Epílogo - Pelo Céu, com as Estrelas

Eu te amei, então chamei estas marés dos homens em minhas mãos e escrevi minha vontade através do céu em estrelas.
– T. E. Lawrence


A fumaça subiu em uma preguiçosa espiral, trançando delicadas linhas de preto no céu claro. Jace, sozinho na colina com vistas para o cemitério, se sentou com os cotovelos apoiados nos joelhos e olhou a fumaça levada para o céu. A ironia não estava perdida nele: estes eram os restos de seu pai, afinal.
Ele podia ver o esquife, onde estava situado, obscurecido pela fumaça e chama, e o pequeno grupo de pé ao redor dele. Reconheceu o cabelo brilhante de Jocelyn de lá, e Luke de pé ao lado dela, sua mão nas costas dela. Jocelyn tinha sua cabeça virada de lado, para longe da pira em chamas.
Jace podia ter sido um daquele grupo, tinha esperado ser. Tinha passado os últimos dois dias na enfermaria, e só o deixaram sair esta manhã, assim poderia comparecer ao funeral de Valentim. Mas ele tinha chegado na metade do caminho para a pira, um pilha de ripas de madeira brancas como ossos e percebeu que não podia ir mais longe. Ao invés Jace se virou e caminhou acima para colina, longe da procissão de luto. Luke o tinha chamado, mas Jace não se virou.
Ele se sentou e observou-os se reunirem ao redor do esquife, observou Patrick Penhallow em sua vestimenta cor de pergaminho colocar a chama na madeira. Era a segunda vez naquela semana que ele tinha observado um corpo cremar, mas o de Max tinha sido dolorosamente pequeno, e Valentim era um homem grande – deitado de costas, com seus braços cruzados sobre o peito, uma lâmina serafim apertada em seu punho. Seus olhos estavam fechados com seda branca, como era o costume. Eles fizeram o bem a ele, Jace pensou, apesar de tudo.
Eles não tinham enterrado Sebastian. Um grupo de Caçadores de Sombras tinha partido de volta para o vale, mas não encontraram seu corpo – levado pelo rio, disseram, apesar de que Jace ainda tinha suas dúvidas.
Ele procurou por Clary na multidão ao redor do esquife, mas ela não estava lá. Fazia dois dias agora desde que a tinha visto pela última vez, no lago, e sentia falta dela quase com uma sensação física de algo faltando. Não era culpa dela que eles não tivessem se visto. Ela preocupou-se que ele não estivesse forte o suficiente para passar pelo portal de volta a Alicante, naquela noite, e estava certa.
Naquele momento, o primeiro dos Caçadores de Sombras os tinha alcançado, e Jace foi levado em uma corrente de vertiginosa inconsciência. Ele acordou no dia seguinte no hospital da cidade, com Magnus Bane fitando-o de cima com uma expressão esquisita – ela podia ter sido de profunda preocupação ou mera curiosidade, era difícil dizer com Magnus.
Magnus tinha dito a ele que o Anjo curou-o fisicamente, porém parecia que seu espírito e sua mente estavam exauridos a tal ponto que só o descanso podia curá-los. De qualquer modo, ele se sentia melhor. Bem a tempo para o funeral.
Um vento começou a soprar, levando a fumaça para longe dele. À distância, ele podia ver o vislumbre das torres de Alicante, sua antiga glória restaurada. Não tinha totalmente certeza do que esperava alcançar ao se sentar aqui e observar o corpo de seu pai queimar, ou o que teria dito se estivesse lá embaixo entre os de luto, falando suas últimas palavras para Valentim. Você nunca foi realmente meu pai, ele poderia dizer, ou você foi o único pai que eu conheci. Ambas as declarações eram igualmente verdadeiras, não importava o quão contraditórias.
Quando ele abriu seus olhos pela primeira vez no lago – sabendo, de algum modo, que esteve morto, e agora não estava – tudo o que Jace podia pensar era em Clary, deitada a pouca distância dele na areia: ensanguentada, seus olhos fechados. Ele se arrastou para ela, próximo ao pânico, pensando que ela poderia estar machucada, ou até mesmo morta – e quando ela abriu seus olhos, tudo o que ele foi capaz de pensar então era que ela não estava.
Não até haver outros lá, ajudando-o a se levantar, exclamando em espanto sobre a cena, que ele viu o corpo de Valentim descansando amarrotado próximo à beira do lago e sentiu a força disso como um murro no estômago. Ele sabia que Valentim estava morto – ele mesmo o teria matado – mas mesmo assim, de algum modo, a visão era dolorosa. Clary tinha olhado para Jace com olhos tristes, e ele sabia que apesar de ela ter odiado Valentim e nunca tido motivo para não o fazer, ainda sentia a perda de Jace.
Ele semicerrou seus olhos e uma maré de imagens surgiu por trás de suas pálpebras: Valentim pegando-o da grama em um abraço envolvente, Valentim abraçando-o para firmá-lo na proa de um barco sobre um lago, mostrando a ele como se equilibrar. E outras, memórias mais escuras: a mão de Valentim batendo em seu rosto, um falcão morto, o anjo algemado na adega dos Wayland.
— Jace.
Ele olhou para cima. Luke estava de pé perto dele, uma silhueta preta delineada pelo sol. Estava usando jeans e uma camisa de flanela como sempre – nada da concessão do branco de funeral para ele.
— Está acabado — Luke disse — a cerimônia. Ela foi breve.
— Tenho certeza que foi —  Jace mergulhou seus dedos no chão ao seu lado, agradecendo o arranhar de dor da terra contra as pontas dos dedos — alguém disse alguma coisa?
— Apenas as palavras de costume.
Luke sentou no chão ao lado de Jace, encolhendo-se um pouco. Jace não tinha perguntado a ele como a batalha tinha sido; não tinha realmente desejado saber. Sabia que ela tinha acabado mais rápido do que qualquer um tinha esperado – depois da morte de Valentim, os demônios que ele tinha invocado tinham fugido dentro da noite, como quando a névoa se dissolvia pelo sol. Mas não significou que não houve mortes. Valentim não tinha sido o único corpo queimado em Alicante nestes últimos dias.
— E Clary não estava... quero dizer, ela não...
— Veio ao enterro? Não. Ela não quis — Jace podia sentir Luke olhando para ele de lado — você não tem a visto ela? Desde...
— Não, não desde o lago — Jace respondeu — esta foi a primeira vez que eles me deixaram sair do hospital, e eu tinha que vir aqui.
— Você não tinha. Podia ter ficado fora.
— Eu queria — Jace admitiu — seja lá o que isso diz a meu respeito.
— Funerais são para os vivos, Jace, não para os mortos. Valentim era mais seu pai do que de Clary, mesmo que vocês não compartilhem o mesmo sangue. Você é o único quem tem que dizer adeus. É o único que sentirá falta dele.
— Eu não achei que estava autorizado a sentir falta dele.
— Você nunca conheceu Stephen Herondale — Luke disse — e foi para Robert Lightwood quando era uma criança. Valentim foi o pai de sua infância. Você deve sentir falta dele.
— Eu fico pensando em Hodge. Lá em cima na Garde, perguntei a ele a razão de ele nunca ter me dito o que eu era... eu ainda pensava que era parte demônio então... ele ficava dizendo que era porque não sabia. Eu apenas acreditei que ele estava mentindo. Mas agora acho que ele quis dizer isso. Ele era uma das únicas pessoas que sabiam que o bebê Herondale tinha sobrevivido. Quando eu apareci no Instituto, ele não tinha ideia de qual dos filhos de Valentim eu era. O verdadeiro ou o adotado. E eu podia ter sido ambos. O demônio ou o anjo. E a coisa é, não acho que ele sequer soubesse, não até que ele viu Jonathan na Garde e percebeu. Então ele tentou fazer seu melhor por mim, por todos aqueles anos de qualquer modo, até que Valentim se mostrou novamente. O que leva a um tipo de fé, você não acha?
— Sim. Eu acho que sim.
— Hodge disse que pensava que talvez a educação pudesse fazer a diferença, independente do sangue. Eu me mantive pensando – se eu ficasse com Valentim, se eu não tivesse sido enviado para os Lightwood, eu teria sido como Jonathan? Como é que eu seria agora?
— Isso importa? Você é quem é agora por uma razão. E se me perguntar, acho que Valentim te enviou para os Lightwood porque sabia que era a melhor chance para você. Talvez ele tivesse outras razões também. Mas você não pode afastar o fato de que ele te enviou para pessoas que sabia que iriam amá-lo e educá-lo com amor. Essa poderia ser uma das poucas coisas que ele realmente fez por alguém — ele deu tapinhas no ombro de Jace, um gesto tão paternal que quase fez Jace sorrir — eu não me esqueceria disso, se fosse você.

