Capítulo 9 - E a morte não terá qualquer autoridade
Isabelle tinha dito a verdade: o Instituto estava inteiramente deserto. Quase inteiramente, de qualquer forma. Max estava dormindo no sofá vermelho do saguão quando eles chegaram. Seus óculos estavam ligeiramente tortos e ele claramente parecia que tinha caído no sono: havia um livro aberto no chão e seus pés deslizavam acima do canto do sofá de uma maneira que parecia desconfortável.
O coração de Clary parou. Ela se lembrou de Simon na idade de nove ou dez, de óculos torto e caindo nas orelhas.
— Max é como um gato. Ele pode dormir em qualquer lugar.
Jace se aproximou e puxou os óculos do rosto de Max, colocando-os numa mesa próxima. Havia um olhar em seu rosto que Clary nunca tinha visto antes – uma suavidade protetora que a surpreendeu.
— Ah, deixe as coisas dele em paz – você apenas vai colocar lama nelas — Isabelle disse zangada, desabotoando seu casaco molhado.
Seu vestido estava grudado ao longo do seu dorso e a água escurecia o grosso cinto de couro ao redor de sua cintura. O brilho de seu chicote enrolado era apenas visível onde a alça aparecia no canto de seu cinto. Ela estava franzindo as sobrancelhas.
— Eu posso sentir um resfriado chegando. Estou indo tomar um banho quente.
Jace viu-a desaparecer corredor abaixo.
As vezes ela me lembra o poema. “Isabelle, Isabelle não se preocupe. Isabelle não grite ou fuja...”
— Você nunca se sentiu assustado? — Clary perguntou a ele.
— Algumas vezes — Jace tirou o casaco molhado de seus ombros e o pendurou em um cabide ao lado do de Isabelle — embora, ela esteja certa sobre o banho quente; eu poderia com certeza precisar de um.
— Eu não tenho nada para trocar — Clary disse, subitamente querendo um banho para si.
Seus dedos coçavam para discar o número de Simon no celular, para descobrir se ele estava bem.
— Eu vou só esperar por você aqui.
— Não seja boba. Eu vou lhe dar uma camiseta.
Os jeans dele estavam ensopados e grudados nos ossos de seu quadril, mostrando uma faixa de pálida e tatuada pele entre o tecido da calça e a borda de sua camiseta.
Clary olhou para longe.
— Eu não acho...
— Vamos lá — seu tom era firme — há uma coisa que quero mostrar pra você.
Clary verificou a tela de seu telefone enquanto seguia Jace pelo corredor para o quarto dele. Simon não tinha tentado ligar. Gelo parecia ter se cristalizado dentro do peito dela. Duas semanas atrás, ela e Simon tinham tido uma briga. Agora ele parecia estar bravo com ela o tempo todo.
O quarto de Jace parecia do jeito como se lembrava dele: limpo e vazio como um quarto de um monge. Não havia nada no cômodo que lhe dizia algo sobre Jace: nenhum pôster nas paredes, nenhum livro empilhado na mesa de cabeceira. Mesmo o edredom na cama era liso e branco.
Ele foi para o armário e puxou uma camiseta azul de mangas longas de uma gaveta. Ele a estendeu para Clary.
— Esta está lavada. Provavelmente vai ficar muito grande em você, mas... — ele deu de ombros. — Eu vou tomar um banho. Grite se precisar de alguma coisa.
Ela acenou, segurando a camisa em seu peito como se fosse um escudo. Ele pareceu como se estivesse prestes a dizer outra coisa, mas aparentemente pensou melhor sobre isso. Com outro dar de ombros, fechou a porta firmemente atrás dele.
Clary se afundou na cama, a camisa em seu colo, e puxou o telefone para fora do bolso. Ela discou o número de Simon. Depois de quatro toques, caiu no correio de voz.
— Oi, você ligou para Simon. Ou eu estou longe de telefone ou estou evitando você. Me deixe uma mensagem e...
— O que você está fazendo?
Jace estava na porta aberta do banheiro. A água corria bem alta pelo chuveiro atrás dele e o banheiro estava cheio de vapor. Ele estava sem a camisa e descalço, os jeans úmidos bem abaixo de seus quadris, mostrando profundas endentações acima dos ossos do quadril, como se alguém tivesse pressionado os dedos sobre a pele.
Clary bateu o telefone fechado e o largou em cima da cama.
