudesse te convencer de largar da ideia de vir para Idris. Se é de algum consolo, ele sequer considerou isso. Enquanto ele estava lá, nós fomos atacados por Esquecidos. Eu tive que arrastá-lo pelo Portal comigo. Era isso ou deixá-lo lá para morrer.
— Mas por que você o levou para a Clave? Você devia saber...
— A razão de nós o enviarmos era por que o único Portal em Idris fica na Garde. Ele nos disseram que enviariam-no de volta para Nova York.
— E você acreditou neles? Depois do que aconteceu com a Inquisidora?
— Clary, a Inquisidora era uma anormalidade. Esta pode ter sido sua primeira experiência com a Clave, mas não é a minha – a Clave somos nós. Os Nephilim. Nós seguimos a Lei.
— Exceto que eles não seguem.
— Não. Eles não — Jace soou muito cansado — e a pior parte disso tudo — ele adicionou — é lembrar que Valentim fala mal da Clave, como ela é corrupta, como precisa ser purificada. E pelo Anjo se eu não concordo com ele.
Clary estava em silêncio, primeiro porque ela não podia pensar em nada para dizer, e então em espanto enquanto ele se aproximava – quase como se não estivesse pensando sobre o que estava fazendo – e a puxou em direção sua. Para surpresa dela, ela deixou.
Através do material branco da camisa dele, Clary podia ver os contornos da Marcas, pretas e circulares, golpeando a pele dele como lambidas de chamas. Ela queria inclinar sua cabeça contra a dele, queria sentir os braços dele em torno dela, do modo que tinha desejado o ar quando estava se afogando no Lago Lyn.
— Ele pode estar certo de que as coisas precisem ser concertadas — ela disse finalmente — mas não está certo sobre o modo como devem ser concertadas. Você pode ver isso, não pode?
Ele semicerrou os olhos. Havia crescentes sombras escuras abaixo deles, ela percebeu, os resquícios de noites de insônia.
— Eu não tenho certeza se posso ver qualquer coisa. Você está certa em estar zangada, Clary. Eu não deveria ter confiado na Clave. Eu queria tanto acreditar que a Inquisidora era uma anormalidade, que ela estava agindo sem a autoridade deles, que havia ainda uma parte de ser um Caçador de Sombras que eu podia confiar.
— Jace — ela sussurrou.
Ele abriu os olhos e a fitou. Ela e Jace estavam tão próximos, notou, que estavam tocando tudo, acima e abaixo de seus corpos; mesmo seus joelhos estavam se tocando, e ela podia sentir seu batimento cardíaco. Afaste-se dele, ela disse para si mesma, mas suas pernas não podiam obedecer.
— O que é? — ele perguntou, sua voz muito suave.
— Eu quero ver Simon. Você pode me levar para vê-lo?
Tão abruptamente quanto ele tinha segurado-a, ele deixou-a ir.
— Não. Nem mesmo era para você estar em Idris. Você não pode ir para a Garde.
— Mas ele vai pensar que todo mundo o abandonou. Vai pensar...
— Eu fui vê-lo — Jace contou — eu ia soltá-lo. Estava quase para arrancar as barras da janela com minhas mãos — sua voz era sem emoção — mas ele não me deixou.
— Ele não deixou? Ele queria ficar na cadeia?
— Ele disse que o Inquisidor estava farejando ao redor de minha família, atrás de mim. Aldertree deseja nos culpar pelo o que aconteceu em Nova York. Ele não pode agarrar um de nós e nos torturar – a Clave faria cara feia para isso – mas ele está tentando conseguir que Simon conte alguma história onde nós todos estamos em aliança com Valentim. Simon disse que se eu o libertasse, seria pior para os Lightwood.
— Isso é muito nobre dele e tudo mais, mas qual é o seu plano em longo prazo? Ficar na prisão para sempre?
Jace deu de ombros.
— Nós não tínhamos exatamente trabalhado nisso.
Clary soprou uma respiração exasperada.
— Garotos. Tudo bem, olhe. O que você precisa é de um álibi. Nós temos que ter a certeza de que você está em um lugar que todos possam te ver, e os Lightwood também, e então nós vamos conseguir que Magnus tire Simon da prisão e o leve de volta a Nova York.
— Eu odeio ter que dizer isso, Clary, mas não tem como Magnus fazer isso. Eu não me importo do quão bonitinho ele ache que Alec é, ele não vai ir diretamente contra a Clave como um favor para nós.
— Ele poderia — Clary respondeu — pelo Livro Branco.
Jace piscou.
— O quê?
Rapidamente, Clary disse a ele sobre a morte de Ragnor Fell, sobre Magnus aparecendo no lugar de Fell e sobre o livro de magia. Jace escutou com uma atenção impressionada até que ela terminasse.
— Demônios? — Ele indagou. — Magnus disse que Fell foi morto por demônios?
