Epílogo

— Clary! — A mãe de Simon abriu um enorme sorriso ao ver a menina na entrada. — Há séculos que não a vejo. Estava começando a ficar preocupada que você e o Simon tivessem brigado.
— Ah, não — disse Clary. — Só não estava me sentindo muito bem, só isso. — Mesmo quando você tem símbolos mágicos de cura, aparentemente não é invulnerável. Ela não havia ficado surpresa ao acordar na manhã seguinte à batalha sentindo uma dor de cabeça violenta e com febre; pensou que tivesse pegado um resfriado; quem não teria após congelar em roupas molhadas por horas durante a noite? Mas Magnus disse que o mais provável era que ela houvesse se desgastado ao criar o símbolo que destruíra o navio de Valentim. 
A mãe de Simon assentiu solidariamente. 
— A mesma coisa que o Simon teve na semana retrasada, aposto. Ele mal conseguia sair da cama. 
— Ele já está melhor, não está? — disse Clary. Ela sabia que era verdade, mas não se importava em ouvir outra vez. 
— Ele está bem. Está no jardim dos fundos, eu acho. Pode ir pelo portão. — Ela sorriu. — Simon vai ficar feliz em vê-la. 
A fila de casas de tijolos na rua de Simon era dividida por cercas brancas de ferro, cada qual com um portão que levava a um pedaço de jardim nos fundos da casa. O céu brilhava azul e o ar estava frio apesar do sol. Clary podia sentir o gosto de neve que viria no ar. Ela fechou o portão atrás de si e foi procurar por Simon. Ele estava no jardim dos fundos, como prometido, deitado na espreguiçadeira com uma revista em quadrinhos no colo. Ele a colocou de lado quando viu Clary, sentou-se e sorriu. 
— Oi, baby. 
Baby? — Ela se sentou ao lado dele na cadeira. — Você está brincando, não está? 
— Estava testando. Não? 
— Não — disse com firmeza e se inclinou para beijá-lo na boca. Quando ela recuou, os dedos dele ficaram em seus cabelos, mas os olhos estavam pensativos. 
— Fiquei feliz que tenha vindo — disse ele. 
— Eu também. Teria vindo antes, mas...
— Você estava doente. Eu sei. — Ela tinha passado a semana trocando mensagens de texto com ele do sofá de Luke, onde ficou deitada, enrolada em um cobertor, assistindo a reprises de CSI. Era reconfortante passar um tempo em um mundo em que cada quebra-cabeça tinha uma resposta científica e decifrável.
— Estou melhor agora. — Ela olhou em volta e estremeceu, puxando o casaco branco mais para perto do corpo. — O que você está fazendo deitado do lado de fora nesse tempo? Não está com frio?
Simon balançou a cabeça.
— Não sinto mais frio nem calor. Além disso — sua boca se curvou em um sorriso —, quero passar o maior tempo possível no sol. Ainda sinto sono durante o dia, mas estou lutando contra.
Ela tocou a bochecha dele com a parte de trás da mão. O rosto estava aquecido pelo sol, mas abaixo a pele estava fria.
— Mas o resto continua... continua igual?
— Como assim, quer saber se continuo sendo um vampiro? Sou. Parece que sim. Ainda quero beber sangue, continuo não tendo batimentos cardíacos. Terei que evitar ir ao médico, mas como vampiros não adoecem... — Ele deu de ombros.
— E você falou com Raphael? Ele ainda não faz ideia de por que você pode sair no sol?
— Não. E também parece bem irritado com isso. — Simon piscou sonolento para ela, como se fossem duas da manhã, e não da tarde. — Acho que mexe com as ideias dele sobre como as coisas deveriam ser. Além disso, ele vai ter mais dificuldades de me fazer passear durante a noite quando estou determinado a passear durante o dia.
— Eu achei que ele ficaria satisfeitíssimo.