— Nada. Checando a hora.
— Há um relógio próximo da cama — Jace apontou — você estava ligando para o mundano, não é?
— O nome dele é Simon — Clary embrulhou a camisa de Jace em uma bola entre seus punhos — e você não tem que ser um idiota sobre ele toda hora. Ele ajudou você mais de uma vez.
Os olhos de Jace estavam semicerrados, pensativos. O banheiro estava rapidamente se enchendo com o vapor, fazendo o cabelo dele mais cacheado.
— E agora você se sente culpada por ele ter se afastado. Eu não me incomodaria em ligar. Tenho certeza de que ele está te evitando.
Clary não tentou manter a raiva longe de sua voz.
— E você sabe disso porque você e ele são muito chegados?
— Eu sei por que vi o olhar em seu rosto antes de ele sair. Você não estava olhando para ele, mas eu estava.
Clary limpou seu cabelo ainda úmido de seus olhos. Suas roupas irritavam onde estavam coladas em sua pele, e ela suspeitou que cheirava como o fundo de uma lagoa, e não podia parar de lembrar do rosto de Simon quando ele olhava para ela na Corte Seelie – como se a odiasse.
— É sua culpa — ela disse subitamente, a raiva se juntando ao redor de seu coração — você não deveria ter me beijado daquele jeito.
Ele estava inclinado contra o batente da porta; agora se endireitou.
— Como eu devia ter beijado você? Existe outra maneira que você goste?
— Não — suas mãos tremeram em seu colo. Elas estavam frias, brancas enrugadas pela água. Ela entrelaçou os dedos juntos para parar o tremor — eu só não queria ter sido beijada por você.
— Não me pareceu que qualquer um de nós tinha uma escolha no assunto.
— É isso o que eu não entendo! — Clary explodiu. — Por que é que ela me fez beijar você? A Rainha, eu quero dizer. Por que ela nos forçou a fazer... isso? Que prazer ela possivelmente poderia ter tido isso?
— Você ouviu o que a Rainha disse. Ela pensou que estava me fazendo um favor.
— Isso não é verdade.
— É verdade. Quantas vezes eu tenho que te dizer? O Povo das Fadas não mente.
Clary pensou no que Jace tinha dito em Magnus. Eles vão descobrir o que você mais gosta no mundo e lhe dar isso – com uma farpa na calda da dádiva que vai fazer você se lamentar de ter desejado isso em primeiro lugar.
— Então ela estava errada.
— Ela não estava errada — o tom de Jace era amargo — ela viu a maneira com eu olhava para você e você para mim, e Simon para você, e brincou com a gente, como instrumentos que nós somos para ela.
— Eu não olho para você — Clary sussurrou.
— O quê?
— Eu disse que não olho para você.
Ela libertou suas mãos que tinham estado presas juntas em seu colo. Havia marcas vermelhas onde os dedos dela se apertaram um contra o outro.
— Pelo menos eu tento não olhar.
Seus olhos estavam estreitados, apenas um brilho de ouro mostrando-se através dos cílios, e ela se lembrou da primeira vez que o tinha visto, como ele a lembrava de um leão dourado e mortal.
— Por que não?
— Por que você acha? — As palavras dela eram quase sem som, meramente um sussurro.
— Então por quê? — Sua voz estremeceu. — Porque tudo isso com Simon, por que continuar me empurrado para longe, não me deixando perto de você...
— Porque é impossível — ela disse, e a última palavra saiu como uma espécie de gemido, apesar de seus esforços para se controlar — você sabe disso tão bem quanto eu!
— Porque você é minha irmã.
Ela concordou sem falar.
— Possivelmente. — Jace disse. — E por causa disso você decidiu que seu velho amigo Simon seria uma distração útil?
— Não é desse jeito. Eu amo Simon.
— Como você ama Luke. Como você ama sua mãe.
— Não — sua voz era fria e pontiaguda como um cubo de gelo — não me diga o que eu sinto.
Um pequeno músculo pulou no canto da boca dele.
— Eu não acredito em você.
Clary se levantou. Ela não podia encontrar os olhos dele, então em vez disso fixou o olhar sobre a fina cicatriz no ombro direito dele, uma lembrança de algum ferimento antigo. Essa vida de cicatrizes e matança, Hodge disse uma vez. Você não faz parte nisso.
— Jace, por que você está fazendo isso comigo?