***

Clary, de pé e olhando fora da janela de Isabelle, observava a fumaça manchar o céu de Alicante. Eles estavam cremando Valentim hoje, ela sabia; queimando seu pai, no cemitério do lado de fora dos portões.
— Você sabe sobre a celebração hoje à noite, não é?
Clary se virou para ver Isabelle atrás dela, segurando dois vestidos contra si, uma azul e um cinza aço.
— O que você acha que eu devo vestir?
Para Isabelle, Clary pensou, roupas sempre serão terapia.
— O azul.
Isabelle deitou os vestidos sobre a cama.
— O que você vai vestir? Você vai, não é?
Clary pensou no vestido prata no fundo do baú de Amatis, o adorável bordado dele. Mas Amatis provavelmente nunca a deixaria usá-lo.
— Eu não sei. Provavelmente jeans e meu casaco verde.
— Chato — Isabelle observou.
Ela olhou acima para Aline, que estava sentada em uma cadeira perto da cama, lendo.
— Você não acha que é chato?
— Eu acho que você deveria deixar Clary usar o que ela quiser — Aline não olhou acima de seu livro — além do mais, não é como se ela estivesse se vestindo para alguém.
— Ela está se vestindo para Jace — Isabelle respondeu, como se isso fosse óbvio — além do mais, ela deveria.
Aline olhou acima, piscando em confusão, e então sorriu.
— Ah, certo. Eu continuo me esquecendo. Deve ser estranho, certo, sabendo que ele não é seu irmão?
— Não — Clary disse firmemente — pensar que ele era meu irmão era estranho. Isso parece... certo — ela olhou de volta em direção à janela — não que eu tenha realmente visto ele desde que descobri. Não desde que voltamos a Alicante.
— Isso é estranho — Aline comentou.
— Não é estranho — Isabelle discordou, atirando a Aline um olhar significativo, que ela pareceu não notar — ele estava no hospital. Só saiu hoje.
— E ele não veio aqui te ver, certo? — Aline perguntou a Clary.
— Ele não podia — Clary respondeu — tinha o funeral de Valentim para ir. Ele não podia perder isso.
— Talvez — Aline opinou alegremente — ou talvez ele não esteja mais interessado em você. Quero dizer, agora que não é proibido. Algumas pessoas só querem o que não podem ter.
— Não Jace — Isabelle disse rapidamente — Jace não é assim.
Aline se levantou, largando seu livro sobre a cama.
— Eu devo ir me vestir. Vejo vocês esta noite?
E com isso, ela caminhou para fora do quarto, sussurrando para si mesma.
Isabelle, observando-a ir, balançou sua cabeça.
— Você acha que ela não gosta de você? Quero dizer, ela está com ciúmes? Ela parecia interessada em Jace.
— Há! — Clary estava brevemente divertida. — Não, ela não está interessada em Jace. Acho que ela só é uma daquelas pessoas que dizem o que estão pensando, não importa o que seja. E quem sabe, talvez ela esteja certa.
Isabelle puxou um grampo de seu cabelo, deixando-o cair tem torno de seus ombros. Ela veio através do quarto e se juntou a Clary na janela. O céu estava claro agora além das torres demoníacas; a fumaça tinha sumido.
— Você acha que ela está certa?
— Eu não sei. Terei que perguntar a Jace. Acho que o verei hoje à noite na festa. Ou a celebração da vitória ou seja lá do que é chamado — ela olhou para Isabelle — você sabe o que será?
— Haverá um desfile — Isabelle respondeu — e fogos de artifício, provavelmente. Música, danças, jogos, esse tipo de coisa. Como uma grande feira de rua em Nova York — ela olhou fora da janela, sua expressão tristonha — Max teria adorado isso.
Clary estendeu a mão e acariciou o cabelo de Isabelle, do jeito que ela acariciaria o cabelo de sua própria irmã se tivesse uma.
— Eu sei que teria.

***

Jace teve que bater duas vezes na porta da velha casa do canal antes de ouvir os rápidos passos apressados para responder. Seu coração estava pulando, e ele se empertigou enquanto a porta se abria e Amatis Herondale parou na soleira, olhando para ele em surpresa.
Ela parecia ter se aprontado para a celebração: usava um longo vestido cinza e pálidos brincos metálicos que destacavam as listras prateadas em seu cabelo acinzentado.
— Sim?
— Clary — ele começou e parou, incerto do que exatamente dizer.
Onde tinha ido sua eloquência? Ele sempre teve aquilo, mesmo quando não tinha mais nada, mas agora sentia como se tivesse sido aberto e todas as inteligentes palavras fáceis tinham se derramado para fora dele, deixando-o vazio.
— Eu estava me perguntando se Clary estava aqui. Eu esperava falar com ela.
Amatis balançou a cabeça. O vazio tinha partido de sua expressão, e ela estava olhando para ele atentamente, o suficiente para deixá-lo nervoso.
— Ela não está. Acho que está com os Lightwood.
— Oh — ele estava surpreso com quão desapontado ficou — desculpe por ter te incomodado.
— Não é incômodo. Estou feliz que você está aqui, na verdade — ela disse rapidamente — há algo que eu queria falar com você. Venha para a sala; eu já volto.
Jace caminhou para dentro enquanto Amatis desaparecia no corredor. Ele se perguntou o que na terra ela poderia ter para falar com ele. Talvez Clary tivesse decidido que não queria nada mais com ele e tinha escolhido Amatis para entregar a mensagem.
Amatis estava de volta em um momento. Ela não estava segurando nada que parecesse como um bilhete – para alívio de Jace – mas ao invés, estava agarrando uma pequena caixa de metal em suas mãos. Era um objeto delicado, gravado em relevo com um desenho de pássaros.
— Jace. Luke me contou que você é de Stephen... que Stephen Herondale era seu pai. Ele me contou tudo o que aconteceu.
Jace acenou, tudo o que ele sentiu inclinado a fazer. A notícia estava escapando lentamente, assim como ele preferia; esperançosamente, estaria de volta a Nova York antes que todo mundo em Idris soubesse e estivesse constantemente olhando para ele.
— Você sabe que eu era casada com Stephen antes de sua mãe — Amatis continuou, sua voz apertada, como se as palavras machucassem ao sair.
Jace olhou para ela – isso era sobre sua mãe? Ela se ressentia dele por trazer memórias ruins de uma mulher que tinha morrido antes mesmo que ele tivesse nascido?
— De todas as pessoas vivas hoje, eu provavelmente conhecia melhor o seu pai.
— Sim — Jace concordou, desejando estar em outro lugar — tenho certeza que isso é verdade.
— Eu sei que provavelmente você tem sentimentos sobre ele que são muito confusos — ela falou, surpreendendo-o principalmente por que era verdade — você nunca o conheceu, e ele não foi o homem que te educou, mas você se parece com ele – exceto por seus olhos, que são os de sua mãe. E talvez eu esteja sendo louca, te aborrecendo com isso. Talvez você realmente não queira saber sobre Stephen e tudo o mais. Mas ele era seu pai, e se ele tivesse te conhecido... — ela empurrou a caixa para ele então, quase fazendo-o pular para trás. — Estas são algumas coisas dele que eu guardei ao passar dos anos. Cartas que ele escreveu, fotografias, uma árvore genealógica. Sua pedra enfeitiçada. Talvez você não tenha perguntas agora, mas algum dia talvez as tenha, e quando tiver – quando tiver, você terá isso.
Ela ficou imóvel, dando a ele a caixa, como se estivesse oferecendo a ele um precioso tesouro. Jace se estendeu e a tomou dela sem uma palavra. Era pesada, e o metal era frio contra sua pele.
— Obrigado — ele disse. Era o melhor que podia fazer. Ele hesitou, e então disse: — há uma coisa. Algo que eu tenho estado me perguntando.
— Sim?
— Se Stephen era meu pai, então a Inquisidora – Imogen – era minha avó.
— Ela era... — Amatis pausou — uma mulher muito difícil. Mas sim, ela era sua avó.
— Ela salvou minha vida. Quero dizer, por um longo tempo, ela agiu como se odiasse minha atitude. Mas então ela viu isso — ele puxou o colarinho de sua blusa para o lado, mostrando a Amatis a estrela branca em forma de cicatriz sobre seu ombro — e salvou a minha vida. Mas o que minha cicatriz podia possivelmente significar para ela?