— Vampiros não gostam de mudanças. São muito tradicionais. — Ele sorriu para ela, que pensou: Ele vai ficar assim para sempre. Quando eu tiver 50 ou 60, ele vai continuar parecendo ter 16. Não foi um pensamento feliz. — De qualquer jeito, isso vai ser ótimo para a minha carreira musical. Se toda aquela coisa da Anne Rice estiver certa, vampiros dão ótimos astros de rock.
— Não tenho certeza se essa informação é confiável.
Ele se inclinou para trás na cadeira.
— E o que é? Além de você, é claro.
— Confiável? É assim que você me vê? — perguntou ela, fingindo indignação. — Isso não é muito romântico.
Uma sombra passou pelo rosto dele.
— Clary...
— O quê? O que foi? — Ela pegou a mão dele e a segurou. — Essa é a sua voz de notícia ruim.
Ele desviou o olhar.
— Não sei se é notícia ruim ou não.
— É um ou outro — disse Clary. — Só me diga que está bem.
— Estou bem — disse ele. — Mas... Acho que não devemos mais sair.
Clary quase caiu da cadeira.
Você não quer mais ser meu amigo?
— Clary...
— É por causa dos demônios? Porque eu transformei você em um vampiro? — A voz dela soava cada vez mais alta. — Sei que as coisas têm sido meio loucas, mas posso mantê-lo afastado de tudo isso. Posso...
Simon estremeceu.
— Você está começando a soar como um golfinho, sabia? Pare.
Clary parou.
— Ainda quero ser seu amigo — disse ele. — É sobre o resto que não tenho tanta certeza.
— Resto?
Ele começou a ruborizar. Ela não sabia que vampiros podiam ruborizar. Contrastava com a pele clara dele.
— A coisa de namorar.
Ela ficou em silêncio por um longo momento, procurando as palavras. Finalmente falou:
— Pelo menos você não falou “a coisa de beijar”. Estava com medo de que você fosse chamar assim.
Ele olhou para as mãos deles, entrelaçadas sobre a cadeira de plástico. Os dedos de Clary pareciam pequenos contra os dele, mas pela primeira vez o tom de pele dela era mais escuro.
Ele passou o dedo sobre as juntas e disse:
— Eu não chamaria assim.
— Pensei que fosse o que você queria — disse ela. — Pensei que você tivesse dito...
Ele olhou para ela por trás dos cílios longos.
— Que eu te amo? Eu amo. Mas isso não é tudo.
— É por causa de Maia? — Os dentes dela começaram a bater, apenas em parte por causa do frio. — Porque você gosta dela?
Simon hesitou.
— Não. Quero dizer, sim, gosto dela, mas não desse jeito. É só que quando estou com ela... sei como é quando alguém gosta de mim desse jeito. E com você não é assim.
— Mas você não a ama...
— Talvez possa amar um dia.
— Talvez eu possa te amar um dia.
— Se isso acontecer — disse ele —, me avise. Você sabe onde me encontrar.
Clary estava batendo os dentes com mais força.
— Não posso perder você, Simon. Não posso.
— Nunca vai me perder. Não vou te deixar. Mas prefiro ter o que temos, que é verdadeiro e importante, do que ter você fingindo outra coisa. Quando estamos juntos, quero saber que estou com você de verdade, a Clary de verdade.
Ela apoiou a cabeça na dele, fechando os olhos. Ele ainda parecia o Simon, apesar de tudo; ainda tinha o cheiro de sabão em pó.
— Talvez eu não saiba quem ela é.
— Mas eu sei.

***

A nova picape de Luke estava dobrando a esquina quando Clary saiu da casa de Simon, fechando o portão atrás de si.
— Você me trouxe, não precisava me buscar também — disse ela, entrando na cabine ao lado dele. Era a cara de Luke trocar a picape velha e destruída por uma nova, igualzinha.
— Desculpe o meu pânico paterno — disse Luke, entregando a ela um copo de café. Ela tomou um gole: sem leite e com muito açúcar, do jeito que gostava. — Fico um pouco nervoso quando você não está bem debaixo do meu nariz.