— Porque você está mentindo para mim. E está mentindo para si mesma.
Os olhos de Jace estavam em chamas, e ela podia ver que as mãos dele estavam fechadas em seus punhos mesmo estando afundadas em seus bolsos.
Alguma coisa dentro de Clary rachou e quebrou, e as palavras jorraram.
— O que você quer que eu diga? A verdade? A verdade é que eu amo Simon como eu deveria amar você, e quero que ele seja o meu irmão e você não, mas não posso fazer nada sobre isso e nem você! Ou você tem alguma ideia, já que é tão malditamente esperto?
Jace sugou o seu fôlego e ela percebeu que ele não esperava que Clary fosse dizer o que disse, nem em um milhão de anos. O olhar no rosto dele dizia muito.
Ela lutou para recuperar sua compostura.
— Jace, sinto muito, eu não queria dizer...
— Não. Você não está arrependida. Não se arrependa.
Ele disse se movendo em direção a ela, quase tropeçando sob seus pés – Jace, que nunca tropeçou, nunca tropeçou em nada, nunca fez um movimento não gracioso. Suas mãos vieram para envolver o rosto dela; Clary sentiu o calor das pontas de seus dedos, a milímetros de sua pele; sabia que devia puxá-los para longe, mas ficou congelada; olhando para ele.
— Você não entende — ele disse. A voz dele tremeu. — Eu nunca me senti desse jeito com ninguém. Nunca pensei que pudesse. Eu pensei... o jeito como eu cresci... meu pai...
— O amor é para destruir. Eu me lembro.
— Pensei que parte do meu coração estava quebrado — ele falou, e lá havia um olhar no rosto dele enquanto ele falava como se estivesse surpreso em escutar a si mesmo dizendo estas palavras, do coração — para sempre. Mas você...
— Jace. Não — ela levantou e cobriu as mãos dele com as suas, dobrando os dedos dele nos dela — isso é inútil.
— Isso não é verdade — havia um desespero na voz dele — se nós dois nos sentimos do mesmo jeito...
— Não importa como nós nos sentimos. Não há nada que possamos fazer — ela ouviu sua voz como se fosse uma estranha falando: remota, infeliz — onde nós vamos viver juntos? Como poderíamos viver?
— Nós podíamos manter isso em segredo.
— As pessoas vão nos achar. E não quero mentir para a minha família, você quer?
Sua resposta foi amarga.
— Que família? Os Lightwood me odeiam de qualquer forma.
— Não, eles não odeiam. E eu nunca poderia dizer ao Luke. E minha mãe, e se ela acordasse, o que eu diria a ela? Que o que nós queremos, seria repugnante para todos que nós nos importamos...
— Repugnante?
Ele largou as mãos de seu rosto como se ela o tivesse empurrado. Ele soou atordoado.
— O que nós sentimos – o que eu sinto – é repugnante para você?
Ela segurou sua respiração e olhou para seu rosto.
— Talvez — ela sussurrou — eu não sei.
— Então, você devia ter me dito pra começar.
— Jace...
Mas ele tinha ido, sua expressão fechada e trancada como uma porta. Era difícil acreditar que ele nunca olhou para ela de outra maneira.
— Sinto muito eu ter dito isso então — sua voz era dura, formal — não vou te beijar novamente. Você pode contar com isso.
O coração de Clary deu uma devagar e inútil cambalhota enquanto ele se afastava dela, retirando uma toalha de cima do armário, e seguia em direção ao banheiro.
— Mas... Jace, o que você está fazendo?
— Terminando o meu banho. E se você me fizer sair correndo da água quente, eu vou ficar muito chateado.
Ele entrou no banheiro, chutando a porta fechada atrás dele.
Clary desabou na cama e encarou o teto. Ele era branco, como o rosto de Jace tinha sido antes que ele lhe virasse as costas para ela. Rolando, ela percebeu que estava deitada em cima de sua camisa azul. Ainda cheirava como ele, como sabonete, fumaça e sangue acobreado. Curvando em torno dela, como tinha se curvado uma vez em torno de seu cobertor preferido quando ela era pequena, ela fechou seus olhos.
No sonho, ela olhava abaixo para a água tremulando, espalhando-se abaixo dela como um espelho sem fim que refletia o céu noturno. E como um espelho, ele era sólido e duro, e Clary podia caminhar sobre ele. Ela andou, cheirando o ar da noite, das folhas molhadas e o cheiro da cidade, brilhando à distância como um castelo de fadas envolvido em luzes – e onde ela pisou, rachaduras como teias de aranha surgiram e lascas de vidro salpicaram acima como água.