Os olhos de Amatis tinham ficado arregalados.
— Você não se lembra de como conseguiu esta cicatriz, não é?
Jace balançou a cabeça.
— Valentim me disse que era um ferimento de quando eu era jovem demais para me lembrar, mas agora... acho que não acredito nele.
— Isso não é uma cicatriz. É uma marca de nascença. Há uma antiga lenda da família sobre ela, que um dos primeiros Herondales que se tornou um Caçador de Sombras foi visitado por um anjo em um sonho. O anjo tocou-o no ombro, e quando ele acordou, tinha uma marca como essa. E todos os seus descendentes a tem também — ela deu de ombros — não sei se a história é verdadeira, mas todos os Herondales tem a marca. Seu pai tinha uma também, aqui — ela tocou seu antebraço — dizem que isso significa que você teve contato com o anjo. Que você é abençoado, de algum modo. Imogen deve ter visto a marca e adivinhou quem você realmente era.
Jace olhou para Amatis, mas ele não estava vendo a senhora: estava vendo aquela noite no navio; o convés úmido e preto e a Inquisidora morrendo aos seus pés.
— Ela disse algo para mim enquanto estava morrendo. Ela disse, “seu pai teria orgulho de você.” Eu pensei que ela estava sendo cruel. Pensei que ela quis dizer Valentim...
Amatis balançou a cabeça.
— Ela quis dizer Stephen — falou suavemente — e ela estava certa. Ele teria ficado orgulhoso.

***

Clary abriu a porta da frente de Amatis e caminhou para dentro, pensando no quão rapidamente a casa tinha se tornado familiar para ela. Ela não precisava mais se esforçar para lembrar o caminho para a porta da frente, ou o que fazer quando a maçaneta estava ligeiramente presa enquanto a abria. O brilho da luz do sol do canal era familiar, assim como a visão de Alicante através da janela. Ela quase podia se imaginar vivendo ali, quase imaginar que seria se Idris fosse sua casa. Ela se perguntou do que começaria a sentir falta primeiro. Comida chinesa trazida em casa? Filmes? As lojas de mangás?
Ela estava seguindo para as escadas quando ouviu a voz de sua mãe vinda da sala de estar... aguda, e ligeiramente agitada. Mas o que podia ter chateado Jocelyn? Tudo estava bem agora, não estava? Sem pensar, Clary voltou, encostando-se próxima à porta da sala de estar e escutou.
— O que você quer dizer com “vou ficar”? — Jocelyn estava perguntando. — Quer dizer que não vai voltar para Nova York?
— Eu fui convidado a permanecer em Alicante e representar os lobisomens no Conselho — Luke disse — falei a eles que os responderia hoje à noite.
— Alguém mais não pode fazer isso? Um dos líderes do bando aqui em Idris?
— Eu sou o único líder de bando que foi uma vez um Caçador de Sombras. É por isso que eles me querem — ele suspirou — eu comecei tudo isso, Jocelyn. Devo ficar aqui e ver tudo.
Houve um curto silêncio.
— Se é assim que você sente, então é claro que deve ficar — Jocelyn disse finalmente, mas sua voz não soava segura.
— Eu terei que vender a livraria. Colocar meus negócios em ordem — Luke soou irritado — não é como se eu fosse me mudar imediatamente.
— Eu posso cuidar disso. Depois de tudo o que você tem feito...
Jocelyn não pareceu ter forças para manter seu tom animado. Sua voz sumiu dentro do silêncio, um silêncio que se esticou tanto que Clary pensou em limpar sua garganta e caminhar para dentro da sala de estar para deixá-los saber que ela estava ali. Um momento depois ela estava feliz de não tê-lo feito.
— Olhe — Luke falou — eu tenho desejado dizer isso a você há um longo tempo, mas não o fiz. Eu sabia que nunca importaria, mesmo se eu dissesse, por causa do que eu sou. Você nunca quis que isso fosse parte da vida de Clary. Mas ela sabe agora, então creio que não faz diferença. E eu também poderia dizer a você. Eu te amo, Jocelyn. Eu tenho amado por vinte anos — ele pausou.
Clary se endireitou para escutar a resposta de sua mãe, mas Jocelyn estava em silêncio. Finalmente Luke falou novamente, sua voz pesada.
— Eu tenho que voltar para o Conselho e dizer a eles que irei ficar. Nós não temos que falar sobre isso de novo. Eu só me sinto melhor de ter dito depois de todo esse tempo.
Clary se pressionou contra a parede enquanto Luke, de cabeça baixa, caminhava para fora da sala de estar. Ele a abriu, sem parecer ver Clary e se encaminhou para a porta da frente. Ficou lá por um momento, olhando cegamente para o sol arremetendo da água do canal. Então ele se foi, a porta batendo atrás dele.
Clary ficou lá onde estava, as costas contra a parede. Se sentiu terrivelmente triste por Luke, e terrivelmente triste por sua mãe também. Parecia que Jocelyn realmente não amava Luke, e talvez nunca pudesse. Era como tinha sido para ela e Simon, exceto que ela não via nenhum modo que Luke e sua mãe pudessem consertar as coisas. Lágrimas surgiram em seus olhos. Estava prestes a se virar e ir para a sala quando ouviu o som da porta da cozinha se abrindo e outra voz. Esta soava cansada e um pouco resignada. Amatis.
— Desculpe, eu ouvi isso sem querer, mas estou feliz que ele esteja ficando — a irmã de Luke falou — não só por que ele estará perto de mim, mas porque dá a ele uma chance de se recuperar de você.
Jocelyn soou defensiva.
— Amatis...
— Tem sido há um longo tempo, Jocelyn — Amatis falou — se você não o ama, deveria deixá-lo ir.
Jocelyn ficou em silêncio. Clary desejou que pudesse ver a expressão de sua mãe – ela parecia triste? Zangada? Resignada?
Amatis deu um pequeno suspiro.
— A menos que... você realmente o ama?
— Amatis, eu não posso...
— Você o ama! Você o ama! — Houve um forte som, como se Amatis estivesse batendo palmas. — Eu sabia! Eu sempre soube!
— Isso não importa — Jocelyn parecia cansada — não seria justo com Luke.
— Eu não quero ouvir isso — houve um ruído farfalhante, e Jocelyn fez um som de protesto.
Clary se perguntou se Amatis tinha segurado sua mãe.
— Se você o ama, vá agora mesmo e diga a ele. Agora mesmo, antes que ele vá para o Conselho.
— Mas querem que ele seja o membro do Conselho! E ele quer...
— Tudo o que Lucian quer — Amatis respondeu firmemente — é você. Você e Clary. Isso é tudo o que ele sempre quis. Agora vá.
Antes que Clary pudesse ter a chance de se mover, Jocelyn se lançou pelo corredor. Ela se direcionou para a porta – e viu Clary, achatada contra a parede. Vacilando, ela abriu sua boca em surpresa.
— Clary! — Ela soava como se estivesse tentando fazer sua voz animada e alegre, e falhando miseravelmente. — Eu não notei que você estava aqui.
Clary andou para longe da parede, agarrando a maçaneta, e abriu a porta. A brilhante luz do sol se derramou dentro do corredor. Jocelyn estava de pé piscando pela forte iluminação, seus olhos sobre os de sua filha.
— Se você não for atrás de Luke — Clary disse, anunciando muito claramente — eu vou, pessoalmente, matar você.
Por um momento, Jocelyn pareceu espantada. Então ela sorriu.
— Bem, se você coloca isso desse jeito.
Um momento depois, ela estava fora da casa, se apressando no caminho do canal em direção ao Salão dos Acordos. Clary fechou a porta atrás dela e se inclinou contra ela.
Amatis emergiu da sala de estar, se lançando além dela para se inclinar no peitoril da janela, olhando ansiosamente através da vidraça.
— Você acha que ela vai alcançá-lo antes que ele chegue ao Salão?
— Minha mãe passou toda a vida me perseguindo por ai — Clary respondeu — ela se move rápido.
Amatis olhou para ela e sorriu.
— Ah, isso me lembra algo. Jace parou aqui para te ver. Acho que ele está esperando te ver na celebração hoje à noite.
— Ele está? — Clary disse pensativamente.
Eu poderia muito bem perguntar. Quem não se arrisca, não petisca.
— Amatis — ela falou, e a irmã de Luke se virou para longe de janela, olhando para ela curiosamente.
— Sim?
— Aquele seu vestido cinza, no baú — Clary falou — posso pegá-lo emprestado?