— Ah, é? — Clary segurou o café com firmeza para evitar que derramasse enquanto passavam por buracos. — Quanto tempo você acha que isso vai durar?
Luke pareceu considerar.
— Não muito. Cinco, talvez seis anos.
— Luke!
— Planejo deixá-la namorar quando tiver 30 anos, se isso ajuda.
— Na verdade, não me parece tão ruim. Posso não estar pronta até os 30.
Ele olhou de lado para ela.
— Você e Simon...?
Ela fez um gesto com a mão que não estava segurando o café.
— Nem pergunte.
— Entendo. — Provavelmente entendia mesmo. — Quer que eu a deixe em casa?
— Você está indo para o hospital, certo? — Ela conseguia perceber pela tensão nervosa por trás das piadas. — Vou com você.
Estavam na ponte agora, e Clary olhou para o rio, segurando com cuidado o copo de café. Ela não se cansava daquela vista, do curso estreito de água entre as margens profundas de Manhattan e do Brooklyn. Brilhava ao sol como uma lâmina de alumínio. Ficou imaginando por que nunca tinha tentado desenhá-lo. Lembrou-se de ter perguntado à mãe uma vez por que nunca a utilizara como modelo, nunca havia desenhado a própria filha. “Desenhar alguma coisa é tentar capturá-la para sempre”, Jocelyn dissera, sentada no chão com um pincel pingando azul nos jeans. “Quando você realmente ama alguma coisa, nunca tente conservá-la do mesmo jeito para sempre. Precisa deixá-la livre para mudar.”
Mas eu detesto mudança. Respirou fundo.
— Luke, Valentim me disse uma coisa no navio, uma coisa sobre...
— Nada de bom começa com as palavras “Valentim me disse” — resmungou ele.
— Talvez não. Mas foi sobre você e a minha mãe. Ele disse que você era apaixonado por ela.
Silêncio. Estavam parados no trânsito na ponte. Ela podia ouvir o ruído da linha Q do metrô passando.
— Você acha que é verdade? — perguntou Luke finalmente.
— Bem. — Clary podia sentir a tensão no ar e tentou escolher as palavras com cuidado. — Não sei. Quero dizer, ele disse antes e eu simplesmente descartei como paranoia e ódio. Mas depois comecei a pensar e, bem, é um pouco estranho que você sempre tenha estado por perto, sempre tenha sido como um pai para mim... Praticamente morávamos no sítio no verão, e nem você nem minha mãe nunca namoraram ninguém. Então pensei que talvez...
— Você pensou que talvez o quê?
— Talvez vocês tenham passado todo esse tempo juntos e simplesmente não quiseram me contar. Talvez tivessem pensado que eu fosse nova demais para entender. Talvez tivessem medo que eu começasse a fazer perguntas sobre o meu pai. Mas não sou mais tão nova para não entender. Você pode me contar. Acho que é isso que estou dizendo. Pode me contar qualquer coisa.
— Talvez não qualquer coisa. — Fez-se outro momento de silêncio enquanto a caminhonete avançava se arrastando pelo trânsito. Luke semicerrou os olhos com o sol, tamborilando os dedos no volante. Finalmente falou: — Você tem razão. Eu sou apaixonado pela sua mãe.
— Isso é ótimo — disse Clary, tentando soar feliz apesar do nojo provocado pela ideia de pessoas da idade de Luke e da mãe se apaixonando.
— Mas ela não sabe — disse ele, concluindo.
— Ela não sabe? — Clary fez um longo gesto com o braço. Felizmente, o copo de café estava vazio. — Como ela pode não saber? Você não contou?
— Para falar a verdade — disse Luke, pisando no acelerador de modo que o carro avançou —, não.
— Por que não?
Ele suspirou e esfregou o queixo, cansado.
— Porque nunca pareceu o momento certo.
— Essa é uma péssima desculpa, e você sabe disso.