O céu começou a brilhar. Ele estava iluminado com pontos de fogo, como a ponta de um fósforo queimando. Os pontos caíram, uma chuva de brasas vindas do céu, e ela se cobriu, levantando os braços. Uma bola caiu bem em frente a ela, uma fogueira arremessada, mas quando atingiu o chão, ela se tornou um menino.
Era Jace, todo em ouro queimando, com seus olhos e cabelo de ouro, asas brancas com reflexos dourados brotando de suas costas, maiores e mais grossas do que qualquer pena de pássaro. Ele sorriu como um gato e apontou para trás dela, e Clary se virou para ver um menino de cabelo escuro.
Era Simon? Estava lá em pé, as asas estendidas nas costas dele também, de penas pretas como a meia-noite, cada uma das penas estava gotejando com sangue.
Clary acordou ofegando, suas mãos presas na camisa de Jace. Estava escuro no quarto, a única luz jorrando de uma janela estreita ao lado da cama. Ela se sentou. Sua cabeça parecia pesada e a parte de trás do pescoço doía. Ela escaneou o quarto lentamente e pulou quando um pequeno ponto brilhante de luz, como os olhos de um gato na escuridão, brilharam para ela.
Jace estava sentado em uma poltrona ao lado da cama. Ele estava usando jeans e um suéter cinza e seu cabelo parecia quase seco. Estava segurando alguma coisa em sua mão que brilhava como metal. Uma arma? Apesar de ele poder estar a salvo, aqui no Instituto, Clary não podia imaginar.
— Você dormiu bem?
Ela acenou. Sua boca estava seca.
— Por que você não me acordou?
— Eu achei que você podia aproveitar o descanso. Além do mais, você estava dormindo como um morto. Até mesmo babou — ele adicionou — em minha camisa.
A mão de Clary voou para sua boca.
— Desculpe.
— Não é frequentemente que eu vejo alguém babar — Jace observou — especialmente com esse total abandono. De boca aberta e tudo mais.
— Ah, cala a boca.
Ela apalpou entre as cobertas da cama até localizar seu telefone e checá-lo de novo, apesar de saber o que ele ia dizer. Sem chamadas.
— São três da manhã — ela notou com tristeza — você acha que Simon está bem?
— Eu acho que ele é estranho, na verdade. Apesar de que isso não tem a ver com as horas.
Ela botou o telefone no bolso de seus jeans.
— Eu vou me trocar.
O banheiro pintado de branco de Jace não era maior do que o de Isabelle, porém era consideravelmente limpo. Não havia muita variação entre os quartos do Instituto, Clary pensou, fechando a porta atrás dela, mas pelo menos havia privacidade.
Ela arrancou fora a blusa molhada e a pendurou no toalheiro, jogou água em seu rosto e passou um pente através de seu desordenado cabelo cacheado.
A camisa de Jace era grande demais para ela, mas o material era suave contra sua pele. Ela enrolou as mangas e voltou para o quarto, onde encontrou Jace sentado exatamente onde tinha estado antes, olhando com mau-humor o objeto faiscante em suas mãos. Ela se inclinou sobre a parte de trás da poltrona.
— O que é isso?
Ao invés de responder, ele virou para cima, então ela poderia ver apropriadamente.
Era um pedaço recortado de vidro quebrado, mas, em vez de refletir o rosto dela, ele segurava uma imagem de uma grama verde e um céu azul e desfolhados galhos de árvores.
— Eu não sabia que você guardou isso. Esse pedaço do Portal.
— É o motivo de eu ter vindo aqui. Para pegar isso — lembranças e abominação estavam misturadas na voz dele — fico pensando que talvez eu possa ver meu pai em seu reflexo. Descobrir o que ele está fazendo.
— Mas ele não está lá, está? Pensei que ele estivesse em algum lugar aqui. Na cidade.
Jace balançou sua cabeça.
— Magnus esteve procurando por ele e ele não pensa assim.
— Magnus esteve procurando por ele? Eu não sabia disso. Como...
— Magnus não chegou a ser o Alto Bruxo por nada. Seu poder se estende através da cidade e fora dela. Ele pode sentir o que está lá fora em certo perímetro.
Clary bufou.