Clary voltou seus pensamentos para a conversa na casa de Fell.
— Não... ele disse que o lugar fedia a algo de origem demoníaca. E que Fell foi morto pelos “servos de Valentim”. Isso foi tudo o que ele disse.
— Algumas magias negras deixam uma aura que fede como demônios — Jace observou — se Magnus não foi específico, provavelmente foi por não estar muito satisfeito de que há um bruxo aí fora praticando magia negra, quebrando a Lei. Mas isto dificilmente é a primeira vez que Valentim consegue que uma das Crianças de Lilith faça suas ordens nojentas. Se lembra da garoto bruxo que ele matou em Nova York?
— Valentim usou o sangue dele para o ritual. Eu me lembro — Clary estremeceu — Jace, Valentim quer o Livro pela mesma razão que eu? Para acordar minha mãe?
— Pode ser. Ou se Magnus estiver certo, Valentim poderia apenas querê-lo pelo poder que pode ganhar. De qualquer modo, é melhor nós o conseguirmos antes que ele o faça.
— Você acha que há alguma chance de ele estar na Mansão Wayland?
— Eu sei que está lá — Jace respondeu, para sua surpresa — este livro de receitas? Receitas para Donas de Casa ou tanto faz? Eu o vi antes. Na biblioteca da mansão. Era o único livro de receitas lá.
Clary se sentiu tonta. Ela quase tinha deixado de acreditar que isso podia ser verdade.
— Jace... se você me levar para a mansão, e nós conseguirmos o livro, eu vou para casa com Simon. Faça isso por mim e irei para Nova York, e eu não voltarei, juro.
— Magnus estava certo – há barreiras de desorientação na mansão — ele disse lentamente — eu vou te levar lá, mas não é perto. Andando, poderia nos levar cinco horas.
Clary alcançou e puxou a estela dele para fora da presilha de seu cinto. Ela segurou-a entre eles, onde ela brilhou com uma tênue luz branca parecida com as torres de vidro.
— Quem disse sobre ir andando?

***

— Você recebe estranhos visitantes, Diurno — Samuel disse — primeiro Jonathan Morgenstern, e agora o vampiro líder da cidade de Nova York. Estou impressionado.
Jonathan Morgenstern? Levou um momento para perceber que era, é claro, Jace. Ele estava sentado no chão no centro do quarto, virando o frasco vazio em suas mãos repetidas vezes.
— Eu suponho que sou mais importante do que imaginava.
— E Isabelle Lightwood trazendo sangue para você — Samuel continuou — esse é perfeitamente um serviço de entrega.
A cabeça de Simon se levantou.
— Como você sabe que Isabelle o trouxe? Eu não disse nada...
— Eu a vi através da janela. Ela se parece com sua mãe — Samuel disse — pelo menos, o modo que sua mãe parecia anos atrás — houve uma pausa embaraçosa — você sabe que o sangue é só um tapa-buraco. Muito em breve o Inquisidor vai começar a imaginar se você vai morrer de fome. Se te achar perfeitamente saudável, ele vai calcular algo e te matar de qualquer jeito.
Simon olhou para o teto. As runas esculpidas que cobriam cada pedra pareciam areia áspera em uma praia.
— Acho que terei que acreditar em Jace quando ele disse que vão achar um modo de me libertar.
Quando Samuel não disse nada em retorno, ele adicionou:
— E vou pedir para ele tirar você também, prometo. Não irei deixar você aqui embaixo.
Samuel fez um ruído sufocado, como uma risada que não podia sair direito de sua garganta.
— Ah, eu não acho que Jace Morgenstern vai querer me resgatar. Além disso, morrer de fome aqui é o menor de seus problemas, Diurno. Em breve, Valentim irá atacar a cidade, e então nós provavelmente seremos mortos.
Simon piscou.
— Como você pode ter tanta certeza?
— Eu era próximo dele de certa maneira. Sabia seus planos. Seus objetivos. Ele tenciona destruir as barreiras de Alicante e atingir a Clave no coração de seu poder.
— Mas pensei que nenhum demônio poderia passar as barreiras. Pensei que elas eram impenetráveis.
— É o que se diz. Exige sangue de demônio trazer as barreiras abaixo, você vê, e isso só pode ser feito dentro de Alicante. Mas já que nenhum demônio pode atravessar as barreiras, bem, é um perfeito paradoxo, ou deveria ser. Mas Valentim alega que encontrou uma maneira de contornar isso, um modo de romper. E eu acredito nele. Ele vai encontrar um modo de trazer as barreiras abaixo, e virá para dentro da cidade com seu exército demônio, e matará todos nós.
A certeza calma na voz de Samuel enviou um tremor na espinha de Simon.
— Você soa terrivelmente resignado. Não deveria fazer alguma coisa? Prevenir a Clave?