Luke conseguiu emitir um ruído entre uma risada e um resmungo de irritação.
— Talvez, mas é verdade. Quando percebi o que sentia pela Jocelyn, eu tinha a sua idade, 16 anos. E todos nós tínhamos acabado de conhecer Valentim. Eu não tinha como competir com ele. Fiquei até um pouco satisfeito ao perceber que se não era eu que ela queria, era alguém que realmente a merecia. — A voz dele enrijeceu. — Quando percebi o quão enganado estava, era tarde demais. Quando fugimos juntos de Idris, e ela estava grávida de você, eu me ofereci para casar com ela, para cuidar dela. Disse que não importava quem fosse o pai do bebê, que eu o criaria como se fosse meu. Ela pensou que fosse caridade. Não consegui convencê-la de que eu estava sendo tão egoísta quanto era possível ser. Ela me disse que não queria ser um fardo para mim, que era pedir muito de alguém. Depois que me deixou em Paris, voltei para Idris, mas vivia inquieto, nunca fui feliz. Havia sempre uma parte de mim faltando, a parte que era Jocelyn. Sonhava que ela estava em algum lugar precisando da minha ajuda, que estava me chamando e eu não conseguia ouvir. Finalmente fui atrás dela.
— Eu lembro que ela ficou feliz — disse Clary em voz baixa — quando você a encontrou.
— Ficou e não ficou. Ficou feliz em me ver, mas ao mesmo tempo eu representava para ela todo aquele mundo do qual tinha fugido, e do qual não queria fazer parte. Ela concordou em me deixar ficar quando prometi que abriria mão de todos os laços com o bando, a Clave, Idris, tudo. Te ia me oferecido para morar com vocês, mas Jocelyn achou que seria muito difícil esconder as minhas transformações de você, e eu tive que concordar. Comprei a livraria, assumi um novo nome e fingi que Lucian Graymark estava morto. E, para todos os propósitos, estava.
— Você realmente fez muito pela minha mãe. Abriu mão de toda uma vida.
— Eu teria feito mais — disse Luke com firmeza. — Mas ela era tão inflexível quanto a não querer nada com a Clave nem com o Submundo, e eu posso fingir o que for, mas ainda sou um licantrope. Sou uma lembrança viva de tudo aquilo. E ela tinha tanta certeza de que não queria que você soubesse de nada. Sabe, nunca concordei com as visitas ao Magnus, com alterar as suas lembranças ou a sua Visão, mas era o que ela queria, e eu deixei que fizesse, pois, se tentasse impedi-la, ela me mandaria embora. E de jeito nenhum, de jeito nenhum, ela teria me deixado casar com ela, ser seu pai e não contar a verdade sobre mim. E isso teria arruinado tudo. Todas aquelas barreiras frágeis que tinha se empenhado tanto em construir entre ela e o Mundo Invisível. Não podia fazer isso com ela. Então fiquei quieto.
— Quer dizer que nunca contou a ela o que sentia?
— A sua mãe não é burra, Clary — disse Luke. Ele parecia calmo, mas havia certa rigidez na voz. — Ela devia saber. Eu me ofereci para casar com ela. Por mais gentis que tenham sido as recusas, de uma coisa eu sei: ela sabe o que eu sinto, e não sente o mesmo.
Clary ficou em silêncio.
— Tudo bem — disse Luke, tentando soar leve. — Faz muito tempo que aceitei.
Os nervos de Clary cantavam com uma tensão repentina que ela não achava que era proveniente da cafeína. Afastou os pensamentos sobre a própria vida.
— Você se ofereceu para casar com ela, mas disse que era porque a amava? Não é o que parece.
Luke ficou em silêncio, então ela continuou:
— Acho que você deveria ter dito a verdade. Acho que está enganado com relação aos sentimentos dela.
— Não estou, Clary. — A voz de Luke era firme: — agora chega.