— Ele pode sentir distúrbios na Força?
Jace girou na cadeira e amarrou a cara para ela.
— Eu não estou brincando. Depois que um bruxo foi morto em Tribeca, ele começou a procurar. Quando fui morar na casa dele, ele me pediu alguma coisa de meu pai para tornar a busca mais fácil. Eu dei a ele o anel de Morgenstern. Ele disse que me deixaria saber se sentisse Valentim em algum lugar na cidade, mas até agora não achou.
— Talvez ele apenas quisesse seu anel — Clary observou — ele com certeza usa um monte de joias.
— Ele pode ficar com ele.
A mão de Jace estava apertada ao redor do caco de espelho; Clary percebeu com alarme o sangue jorrando ao redor das bordas recortadas onde cortavam sua pele.
— É inútil para mim.
— Ei — ela disse, e se inclinou para tirar o vidro de sua mão — calma aí.
Ela deslizou o pedaço do Portal para dentro do bolso da jaqueta dele que estava pendurada na parede. As palmas de Jace estavam pontilhadas com linhas vermelhas.
— Talvez nós devêssemos voltar a Magnus — ela disse tão gentilmente quanto podia — Alec tem estado lá há muito tempo, e...
— Duvido que ele se importe de qualquer maneira — Jace respondeu, mas ele se levantou obedientemente e alcançou sua estela, que estava escorada contra a parede. Enquanto ele desenhava uma runa de cura nas costas de sua mão direita que sangrava, ele disse: — há algo que eu queria te perguntar.
— E o que é?
— Quando você me pegou na cela na Cidade do Silêncio, como fez isso? Como você abriu a porta?
— Ah. Eu apenas usei uma runa de abertura normal, e...
Ela foi interrompida por um pungente tocar de sinos e lançou a mão dentro de seu bolso antes que percebesse que o som que tinha ouvido era muito mais alto e estridente do que qualquer som que o telefone pudesse fazer. Ela olhou ao redor em confusão.
— Essa é a campainha do Instituto — Jace disse, agarrando sua jaqueta — vamos lá.
Eles estavam a meio caminho do saguão quando Isabelle apareceu na porta de seu próprio quarto, usando um roupão de algodão, uma máscara de seda rosa em sua testa e um expressão de semiconfusão.
— São três da manhã! — ela disse para eles, em um tom que sugeria que aquilo tudo era por causa de Jace, ou possivelmente culpa de Clary. — Quem toca nossa campainha às três da manhã?
— Talvez é a Inquisidora — Clary sugeriu, se sentindo subitamente gelada.
— Ela pode entrar por conta própria — Jace disse — qualquer Caçador de Sombras pode. O Instituto está apenas fechado para mundanos e Seres do Submundo.
Clary sentiu seu coração contrair.
— Simon! Deve ser ele!
— Ah, pelo amor de Deus — Isabelle bocejou — ele está realmente andando nessa hora imprópria só para provar o amor dele por você ou algo assim? Ele não podia ter ligado? Os homens mundanos são tão bobos.
Eles haviam chegado ao saguão, que estava vazio; Max deve ter ido para cama por conta própria.
Isabelle caminhou através do salão e ligou um interruptor em uma parede ao longe. Em algum lugar dentro da catedral, um distante baque foi audível.
— Pronto — Isabelle disse — o elevador está a caminho.
— Eu não posso acreditar que ele não teve a dignidade e a presença de espírito de apenas ficar bêbado e cair em alguma sarjeta — Jace falou — eu devo dizer, estou desapontado com o amiguinho.
Clary mal o escutou. Um crescente sentimento de medo deixou seu sangue lento e espesso. Ela lembrou de seu sonho: os anjos, o gelo, Simon com suas asas sangrando. Ela estremeceu.
Isabelle olhou para ela com simpatia.
— Está frio aqui — ela observou.
Ele se aproximou e tirou um casaco de veludo de um dos ganchos de casaco.
— Aqui, ponha isso.
Clary colocou o casaco e o puxou fechado ao redor dela. Era muito longo, mas esquentava. Tinha um capuz, também, forrado com cetim. Clary empurrou-o para trás, então pôde ver as portas do elevador se abrindo.
Elas se abriam em um caixa vazia cujo lados espelhados refletiam a palidez dela e o rosto assustado. Sem uma pausa para pensar, ela caminhou para dentro.
Isabelle olhou para ela em confusão.