— Eu já os preveni. Quando me interrogaram. Eu disse várias vezes que Valentim pretendia destruir as barreiras, mas eles me rejeitaram. A Clave pensa que as barreiras ficarão de pé para sempre por que elas tem estado por mil anos. Foi o que aconteceu em Roma, até que os bárbaros vieram. Tudo cai um dia — ele riu: uma amarga, risada enraivecida — considere como uma corrida para ver quem te mata primeiro, Diurno – Valentim, os outros Seres do Submundo ou a Clave.

***

Em algum lugar entre o aqui e ali, a mão de Clary foi arrancada da de Jace. Quando o furacão a cuspiu e ela bateu no chão, caiu sozinha, duramente, e rolou arfando para uma parada. Ela se sentou lentamente e olhou ao redor. Estava repousando no centro de um tapete persa jogado sobre o piso de uma larga sala de paredes de pedra. Havia artigos de mobília aqui e ali; lençóis brancos jogados sobre eles os tornavam fantasmas volumosos. Cortinas de veludo desciam sobre as enormes janelas de vidro; o veludo era cinza – branco com a poeira, e partículas de poeira dançavam ao luar.
— Clary? — Jace emergiu vindo de uma grande forma branca sob um toldo; aquilo podia ter sido um piano de cauda. — Está tudo bem?
— Tudo ótimo — ela se endireitou, retrocedendo um pouco. Seu cotovelo doía — além do fato de que Amatis provavelmente vai me matar quando voltarmos. Considerando que eu quebrei todos os seus pratos e abri um Portal em sua cozinha.
Ele estendeu a mão para ela.
— Pelo o que quer que seja, isso valeu a pena — ele falou, ajudando-a a ficar de pé — fiquei muito impressionado.
— Obrigada — Clary olhou ao redor — então aqui é onde você cresceu? É como algo de um conto de fadas.
— Eu estava pensando em um filme de terror — Jace observou — Deus, há anos que não estive neste lugar. Não costumava ser tão...
— Tão frio? — Clary estremeceu um pouco.
Ela abotoou seu casaco, mas o frio na mansão era mais do que um frio físico: o lugar parecia frio, como se lá nunca tivesse havia calor, luz ou risadas dentro dele.
— Não. Sempre foi frio. Eu ia dizer empoeirado.
Ele pegou uma pedra enfeitiçada do bolso, que reluziu para a vida entre os dedos dele. Seu brilho branco iluminou o rosto dele por baixo, discernindo as sombras embaixo de suas maçãs do rosto, as concavidades de suas têmporas.
— Este é o escritório, e precisamos da biblioteca. Vamos lá.
Ele a guiou por um longo corredor alinhado com dezenas de espelhos que davam de volta seus próprios reflexos. Clary não tinha percebido o quão desgrenhada parecia: seu casaco marcado com poeira, o cabelo confuso pelo vento. Ela tentou alisá-lo discretamente e capturou um sorriso de Jace no próximo espelho. Por alguma razão, sem dúvida uma misteriosa magia de Caçador de Sombras que ela não tinha esperança de compreender, o cabelo dele parecia perfeito.
O corredor era alinhado com portas, algumas abertas; através delas Clary podia vislumbrar outros quartos, cheios de poeira e com falta de uso – parecendo como o escritório tinha sido.
Michael Wayland não tinha nenhum parente, Valentim tinha dito, então ela supôs que ninguém tinha herdado este lugar depois da “morte” dele – ela tinha presumido que Valentim tinha continuado vivendo aqui, mas claramente não era o caso. Tudo cintilava a tristeza e desuso. Em Renwick, Valentim tinha chamado este lugar de “lar”, tinha mostrado-o para Jace no Portal do espelho, um canto dourado da memória dos campos verdes e pedras suavizadas, mas que, Clary pensou, tinha sido uma mentira também. Era claro que Valentim não tinha realmente morado aqui há anos – talvez tivesse apenas deixado aqui para apodrecer, ou tinha vindo aqui só ocasionalmente, para andar pelos corredores escurecidos como um fantasma.
Eles alcançaram uma porta no fim de um corredor e Jace a empurrou com os ombros, ficando atrás de pé, deixando Clary entrar antes dele.
Ela tinha imaginado a biblioteca do Instituto, e esta sala não era inteiramente o contrário dela: as mesmas paredes preenchidas com fileiras após fileiras de livros, as mesmas escadas de rodinhas, de modo que as altas prateleiras pudessem ser alcançadas. O teto era plano e com vigas, porém lá não havia mesa. Cortinas de veludo verde, as pregas cobertas com poeira, estavam penduradas sobre janelas que alternavam vidraças verdes e azuis. No luar elas pareciam cintilar como gelo colorido. Além do vidro, tudo estava negro.