— Lembro quando perguntei a ela uma vez por que ela não namorava — disse Clary, tom de advertência dele. — E ela respondeu que era porque já tinha entregado seu coração a alguém. Pensei que estivesse falando do meu pai, mas agora... agora não tenho tanta certeza.
Luke parecia realmente espantado.
— Ela disse isso? — Ele se recompôs e acrescentou: — Provavelmente estava falando do Valentim.
— Acho que não. — Ela olhou para ele com o canto do olho. — Além disso, você não odeia não dizer como realmente se sente?
Dessa vez o silêncio durou até saírem da ponte e entrarem na Orchard Street, ladeada por lojas e restaurantes cujas placas eram escritas em belos caracteres chineses curvilíneos dourados e vermelhos.
— Sim, odeio — disse Luke. — Na época achei que o que eu tinha com a sua mãe era melhor do que nada, mas quando você não consegue falar a verdade para as pessoas com quem mais se importa no mundo, eventualmente deixa de conseguir dizer a verdade para si mesmo.
Fez-se um ruído como água correndo no ouvido de Clary. Ao olhar para baixo, ela viu que tinha amassado o copo de papel que estava segurando em uma bola de papel irreconhecível.
— Me leve para o Instituto — disse ela. — Por favor.
Luke olhou surpreso para ela.
— Pensei que você quisesse ir ao hospital.
— Eu o encontro lá quando acabar. Preciso fazer uma coisa primeiro.

***

O andar mais baixo do Instituto estava cheio de luz do sol e de montículos de poeira. Clary passou pelo corredor entre os bancos, correu para o elevador e apertou furiosamente o botão.
— Vamos logo, vamos logo — murmurou. — Vamos...
As portas douradas se abriram. Jace estava no elevador. Ele arregalou os olhos ao vê-la.
— ... logo — concluiu Clary, e baixou o braço. — Ah. Oi.
Ele a encarou.
— Clary?
— Você cortou o cabelo — disse ela sem pensar. Era verdade; as longas mechas metálicas não caíam mais no rosto, mas estavam cuidadosamente aparadas. O que o fazia parecer mais civilizado, até um pouco mais velho. Estava muito bem-vestido também, com um casaco azul-escuro e calças jeans. Algo prateado brilhava em sua garganta, logo abaixo do colarinho do casaco.
Ele levantou a mão.
— Ah. É verdade. Maryse cortou. — A porta do elevador começou a deslizar e fechar; ele a conteve. — Você precisa subir até o Instituto?
Ela fez que não com a cabeça.
— Só queria falar com você.
— Ah. — Ele pareceu um pouco surpreso ao ouvir isso, mas saiu do elevador, deixando a porta se fechar atrás. — Eu estava indo até o Taki’s comprar comida. Ninguém está a fim de cozinhar...
— Entendo — disse Clary, em seguida desejou não tê-lo feito. Não era como se a vontade dos Lightwood de cozinhar ou não tivesse alguma coisa a ver com ela.
— Podemos conversar lá — disse Jace. Ele foi para a porta, em seguida parou e olhou para ela. En re dois dos candelabros acesos, as luzes projetavam uma camada dourada no cabelo e na pele dele, que parecia a pintura de um anjo. O coração de Clary se contraiu. — Você vem ou não? — irritou-se, não soando nada angelical.
— Ah. Certo. Claro. — Ela se apressou para alcançá-lo.
Enquanto andavam até o Taki’s, Clary tentou manter a conversa longe de tópicos relacionados a ela, Jace, ou a ela e Jace. Em vez disso, perguntou a ele como estavam Isabelle, Alec e Max.
Jace hesitou. Estavam cruzando a First Avenue e uma brisa fria soprava pela avenida. O céu estava azul e sem nuvens, um perfeito dia de outono em Nova York.
— Desculpe. — Clary franziu o cenho com a própria tolice. — Eles devem estar péssimos. Todas aquelas pessoas que conheciam estão mortas.
— É diferente para os Caçadores de Sombras — disse Jace. — Somos guerreiros. Esperamos a morte de uma maneira que vocês...