— O que você está fazendo?
— É Simon lá embaixo — Clary disse — eu sei que é.
— Mas...
De repente, Jace estava ao lado de Clary, segurando as portas abertas para Isabelle.
— Vamos lá, Izzy.
Com um suspiro teatral, ela os seguiu.
Clary tentou captar o olhar dele enquanto os três desciam em silêncio – Isabelle tirando o último rolinho de seu cabelo – mas Jace não olhou para ela. Ele estava olhando para si mesmo lateralmente no espelho do elevador, assobiando suavemente debaixo de sua respiração, como fazia quando estava nervoso. Ela se lembrou do ligeiro tremor no toque dele quando tinha beijado-a na Corte Seelie. Ela pensou no olhar no rosto de Simon – e então dele quase correndo para longe dela, desaparecendo dentro das sombras do parque. Havia um nó de pavor dentro do peito dela e ela não sabia o motivo.
As portas do elevador se abriram na nave da catedral, viva com as luzes dançando das velas. Ela se empurrou passando Jace na sua pressa de sair do elevador e praticamente correu pelo estreito corredor entre os bancos. Tropeçou nas bordas arrastadas de seu casaco e dobrou-o impacientemente antes de se lançar para as largas portas duplas. No lado de dentro, elas estavam barradas com ferrolhos de bronze do tamanho dos braços de Isabelle. Quando alcançou o mais alto ferrolho, a campainha tocou através da igreja novamente.
Ela ouviu Isabelle sussurrar algo para Jace, e então Clary estava se rebocando no ferrolho, arrastando-o para trás, quando sentiu a mão de Izzy sobre a dela, ajudando-a a abrir as pesadas portas.
O ar da noite varria o ar, fazendo as velas oscilarem nos seus suportes. O ar cheirava a cidade: de sal e fumaça, de concreto frio e lixo, e por baixo dos familiares cheiros, o cheiro de cobre, como o amargor de um centavo novo.
De primeira, Clary pensou que os degraus estivessem vazios. Então piscou e viu Raphael em pé lá, sua cabeça de cachos negros desarrumados pela brisa da noite, sua camisa branca aberta no pescoço para mostrar sua cicatriz na garganta. Em seus braços, ele segurava um corpo, que era tudo o que Clary viu quando olhou para ele em espanto, um corpo. Alguém morto, braços e pernas pendendo como cordas frouxas, a cabeça caída para trás para expor a garganta ferida. Ela sentiu o aperto de Jace em torno de seu braço, e só quando olhou mais de perto e viu a familiar jaqueta de veludo com o rasgo na manga, a camiseta azul por baixo agora manchada e pontilhada com sangue, ela gritou.
O grito foi sem som. Clary sentiu seus joelhos enfraquecerem e deslizaria para o chão se Jace não tivesse a segurado.
— Não olhe — ele disse em sua orelha — pelo amor de Deus, não olhe.
Mas ela não podia não olhar para o sangue cobrindo o cabelo castanho de Simon, a garganta rasgada, os talhos ao longo de seus pulsos pendentes.
Pontos negros pontilhavam sua visão enquanto ela lutava para respirar.
Foi Isabelle, que arrebatou um dos castiçais vazios ao lado da porta e o mirou em Raphael como se aquilo fosse uma enorme lança de três pontas.
— O que você fez a Simon?
Por um momento, sua voz clara e firme, ela soou exatamente como sua mãe.
— El no está muerto — Raphael disse, em uma voz calma e sem emoção, e desceu Simon ao chão quase aos pés de Clary, com uma surpreendente gentileza.
Ela tinha esquecido o quão forte ele poderia ser – ele tinha uma força não natural, apesar da sua magreza. À luz das velas que espirravam através da entrada, Clary podia ver que a camisa de Simon estava ensopada na frente com sangue.
— Você disse... — ela começou.
— Ele não está morto — Jace traduziu, segurando-a mais apertado — ele não morreu.
Clary se puxou para longe dele com um duro safanão e se jogou de joelhos no concreto. Ela não sentiu nojo em tocar a pele ensanguentada de Simon enquanto deslizava suas mãos embaixo da cabeça dele e o puxava para seu colo. Sentiu apenas o terrível e infantil pavor que lembrava ter tido aos cinco anos de idade quando tinha quebrado uma luminária muito cara. Uma voz dizia na parte de trás e sua cabeça para colocar esses cacos despedaçados juntos novamente.