As ruas já estavam começando a se encher com pessoas enquanto Clary voltava pela cidade em direção a casa dos Lightwood. Era o crepúsculo, e as luzes estavam começando a acender, enchendo o ar com um pálido brilho. Buquês de flores brancas parecendo familiares estavam pendurados em cestos sobre os muros, preenchendo o ar com seus cheiros picantes. Escuras runas douradas queimavam sobre as portas das casas que ela passava; as runas falavam de vitória e regozijo.
Havia Caçadores de Sombras nas ruas. Nenhum estava usando vestimenta de batalha – eles estavam em uma variedade de roupas de gala, do moderno para o que delimitava o figurino histórico.
Era uma noite excepcionalmente quente, então poucas pessoas estavam usando casacos, mas havia várias mulheres no que pareceu a Clary como vestidos de baile, suas saias cheias se arrastando nas ruas.
Uma figura esguia misteriosa cortou a estrada a sua frente enquanto ela virava para a rua dos Lightwood, e Clary viu que era Raphael, de mãos dadas com uma mulher alta de cabelos escuros em um vestido de coquetel vermelho. Ele olhou por cima de seu ombro e sorriu para Clary, um sorriso que enviou um pequeno arrepio sobre ela, e ela pensou que era verdade que realmente havia algo de estranho sobre os Seres do Submundo algumas vezes, algo estranho e assustador. Talvez fosse apenas porque tudo que era assustador, não era necessariamente mal também. Embora ela tivesse suas dúvidas sobre Raphael.
A porta da frente da casa dos Lightwood estava aberta, e vários da família já estavam de pé sobre a calçada. Maryse e Robert Lightwood estavam lá, conversando com dois outros adultos. Quando eles se viraram, Clary viu com ligeira surpresa que eram os Penhallow, os pais de Aline.
Maryse sorriu para ela. Estava elegante em um terno de seda azul escuro, o cabelo puxado para trás de seu rosto severo e preso com uma larga faixa prata. Ela parecia com Isabelle – tanto que Clary quis estender e colocar uma mão sobre seu ombro. Maryse ainda parecia tão triste, mesmo quando sorriu, e Clary pensou, ela está se lembrando de Max, como Isabelle, e pensando no quanto ele teria gostado de tudo isso.
— Clary!
Isabelle saltou os degraus da frente, seu cabelo escuro voando atrás dela. Ela não estava usando nenhuma das roupas que tinha mostrado a Clary mais cedo, mas um incrível vestido de cetim dourado que abraçava seu corpo como pétalas fechadas de uma flor. Seus sapatos eram sandálias de salto agulha, e Clary se lembrou do que Isabelle tinha uma vez dito sobre como ela gostava de seus saltos, e riu para si mesma.
— Você está fantástica.
— Obrigada — Clary puxou um pouco, semiconsciente do material diáfano do vestido prata.
Era provavelmente a coisa mais feminina que já tinha usado. O vestido deixava seus ombros descobertos, e cada vez que ela sentia as pontas de seus cabelos fazerem cócegas na pele nua lá, tinha que domar o desejo de caçar um casaquinho ou um moletom de capuz para se embrulhar nele.
— Você também.
Isabelle se inclinou para sussurrar em seu ouvido:
— Jace não está aqui.
Clary se puxou para trás.
— Então, onde...
— Alec disse que ele poderia estar na praça, onde os fogos de artifício irão ser. Eu lamento... não tenho ideia do que há com ele.
Clary deu de ombros, tentando esconder seu desapontamento.
— Está tudo bem.
Alec e Aline saltaram fora da casa depois de Isabelle, Aline em um brilhante vestido vermelho que fazia seu cabelo parecer chocantemente preto. Alec tinha se vestido como habitualmente fazia, em um suéter e calças escuras, apesar de que Clary tinha que admitir que pelo menos o suéter não parecia ter nenhum buraco visível nele. Ele sorriu para Clary, e ela pensou, com surpresa, que na verdade ele realmente parecia diferente. Iluminado de alguma forma, como se um peso estivesse fora de seus ombros.
— Eu nunca estive em uma celebração que tivesse Seres do Submundo antes — Aline disse, olhando nervosamente abaixo a rua, onde uma garota fada cujo longo cabelo estava trançado com flores – não, Clary pensou, seu cabelo eram flores, conectadas por delicados tentáculos verdes – que estava puxando algumas das flores brancas de um cesto pendurado, olhando para elas pensativamente, e as comendo.
— Você vai amar — Isabelle respondeu — eles sabem como festejar.
Ela acenou um tchau para seus pais e se afastou em direção à praça, Clary ainda lutando com a ânsia de cobrir a parte superior de seu corpo, cruzando os braços sobre o peito. O vestido girava ao redor de seus pés como fumaça rodopiando no vento. Ela pensou na fumaça que tinha subido sobre Alicante mais cedo naquele dia, e estremeceu.
— Hey! — Isabelle exclamou, e Clary olhou para ver Simon e Maia vindo na direção deles.
Ela não tinha visto Simon a maior parte do dia; ele tinha partido para o Salão para observar o encontro preliminar do Conselho porque, segundo ele, estava curioso sobre quem escolheriam para ter o assento dos vampiros no Conselho. Clary não podia imaginar Maia usando nada tão feminino quanto um vestido, e de fato ela estava vestida em calças do exército de cós baixo e uma camiseta preta que dizia ESCOLHA SUAS ARMAS e tinha um desenho de dados abaixo das palavras. Era uma camiseta de jogador, Clary pensou, se perguntando se Maia era realmente uma jogadora ou estava usando a camiseta para impressionar Simon. Se fosse a segunda opção, foi uma boa escolha.
— Vocês estão indo para a Praça do Anjo?
Maia e Simon concordaram que sim, e eles rumaram em direção ao Salão juntos em um grupo sociável. Simon ficou para trás, para ficar no passo ao lado de Clary, e eles caminharam juntos em silêncio. Era bom estar perto de Simon novamente – e ele tinha sido a primeira pessoa que ela quis ver, uma vez que estava de volta a Alicante. Ela tinha abraçado ele tão fortemente, feliz que ele estivesse vivo, e tocou a marca sobre sua testa.
— Ela te salvou você? — ela tinha perguntado, desesperada em ouvir que não tinha feito o que tinha sem razão nenhuma.
— Ela me salvou — foi tudo o que ele disse em resposta.
— Eu queria poder tirá-la de você — ela disse — eu gostaria de saber o que poderia acontecer a você por causa dela.
Ele tinha segurado seu pulso e puxado a mão dela gentilmente de volta para seu lado.
— Vamos esperar. E veremos.
Ela esteve observando-o mais de perto, mas tinha que admitir que a marca não parecia estar afetando-o de nenhuma maneira visível. Ele parecia como sempre. Apenas como Simon. Só que ele tinha penteado seu cabelo ligeiramente diferente, para cobrir a marca; se você não soubesse que ela estava lá, nunca adivinharia.
— Como foi a reunião? — Clary perguntou a ele agora, dando-lhe mais uma olhada para ver se ele tinha se vestido para a celebração.
Ele não tinha, mas ela dificilmente o culparia – os jeans e a camiseta que ele vestia eram tudo o que ele tinha para usar.
— Quem eles escolheram?
— Não Raphael — Simon disse, soando como se estivesse agradecido sobre isso — algum outro vampiro. Ele tinha um nome pretensioso. Nightshade ou algo assim.
— Você sabe, eles me perguntaram se eu queria desenhar o símbolo do Novo Conselho — Clary disse — é uma honra. Eu disse que o faria. Vai ter uma runa do Conselho cercado pelos símbolos das quatro famílias Seres do Submundo. Uma lua para os lobisomens, e eu estava pensando em um trevo de quatro folhas para as fadas. Um livro de magia para os bruxos. Mas não consigo pensar em nada para os vampiros.
— Que tal uma presa? — Simon sugeriu. — Talvez pingando sangue.
Ele expôs seus dentes.
— Obrigada. Isso é muito útil.
— Estou feliz que eles pediram a você — Simon comentou, mais seriamente — você merece a honra. Merece uma medalha, na verdade, pelo que você fez. A runa da Aliança e tudo o mais.
Clary deu de ombros.
— Eu não sei. Quero dizer, a batalha mal durou dez minutos, depois de tudo aquilo. Eu não sei quanto ajudei.