Clary não conseguiu conter um suspiro.
— “Vocês, mundanos, não esperam.” Era isso que ia dizer, não era?
— Era — admitiu ele. — Às vezes é difícil até para mim saber o que você realmente é. Tinham parado na frente do Taki’s, com seu telhado arqueado e a fachada sem janelas. O Ifrit que guardava a porta da frente olhou para eles com olhos vermelhos desconfiados.
— Sou Clary — disse ela.
Jace olhou para ela. O vento soprava o cabelo dela para cima do rosto. Ele esticou a mão e o colocou para trás, quase ausente.
— Eu sei.
Lá dentro encontraram uma mesa no canto e se sentaram. O restaurante estava quase vazio: Kaelie, a garçonete fada, estava no balcão, batendo as asas azuis e brancas de forma preguiçosa. Ela e Jace já tinham saído uma vez. Um par de lobisomens ocupava outra mesa. Estavam comendo perna de carneiro crua e discutindo sobre quem ganharia numa briga: Dumbledore, dos livros de Harry Potter, ou Magnus Bane.
— Claro que Dumbledore ganharia — disse o primeiro. — Ele tem aquela Avada Kedavra potente.
O segundo licantrope rebateu com um argumento sólido.
— Mas Dumbledore não é real.
— Não acho que Magnus Bane seja real — disse o primeiro. — Alguma vez você já o viu?
— Isso é tão estranho — disse Clary, afundando na cadeira. — Você está ouvindo a conversa deles?
— Não. É falta de educação ouvir a conversa dos outros. — Jace estava olhando o cardápio, o que deu uma oportunidade a Clary de olhar para ele. Nunca olho para você, ela dissera. E era verdade, ou pelo menos nunca tinha olhado para ele como queria olhar, com olho de artista. Sempre se perdia, distraída por um detalhe: a curva da maçã do rosto, o ângulo dos cílios, o formato da boca.
— Você está me encarando — disse ele, sem levantar os olhos do cardápio. — Por que está me encarando? Algum problema?
A chegada de Kaelie à mesa deles salvou Clary de ter que responder. A caneta dela, Clary notou, era um galho de madeira prateada. Olhou para Clary curiosa com seus olhos totalmente azuis.
— Já sabem o que querem?
Despreparada, Clary pediu alguns itens aleatórios do cardápio. Jace pediu um prato de batatas-doces fritas e alguns pratos para viagem, para levar para os Lightwood. Kaelie saiu, deixando um suave aroma de flores no ar.
— Diga a Alec e Isabelle que sinto muito por tudo que aconteceu — disse Clary quando a garçonete estava distante. — E diga a Max que o levarei ao Planeta Proibido quando ele quiser.
— Apenas mundanos falam que sentem muito quando o que querem dizer é “compartilho do seu sofrimento” — observou Jace. — Você não teve culpa de nada, Clary. — Os olhos dele brilharam com ódio repentinamente. — A culpa foi de Valentim.
— Suponho que não tenham nenhum...
— Sinal dele? Não. Deve estar enfurnado em algum lugar, até conseguir terminar o que começou com a Espada. Depois disso... — Jace deu de ombros.
— Depois disso, o quê? — Não sei. Ele é louco. É difícil adivinhar o que um louco vai fazer em seguida. — Mas evitou os olhos dela, e Clary sabia no que ele estava pensando: guerra. Era o que Valentim queria. Guerra com os Caçadores de Sombras. E era o que teria. Era uma mera questão de onde atacaria primeiro. — Seja como for, duvido que tenha sido essa a razão pela qual veio falar comigo, ou foi?
— Não. — Agora que o momento havia chegado, Clary tinha dificuldades para encontrar as palavras. Ela viu o próprio reflexo no lado prateado do suporte de guardanapos. Casaco branco, rosto branco, rubor nas bochechas. Tinha a aparência de alguém que estava febril. E também se sentia um pouco assim. — Há alguns dias que eu quero falar com você...