— Esta é a biblioteca? — Perguntou para Jace em um sussurro, embora não tivesse certeza do porquê estava sussurrando.
Havia algo tão profundamente silencioso sobre a grande casa vazia.
Jace estava olhando além dela, seus olhos escuros com as memórias.
— Eu costumava sentar naquele parapeito da janela e ler o que meu pai tivesse designado para mim naquele dia. Diferentes línguas em diferentes dias – francês no sábado, inglês na segunda – mas eu não me lembro agora qual dia era latim, se era na segunda ou terça....
Clary teve uma súbita imagem brotando de Jace quando garotinho, o livro balançando em seus joelhos enquanto ele se sentava na fresta da janela, examinando adiante... adiante o quê? Havia jardins? Uma vista? Uma parede alta de espinhos como a parede ao redor do castelo da Bela Adormecida? Ela o viu enquanto ele lia, a luz que vinha através da janela lançando quadrados de azul e verde sobre seu cabelo loiro e o pequeno rosto mais sério do que de uma crianças de dez anos de idade deveria ter.
— Eu não me lembro — ele disse novamente, olhando para a escuridão.
Ela tocou o ombro dele.
— Isso não importa, Jace.
— Eu acho que não.
Ele se agitou, como se caminhasse para fora de um sonho, e se moveu através do cômodo, a pedra enfeitiçada iluminado seu caminho. Ele se ajoelhou abaixo para inspecionar uma fileira de livros e se endireitou com um deles em sua mão.
— Receitas simples para donas de casa — ele anunciou — aqui está ele.
Clary se apressou através da sala e tomou o livro dele. Era um livro de aspecto plano com uma lombada azul, e empoeirada, como tudo dentro da casa. Quando o abriu, poeira enxameou acima de suas páginas como uma reunião de traças.
Um largo buraco quadrado tinha sido cortado no centro do livro. Ajustado dentro do buraco, como uma joia em um engaste, estava um pequeno volume, aproximadamente do tamanho de um livro de contos, confinado em couro branco com um título impresso em letras latinas douradas. Clary reconheceu as palavras para “branco” e “livro”, mas quando o levantou e o abriu, para sua surpresa as páginas estava cobertas com finas escritas araneiforme em uma língua que ela não podia compreender.
— Grego — Jace revelou, olhando acima do ombro dela — de variante antiga.
— Você pode ler?
— Não facilmente — admitiu — faz anos. Mas Magnus será capaz, imagino.
Ele fechou o livro e deslizou-o dentro do bolso do casaco verde dela antes de se virar de volta para as prateleiras, deslizando seus dedos ao longo das fileiras de livros, as pontas de seus dedos traçando seus dorsos.
— Há algum deles que você quer levar? — ela perguntou gentilmente. — Se você quiser...
Jace riu e largou a mão.
— Eu só era autorizado a ler o que era designado — ele contou — algumas prateleiras tinham livros que não era nem mesmo permitido que eu tocasse.
Ele indicou uma fileira de livros, mais altos, envolvidos em couro marrom.
— Eu li um deles uma vez, quanto tinha cerca de seis anos, só para ver sobre que bobagem era. Ele veio a ser um diário que meu pai estava mantendo. Sobre mim. Registros sobre “meu filho, Jonathan Christopher.” Ele me açoitou com um cinto quando me encontrou lendo. Na verdade, essa foi a primeira vez que eu soube que eu tinha um nome do meio.
Uma súbita dor pelo ódio de seu pai correu através de Clary.
— Bem, Valentim não está aqui agora.
— Clary... — Jace começou, um nota de alerta em sua voz, mas ela já tinha alcançado acima e puxado um dos livros da prateleira proibida, jogando-o no chão. Ele fez uma pancada satisfeita. — Clary!
— Ah, vamos lá.
Ela fez isso de novo, jogando outro livro abaixo, e então outro. Poeira inflava vindo de suas páginas enquanto acertavam o chão.
— Tente você.
Jace olhou para ela por um momento, e então um meio sorriso rasgou o canto de sua boca. Se esticando, ele arrastou seu braço ao longo da prateleira, jogando o resto dos livros no chão com um barulho alto. Ele sorriu – e então se interrompeu, levantando a cabeça, como um gato atiçando suas orelhas para um barulho distante.
— Você ouviu isso?
Ouviu o quê? Clary estava para perguntar, e parou.
Havia um som, ficando alto agora – um alto zunindo arremessando e triturando, como o som de máquinas voltando a vida. O som parecia estar vindo de dentro da parede. Ela deu um passo involuntário para trás no momento em que as pedras em frente a eles deslizaram para trás com um rangido, um grito enferrujado. Uma abertura atrás das pedras – um tipo de passagem rudemente cortado na parede. Além da entrada estava um conjunto de escadas, levando para dentro das trevas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trono de Vidro

Os Instrumentos Mortais

Trono de Vidro