— Simon — ela sussurrou, tocando o rosto dele. Seus olhos tinham sumido — Simon, sou eu.
— Ele não pode ouvir você — Raphael disse — ele está morrendo.
Ela levantou a cabeça.
— Mas você disse...
— Eu disse que ele não esta morto, ainda — Raphael disse — mas em poucos minutos – dez – talvez, o coração deve vai desacelerar e parar. Ele já está além de ver ou ouvir alguma coisa.
Os braços dela se apertaram ao redor dele involuntariamente.
— Nós temos que levá-lo a um hospital – ou chamar Magnus.
— Eles não podem lhe fazer nenhum bem — Raphael respondeu — você não entende.
— Não — Jace respondeu, sua voz tão suave quanto seda, com uma agulha afiada na ponta — nós não. E talvez você devesse se explicar. Por que de outro modo eu vou presumir que você é um perigoso sugador de sangue, e corto seu coração pra fora. Como eu deveria ter feito da última vez que nos encontramos.
Raphael sorriu para ele sem diversão.
— Você jurou não me causar dano, Caçador de Sombras. Se esqueceu?
— Eu não — Isabelle rebateu, brandindo seu castiçal.
Raphael ignorou-a. Ele ainda estava olhando para Jace.
— Eu me lembrei daquela noite em que vocês invadiram o Dumort procurando por seu amigo. É por isso que eu o trouxe aqui — ele gesticulou para Simon — quando eu o encontrei no hotel, em vez de deixar os outros beberem dele até a morte. Veja só, ele invadiu sem permissão, e por isso foi um jogo justo para nós. Mas eu mantive ele vivo, sabendo que ele era seu. Não tenho nenhum desejo de uma guerra com os Nephilim.
— Ele invadiu? — Clary disse em descrença. — Simon nunca teria feito algo tão estúpido e louco.
— Mas ele o fez — Raphael disse, com o traço de um sorriso desaparecendo — porque ele estava com medo de se tornar um de nós, e precisava saber se o processo poderia ser revertido. Você deve se lembrar que quando ele estava na forma de um rato, e você veio para buscar ele de nós, ele me mordeu.
— Muito ousado ele — Jace concordou — eu aprovo.
— Talvez. De qualquer modo, ele tomou do meu sangue em sua boca quando fez isso. Você sabe que assim é como nós passamos nossos poderes para outro. Através do sangue.
Através do sangue, Clary se lembrou de Simon se afastando para longe do filme de vampiro na TV, piscando na luz do sol no parque McCarren.
— Ele pensou que estava se tornando um de vocês — ela disse — ele foi para o hotel para ver se isso era verdade.
— Sim — Raphael concordou — a pena é que os efeitos do meu sangue provavelmente desapareceriam com o tempo se ele não tivesse feito nada. Mas agora...
Ele gesticulou para o corpo frouxo de Simon expressivamente.
— Agora o quê? — Isabelle perguntou, com uma ponta dura em sua voz. — Agora ele irá morrer?
— E ressurgir novamente. Agora ele vai ser um vampiro.
Com o castiçal apontado à frente, os olhos de Isabelle se arregalaram em choque.
— O quê?
— Espere e veja. Ele irá morrer e ressurgir como uma das Crianças da Noite. Que é também o motivo de eu vir. Simon é um dos meus agora.
Não havia nada em sua voz, sem lamento ou prazer, mas Clary não podia ajudar, mas se perguntou que contentamento oculto ele teria por tão oportuna sorte em uma efetiva barganha.
— Não há nada que possa ser feito? Nenhum jeito de reverter? — Isabelle exigiu, o pânico tocando a voz dela.
Clary pensou distantemente que aquilo era estranho, que os dois, Jace e Isabelle, que não gostavam de Simon, estarem fazendo todo o falatório. Mas talvez eles estivessem falando por ela precisamente por que ela não podia suportar dizer uma palavra.
— Vocês podem cortar a cabeça dele e queimar o coração em uma fogueira, mas duvido que vocês vão fazer isso.
— Não! — Os braços de Clary apertando em torno de Simon. — Não se atreva a machucá-lo.
— Eu não tenho nenhuma necessidade disso — Raphael disse.
— Eu não estava falando de você — Clary não olhou para cima — nem sequer pense nisso, Jace. Nem mesmo pense nisso.