— Me enganou direitinho. — A voz dele era forçadamente brusca. — Todas as vezes que liguei, Luke me disse que você estava doente. Concluí que estava me evitando. Outra vez.
— Não estava. — Clary tinha a impressão de que havia um enorme espaço vazio entre eles, apesar de a mesa não ser tão grande, e de eles não estarem sentados muito afastados um do outro. — Eu queria falar com você. Pensei em você o tempo todo.
Ele emitiu um ruído de surpresa e esticou a mão sobre a mesa. Ela pegou, e uma onda de alívio a invadiu.
— Tenho pensado em você também.
A mão dele era calorosa, reconfortante, e ela se lembrou de como tinha tirado o fragmento de espelho quebrado da mão dele em Renwick — a única coisa que restava de sua antiga vida — e de como ele a tinha tomado nos braços.
— Eu estava doente mesmo — disse ela. — Juro. Quase morri no navio, sabia?
Ele soltou a mão dela, mas continuou a olhá-la fixamente, quase como se quisesse memorizar seu rosto.
— Eu sei — disse ele. — Toda vez que você quase morre, eu quase morro também.
As palavras dele fizeram o coração de Clary disparar como se tivesse acabado de engolir um monte de cafeína.
— Jace, eu vim aqui para dizer que...
— Espere. Deixe-me falar primeiro. — Ele estendeu a mão como para bloquear as palavras dela. — Antes que diga alguma coisa, queria pedir desculpas.
— Desculpas? Por quê?
— Por não te ouvir. — Ele empurrou os cabelos para trás com as mãos, e ela notou uma pequena cicatriz, uma linha prateada, na lateral da garganta. Antes não existia. — Você não parava de dizer que eu não podia ter o que queria de você, e eu fiquei forçando, e forçando, e não dei ouvidos. Eu queria você, e não me importava com nada que qualquer pessoa pudesse dizer a respeito... Nem mesmo você.
De repente, Clary ficou com a boca seca, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Kaelie estava de volta com as batatas de Jace e vários pratos para Clary. Ela olhou para o que tinha pedido. Um milk-shake verde, o que parecia carne crua de hambúrguer e um prato de grilos cobertos de chocolate. Não que fizesse diferença; o estômago estava embrulhado demais para que ela sequer pensasse em comer.
— Jace — disse ela assim que a garçonete saiu. — Você não fez nada errado. Você...
— Não. Deixe-me terminar. — Ele estava olhando para as batatas como se elas detivessem os segredos do universo. — Clary, tenho que dizer agora, ou... ou não vou conseguir. — As palavras saíram apressadas, em uma torrente: — Pensei que tivesse perdido a minha família. E não estou falando de Valentim. Estou falando dos Lightwood. Pensei que não quisessem mais saber de mim. Achei que não houvesse mais nada além de você no meu mundo. Eu... enlouqueci com a perda e descontei em você, e sinto muito por isso. Você estava certa.
— Não. Eu fui burra. Fui cruel com você...
— Tinha todo o direito de ser. — Ele levantou os olhos para olhar para ela, e estranhamente ela se lembrou de quando tinha 4 anos e estava na praia, chorando porque o vento tinha vindo e desfeito o castelo que tinha construído. A mãe tinha dito que poderia fazer outro se ela quisesse, mas isso não impediu que chorasse, pois o que ela acreditava que era permanente não era permanente afinal, apenas feito de areia que desaparecia com a força do vento ou da água. — O que você disse era verdade. Não vivemos nem amamos em um vácuo. Existem pessoas ao nosso redor que se importam conosco, e que ficariam magoadas, talvez arrasadas, se nos permitirmos sentir o que quisermos sentir. Ser tão egoísta assim, significaria... significaria ser como Valentim.
Ele pronunciou o nome do pai de forma tão definitiva que Clary sentiu como se uma porta se fechasse na cara dela.