— Eu estava dentro da batalha, Clary — Simon falou — pode ter tido cerca de dez minutos de duração, mas foram os piores dez minutos da minha vida. E na verdade eu não quero falar sobre isso. Mas eu diria que mesmo naqueles dez minutos, teria havido muitas mortes mais se não fosse por você. Se você não tivesse feito o que fez, não haveria um Novo Conselho. Nós seríamos Caçadores de Sombras e Seres do Submundo, odiando um ao outro, ao invés de Caçadores de Sombras e Seres do Submundo, indo a uma festa juntos.
Clary sentiu um caroço subindo em sua garganta e olhou direto a frente, desejando não chorar.
— Obrigada, Simon.
Ela hesitou, tão brevemente que ninguém que não fosse Simon teria notado. Mas ele sim.
— Qual o problema? — Ele perguntou.
— Eu só estou me perguntando o que faremos quando voltarmos para casa.
— Quero dizer, eu sei que Magnus cuidou de sua mãe, então ela não está surtando que você está sumido, mas... escola. Nós perdemos uma tonelada dela. E eu nem mesmo sei...
— Você não vai voltar — Simon disse quietamente — você acha que eu não sei disso? Você é uma Caçadora de Sombras agora. Irá terminar sua educação no Instituto.
— E quanto a você? Você é um vampiro. Vai voltar à escola?
— Sim — Simon respondeu, surpreendendo-a — eu voltarei. Quero uma vida normal, tanto quanto puder. Eu quero a escola, a faculdade, e tudo isso.
Ela apertou a mão dele.
— Então você deve tê-la — Clary sorriu para ele — é claro, todo mundo vai surtar quando você aparecer na escola.
— Surtar? Por quê?
— Porque você está muito mais gostoso agora do que quando saiu — ela encolheu os ombros — isso é verdade. Deve ser uma coisa de vampiro.
Simon pareceu desconcertado.
— Eu sou gostoso agora?
— Claro que é. Quero dizer, olhe para aquelas duas. Elas estão totalmente na sua — ela apontou uns poucos metros a frente deles, onde Isabelle e Maia tinham se movido para andar lado a lado, suas cabeças curvadas juntas.
Simon olhou adiante das garotas. Clary quase podia jurar que ele estava corando.
— Elas estão? Às vezes elas ficam juntas e sussurram e me encaram. Eu não tenho nenhuma ideia de sobre que é.
— Claro que não — Clary sorriu — pobrezinho, você tem duas lindas garotas competindo por seu amor. Sua vida é dura.
— Ótimo. Você me diz qual escolher então.
— De jeito nenhum. Isso é com você — ela abaixou sua voz de novo — olha, você pode sair com quem quiser e eu apoiarei totalmente. Eu sou toda apoio. Apoio é meu nome do meio.
— Então esse é o porquê você nunca me disse seu nome do meio. Eu calculava que era alguma coisa embaraçosa.
Clary ignorou isso.
— Mas só me prometa uma coisa, ok? Eu sei como as garotas são. Sei como elas odeiam que seus namorados tenham uma melhor amiga que é uma garota. Só me prometa que você não vai me tirar fora da sua vida totalmente. Que nós podemos continuar saindo algumas vezes.
— Algumas vezes? — Ele balançou sua cabeça. — Clary, você está doida.
Seu coração afundou.
— Você quer dizer...
— Eu quero dizer que eu nunca namoraria uma garota que insista que eu corte você da minha vida. Não é negociável. Você quer um pedaço de toda essa maravilha? — Ele gesticulou para si mesmo. — Bem, minha melhor amiga vem com o pacote. Eu não te cortarei da minha vida Clary, não mais do que eu cortaria minha mão direita e a daria para alguém como presente de dia dos namorados.
— Nojento — Clary disse — você pode fazer isso?
Ele sorriu.
— Posso.
A Praça do Anjo estava quase irreconhecível. O Salão brilhava branco na extremidade final da praça, parcialmente escondido por uma elaborada floresta de árvores enormes que tinham nascido no meio da praça. Elas eram claramente o produto de mágica – embora, Clary pensou, lembrando-se da habilidade de Magnus para mover mobília e copos de café através de Manhattan em um piscar de olhos, talvez elas fossem reais, se transplantadas. As árvores cresciam quase da altura das torres demoníacas, luzes coloridas capturadas em uma farfalhante rede verde de seus galhos. A praça cheirava a flores, fumaça e folhas. Ao seu redor foram colocadas mesas e longos bancos, e grupos de Caçadores de Sombras e Seres do Submundo lotavam o lugar, rindo, bebendo e conversando. E ainda apesar das risadas, havia uma melancolia misturada com o ar de celebração – uma presente tristeza lado a lado com a alegria.
As lojas que alinhavam a praça tinham suas portas abertas, luz se derramando sobre a calçada. Festeiros fluíam, carregando pratos de comida, taças de vinho e líquidos brilhantemente coloridos. Simon observou um kelpie saltar, carregando um copo de fluído azul, e levantou uma sobrancelha.
— Não é como uma festa de Magnus — Isabelle tranquilizou-o — tudo aqui deve ser seguro para beber.
— Deve ser? — Aline pareceu preocupada.
Magnus se afastou e veio em direção a eles, e a garota que ele tinha estado conversando, deslizou para as sombras das árvores e se foi. Ele estava vestido como um cavalheiro vitoriano, um longo casaco preto sobre um colete de seda violeta. Um lenço bordado com as iniciais M.B. projetava-se do bolso de seu colete.
— Belo colete — Alec disse com um sorriso.
— Você quer um exatamente como este? — Magnus perguntou. — Na cor que você preferir, é claro.
— Eu realmente não me importo com roupas — Alex protestou.
— E eu adoro isso em você — Magnus anunciou — embora eu também amaria se você possuísse, talvez, um terno de marca. O que você diz? Dolce? Zegna? Armani?
Alec engasgou enquanto Isabelle ria, e Magnus tomou a oportunidade para se curvar próximo a Clary e sussurrar em seu ouvido:
— Os degraus do Salão dos Acordos. Vá.
Ela quis lhe perguntar o que ele queria dizer, mas Magnus já tinha se virado para Alec e os outros. Além disso, Clary tinha a impressão que sabia. Ela apertou o pulso de Simon enquanto ia, e ele se virou para sorrir para ela antes de retornar sua conversa com Maia.
Clary cortou pela beira da floresta encantada para atravessar a praça, tecendo dentro e fora das sombras. As árvores se estendiam aos pés da escada do Salão, que era provavelmente o motivo os degraus estarem quase desertos.
Embora não totalmente.
Olhando na direção das portas, Clary podia descrever um familiar contorno escuro, sentado à sombra de um pilar. Seu coração acelerou.
Jace.
Ela teve que recolher sua saia com as mãos para subir as escadas, com medo de pisar sobre ela e rasgar o delicado material. Quase desejou ter usado suas roupas normais enquanto se aproximava de Jace, que estava sentado com as costas contra um pilar, olhando a praça.
Ele usava suas roupas mais mundanas – jeans, um blusa branca e uma jaqueta escura por cima dela. E era uma das poucas vezes que o tinha encontrado, pensou, que ele não parecia estar carregando nenhuma arma.
Ela abruptamente se sentiu arrumada demais. Parou a uma pequena distância dele, subitamente incerta do que dizer.
Como se sentindo-a ali, Jace olhou para cima. Ele estava segurando algo equilibrado em seu colo, e Clary percebeu que era uma caixa prateada. Ele parecia cansado. Havia sombras debaixo de seus olhos, e seu cabelo ouro pálido estava desarrumado.
— Clary?
— Quem mais seria?
Ele não sorriu.
— Você não se parece com você.
— É o vestido — ela alisou suas mãos no material consciente de si mesma — eu não uso geralmente coisas tão... lindas.
— Você sempre está linda — ele disse, e ela se lembrou da primeira vez que ele tinha dito que era bonita, em sua estufa no Instituto.
Ele não tinha dito aquilo como um cumprimento, apenas como se fosse um fato, como o fato de que ela era ruiva e gostava de desenhar.
— Mas você parece... distante. Como se eu não pudesse te tocar.
Ela se aproximou então e se sentou próxima a ele sobre o largo degrau. A pedra estava fria contra o material de seu vestido. Clary estendeu sua mão para ele; ela estava tremendo ligeiramente, apenas o suficiente para estar visível.
— Toque-me — ela disse — se você quiser.
Ele tomou sua mão e a descansou contra a bochecha por um momento. Então a colocou de volta no colo dela. Ela estremeceu um pouco, relembrando as palavras de Aline no quarto de Isabelle. Talvez ele não esteja mais interessado, agora que não é proibido. Ele disse que ela parecia distante, mas a expressão em seus olhos era tão remota quanto uma galáxia distante.