Houve silêncio. Ela podia ouvir Isabelle inspirando preocupadamente, e Raphael, é claro, não respirava de jeito nenhum. Jace hesitou por um momento antes de responder.
— Clary, o que Simon quer? É isso o que ele deseja para si mesmo?
Ela ergueu sua cabeça. Jace estava olhando abaixo para ela, as três hastes de metal do castiçal ainda em sua mão, e de repente uma imagem surgiu em sua mente: Jace segurando Simon e mergulhando a afiada ponta dentro do peito dele, fazendo o sangue espalhar como uma fonte.
— Fique longe de nós! — ela gritou subitamente, tão alto que viu as distantes figuras caminhando ao longo da avenida em frente da catedral se virarem e olharem para trás, como se assustados com o barulho.
Jace ficou branco até as raízes de seu cabelo, tão branco que seus olhos arregalados pareciam discos de ouro, inumanos e estranhamente fora do lugar.
— Clary, você não acha...
Simon arfou de repente, arqueando no aperto de Clary. Ela gritou e o pegou ele, puxando-o para ela. Os olhos dele estavam arregalados, cegos e aterrorizados. Ele se aproximou. Ela não tinha certeza se ele estava tentando tocar o rosto dela ou agarrá-la, não sabendo quem ela era.
— Sou eu — Clary disse, gentilmente puxando a mão dele para baixo, enlaçando seus dedos juntos — Simon, sou eu, Clary.
As mãos dela escorregaram nas dele; quando ela olhou para baixo, viu que estavam molhadas com o sangue da camisa dele e das lágrimas que tinha deslizado de seu rosto sem que ela notasse.
— Simon, eu te amo.
As mãos dele se apertaram sobre a dela. Ele respirou com um som áspero – e então não respirou novamente.
Eu te amo, eu te amo. Eu te amo.
Suas últimas palavras para Simon pareceram ecoar nos ouvidos de Clary enquanto ele se afrouxava no aperto dela. Isabelle estava de repente próxima a ela, dizendo algo em seu ouvido, mas Clary não podia ouvi-la. O som de água correndo, como uma onda de maré, enchia suas orelhas. Ela assistiu enquanto Isabelle tentava gentilmente afastar as mãos dela para longe de Simon, e não pôde. Clary estava surpresa. Ela não sentia como se estivesse segurando ele tão apertadamente.
Desistindo, Isabelle se levantou e se virou furiosamente para Raphael.
Ela estava gritando. No meio da sua desgraça, a audição de Clary se ligou, como um rádio que tinha finalmente encontrado uma estação sem ruído.
— ... e agora o que nós temos que fazer? — Isabelle gritou.
— Enterre-o — Raphael disse.
O castiçal estava novamente na mão de Jace.
— Isso não tem graça.
— E não é para ter — disse o vampiro, interessado — é como somos feitos. Nós somos drenados, ensanguentados e enterrados. Quando ele escavar seu próprio caminho do túmulo, é quando um vampiro nasce.
Isabelle fez um som de nojo.
— Eu não acho que eu poderia fazer isso.
— Alguns não podem — Raphael concordou — se ninguém estiver lá para ajudá-los a escavar para fora, eles ficam encurralados como ratos debaixo da terra. Então eles vão ficar assim — Raphael disse piedosamente — mortos, mas não realmente mortos. Nunca caminhando.
Estavam todos olhando para ela. Isabelle e Jace como se estivessem segurando suas respirações, esperando pela sua resposta. Raphael pareceu apático, quase entediado.
— Você não entrou no Instituto porque você não pode, não é verdade? — Clary disse. — Porque é solo sagrado e você é maldito.
— Não é exatamente... — Jace começou, mas Raphael interrompeu-o com um gesto.
— Eu tenho que lhe dizer — respondeu o garoto vampiro — que não há muito tempo. Quanto mais esperarmos para colocá-lo no chão, menos será provável que ele seja capaz de escavar seu próprio caminho para fora dele.
Clary olhou para Simon. Ele realmente parecia como se estivesse dormindo, se não fosse pelos longos talhos em sua pele nua.
— Nós podemos enterrá-lo. Mas eu quero que seja em um cemitério judeu. E eu quero estar lá quando ele acordar.
Os olhos de Raphael faiscaram.
— Não será agradável.
— Nada nunca é — ela apertou sua mandíbula — vamos indo. Temos só algumas horas antes do amanhecer.
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