— Vou ser apenas seu irmão a partir de agora — disse ele, olhando para ela com uma expectativa cheia de esperança de que ela fosse ficar feliz, o que a fez querer gritar que ele estava despedaçando seu coração e tinha que parar. — Era o que você queria, não era?
Ela demorou um bom tempo para responder, e quando o fez, a própria voz soava como um eco vindo de muito longe.
— Era — disse ela, e ouviu uma carga de ondas nos ouvidos, os olhos ardendo como se tivessem sido atingidos por areia ou por uma rajada de sal. — Era o que eu queria.

***

Clary caminhou entorpecida até as portas de vidro do Beth Israel. De alguma forma, estava feliz por estar ali e não em outro lugar. O que ela queria mais do que qualquer outra coisa era se jogar nos braços da mãe e chorar, mesmo que nunca pudesse explicar a ela a razão pela qual estava chorando. Como não podia fazer isso, sentar ao lado da cama da mãe e chorar parecia a segunda melhor opção.
Ela tinha se controlado bastante no Taki’s, e até dera um abraço de despedida em Jace ao sair. Não começara a chorar até entrar no metrô, e então se vira aos prantos por tudo que ainda não tinha chorado: Jace, Simon, Luke, a mãe e até Valentim. Tinha chorado alto o suficiente para que o homem sentado diante dela oferecesse um lenço, e tinha gritado: O que você pensa que está fazendo, babaca? para ele, porque era isso que se fazia em Nova York. Depois disso se sentiu um pouco melhor.
Ao se aproximar do topo das escadas, percebeu que havia uma mulher lá. Vestia uma longa capa escura sobre o vestido, não o tipo de coisa que normalmente se via em uma rua de Manhattan. A capa era feita de um material escuro e aveludado e tinha um capuz largo, que estava levantando, escondendo o rosto. Ao olhar em volta, Clary viu que mais ninguém nos degraus do hospital nem perto das portas parecia notar a visão. Um feitiço, então.
Ela chegou ao topo e parou, olhando para a mulher. Ainda não conseguia ver o rosto.
Clary disse:
— Olha só, se você estiver aqui para me ver, diga logo o que quer. Não estou muito a fim de nada que envolva magia e sigilo agora.
Ela notou as pessoas ao redor parando e olhando para a menina maluca falando sozinha. Combateu o impulso de mostrar a língua para eles.
— Tudo bem. — A voz era gentil, estranhamente familiar. A mulher subiu e tirou o capuz. Cabelos prateados caíram sobre os ombros em uma onda. Era a mulher que Clary tinha visto encará-la no jardim do Cemitério de Mármore, a mesma mulher que os salvara da faca de Malik no Instituto. De perto, Clary podia ver que tinha o rosto anguloso, severo demais para ser bonito, apesar de os olhos serem de um castanho intenso e adorável. — O meu nome é Madeleine. Madeleine Bellefleur.
— E...? — disse Clary. — O que você quer de mim?
A mulher — Madeleine — hesitou.
— Eu conhecia a sua mãe, Jocelyn — disse. — Éramos amigas em Idris.
— Você não pode visitá-la — disse Clary. — Nenhum visitante de fora da família até ela melhorar.
— Ela não vai melhorar.
Clary sentiu como se tivesse levado um tapa na cara.
— O quê?
— Desculpe — disse Madeleine. — Não tive intenção de perturbá-la. É que eu sei o que há de errado com Jocelyn, e não há nada que um hospital mundano possa fazer por ela agora. O que aconteceu com ela... foi ela que fez, Clarissa.
— Não. Você não entende. Valentim...
— Ela fez antes de Valentim chegar até ela. Para que ele não pudesse arrancar nenhuma informação dela. Jocelyn planejou isso. Era um segredo, um segredo que dividiu somente com mais uma pessoa, e só a essa pessoa contou como o feitiço poderia ser revertido. Essa pessoa sou eu.
— Quer dizer...
— Sim — disse Madeleine. — Quero dizer que posso mostrar a você como acordar a sua mãe.

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