— O quem tem na caixa? — ela perguntou.
Ele ainda estava agarrando a caixa prata fortemente em uma mão. Parecia ser um objeto caro, delicadamente esculpido com um padrão de pássaros.
— Eu fui até Amatis mais cedo hoje, procurando por você. Mas você não estava lá. Então conversei com ela. Ela me deu isso — ele indicou a caixa — pertencia a meu pai.
Por um momento, ela apenas olhou para ele incompreensivelmente. Isto era de Valentim?, pensou, e então, com um golpe, Não, não foi o que ele quis dizer.
— É claro — ela disse — Amatis foi casada com Stephen Herondale.
— Eu estive examinando isso. Lendo as cartas, as páginas do diário. Pensei que se eu fizesse isso, poderia sentir algum tipo de ligação com ele. Alguma coisa que pularia das páginas para mim, me dizendo, Sim, este é seu pai. Mas eu não sinto nada. São apenas pedaços de papel. Qualquer um poderia ter escrito estas coisas.
— Jace — ela falou suavemente.
— E há outra coisa. Eu não tenho um nome mais, tenho? Eu não sou Jonathan Christopher – que era outro alguém. Mas este é o nome que estou usando.
— Quem escolheu Jace como apelido? Você veio com ele?
Jace balançou sua cabeça.
— Não. Valentim sempre me chamou de Jonathan. E é assim como eles me chamaram quando eu fui pela primeira vez para o Instituto. Eu nunca pensei que meu nome era Jonathan Christopher, você sabe – isso foi um acidente. Eu peguei o nome no diário de meu pai, mas não era sobre mim que ele estava registrando. Era Seb... era o de Jonathan. Então na primeira vez que eu disse a Maryse que meu nome do meio era Christopher, ela disse a si mesma que apenas se recordava errado, e Christopher tinha sido o nome do meio do filho de Michael. Isso tinha sido há dez anos, depois de tudo. Mas foi quando ela começou a me chamar de Jace: era como se ela quisesse me dar um novo nome, algo que pertencesse a ela, para minha vida em Nova York. E eu gostei dele. Eu nunca tinha gostado de Jonathan — ele virou a caixa em suas mãos — eu me pergunto se talvez Maryse sabia, adivinhava ou apenas não queria saber. Ela me amava... e não queria acreditar nisso.
— Que é o motivo de ela ter ficado tão chateada quando descobriu que você era filho de Valentim — Clary disse — por que ela pensava que deveria ter sabido. Ela tiposabia. Mas nós nunca queremos acreditar em coisas como estas sobre as pessoas que amamos. E, Jace, ela estava certa sobre você. Ela estava certa sobre quem você realmente era. E você tem um nome. Seu nome é Jace. Valentim não deu esse nome a você. Maryse deu. A única coisa que faz um nome ser importante é que ele é dado por alguém que te ama.
— Jace o quê? — ele perguntou. — Jace Herondale?
— Ah, por favor. Você é Jace Lightwood. Sabe disso.
Ele levantou seus olhos para ela. Seus cílios faziam sombras espessas, escurecendo o dourado de seus olhos. Ela pensou que ele parecia um pouco menos longe, apesar de que talvez estivesse imaginando isso.
— Talvez você seja uma pessoa diferente da que pensou que era — ela continuou, esperando contra a esperança que ele entendesse o que queria dizer — mas ninguém se torna uma pessoa totalmente diferente da noite pro dia. Apenas descobrir que Stephen era seu pai biológico não fará você automaticamente amá-lo. E você não tem. Valentim não era seu verdadeiro pai, mas não porque você não tem seu sangue em suas veias. Ele não era seu pai de verdade por que ele não agia como um pai. Ele não cuidava de você. Os Lightwood sempre tomaram conta de você. Eles são sua família. Como minha mãe e Luke são a minha — ela se estendeu para tocar seu ombro, e então puxou sua mão de volta — me desculpe. Aqui estou eu passando sermão em você, e você provavelmente veio aqui em cima para ficar sozinho.
— Você está certa.
Clary sentiu todo o seu ar escapar.
— Tudo bem, então. Eu vou.
Ela se levantou, esquecendo de segurar seu vestido, e quase tropeçou sobre a bainha.
— Clary! — Colocando a caixa abaixo, Jace tropeçou para ficar de pé. — Clary, espere. Não foi isso que eu quis dizer. Eu não quis dizer que eu queria ficar sozinho. Eu quis dizer que você está certa sobre Valentim... sobre os Lightwood...
Ela se virou e olhou para ele. Jace estava em pé meio dentro e meio fora das sombras, o brilho, as luzes coloridas da festa abaixo lançando estranhos padrões contra sua pele. Ela pensou na primeira vez que o tinha visto. Ela tinha pensado que ele se parecia como um leão. Bonito e mortal.
Ele parecia diferente para ela agora. Aquele duro e defensivo casulo que usava como armadura tinha desaparecido, e, ao invés, ele usava seus ferimentos, visíveis e orgulhosamente. Não tinha utilizado sua estela para remover as contusões de seu rosto, ao longo da linha de sua mandíbula, da garganta, onde a pele aparecia da gola de sua camisa. Mas ele ainda parecia lindo para ela, mais do que antes, porque agora ele parecia humano... humano e real.
— Sabe, Aline disse que talvez você não estivesse mais interessado, agora quenão é proibido. Agora que você poderia estar comigo se quisesse — ela estremeceu um pouco no vestido fino, segurando seus cotovelos com as mãos — isso é verdade? Você não está... interessado?
— Interessado? Como se você fosse um... um livro, ou uma notícia? Não, eu não estou interessado. Eu estou...
Ele se interrompeu, procurando pela palavra do jeito que alguém poderia procurar por um interruptor no escuro.
— Você se lembra do que eu te disse antes? Sobre como me sentir pelo fato de que você era minha irmã ser um tipo de piada cósmica? Sobre nós dois?
— Eu me lembro.
— Eu nunca acreditei nisso. Quero dizer, eu acreditava nisso de um modo... eu deixei isso me levar ao desespero, mas nunca senti isso. Nunca senti que você era minha irmã. Porque eu não me sentia do modo que supostamente se sente sobre sua irmã. Mas isso não significava que eu não sentia que você era uma parte de mim. Eu sempre senti isso — vendo sua expressão confusa, ele se interrompeu com um ruído impaciente — eu não estou dizendo isso direito. Clary, eu odiava cada segundo que pensei que você era minha irmã. Eu odiava cada momento que eu pensava que o que eu sentia por você significava que havia algo errado comigo. Mas...
— Mas o quê?
O coração de Clary estava batendo tão forte que estava fazendo ela se sentir mais do que um pouco tonta.
— Eu podia ver o prazer que Valentim tirava no modo que eu me sentia sobre você. O modo que eu me sentia sobre mim. Ele usou isso como uma arma contra nós. E isso me fez odiá-lo. Mais do que qualquer outra coisa que ele tenha feito a mim, isso me fez odiá-lo, me fez virar contra ele, e talvez fosse o que eu precisava fazer. Porque havia vezes que eu não sabia se eu queria segui-lo ou não. Era uma escolha difícil... mais difícil do que eu gosto de lembrar — sua voz soava tensa.
— Eu perguntei a você se eu tinha uma escolha — Clary lembrou-o — e você disse, “nós sempre temos escolhas.” Você escolheu ir contra Valentim. E no final esta foi a escolha que você fez, e não importa o quão difícil foi fazê-la. Importa que você a fez.
— Eu sei — Jace disse — só estou dizendo que acho que eu escolhi esse caminho em parte por sua causa. Desde que eu te conheci, tudo o que eu tenho feito tem sido em parte por sua causa. Eu não posso me separar de você, Clary... nem o meu coração, ou o meu sangue, ou minha mente, ou qualquer outra parte de mim. E eu não quero.
— Não quer? — ela sussurrou.
Ele deu um passo na direção dela. Seu olhar estava fixo sobre seu rosto, como se ele não pudesse olhar para longe.
— Eu sempre pensei que o amor fazia de você um estúpido. Fazia de você fraco. Um mau Caçador de Sombras. Amar é destruir e ser amado é ser destruído. Eu acreditava nisso.
Ela mordeu seu lábio, mas ela também não podia olhar para longe dele.
— Eu costumava pensar que ser um bom guerreiro significava não se importar. Sobretudo, comigo mesmo. Eu tomava todos os riscos que podia. Me lançava no caminho dos demônios. Acho que dei a Alec um complexo de que tipo de lutador ele era, só porque ele queria viver — Jace sorriu torto — e então eu encontrei você. Você era uma mundana. Fraca. Nem uma lutadora. Nunca treinada. E então eu vi o quanto você amava sua mãe, amava Simon, e como você caminharia para dentro do inferno para salvá-los. Você realmente caminhou para dentro daquele hotel vampiro. Caçadores de Sombras com uma década de experiência não teriam tentado aquilo. Amor não faz de você um fraco, fez de você mais forte do que qualquer um que eu tenha conhecido. E eu percebi que eu era quem era o fraco.
— Não — ela estava chocada — você não é.
— Talvez não mais — ele deu outro passo, e agora, estava perto o suficiente para tocá-la — Valentim não pôde acreditar que eu matei Jonathan. Não podia acreditar porque eu era o fraco, e Jonathan era o com mais treinamento. Por todas as razões, ele provavelmente teria me matado. Ele quase o fez. Mas eu pensei em você... eu vi você lá, claramente, como se estivesse de pé em frente a mim, me observando, e eu sabia que eu queria viver, queria isso mais do que queria qualquer coisa, se apenas eu pudesse ver seu rosto uma vez mais.
Ela desejou poder se mover, desejou poder alcançá-lo e tocá-lo, mas não podia. Seus braços pareciam congelados nos seus lados. O rosto dele estava próximo ao dela, tão perto que ela podia ver o seu próprio reflexo nas pupilas de seus olhos.
— E agora eu estou olhando para você, e você está me perguntando se eu ainda te quero, como se eu pudesse parar de te amar. Como se eu quisesse desistir da coisa que me fez mais forte do que qualquer outra coisa. Eu nunca me atrevi a dar muito de mim a ninguém antes – partes de mim mesmo para os Lightwood, para Isabelle e Alec, levou anos para fazer isso... mas, Clary, desde a primeira vez que te vi, eu tenho pertencido a você completamente. Eu ainda pertenço. Se você me quiser.
Por uma fração de segundo, Clary ficou sem ação. Então, de algum modo, ela tinha segurado a frente da camisa dele e o puxado em sua direção. Seus braços foram ao redor dela, quase levantando-a para fora do chão, e então ele estava beijando-a... ou ela estava beijando-o, Clary não tinha certeza, e isso não importava. A sensação da sua boca sobre a dela era elétrica; suas mãos apertaram os braços dele, puxando-o com força contra ela. A sensação do coração dele batendo através de sua blusa a deixou tonta de alegria.
Ele soltou-a finalmente e ela ofegou – ela tinha se esquecido de respirar. Jace envolveu seu rosto entre as mãos, traçando a curva de seu rosto com seus dedos. A luz estava de volta em seus olhos, tão brilhante quanto tinham sido no lago, mas agora havia um faísca mágica neles.
— Pronto — ele disse — isso não foi tão ruim, foi, mesmo que não seja proibido?
— Eu diria pior — ela respondeu, com uma risada estremecida.
— Você sabe — ele comentou, se curvando para roçar a boca contra a dela — se é com a falta do proibido com que você está preocupada, você poderia continuar a me proibir de fazer as coisas.
— Que tipo de coisas?
Ela sentiu-o sorrir contra sua boca.
— Coisas como isso.
Depois de algum tempo, eles desceram as escadas e foram para a praça, onde uma multidão tinha começado a se reunir em antecipação aos fogos de artifício. Isabelle e os outros tinham encontrado uma mesa próxima ao canto da praça e tinham se reunido ao redor dela sobre os bancos e as cadeiras.
Enquanto eles se aproximavam do grupo, Clary estava pronta para puxar sua mão para fora da de Jace... e então parou a si mesma. Eles podiam segurar as mãos se quisessem. Não havia nada de errado com isso. O pensamento quase tirou seu fôlego.
— Aí estão vocês! — Isabelle dançou até eles em alegria, carregando um copo de líquido fúcsia, que ela impulsionou para Clary. — Tome um pouco disso!
Clary entortou seus olhos para o copo.
— Isso vai me transformar em um roedor?
— Onde está a confiança? Eu acho que isso é suco de morango — Isabelle disse — de qualquer modo, é gostoso. Jace?
Ela ofereceu o copo para ele.
— Eu sou um homem — ele respondeu a ela — e homens não consomem bebidas rosa. Retira-te, mulher, e me traga alguma coisa marrom.
— Marrom? — Isabelle fez uma careta.
— Marrom é uma cor máscula — Jace falou, e extraiu um cacho desgarrado do cabelo de Isabelle com sua mão livre — na verdade, olhe... Alec está usando essa cor.
Alec olhou pesarosamente para seu suéter.
— Ele era preto — respondeu — mas então ele desbotou.
— Você poderia vestir isso com uma faixa de lantejoulas — Magnus sugeriu, oferecendo ao seu namorado algo azul e faiscante — é só uma ideia.
— Resista à ânsia, Alec — Simon estava sentado na beira de um muro baixo com Maia ao lado dele, apesar de ela parecer estar em um profunda conversa com Aline — você parecerá como Olivia Newton-John em Xanadu.
— Há coisas piores — Magnus observou.
Simon se levantou do muro e veio para Clary e Jace. Com suas mãos nos bolsos de trás do jeans, ele olhou pensativamente para eles por um longo momento. Por fim, ele falou.
— Você parece feliz — falou para Clary. Ele girou seu olhar para Jace — e é bom para você que ela esteja.
Jace levantou uma sobrancelha.
— Esta é a parte onde você me diz que se eu machucá-la, você vai me matar?
— Não. Se você machucar Clary, ela é bem capaz de te matar por si mesma. Possivelmente com uma variedade de armas.
Jace pareceu satisfeito com o pensamento.
— Olhe — Simon disse — eu só queria dizer que está tudo bem se você não gostar de mim. Se você faz Clary feliz, eu estou bem com você.
Ele tirou a mão para fora do bolso, e Jace tirou sua mão da de Clary e apertou a de Simon, um olhar confuso sobre seu rosto.
— Eu não antipatizo com você. Na verdade, já que eu realmente gosto de você, vou te oferecer alguns conselhos.
— Conselhos? — Simon parecia desconfiado.
— Vejo que você está trabalhando esse ângulo vampiro com algum sucesso — Jace disse, indicando Isabelle e Maia com um acenar de sua cabeça — e fama. Muitas garotas amam essa coisa de morto-vivo sensível. Mas eu largaria essa coisa sob o ângulo de músico se eu fosse você. Vampiros estrelas do rock são cansativos, e além do mais, você não pode possivelmente ser muito bom.
Simon suspirou.
— Suponho que não há nenhuma chance de você reconsiderar a parte onde você não gosta de mim?
— Já chega, vocês dois — Clary se pronunciou — vocês não podem ser completos idiotas um com o outro para sempre, sabe.
— Tecnicamente — Simon observou — eu posso.
Jace fez um ruído deselegante. Depois de um tempo, Clary percebeu que ele estava tentando não rir, não se saindo muito bem.
Simon sorriu.
— Te peguei.
— Bem — Clary respondeu — este é um belo momento.
Ela olhou ao redor procurando por Isabelle, que provavelmente ficaria tão satisfeita quanto ela que Simon e Jace estivessem se aproximando, embora de maneiras peculiares. Em vez disso ela viu alguém.
De pé, no canto distante da floresta encantada, onde a sombra fundia-se com a luz, estava uma mulher esguia em um vestido verde cor de folha, seu cabelo escarlate amarrado em uma argola dourada. A Rainha Seelie. Ela estava olhando diretamente para Clary, e quando Clary encontrou seu olhar, ela suspendeu uma mão esguia e acenou. Venha.
Se era por sua própria vontade ou pela estranha compulsão pelo Povo das Fadas, Clary não teve certeza, mas com uma desculpa murmurada ela caminhou para longe dos outros e fez seu caminho para o canto da floresta, abrindo passagem através dos barulhentos festeiros.
Ela tomou conhecimento, enquanto se aproximava da Rainha, de uma grande quantidade de fadas de pé muito próximos dela, em um círculo ao redor de sua senhora. Mesmo que ela quisesse aparecer só, a Rainha nunca estava sem seus cortesãos.
A Rainha sustentou uma mão imperiosa.
— Aí — ela disse — e não mais próximo.
Clary, a poucos passos da Rainha, parou.
— Minha senhora — ela falou, se lembrando do modo formal que Jace tinha se dirigido a Rainha dentro de sua corte — por que me chamou para o seu lado?
— Eu queria um favor de você — disse a Rainha sem preâmbulos — e, é claro, eu prometeria um favor em retorno.
— Um favor de mim? — Clary repetiu, admirada. — Mas... você nem mesmo gosta de mim.
A Rainha tocou seus lábios pensativamente com um único longo dedo branco.
— O Povo das Fadas, não gosta dos humanos, não se preocupa demasiadamente com gostar. Amor, talvez e ódio. Ambas são emoções úteis. Mas gostar... — ela deu de ombros elegantemente. — O Conselho não escolheu ainda quem do nosso povo gostaria que tomasse nosso assento. Eu sei que Lucian Graymark é como um pai para você. Ele escutaria o que você solicitasse a ele. Eu gostaria que você pedisse que escolhessem meu cavaleiro Meliorn para a tarefa.
Clary pensou no Salão de Acordos, e Meliorn dizendo que não queria lutar, a menos que as Crianças da Noite lutassem também.
— Eu não acho que Luke goste muito dele.
— E de novo — disse a Rainha — você fala sobre gostar.
— Quando eu vi você antes, na Corte Seelie — Clary lembrou — a senhora chamou Jace e a mim de irmão e irmã. Mas você sabia que nós não éramos realmente irmão e irmã. Não sabia?
A rainha sorriu.
— O mesmo sangue corre em suas veias — ela rebateu — o sangue do Anjo. Todos aqueles que suportam o sangue do Anjo são irmão e irmã sob a pele.
Clary estremeceu.
— Poderia ter-nos dito a verdade, de qualquer forma. E você não o fez.
— Eu disse a você a verdade como eu a via. Nós todos dizemos a verdade como a vemos, não fazemos isso? Você já parou para se perguntar quais inverdades teriam tido na história que sua mãe contou a você, a que propósito serviria dizê-las? Você realmente pensa que sabe cada um e todos os segredos de seu passado?
Clary hesitou. Sem saber o porque, ela subitamente ouviu a voz de Madame Dorothea em sua cabeça. Você se apaixonará pela pessoa errada, a restrição que a bruxa tinha dito para Jace. Clary tinha presumido que Dorothea tinha apenas se referido a quantos problemas a afeição de Jace por Clary poderia trazer a ambos. Mas ainda havia lacunas em sua memória – mesmo agora, coisas, eventos, que não tinham voltado para ela. Segredos cujas verdades ela nunca soube. Ela os tinha dado por perdido e sem importância, mas talvez...
Não. Ela sentiu suas mãos se apertarem em seus lados. O veneno da rainha era sútil, mas poderoso. Havia alguém no mundo que pudesse verdadeiramente dizer que sabia cada segredo sobre si mesmo? E não era melhor alguns segredos serem deixados em paz?
Ela balançou a cabeça.
— O que você fez na corte, talvez não tenha sido mentir. Mas você foi cruel — ela começou a se virar para longe — e eu tive o suficiente de crueldade.
— Você realmente recusará um favor vindo da Rainha da Corte Seelie? — A Rainha demandou. — Nem a todos os mortais é concedida uma tal chance.
— Eu não preciso de um favor seu — Clary respondeu — tenho tudo o que eu quero.
Ela virou as costas para a Rainha e se afastou.
Quando retornou ao grupo que tinha deixado, ela descobriu que a eles tinham se reunido Robert e Maryse Lightwood, que estavam – ela viu com surpresa – apertando as mãos com Magnus Bane, que tinha colocado de lado a faiscante faixa e estava em um modelo de decoro. Maryse tinha seu braço ao redor do ombro de Alec. O resto de seus amigos estava sentado em um grupo ao longo do muro. Clary estava prestes a se mover para se juntar a eles quando ela sentiu um tapinha sobre seu ombro.
— Clary!
Era sua mãe, sorrindo para ela – e Luke em pé ao seu lado, sua mão na dela.
Jocelyn não estava produzida de modo algum; ela usava jeans, e uma camisa larga que, pelo menos, não estava manchada com tinta. Você não podia dizer que pelo modo que Luke estava olhando para ela que ela parecia nada menos do que perfeita.
— Eu estou feliz que finalmente encontrei você.
Clary sorriu para Luke.
— Então você não está mais se mudando para Idris, pelo o que entendi?
— Não — ele respondeu. Ele parecia tão feliz como ela nunca tinha visto ele — a pizza daqui é terrível.
Jocelyn riu e se afastou para falar com Amatis, que estava admirando uma bolha flutuante de vidro, preenchida com fumaça que ficava mudando de cor.
Clary olhou para Luke.
— Você estava realmente partindo de Nova York ou só disse aquilo para ela tomar finalmente uma posição?
— Clary — Luke respondeu — estou chocado que você sugira tal coisa — ele sorriu, e então abruptamente ficou sério — você está bem com isso, não está? Eu sei que isso significa uma grande mudança em sua vida – eu ia ver se você e sua mãe poderiam querer morar comigo, já que o seu apartamento está insuportável agora...
Clary bufou.
— Uma grande mudança? Minha vida já mudou totalmente. Várias vezes.”
Luke olhou na direção a Jace, que estava observando-os de seu lugar no muro. Jace acenou para eles, sua boca se curvando no canto em um sorriso divertido.
— Eu acho que sim — Luke disse.
— Mudanças são boas — Clary observou.
Luke estendeu sua mão acima. A runa Aliança tinha se apagado, como em todo mundo, mas sua pele ainda sustentava o revelador traço branco nela, a cicatriz que nunca desapareceria inteiramente. Ele olhou pensativamente para a marca.
— Sim, são.
— Clary! — Isabelle chamou do muro. — Fogos!
Clary bateu carinhosamente no ombro de Luke levemente e foi se juntar aos seus amigos. Eles estavam sentados ao longo do muro em uma linha: Jace, Isabelle, Simon, Maia e Aline. Ela parou ao lado de Jace.
— Eu não vi nada de fogos — ela falou, zombando da cara feia de Isabelle.
— Paciência, gafanhoto — Maia disse — quem espera sempre alcança.
— Eu sempre pensei que fosse “quem espera sempre dança” — Simon comentou.
— “Confuso” é uma palavra bonita para expressar isso — Jace disse, mas ele estava claramente prestando só um pouco de atenção.
Ele se estendeu e puxou Clary em direção a ele, quase distraidamente, como se fosse um reflexo. Ela se inclinou para trás contra seu ombro, olhando acima para o céu. Nada iluminava os céus, apenas as torres demoníacas, brilhando em um suave prata embranquecido contra a escuridão.
— Onde você foi? — ele perguntou, baixinho o suficiente para que só ela pudesse escutar a pergunta.
— A Rainha Seelie queria que eu lhe fizesse um favor. E ela queria me fazer um favor em troca — ela sentiu Jace ficar tenso — relaxe. Eu disse a ela que não.
— Não são muitas pessoas que recusam um favor vindo da Rainha Seelie.
— Eu disse a ela que não precisava de um favor. Falei que eu tinha tudo o que eu queria.
Jace riu com aquilo, suavemente, e deslizou sua mão do braço dela para seu ombro. Seus dedos tocaram vagarosamente a corrente contra seu pescoço, e Clary olhou abaixo para o cintilar da prata contra seu vestido. Ela tinha usado o anel dos Morgenstern desde que Jace tinha deixado-o com ela, e algumas vezes se perguntou porque. Ela realmente queria se lembrar de Valentim? E ainda, ao mesmo tempo, era mesmo certo esquecer?
Você não pode apagar as lembranças de tudo o que causou dor a você. Ela não queria se esquecer de Max ou Madeleine, Hodge ou a Inquisidora, ou até mesmo Sebastian. Cada memória era valiosa; mesmo as ruins.
Valentim tinha desejado esquecer: esquecer que o mundo tinha que mudar, e Caçadores de Sombras tinham que mudar com ele – esquecer que os Seres do Submundo tinha almas, e suas almas importavam para a estrutura do mundo. Ele queria pensar só no que fazia os Caçadores de Sombras diferentes dos Seres do Submundo. Mas o que tinha sido a sua ruína foi o modo como eles eram todos iguais.
— Clary — Jace chamou, tirando-a de seu devaneio.
Ele apertou seus braços em torno dela, e ela levantou sua cabeça; a multidão estava aplaudindo e gritando enquanto o primeiro dos foguetes subia.
— Olhe.
Ela olhou enquanto os fogos explodiam em um chuviscar de faíscas... faíscas que pintavam as nuvens acima enquanto elas caíam, uma por uma, em linhas corridas de fogo dourado, como anjos caindo do céu.

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